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Decifrando o genoma: a corrida para desvendar o DNA humano | Kevin Davies
A divulgação oficial, em junho de 2000, do primeiro ‘rascunho’ completo da cadeia de DNA humana constitui o mote central da argumentação de Kevin Davies em seu Decifrando o genoma. Em torno desse evento tão explorado pela mídia, controverso no meio científico e polêmico entre a opinião pública, cabem as apreciações do autor sobre a história dos estudos em genética. Ao mesmo tempo, ele expõe o campo de atuação da engenharia genética moderna e especula acerca de suas futuras conquistas.
O leitor à procura de reflexões mais aprofundadas sobre questões como bioética ou ansioso por entrar em contato com uma postura relativista possivelmente findará a leitura insatisfeito. Contudo, o autor alcança seu objetivo de mapear o que tem sido feito em genética desde seus ‘mitos de origem’, com as descobertas de Mendel, até as recentes revoluções biotecnológicas na ‘era da genômica’.
Na introdução, Kevin Davies explica que não pretende explorar o viés político e tampouco analisar antropologicamente o projeto Genoma Humano, mas sim “captar a emoção, a intriga, o mistério e a majestade da busca do Santo Graal da biologia” (p. 23).
À margem da proposta do autor, sobressai uma tendência de situar as conquistas científicas inseridas em sua cronologia histórica através de relações imediatas de causa e efeito. Essa perspectiva associativa que avalia o desenvolvimento da ciência segundo uma concepção unilinear torna-se explícita quando o autor acompanha a evolução do projeto Genoma Humano tomando por referência única a relação antagônica entre o Consórcio Público Internacional do Genoma e a iniciativa privada, leia-se, Celera Genomics.
Ainda sobre a oposição entre instâncias pública e privada, o autor tende a configurá-las metonimicamente. A personificação do debate é um recurso recorrente no texto. O Consórcio Público Internacional é primeiramente associado à figura de James Watson para depois dar espaço a seu sucessor na chefia do empreendimento, Francis Collins. Na iniciativa privada, destaca-se o nome de Craig Venter. Guardadas as devidas proporções, tais associações parecem justas e pertinentes, não fossem as apropriações que delas faz a narrativa ao exacerbar a questão da disputa no campo científico e polarizar a discussão sobre o seqüenciamento gênico.
Parece estar-se criando um tipo ideal de pesquisador, fundamentado em suas experiências, trajetória de vida e aspirações pessoais. A proposição de configurar a “corrida para desvendar o DNA humano” como uma competição particular entre dois homens é contestável. Na comparação entre Francis Collins e Craig Venter, o autor destaca pontos congruentes nas duas personalidades: homens que em suas vidas têm, ao lado de um acentuado espírito de competitividade, um comportamento altruísta atestado por seus ideais humanistas. Collins e Venter, segundo Davies, possuem personalidades cativantes, o que lhes fornece o substrato para serem figuras públicas, além do fato de serem cientistas de ponta. Assim é forjado o perfil daqueles que fariam a história decodificando o genoma humano.
Uma preocupação de Kevin Davies é ilustrar o contexto histórico em que se desenvolveram as primeiras idéias de elaborar um projeto que viabilizasse os estudos sobre o genoma humano. Os dois primeiros capítulos do livro tratam dos pioneiros, como James Watson, e principais defensores da implementação de um programa que necessitaria da disponibilidade de bilhões de dólares anuais.
Entre os que advogavam a favor do projeto Genoma Humano, havia os que o consideravam um grande passo para outros programas, como o do estudo do genoma do câncer. Outros, como Walter Gilbert e Eric Lander, avaliavam a iniciativa como a oportunidade de conceder à biologia o status de ciência que opera a partir de padrões universais. A perspectiva totalizante de se entender a biologia humana, assim como a possibilidade de listar em um livro todos os códigos que regem as funções do corpo humano, era de fato atraente, por abrir caminho para grandes projetos em biologia.
A princípio fomentado por órgãos públicos como o National Institute of Health e o U. S. Department of Energy, o projeto Genoma Humano, que teve início oficialmente em outubro de 1990, logo surge como uma promessa rentável para grandes empresas privadas, sobretudo da área de farmacologia e biomedicina. Estas últimas, por conseguinte, injetam capital nas pesquisas de diversos institutos, de olho nos lucros obtidos a partir do desenvolvimento de novas drogas e medicamentos criados com base nas descobertas sobre o genoma humano. A introdução do capital privado nas pesquisas redobrou a apreensão acerca das chamadas “implicações éticas, legais e sociais” do projeto. Questões como a discriminação genética e a patente dos genes tornaram-se polêmicas amplamente divulgadas na imprensa não-especializada e acentuaram o debate entre aqueles que se posicionavam contra ou a favor do projeto Genoma Humano.
Com um privilegiado lugar conquistado por sua experiência como editor-chefe da Nature Genetics, Davies oferece-nos uma abordagem esclarecedora sobre esse momento marcado pela intensificação dos confrontos entre o Consórcio Público Internacional e as pesquisas privadas. O clima tenso é bem trabalhado em Decifrando o genoma, que, utilizando a imagem de uma ‘corrida’, apresenta as vantagens e as limitações das duas partes: a pública e a privada.
O Consórcio Público Internacional do Genoma já entrava em seu segundo plano qüinqüenal de metas e ainda não havia conseguido atingir uma percentagem expressiva no seqüenciamento do genoma humano. Segundo Davies, isso explicava-se pelo método de clonagem gênica utilizado: com alto grau de confiabilidade, porém consideravelmente lento em relação ao modelo shotgun de Craig Venter. Por outro lado, a empresa privada de seqüenciamento genético, apesar de adiantada na tarefa de decodificar todo o genoma humano, enfrentava problemas relativos à impossibilidade legal de utilizar as patentes dos genes decodificados.
Um processo de conciliação de interesses foi então administrado pelo governo norte-americano, culminando, em 26 de junho de 2000, com o anúncio feito pelo então presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, e pelo primeiro-ministro britânico, Tony Blair, sobre o término do que foi considerado o ‘rascunho’ da seqüência gênica humana. Acompanhado por Francis Collins e Craig Venter, na Casa Branca, Bill Clinton comparava o feito dos cientistas ao aprendizado da “linguagem de Deus”.
A metáfora parece consagrar um processo marcado pela utilização de tantas outras, como ‘Santo Graal’, ‘Código dos códigos’, ‘Livro da vida’ etc. Esse não deixa de ser um dado importante — embora ignorado pela ênfase dada à linguagem jornalística utilizada pelo autor — que, analisado epistemologicamente, fornece subsídios para se pensar sobre as promessas oferecidas pelo projeto Genoma Humano à luz de uma sociologia das ciências.
As conseqüências do projeto são ainda motivo de especulação. Para Kevin Davies, como declarou Craig Venter: “A seqüência é apenas o início…” Subprogramas, tais como o projeto Genoma Funcional, pretendem localizar genes ou conjuntos de genes determinantes em potencial — simples ou complexos — de características biológicas, comportamentais e patológicas. Tantas vezes comparado à ficção de Huxley em Admirável mundo novo, os ‘profetas’ do projeto Genoma Humano parecem reproduzir algumas tendências reducionistas caras a outras correntes da história das ciências. Admirável, sim. Resta agora averiguar o quão inovador ideologicamente ele vem a ser.
Resenhista
Guilherme José da Silva e Sá – Doutorando em antropologia social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: guilherme_jose_sa@yahoo.com.br
Referências desta Resenha
DAVIES, Kevin. Decifrando o genoma: a corrida para desvendar o DNA humano. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. Resenha de: SÁ, Guilherme José da Silva e. Corrida ou duelo? História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.10, n.2, maio/ago. 2003. Acessar publicação original [DR]