As ciências na história das relações Brasil-EUA | Mgali Romero Sá, Dominichi Miranda de Sá e André Felipe Silva

Organizado pelos pesquisadores da Casa de Oswaldo Cruz Magali Sá, Domichi Sá e André Silva, As ciências na história das relações Brasil-EUA reúne textos que analisam as conexões estabelecidas entre esses dois países tendo como ponto de partida projetos e redes de pesquisa que sinalizam como a diplomacia cultural foi, muitas vezes, também científica. Interesses econômicos e políticos não estão apartados nessas narrativas, sinalizadoras das múltiplas convergências que marcaram essas relações ao longo do século XX. Os 17 capítulos que integram o livro compõem esse recorte temporal amplo, assim como os campos de investigação que são eleitos para análise: agronomia, medicina, física, genética, antropologia, ciências sociais, biologia, entre outros.

Desse modo, o primeiro capítulo trabalha com uma perspectiva de aproximação dos EUA a partir da retórica do pan-americanismo, tomando como objeto as narrativas do Boletim da União Pan-americana do começo do século XX, enquanto o segundo analisa a expedição Roosevelt-Rondon (1913-1914). Já o último capítulo examina a constituição e a institucionalização do campo da biologia da conservação e os projetos a ele relacionados durante a segunda metade do século XX. As diferenças temporal e disciplinar se refletem no modo como os vocabulários pelos quais essas relações se estabeleceram também foram mudando de significado. Assim a “natureza” dos boletins da União Pan-Americana ou da viagem de um Roosevelt “aventureiro” e “caçador” (Sá, Sá, Silva, 2020, p.59) não é a mesma dos projetos de conservação desenvolvidos em parceria pelos ambientalistas, brasileiros e estrangeiros. Entre uma natureza e outra, cabe ao leitor estabelecer uma linha por vezes impossível de ser definida, porque heterogênea em suas associações. O mesmo pode ser dito se tomarmos a Amazônia como elemento aglutinador de alguns dos capítulos. Leia Mais

Antropologia Brasiliana: Ciência e Educação na obra de Edgard Roquette-Pinto – LIMA (RIHGB)

LIMA, Nísia Trindade; SÁ, Dominichi Miranda de (Orgs). Antropologia Brasiliana: Ciência e Educação na obra de Edgard Roquette-Pinto.Nísia Belo Horizonte, UFMG e Rio de Janeiro, FIOCRUZ, 2008. Resenha de RIOS: José Arthur. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, a. 171 (447) p.291-298, abr./jun. 2010.R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 171 (447) p.291-298, abr./jun 2010.

O título do livro deriva da expressão cunhada por Edgard Roquette-Pinto, tema principal dessa coletânea de ensaios. As organizadoras, téc­nicas e professoras da Casa de Oswaldo Cruz, uma, socióloga (Nísia), outra, historiadora (Dominichi), ambas se completam na interpretação e na análise documental dos dados e informações colhidos em obras, cor­respondências e arquivos, sobre essa curiosa figura de sábio e pioneiro.

Robert Wegner assina erudito Prefácio completado por uma Apre­sentação das organizadoras que associam a trajetória intelectual de Ro­quette-Pinto à própria história da República na primeira metade do século XX e, mais que isso, à historia das ideias e do pensamento científico naquelas décadas.

Valiosa a transcrição de uma palestra de Roquette sobre “Ciência e Cientistas do Brasil”, proferida em 1939, onde nos dá, com a autoridade de protagonista, o estado da questão, uma visão panorâmica dos avan­ços e atrasos das ciências físico-naturais no Brasil da época. Duas ideias transparecem (Dominichi) nesse texto: – a influência do Positivismo e a preocupação dominante na legitimação da ciência, sobretudo de uma “ciência pura” face a uma “ciência aplicada”.

Na mesma perspectiva interpretativa, Alberto Venâncio Filho analisa a obra de Roquette-Pinto como expressão de humanismo, assinalando a importância da formação positivista, bebida desde tempos escolares, na gênese do pensamento do autor de Rondônia; bem como sua tentativa de conciliar ciência e técnica com as melhores fontes do humanismo do século XIX, sobretudo com a obra de Goethe, de declarada influência na obra de Roquette.

Central, no livro, o ensaio de Nísia Trindade Lima situando o cien­tista na sua geração, no papel renovador e contestatário que esta desem­penhou face à sociedade patriarcal e à cultura que produziu, baseada na inteligentsia bacharelesca, na aversão das elites ao trabalho manual e na retórica romântica.  Nessa perspectiva – do amplo processo de desagregação do regime escravista e da sociedade patriarcal, e a demorada extinção de suas mar­cas – as autoras situam a obra de Roquette. Seria esta mais um capítulo na busca de identidade do povo brasileiro. Escreve em momento de tran­sição social e cultural em que antigas categorias explicativas como “raça” e “mestiçagem” vão cedendo lugar a traços culturais persistentes como analfabetismo, doença e atraso. Tudo isso se prende à ascendência das camadas médias urbanas na sociedade brasileira, ansiosas por abraçar, na nova República, uma ideologia justificadora. Nesse cenário avulta o papel inspirador – e formatizador – do que João Cruz Costa chamou “po­sitivismo difuso”, de remota, mas certa raiz na doutrina de Comte.  Esse Positivismo sui generis é tema do ensaio de Luiz Otávio Fer­reira (“Ethos positivista e a institucionalização das ciências no Brazil”) onde salienta a função do arcabouço institucional então criado, institutos, centros de pesquisas e laboratórios, sem o que as ideias renovadoras dessa nova geração careceriam de uma caixa de ressonância. Como demonstra o autor, mediatizaram essas instituições as inovações intelectuais trazidas pelos cientistas, articulando sua atividade com um sistema de ensino su­perior, criando campo de prova para as primeiras reformas universitárias. Sob esse aspecto, a obra de Fernando de Azevedo, companheiro de gera­ção de Roquette-Pinto, é bastante característica dessas vocações. Nesses avanços científicos, – caruncho no tronco – brota o cientificismo, no qual capitulam os melhores espíritos – Alberto Torres, Oliveira Vianna, Eucli­des, que pagaram preço alto à pseudociência dos tempos.

Essa institucionalização se prende a amplo projeto nacional. É o grande tema de Rondônia, como evidenciam, em outro ensaio, a mãos juntas, Nísia Trindade Lima, Ricardo Ventura Santos e Carlos E. A Coim­bra Junior. A obra de Roquette resultou de um projeto caro à nova Re­pública – a expedição Rondon e a implantação das linhas telegráficas no extremo Oeste. Graças a Rondon, a ciência não se legitimava apenas pe­las elocubrações e descobertas de gabinete, mas por propiciar a extensão do Estado às regiões inóspitas, aos “sertões” do Brasil; e a incorporação das populações indígenas à proteção paternalista do Governo. O “sertão” é assim anexado à cultura urbana e o sertanejo – o homem forte, mas abandonado, de Euclides, – é agora associado à obra coletiva da criação nacional. Em Rondônia, como os autores vêm a obra mestra de Roquette, ocorre a transição da antropologia física de Broca, Bertillon e outros – a antropologia das medidas antropométricas – para uma redefinição do “primitivo” que só poderá se processar em termos culturais.

Ricardo Ventura Santos aborda o mesmo tema sob o ângulo da mes­tiçagem, objeto de acalorados, às vezes transviados, debates na sociologia e na medicina da época e que levaram Roquette, admirador de Euclides, a separar-se, nesse ponto, do cientificismo do autor dos Sertões. Na discus­são o autor exalta, com acerto, a importância da componente nacionalista que vai dominar a polêmica nos anos 20 e 30.

É justamente o momento em que o debate passa do domínio cientifico – ou cientificista – para o campo político e avulta, no cenário internacional do após Primeira Guerra, – cortado de redefinições de fronteiras e movi­mentação de povos, – o problema das migrações. É este objeto do denso, pesquisado e fundamentado ensaio de Giralda Seyferth (“Roquette-Pinto e o debate sobre raça e imigração no Brasil”). Demonstra os obstáculos ideológicos que atravancavam o caminho para uma solução racional e despreconceituosa do problema. Ditadas por uma teorização equivocada e lacunosa, surgem, no cenário brasileiro, propostas que, hoje, nos fazem rir, assinadas por figuras respeitáveis, alguns médicos, de renome.

Típica é a reação de muitos à imigração japonesa, tida como ameaça à nossa pureza racial, a ponto de merecer a denúncia de “perigo amarelo”. Assim também a repulsa à mera possibilidade de uma imigração chinesa acalentada por alguns líderes desde o tempo do Império, como substitu­ta no latifúndio cafeeiro, à escravidão africana – e até considerada nos anos 30 “repugnante”. Obedece aos mesmos preconceitos a sugestão de adoção do sistema de quotas, cópia do modelo americano. Essas ideias, como verifica a autora, resultaram em políticas, ditaram critérios restriti­vos quando não proibitivos, contra correntes imigratórias que nos teriam trazido, como algumas de fato trouxeram, progresso social, tecnologia e prosperidade. Eram todas sustentadas em nome da pureza da raça, concei­to de problemática definição.

A confusão, muitas vezes ciente e consciente, entre raça, etnia, povo e nacionalidade, sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial e durante o Estado Novo, resultou de fato em políticas anti-imigrantistas. É o tema de Jair de Souza Ramos (“Como classificar os indesejáveis?”). O autor, no entanto, usa o termo “racialização”, “medidas racialistas”, quando na verdade está falando de racismo, tout court, agravado no período da Se­gunda Guerra, pela entrada do Brasil na luta contra o Eixo e que atingiu, por motivações diversas, os descendentes de italianos, alemães e japone­ses no Sul do Brasil, e também judeus que tentavam fugir à perseguição nazista – como fartamente documentado. Roquette-Pinto prestou-se, no caso, a interpretações nacionalistas, quando afirmou que o brasileiro não precisava de substituto – nivelando-se a outro contemporâneo que ficou célebre pela afirmação “o brasileiro é o melhor imigrante”.

A preocupação da Eugenia, generalizada na época e importada dos círculos científicos europeus e norte-americanos, constituiu tropeço no pensamento de Roquette, como demonstra Vanderlei Sebastião de Souza (“As leis da eugenia na antropologia de Roquette-Pinto”). A Eugenia an­dou muito associada às teorias racistas, tornou-se, na Alemanha nazista, instrumento e desculpa para a eliminação de “indesejáveis” – leiam-se minorias, os chamados “quistos” – termo usado no Brasil para designar as colônias alemãs no Sul – por serem, segundo os autores dessas teorias, inassimiláveis, irredutíveis ao melting pot brasileiro. Assim também fo­ram considerados os “amarelos”, os orientais de várias procedências, cuja assimilação e docilidade à miscigenação tornaram-se hoje evidentes, a olho nu, para quem transita nas ruas de São Paulo, onde se misturam gos­tosamente com os descendentes dos bandeirantes, arianos e não – arianos, caros a Oliveira Vianna.

Os últimos ensaios do livro dedicam-se à descrição do enorme papel desempenhado pelo autor de Rondônia na criação da nossa radiofonia educativa. E, paradoxalmente, na elaboração das normas de censura a esse novo meio de comunicação. Ildeu de Castro Moreira, Luisa Mas­sarani e Jaime Aranha descrevem a importância de Roquette na nossa primeira divulgação científica, enquanto Regina Horta Duarte compõe um retrato do Roquette viajante e Sheila Schwartzman realça sua contri­buição ao uso educativo do cinema.

Enriquece o livro farto material fotográfico e cartográfico e a trans­crição de textos de Roquette-Pinto, alguns inéditos. É de lamentar a falta de um índice onomástico, indispensável face à riqueza das fontes consul­tadas e citadas.  Nenhum praticante das ciências humanas está isento da contamina­ção com teorias espúrias, ranço de seu pensamento cientificismo, seja o darwinismo de seu pensamento social, o positivismo, o marxismo de pacotilha ou a psicanálise de bolso. O livro, de titulo elusivo, mas de lei­tura essencial, é indispensável para uma visão dos caminhos e descami­nhos da antropologia brasileira – ainda que não brasiliana – nas primeiras décadas do século passado; e mais, para uma compreensão dos problemas epistemológicos e metodológicos que enfrentou na transição, ou acomo­dação, entre uma ciência biológica e uma ciência da cultura. Nesse sentido, a obra de Roquette-Pinto, como nos demonstram os ensaios coligidos no livro, é paradigmática. Não se abalançaram as orga­nizadoras a uma síntese conclusiva sobre o ideário de Roquette-Pinto, seu legado às novas gerações, talvez porque a riqueza do material reunido em ensaios tão variados e a vivência do cotidiano institucional na Fiocruz – à qual Roquette esteve tão associado – lhes dificultassem a distância e a perspectiva necessárias.

Que era, afinal, a “antropologia brasiliana”, alem de um modismo?Que resta desse empreendimento, uma vez despido das aderências ideo­lógicas de seu tempo?  O livro mereceria um capitulo sobre o administrador de instituições que foi Roquette – como diretor do Museu Nacional; quando, em mo­mento crítico – a gripe espanhola, – assumiu a direção de uma enfermaria do Hospital Deodoro; ou quando esteve à frente da primeira emissora de radiodifusão do Brasil, depois mutado na Rádio MEC que, em 1937, ele doou generosamente ao Ministério da Educação e Saúde. E quando, ain­da, em 1936, dirigiu o Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE).

Essa intensa, importante atividade institucional é mencionada, mas não devidamente descrita e analisada para a compreensão necessária do que seria, naqueles anos, um administrador institucional do porte criativo de Roquette.

Como convivia o cientista, o humanista, com o clima autoritário, depois totalitário do Estado Novo? Como teria disciplinado a censura cinematográfica?Que censura era essa?Qual teria sido o convívio de Roquette com a Ditadura, de origem positivista e constituição salazarista, que iria formalizar-se na carta de 1937 e esterilizou, com o peso de suas burocracias, tanta iniciativa fecunda na educação e na saúde? De um a outro capítulo, delineia-se o perfil de Roquette-Pinto educa­dor. Merecia capítulo à parte. Difícil, também neste passo, compreender como o signatário do “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova” – com Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Francisco Venâncio Filho e  tantos outros – documento de tempera liberal, veio a filiar-se ao Partido Socialista Brasileiro, no qual chegou a candidatar-se em 1954 a deputado à Câmara Federal. Que socialismo era esse?O de Proudhon ou o de Saint-Simon? Não seria certamente o de Marx.

Outro ponto que mereceria análise, nessa personalidade – de tão ri­cas e instigantes contradições – era sua religiosidade. Chegou a articular, nos idos de 1935, um curioso Credo (sic), onde parece transitar do Positi­vismo, doutrina conservadora, para um Socialismo reformista.

Não há dúvida que essas tensões eram as de sua geração, alimentada pelas ideias de Darwin, de Spencer, de Comte, e animada por um Roman­tismo fundamental. Nascidos poucos anos depois da Abolição da escra­vatura, esses pensadores cresceram nos padrões e comportamentos per­sistentes de uma sociedade patrimonialista e de uma cultura bacharelesca. Sem a prática do método científico e sem as disciplinas da Universidade esses cientistas formam-se ao acaso do encontro, da viagem, do livro ou da experiência estrangeira, ainda apegados, malgie soi, ao discurso, ao culto da palavra, ao individualismo decorativo – menos ao laboratório, ao trabalho técnico e manual à pesquisa de equipe. Admirável, tenham conseguido produzir uma ciência e uma estrutura institucional, pagan­do alto preço ao ufanismo que os levaria às aberrações nacionalistas dos anos 30, à Ditadura de 37, às restrições criminosas à imigração – enfim, até ao Racismo.

Livrou-se Roquette dessa maleita e do racismo arianista pelo concei­to problemático de uma raça brasileira – ou brasiliana – encontrada por Euclides no sertanejo, por Roquette nos nhambicuaras. Bastante cientista, no entanto, Roquette percebeu que esse brasiliano não podia ser “antes de tudo um forte” e continuasse analfabeto, verminótico, tuberculoso, en­quanto exercesse práticas agrícolas destrutivas – e que era preciso tratá-lo, dar-lhe hospital, vacina, arado. Essa a grande missão que destinava ao Estado e às elites do seu tempo. Nessas esperanças, de alguma forma, comungamos, indivíduos ou instituições. Desse idealismo, não no sentido de Oliveira Vianna, mas no comum, Roquette, como o livro assaz demonstra, foi exemplo egrégio e continua mestre e inspirador.

José Arthur Rios – Sócio emérito do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Antropologia Brasiliana: ciência e educação na obra de Edgard Roquette-Pinto – LIMA (RBH)

LIMA, Nísia Trindade; Sá, Dominichi Miranda de (Org.). Antropologia Brasiliana: ciência e educação na obra de Edgard Roquette-Pinto. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008. 327p. Resenha de: OLIVEIRA, Lucia Lippi. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.29, no.58, DEZ. 2009.

Durante o século XIX ainda existiam dúvidas sobre como deveria ser chamado o nascido no Brasil. Não por acaso o principal jornal do Império denominava-se Correio Brasiliense. Já no início do século XX, ao apresentar um panorama da evolução da ciência no país, Roquette-Pinto se referia à contribuição científica dos ‘brasilianos’ e ao Brasil ‘brasiliano’, aquele depois de Ron-don. Essa mesma designação foi usada por Nísia Trindade Lima e Dominichi Miranda de Sá, organizadoras da coletânea Antropologia Brasiliana.

As quatro partes do livro mapeiam a ciência – a Antropologia – e a área de atuação – a educação – de Edgard Roquette-Pinto. A primeira parte, como diz seu título, trata do “Perfil e trajetória”; a segunda, de “Positivismo e nação”; a terceira, de “Antropologia e população”, e a última, de “Ciência e ação”. Na “Apresentação”, as organizadoras ressaltam que Roquette-Pinto é mais lembrado e reconhecido por suas realizações no rádio e no cinema educativos, ou seja, como divulgador da ciência, e é relativamente esquecido como cientista, estudioso das raças e dos tipos antropológicos brasileiros. Destacam, também, um ponto central presente na maioria dos artigos: Roquette-Pinto, com base em pressupostos da antropologia física e da biologia mendeliana, refutou as teses da inferioridade dos mestiços brasileiros.

Os artigos da coletânea procuram, cada um à sua maneira, situar a trajetória e a obra de Roquette-Pinto no contexto da época e mostrar como as questões-chave dos anos iniciais do século XX envolviam o fortalecimento da República e da nação. A ciência da época – o Positivismo – prometia progresso e civilização, e nesse quadro sobressaía o papel dos engenheiros, dos médicos e dos educadores. As figuras de Oswaldo Cruz, Paulo de Frontin, Aarão Reis, Pereira Passos, Euclides da Cunha e Cândido Rondon, entre outros, podem iluminar os diagnósticos, as expectativas, as atuações, e também os desencantos dos primeiros anos da República no Brasil. Essa era a reação dos desiludidos, que procuravam respostas para a questão: “como explicar o atraso do Brasil?”. Os intelectuais cientistas entraram no debate lançando mão do que tinham à disposição: leis biológicas, eugenia, mestiçagem, ‘branqueamento’, imigração. Tudo isso foi acionado, com diferentes combinações, para explicar a formação do povo, da ‘raça’ brasileira, do ‘tipo’ nacional, e tentar responder ou resolver a questão mencionada.

O “Prefácio”, de Robert Wegner, assim como o artigo “Roquette-Pinto e sua geração na República das Letras e da Ciência”, das organizadoras do livro, oferece um bom guia de leitura. Então, como reapresentar aqui o livro aos leitores? O que selecionar? Como a seleção se faz guiada por motivações derivadas do trabalho do leitor/resenhador, esclareço as questões que guiaram minha leitura.

A construção de um regionalismo no Brasil durante o Estado Novo, reiterada pela atuação do IBGE na redefinição do mapa do país, ao estabelecer em 1941 a divisão regional do Brasil, foi acompanhada pela apresentação e divulgação de desenhos que representavam ‘tipos brasileiros’, como o seringueiro, o vaqueiro, o pescador, a baiana e o gaúcho, entre outros. Percy Lau, desenhista e funcionário do IBGE, foi o autor dos desenhos dessas figuras que frequentaram os livros de Geografia por muitas décadas. Durante a leitura, eu me perguntava: essa história de ‘tipos brasileiros’ teria a ver com sociologia de Oliveira Viana? Lendo Antropologia Brasiliana pude entender melhor a matriz dessa classificação e conhecer o papel dos estudos de Roquette-Pinto no debate sobre a unidade ou pluralidade da ‘raça’ brasileira. Os artigos de Giralda Seyferth, de Jair de Souza Ramos e de Vanderlei Sebastião de Souza, que compõem a terceira parte do livro e analisam a Antropologia do autor, oferecem a chave explicativa do debate em questão.

Giralda Seyferth, no magnífico artigo “Roquette-Pinto e o debate sobre raça e imigração no Brasil”, analisa a obra antropológica do autor confrontando-a com a antropologia da época, em especial com o que já se dizia nos Estados Unidos (sobretudo Franz Boas). Roquette-Pinto produziu uma classificação dos ‘tipos nacionais’, assunto de destaque da antropologia física, que importava até mesmo para assuntos demográficos. Suas categorias se reportavam à cor da pele: leocodermos (brancos), melanodermos (negros), xantodermos (mestiços de branco e índio, indicativo da cor amarela) e faiodermos (mestiços de branco e negro). As classificações foram elaboradas com base em amostragem significativa de homens jovens oriundos de todos os estados brasileiros. Segundo Giralda, Roquette-Pinto, mesmo com uma bibliografia cheia de paradoxos, de classificações ambíguas, foi capaz de mostrar “a falácia da desigualdade racial, a heterogeneidade da população, a normalidade dos mestiços e a impossibilidade de vaticinar a formação de um tipo nacional” (p.161).

O artigo de Vanderlei Sebastião de Sousa, “‘As leis da eugenia’ na Antropologia de Edgard Roquete-Pinto”, também aborda a pesquisa “Notas sobre os tipos antropológicos do Brasil”, cujo texto foi publicado em 1928 no Boletim do Museu Nacional e apresentado em 1929 no Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia. Ali Roquette-Pinto concluía que nenhum dos tipos da população brasiliana apresentava qualquer estigma da degeneração antropológica. Negava assim os supostos efeitos negativos que derivariam da miscigenação social. Reafirmaria em Ensaios de antropologia brasiliana (1933) que não havia mal algum no processo de mestiçagem, na combinação de fatores biológicos que levaram à formação de um tipo híbrido, e que haveria mesmo, nessa formação, uma eugenia saudável. Assim, o homem brasileiro precisava era ser educado, e não substituído.

Jair de Souza Ramos, no artigo “Como classificar os indesejáveis?”, acompanha a participação de Roquette-Pinto no debate da seleção racial suscitado pela política de imigração. Explora os passos dados na identificação e restrição aos imigrantes indesejáveis e reafirma que Roquette-Pinto – convocado a participar nos debates das políticas de imigração por sua condição de antropólogo, autor de Rondônia (1917) e diretor do Museu Nacional (de 1926 a 1936) –, usando os caminhos da antropometria, abordando a questão da mestiçagem sob o ângulo da eugenia, ou seja, como portador de um discurso racialista, foi crítico da superioridade das raças. O uso da categoria ‘racioalismo’ como o autor do artigo esclarece, é feito no sentido explicitado por Todorov:

As doutrinas racialistas têm três pressupostos: 1) os homens se diferenciam em grandes grupos chamados raças, os quais possuem certa unidade física, que lhes confere determinadas características psicológicas e culturais; 2) o predomínio do grupo sobre o indivíduo (isso significa supor que o comportamento do indivíduo é determinado, em grande medida, pelo grupo racial ao qual ele pertence); 3) as ‘raças’ não seriam apenas diferentes, mas também desiguais. (p.206)

Para além dos artigos que tratam da questão das raças e dos ‘tipos nacionais’, gostaria também de ressaltar o artigo de Regina Horta Duarte, “Rumo ao Brasil: Roquette-Pinto viajante”, que enfoca a viagem como uma vitória sobre a rigidez dos costumes, como algo capaz de forjar uma abertura no caráter do indivíduo e de operar uma transformação em cada brasileiro. As via-gens de Euclides, de Rondon, dos médicos sanitaristas, dos modernistas paulistas às cidades mineiras e de Mário de Andrade ao Norte e Nordeste vêm merecendo atenção de inúmeros analistas. No caso de Roquette-Pinto o foco da transformação tem a ver com o impacto produzido pelo encontro com os Nhambikuáras em 1912, quando, acompanhando Rondon, fez sua viagem de descoberta do Brasil. Roquette-Pinto fez anotações e fotografou os índios, seus enfeites, seus apetrechos, suas habitações. Gravou a narração de lendas e cantigas, filmou o preparo da mandioca, os trabalhos de tecelagem e fiação. Observou, desenhou, documentou tudo, como prova e também como fonte de conhecimento a ser utilizado na educação.

Para Roquette-Pinto, a constituição da nação implicava vencer distâncias, e as estradas eram referidas como ‘vasos nutridores’ do Brasil. Se os ‘tipos brasileiros’ precisavam e podiam ser melhorados pela educação, o país enfrentava dificuldades adicionais derivadas da grande extensão territorial. Pode-se então compreender o papel do rádio e do cinema como projetos de divulgação do saber, como meios eficazes de vencer distâncias, de ultrapassar os limites do espaço e do tempo, possibilitando que os homens do povo realizassem suas viagens transformadoras. Daí sua frase: “Para nós o ideal é que o cinema e o rádio fossem, no Brasil, escolas dos que não têm escola”. Tanto suas ações envolvendo o rádio e o cinema quanto sua atuação como editor da Revista Nacional de Educação, fundada em 1932, falam de uma mesma estratégia de partilhar o conhecimento entre os brasileiros espalhados pelo território nacional, nos informa Regina Horta Duarte.

A concepção de nação como domínio sobre os territórios e suas populações, as ideias sobre a importância do saber geográfico na construção da nação, estavam na ordem do dia. A premiação de Rondônia e de A expansão geográfica do Brasil Colonial, de Basílio de Magalhães, em 1917, pelo IHGB, falam dessa tendência. A repercussão de Os sertões já indicava isso. A relação entre ocupação do território e população também está fortemente presente na historiografia de Capistrano de Abreu. Se nação é combinação entre território e população, Roquette-Pinto estudou, escreveu, atuou nos dois campos, e procurou responder ao desafio de vencer dificuldades de ambos: vencer distâncias e demonstrar que o povo mestiço não era inferior. Seu compromisso com a nação, sua missão de construir a nacionalidade guiou sua trajetória e sua obra.

Ao discutir e apresentar a obra de Roquette-Pinto, Antropologia Brasiliana oferece um importante panorama das teses e dos confrontos de posições entre os intelectuais e cientistas que compunham a geração que pensou o Brasil na Primeira República. Mostra também a complexidade e a riqueza do pensamento da época ao fazer uso das categorias ciência, desigualdade, mestiçagem, branqueamento, imigração e democracia. Se alguns dos temas são questões do passado, outros estão presentes nos dias de hoje, quando políticas de ação afirmativa baseadas em critérios raciais vão se tornando correntes nas ações do Estado brasileiro. É importante que historiadores, sociólogos e antropólogos tomem conhecimento das experiências anteriores, quando a raça foi a principal moeda para condenar o mestiço brasileiro e para classificar os imigrantes desejados.

Lucia Lippi Oliveira – Socióloga, pesquisadora e professora do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC/FGV). Praia de Botafogo, 190. 22250-900 Rio de Janeiro – RJ – Brasil. lucia.lippi@fgv.br.