A primeira Guerra Mundial e suas repercussões no Brasil / Oficina do Historiador / 2015

Este dossiê reúne parte dos trabalhos apresentados por pesquisadores brasileiros e estrangeiros no Simpósio internacional “Memórias da Grande Guerra e repercussões no Brasil 1914-2014”, organizado pelo Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com o auxílio econômico da Capes, que ocorreu na mesma universidade, em maio de 2014. A proposta do evento era motivada pelo Centenário da eclosão da Primeira Guerra Mundial.

Nessa data se tornou necessária uma reflexão sobre esse assunto de extraordinária relevância para a história da humanidade, considerando também suas novas abordagens e possibilidades interpretativas. De fato, poucos acontecimentos da história contemporânea provocaram tanto a atenção de historiadores como a Primeira Guerra Mundial, considerada o divisor de águas e a etapa inicial de uma nova fase, do ponto de vista político, social, econômico e tecnológico. A guerra marcou o fim do “longo século XIX” e representou o crepúsculo da supremacia mundial europeia e de uma civilização convencida que pudesse guiar a humanidade através do conhecimento e da razão, rumo a um futuro de progresso e convivência pacífica entre as grandes potências continentais. O conflito provocou uma mudança radical das relações internacionais e contribuiu, ao mesmo tempo, para criar a contraposição ideológica que viria a caracterizar todo o século XX. A complexidade da Grande Guerra não fugiu aos olhos dos observadores da época que compreenderam o quanto se mostrava diferenciada em relação aos conflitos anteriores.

Quando a disputa pelos mercados e territórios da Europa alavancou o acirramento da crise entre os países do continente, interesses de ordem política, econômica e militares abalaram o equilíbrio precário de um castelo de cartas: não se podia puxar uma sem mover a outra. O conhecimento de que uma guerra na Europa poderia ser catastrófica para a sua população não evitou a corrida pela tecnologia da morte, e este foi o período em que os avanços na indústria bélica mais se acentuaram. Vale mencionar, a propósito, o uso, pela primeira vez, de armas químicas, dos carros de combates especiais e da aviação militar. Os bombardeios em massa contra civis provocaram milhões de mortos, bem como, deixaram outros tantos mutilados ou vitimados pelas epidemias causadas pelo inimigo invisível, a gripe espanhola.

Ao mesmo tempo, o conflito fez surgir discussões e uma revisão do antigo modelo político europeu. O confronto resultou numa nova hegemonia política e no surgimento de regimes totalitários como o fascismo, o nazismo e o comunismo, que transformaram o cenário político e econômico mundial. Esta última questão é bem tratada, dentro de um contexto mais amplo, na entrevista sobre o nacionalismo que o professor galego Xosè Núñez Seixas concedeu para esse dossiê e que se revela de grande utilidade para entender algumas das repercussões ideológicas que envolveram as culturas políticas europeias e extra europeias da época.

Em cem anos, o tema da Grande Guerra foi estudado em profundidade e se produziu uma enorme massa de publicações específicas que junto aos eventos estreitamente políticos, diplomáticos e militares, concentraram-se também sobre os mais diversos campos de análise, entre os quais o tema relativo à condição dos combatentes e das vítimas, os prisioneiros, os sobreviventes, etc. A proximidade com a efeméride do centenário, porém, propiciou a ocasião para aprofundar uma abordagem historiográfica que, principalmente, na Europa, retomou o problema da responsabilidade e da origem do conflito. Nesse sentido, distinguiu-se o recente amplo trabalho do historiador australiano, Christopher Clark, resenhado nas páginas seguintes pelo pesquisador italiano, Christian Satto, que evidenciou o grande sucesso editorial da obra traduzida em inúmeros países do mundo entre os quais o Brasil. O mérito do livro é de reconstruir de forma articulada e detalhada as relações de poder na Europa entre o final do século XIX e o começo do XX, recusando de maneira convincente a tese tradicional que considera a eclosão do conflito por fatores de longa duração. Clark, de fato, interessa-se também pelos traumas imediatos a véspera da guerra e pelas responsabilidades dos protagonistas da crise de julho de 1914, isto é, os chefes de Estado definidos como “sonâmbulos” incapazes de perceber o horror que eles mesmos estavam trazendo ao planeta inteiro.

Outra razão importante para a realização desse dossiê relaciona-se às mudanças e às implicações que o conflito determinou também no Brasil, que foi o único país da América Latina a participar da Primeira Guerra. Aliado com os países da Tríplice Entente teve uma tímida participação na guerra, com envio de suprimentos agrícolas e da matéria-prima procurada pelas nações em conflito; enviando alguns pilotos de avião e tropas na frente ocidental, e oferecendo navios militares, além de um apoio médico organizado pelo governo brasileiro. Com esse propósito, o artigo de Cristiano Enrique de Brum analisa, através dos relatórios dos médicos protagonistas, a atuação da Missão Médico-Militar organizada em 1918 pelo governo brasileiro e enviada para a França, a fim de fundar um hospital em Paris. Tais documentos inéditos nos permitiram conhecer detalhes sobre a composição da expedição; sobre a viagem até a Europa; sobre o combate à gripe espanhola e a atuação em diversas partes da França.

A mobilização brasileira foi fomentada também por uma parte da imprensa nacional que, em diversas ocasiões, manifestou a sua posição pró-Aliados. Ao mesmo tempo, porém, como se evidencia no texto de Lorena Gill e Beatriz Loner, havia elementos sociais que durante a guerra promoveram movimentos antimilitares e mobilizações a favor da paz. O caso emblemático abordado é o dos trabalhadores organizados, mulheres e anarquistas em uma cidade gaúcha, Pelotas, com forte conotação operária.

Mesmo distante do palco central, o Brasil sentiu os reflexos do conflito. A participação do país lhe garantiu uma cadeira na Conferência de Paz de Paris, que originou o Tratado de Versalhes, e o pagamento de indenização por parte da Alemanha por ter prejudicado o comércio do café brasileiro durante o período do conflito armado. Ao mesmo tempo foi um os fundadores da Liga das Nações. Com o fim do conflito armado, houve uma grande demanda por diversos gêneros alimentícios, o que permitiu uma dinamização e retomada da economia brasileira. Além disso, os danos causados pela Primeira Guerra Mundial no continente europeu possibilitaram que o Brasil passasse por um surto de industrialização.

O recente livro de Olivier Compagnon cujo título na versão português-brasileira é O adeus à Europa: a América Latina e a Grande Guerra, resenhado profundamente por Heitor Carvalho Loureiro neste dossiê, tem o grande mérito de romper com o silêncio historiográfico sobre as consequências do conflito na América a Latina. O esforço do estudioso francês foi de evidenciar o impacto que a Grande Guerra teve também sobre os países mais longínquos do palco central europeu, como Brasil e Argentina, que até então se nutriram dos modelos europeus e de repente, com o conflito, sofreram uma crise de identidade que teve como principal reação a valorização de um passado autóctone, e uma exacerbação de um sentimento nacionalista, principalmente, na esfera cultural.

Outro aspecto relevante relaciona-se com a abundante presença de imigrantes alemães e italianos, atingidos diretamente pelos efeitos do conflito, no Rio Grande do Sul e nos outros estados caracterizados pelo fenômeno da imigração europeia. No caso dos italianos, que se tornaram aliados do Brasil, durante todo o período de participação da Itália na luta, manteve-se uma forte contribuição financeira para a pátria mãe, assim como muito jovens de origem italiana, residentes no Brasil, fizeram parte das forças militares italianas. A mobilidade foi muito significativa nos principais centros de imigração italiana, especialmente em São Paulo, onde se desencadearam processos que alimentaram entre os imigrantes, o mito da nação que precisava ser defendida, e a exaltação do dever patriótico. Na verdade, como se observa no artigo de Maíra Inês Vendrame foi já com a guerra da Líbia, combatida e vencida pela Itália em 1911, o primeiro momento no qual se reforçou no sentido nacional patriótico, o vínculo da população colonial com o país de origem. E já na véspera da guerra não faltaram as celebrações e festejos para os heróis mortos na defesa da causa colonialista.

No caso dos imigrantes alemães se registrou, desde a primeira fase da guerra, o envio de ajuda econômica através do consulado alemão, assim como o suporte midiático nos principais órgãos da imprensa teuto-brasileira. Tudo isso gerou pela primeira vez entre imigrantes alemães e seus descendentes, uma hostilidade aberta e generalizada de parte da população luso-brasileira e a desconfiança de grande parte das autoridades, que se aproximavam aos ideais dos Aliados. O clima tornou-se ainda mais hostil depois da declaração de guerra do Brasil à Alemanha. Não tardaram medidas de intervenção nas sociedades, associações, clubes, escolas, imprensa e no uso da língua alemã no dia a dia, ou seja, os primeiros passos de uma verdadeira nacionalização dos elementos teuto-brasileiros. Nesse sentido o artigo de Livia Claro Pires, analisa o papel da “Liga Brasileira pelos Aliados”, uma associação fundada em 1915 no Rio de Janeiro pelo crítico literário José Verissimo, pelo diplomata Graça Aranha, pelo capitão do Exército Eliseu Montarroyos e pelo burocrata Araújo Gonçalves, com o objetivo de prestar assistência moral no país às nações Aliadas. Em pouco tempo a propaganda inimiga da Liga se estendeu aos imigrantes alemães residentes no Brasil, vistos agora como elementos estranhos no corpo nacional.

Portanto, estes estudos apontam para a complexidade de um evento mundial, cujas repercussões em um país como o Brasil, ainda resultam parcialmente negligenciados pela historiografia.

Antonio de Ruggiero – Pesquisador PNPD / Capes e professor colaborador do PPGH / PUCRS,

Porto Alegre, 18 de junho de 2015


RUGGIERO, Antonio de. Apresentação. Oficina do Historiador. Porto Alegre, v. 8, n. 1, jan. / jun., 2015. Acessar publicação original [DR]

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