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Antropologia brasiliana. Ciência e educação na obra de Edgard Roquette-Pinto – LIMA; SÁ (EH)
LIMA, Nísia Trindade; SÁ, Dominichi Miranda de (orgs). Antropologia brasiliana. Ciência e educação na obra de Edgard Roquette-Pinto. Belo Horizonte: UFMG, Rio de Janeiro: Fiocruz, 2008, 327p. Resenha de: HOFBAUER, Andreas. Roquette-Pinto: uma vida dedicada ao progresso da nação. Estudos Históricos, v.22 n.44 Rio de Janeiro July/Dec. 2009.
Roquette-Pinto não é uma personagem desconhecida: sobretudo para aqueles que estudam a história da ciência e para quem se interessa pelos primórdios do desenvolvimento do rádio e do cinema no Brasil, Roquette-Pinto era um homem de muitos talentos e de muitos projetos. Executou múltiplas atividades profissionais, muitas vezes paralelamente, e ocupou vários cargos importantes durante a sua vida. Criativo, inventivo, com fortes convicções morais e políticas, envolveu-se nas mais diversas questões que preocupavam a intelectualidade brasileira da primeira metade do século XX: pesquisava, opinava e intervinha. Por toda esta trajetória, não deixa de ser curioso que existam relativamente poucos estudos sobre Roquette-Pinto e nenhuma biografia completa a seu respeito.
Neste sentido, o livro Antropologia brasiliana. Ciência e educação na obra de Edgard Roquette-Pinto, organizado por Nísia Trindade Lima e Dominichi Miranda de Sá, veio para suprir uma enorme lacuna. As organizadoras optaram por não seguir uma exposição cronológica das atividades deste grande intelectual, mas escolheram tópicos que julgaram centrais na diversificada produção de Roquette-Pinto e convidaram especialistas para analisar suas contribuições para cada uma das temáticas específicas. Os ensaios foram agrupados em quatro seções, incitando o/a leitor/a a aprofundar o diálogo entre elas: “perfil e trajetória”, “positivismo e nação”, “antropologia e população”, “ciência e ação”. Na primeira parte, foi incluído ainda um texto inédito do próprio Roquette-Pinto (“Ciência e cientistas do Brasil”, 1939), elaborado para uma conferência proferida no Palácio do Itamaraty. Nesse texto, Roquette-Pinto não somente expõe a sua maneira de ver a história da ciência no país, mas também avalia o papel e o lugar que ele próprio atribui a si mesmo neste processo. O manuscrito, que foi encontrado pelas organizadoras durante a sua pesquisa no acervo pessoal do intelectual (que se encontra hoje sob a guarda da Academia Brasileira de Letras), completa o quadro dos textos.
Desta forma, o livro se revela um mosaico de abordagens sobre a vida de Roquette-Pinto: oferece leituras sobre uma mesma personagem partindo da análise de um tema específico. O resultado são reflexões que, inevitavelmente, em diversos momentos, se cruzam com, e até se sobrepõem a, abordagens que têm outra área de atuação de Roquette-Pinto como foco de análise. Este efeito intencionado pelas organizadoras, que procura espelhar a vida multifacetada do cientista, ganha reforço visual na bela capa montada por Jayme Moraes Aranha Filho, que construiu um retrato do homenageado a partir de um arranjo de centenas de imagens coloridas, que apresentam, na sua maioria, aparelhos de época voltados para a comunicação: microfones, máquinas de escrever, vitrolas, rádios etc.
Os vários textos que compõem a coletânea elucidam que não é possível entender a vida de Roquette-Pinto sem levar em consideração o seu espírito nacionalista e a sua forte crença na ciência, além do espírito positivista que compartilhava com tantos outros pensadores da época. “Creio nas leis da Sociologia positiva e por isso creio no advento do Proletariado, conforme foi definido por Augusto Comte…”, afirma o nosso pensador em 1935. Roquette-Pinto era um daqueles intelectuais que apostavam no progresso por meio do aprofundamento do conhecimento científico e de sua disseminação pela educação popular. Ele via nas invenções tecnológicas um potente meio de transformação da sociedade. Acreditava firmemente na força missionária e na função utilitária da ciência, atribuindo-lhe a capacidade de dar respostas para o problema da nação e de preparar o caminho para a modernização. Ao mesmo tempo, o envolvimento pessoal com questões sociais não permitia que Roquette-Pinto se transformasse numa pessoa dogmática. Prevalecia, portanto, um perfil que as organizadoras do livro chamaram de “humanismo científico”.
As distintas contribuições valorosas do livro destacam a importância da participação de Roquette-Pinto na expedição Rondon, em 1912. O contato direto com o sertão levaria o jovem cientista, formado em medicina, a rever a visão do admirado Euclides da Cunha a respeito dos males do sertanejo, que Roquette-Pinto qualificaria, posteriormente (em Seixos rolados, 1927), de ilusória: de acordo com ele, os sertanejos não deveriam ser percebidos como seres inferiores, nem como incapazes, como avaliava Euclides, mas tão-somente como atrasados e ignorantes; nem o isolamento, nem as influências da mestiçagem, e sim muito mais o abandono do poder público explicaria a vida precária nos interiores do Brasil. Ponto alto da viagem foi o encontro com os índios Nambikwara. Fazendo uso do seu talento etnográfico, Roquette-Pinto produziu importantes registros e documentos: confeccionou uma das primeiras imagens cinematográficas dos índios e transcreveu músicas indígenas que inspirariam Villa-Lobos. O seu caderno de campo, que seria publicado sob o título Rondonia: anthropologia – ethnographia (1916), expressa a simpatia que sentia em relação aos indígenas; ao mesmo tempo, não esconde o seu ideário positivista-evolucionista, que fazia com que julgasse, por exemplo, a cerâmica indígena “rudimentar” e “grosseira”, e a sua plumária “insignificante”.
Como diretor do Museu Nacional (1926-1935), preocupava-se em desenvolver estratégias e meios que possibilitassem à população ter acesso ao desenvolvimento científico. Buscava transformar a instituição num museu pedagógico-educativo, numa “universidade do povo”, segundo as suas próprias palavras. Para isto, lá instalou, inclusive, um auditório especial e incentivou escolas a frequentar o local. Com a fundação da Revista Nacional de Educação (1932), voltada para a educação e para a divulgação da ciência, das letras e da arte, e que seria distribuída gratuitamente, Roquette-Pinto realizou um sonho pessoal que, porém, duraria apenas dois anos.
Roquette-Pinto foi fundador da primeira emissora de rádio no Brasil, a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro (1923), e também o primeiro diretor da instituição. Seu envolvimento com os “novos meios de comunicação” – rádio e cinema -, que via surgir e ajudava a consolidar, foi impulsionado pelas mesmas preocupações e convicções do cientista. O objetivo principal era criar programas de rádio e produzir filmes que apresentassem, de forma didática, os avanços da pesquisa científica e os progressos tecnológicos. Roquette-Pinto dirigiu alguns filmes e participou da feitura de roteiros de outros. Teve grande influência sobre a produção cinematográfica no período de 1936 a 1947, durante o qual ocupou o cargo de diretor do Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE). Um pouco antes (de 1932 a 1934) tinha atuado como censor. “Cinema não é arte”, asseverava enfaticamente em 1938. O cinema era, para ele, em primeiro lugar, um meio: um meio tecnológico e científico que deveria contribuir para a educação e para a elevação do povo brasileiro. A grande maioria dos filmes do INCE seguia um viés erudito, avalia Sheila Schvarzman em seu texto: procurava dar “aos carentes o conhecimento da cultura letrada oficial” e esperava que os expectadores, humildemente, assimilassem as verdades científicas que os fariam avançar na escala do progresso civilizatório. Assim, ainda de acordo com a análise de Schvarzman, os filmes revelavam uma certa “incapacidade de contato com o real” que proviria do pensamento positivista: um pensamento que possibilita, num plano abstrato, a integração dos mais diversos grupos e indivíduos numa mesma comunidade, mas, ao mesmo tempo, justifica um relacionamento assimétrico com todos aqueles identificados como não-civilizados, já que as diferenças detectadas neles eram entendidas como decorrências de um estágio inferior de desenvolvimento cultural.
O tema científico que mais profunda e longamente atraiu a atenção de Roquette-Pinto foi a questão racial, assunto que marcava também, profundamente, os debates da época sobre a imigração, a saúde pública e, portanto, os rumos futuros da jovem nação. É também nesta temática que se concentra provavelmente o maior impacto sociopolítico do pensamento de Roquette-Pinto: os diferentes ensaios que compõem a coletânea, particularmente os de Ricardo Ventura Santos, Giralda Seyferth, Jair de Souza Ramos e Vanderlei Sebastião de Souza, revelam a complexidade e certas ambiguidades e incoerências que se expressam nas ideias de Roquette-Pinto acerca das noções de raça, miscigenação e eugenia.
Todos os autores sublinham a importância do cientista no combate ao determinismo racial e climático, sem que ele tivesse, porém, aberto mão do conceito de raça. Raça constituía uma das categorias mais importantes e mais disseminadas na época, e era usada por cientistas e pelo senso comum para fazer referência a, e para analisar, diferenças humanas. Refletir sobre o valor das raças e as consequências da mestiçagem significava, no caso do Brasil, pensar o passado e, sobretudo, o futuro da nação. No debate acadêmico, opunham-se duas posições extremas: de um lado, havia aqueles (por exemplo, Nina Rodrigues) que, devido à longa prática da miscigenação no país, mostravam-se céticos e pessimistas a respeito do futuro do Brasil. De outro lado, posicionavam-se aqueles (por exemplo, Lacerda) que acreditavam que um determinado tipo de miscigenação pudesse, sim, contribuir para a construção de uma civilização forte nos trópicos: a chave para este processo, que levaria ao ansiado branqueamento da população brasileira, seria o incentivo estatal à imigração de mão-de-obra europeia. Por trás destas posições, articulavam-se não somente diferentes avaliações a respeito da origem causal das diferenciações raciais e do impacto das raças e do processo de miscigenação sobre as vidas humanas. As diversas análises particulares também eram evidentemente permeadas por convicções de ordem política e ideológica, e marcadas por posturas pessoais frente à ciência e à nação.
Os estudos das raças efetuados por Roquette-Pinto, que incluíam a aplicação de métodos antropométricos (por exemplo, os de 1920, quando elaborou um estudo sobre “tipos antropológicos do Brasil”), tinham um nítido objetivo social e político: propiciavam-lhe um conhecimento ao qual podia recorrer nas suas discussões acerca da imigração (especialmente, no caso dos japoneses) e nas suas atividades junto à Liga Pró-Saneamento do Brasil.
Em 1912, ele elaborou um diagrama que, baseado em dados dos primeiros recenseamentos nacionais, projetava a extinção dos negros para o ano de 2012 e, desta forma, fornecia a Lacerda um importante material para a defesa de seu discurso pró-branqueamento. Pouco depois, no entanto, Roquette-Pinto transformar-se-ia num eminente crítico de tais ideias: incorporando um espírito nacionalista, que ganhava força no país na época da Primeira Guerra Mundial, Roquette-Pinto revelou-se, nestas discussões, um árduo defensor das populações locais. Lutava em duas frentes: contra a “ideologia do branqueamento”, e contra aquele pensamento racial que criava hierarquias fixas entre grupos humanos e condenava os produtos de cruzamento à – supostamente irreversível – degeneração. Assim, fazia críticas irônicas a letrados estrangeiros, como Agassiz e Gobineau, os quais, após rápidas passagens pelo Brasil, disseminaram tais teses que, de acordo com Roquette-Pinto, seriam erroneamente reproduzidas por certos intelectuais brasileiros, como por exemplo Euclides da Cunha. Roquette-Pinto via nestas ideias uma atitude imperialista que buscava justificar a expansão colonial de países europeus. Argumentava que a mestiçagem em si nada tem a ver com as mazelas do país, e, ao mesmo tempo, opunha-se àqueles que viam na imigração europeia um meio adequado para melhorá-lo: “O problema nacional não é transformar os mestiços em gente branca. O problema é a educação dos que aí se acham, claros e escuros”, afirma Roquette-Pinto em 1927; ou ainda em outro contexto: “(…) o homem, no Brasil, precisa ser educado e não substituído”.
Diante de tais posicionamentos, o forte envolvimento de Roquette-Pinto com a eugenia pode causar um certo estranhamento. O instigante ensaio de Vanderlei Sebastião de Souza ajuda-nos a entendê-lo melhor. De acordo com o autor, Roquette-Pinto empregava a eugenia como um instrumento modernizador: como uma ferramenta científica tanto para pensar o processo do aperfeiçoamento da raça quanto para defender o homem brasileiro das condenações implicadas no determinismo biológico. Na abertura do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, em 1929, Roquette-Pinto deixava claro que “as leis da eugenia” deveriam ser aplicadas com o objetivo de “melhorar o patrimônio biológico” dos brasileiros. Assim, a seleção matrimonial deveria seguir os ensinamentos da ciência eugênica. Dever-se-ia incentivar o casamento entre pessoas com “boa herança”, independentemente do “tipo racial”. Ou seja, a preocupação eugênica do cientista recaía sobre a eliminação de doenças hereditárias localizadas em seres humanos particulares, e não sobre determinadas características raciais ou sobre a “mistura das raças” em si. A mestiçagem é um mal somente “quando realizada ao deus-dará dos infortúnios, sem eira nem beira, sem higiene e sem eugenia, sem educação e sem família”, costumava dizer Roquette-Pinto. Num artigo publicado em 1933, o cientista chegou a sugerir a promoção de um concurso para escolher, entre trabalhadores rurais e operários das indústrias, um casal de jovens que apresentasse “os tipos de herança realmente eugênicas, e qualidades pessoais relevantes”. Os vencedores deveriam ser premiados por fazendeiros e industriais com um pequeno aumento de salário, já que os casamentos eugênicos trariam, em última instância, lucros aos empregadores.
O fato de Roquette-Pinto ter lutado contra o determinismo biológico não significa, porém, que acreditasse numa “completa igualdade de atributos biológicos”, conforme escreve Ventura Santos. E se o “peso do biológico” é, de certo modo, questionado no plano coletivo das raças humanas, Roquette-Pinto insiste, ao mesmo tempo, na necessidade do cuidado para com a “boa herança” no plano dos seres humanos particulares. A maneira como se dava, para ele, a relação entre “boa herança individual” e “boa herança coletiva” não parece bem explicada na argumentação deste pensador. Com o intuito de chamar a atenção dos leitores para as não raras incongruências que se expressavam nas atitudes de muitos daqueles que fervorosamente debatiam o tema da raça, Ventura Santos termina o seu ensaio com uma irônica comparação entre um estudo anatômico promovido pelo “clássico determinista racial” Nina Rodrigues e outro executado pelo combatente do chamado “racismo científico, Roquette-Pinto. Enquanto Nina Rodrigues, na sua análise do crânio de Antonio Conselheiro, não conseguiu detectar nenhuma anormalidade nas características fisiológicas daquele personagem que descrevia como “delirante” e “megalomaníaco”, Roquette-Pinto teria descoberto na “complexidade das circunvoluções” cerebrais do autor de Os sertões evidências de sua genialidade.
Raça é um conceito elástico, ensina-nos Giralda Seyferth. Nunca houve consenso em torno da quantidade de raças existentes e em torno daquilo que define este conceito. As diversas contribuições desta coletânea alertam-nos para não partirmos de uma noção a-histórica de raça ou de eugenia. Para entendermos os usos, ambiguidades e “não-coerências” de tais conceitos e ideias, é preciso estudarmos os contextos, os interesses particulares e as convicções político-ideológicas daqueles que contribuíram para a sua construção e transformação.
Ventura Santos explica que, embora Roquette-Pinto tenha defendido “posições igualitárias, contrárias a noções de fatalismo racial”, não chegou, contudo, “a propor uma completa desvinculação entre orgânico/racial e mental/social, que veio a se tornar a posição predominante na reflexão antropológica algumas décadas depois”. Uma das razões pelas quais o cientista não investiu numa tal separação conceitual pode ter a ver com as suas fortes convicções positivistas e com o seu comprometimento com as causas da nação. Na América do Norte, o antropólogo Franz Boas, frequentemente lembrado pelos autores da coletânea e comparado com o nosso autor, estava, neste mesmo período, preparando o caminho para fazer um corte conceitual rigoroso entre o reino da natureza, de um lado, e o(s) mundo(s) da simbolização, de outro. Começava a se referir à existência de uma pluralidade de culturas – isto é, não mais a um só percurso possível de uma cultura humana única – que Boas valorizaria e analisaria de forma cada vez mais independente das esferas biológicas e geográfico-climáticas. Crítico ao determinismo biológico, tal como Roquette-Pinto, Boas convenceu-se, porém, já muito cedo – diferentemente do nosso autor – de que a diversidade das vivências e experiências humanas não podia ser explicada a partir de leis naturais.
O livro Antropologia brasiliana tem o mérito de situar as ações e ideias de Roquette-Pinto no contexto histórico local e internacional e, sendo assim, traz uma importante contribuição para várias áreas de conhecimento, especialmente para os estudos sobre o chamado pensamento social brasileiro, e será particularmente importante para uma melhor compreensão da tão espinhosa questão racial no Brasil.
Andreas Hofbauer – Professor do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de Marília, Brasil (andreas.hofbauer@uol.com.br).