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Sensível ao cuidado: uma perspectiva ética ecofeminista – ROSENDO (RTF)
ROSENDO, Daniela. Sensível ao cuidado: uma perspectiva ética ecofeminista. Curitiba: Editora Prisma, 2015. Resenha de: COSTA, Laís Dias Souza da. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 8, n. 2, jul.-dez., 2015.
Nature is a feminist issue ou em uma tradução livre: a natureza é uma questão feminista. Essa frase, de acordo com a filósofa estadunidense Karen J. Warren, pode ser considerada o lema do ecofeminismo, definido por Daniela Rosendo em sua dissertação de mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), como […] uma posição que leva em consideração a perspectiva feminista e as teorias ambientais, com o objetivo de conjugar ambas e superar o sistema de opressão caracterizado pela relação de subordinação às quais as mulheres a natureza são submetidas pelos homens.1 Warren se dedica a filosofia ecofeminista há mais de 30 anos, sendo uma das referências quando se fala no tema, especialmente após a publicação de sua obra Ecofeminist philosophy, no ano 2000, onde apresenta sua versão de ética. Nela, a filósofa rejeita teorias baseadas em direitos e argumentos racionais que negam as emoções e são universalisantes, enquanto a ética sensível ao cuidado reconhece a pluralidade e os interesses morais e heterogêneos entre os humanos e os não-humanos, de acordo com o contexto em que se dão essas relações.
Mas é a partir da dissertação de mestrado de Daniela Rosendo com o mesmo título do livro que a filosofia ecofeminista warreniana é apresentada detalhadamente, no Brasil, já que, ainda, nenhuma obra da estadunidense foi traduzida e publicada em português, restringindo o acesso de pesquisadoras e pesquisadores interessados no tema.
Atualmente cursando doutorado em Filosofia na UFSC, Rosendo também é professora e integrante do Comitê Latino Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos daMulher (CLADEM Brasil) e assina duas colunas sobre ecofeminismo, uma no portal Justificando e outra publicada pela Agência de Notícias de Direitos Animais (ANDA).
“Sensível ao cuidado: uma perspectiva ética ecofeminista” foi publicado em 2015 pela Editora Prismas e tem como objetivo “[…] analisar se a ética sensível ao cuidado é factível para a superação da discriminação sofrida pelas mulheres e pela natureza, e se ela se constitui como uma ética ambiental genuína”.2 Para a filósofa e professora doutora da UFSC, Sônia T. Felipe, que apresenta o livro de Rosendo aos leitores, a doutoranda realiza quatro movimentos para “entrever seu método de investigação. […] Primeiro, o da visita à caverna. Como resultado dessa visita, somos apresentadas ao que resultou de visitas feitas por Warren às concepções ambientais e animais que ela julga não terem superado os limites da dominação machista”.3 No segundo, de acordo com Felipe, Daniela Rosendo […] nos apresenta às visitantes admitidas por Warren em sua proposta ética, às teses, conceitos e teorias recebidos por Warren de outras feministas, incorporados por ela em sua própria concepção, ensejando a nós, leitoras e leitores, a compreensão da estratégia de argumentação da feminista.
No terceiro movimento, temos uma primeira saída da caverna, quando nos são apresentadas por Rosendo as visitantes que, antes dela, também já fizeram o percurso investigativo e crítico da concepção ecofeminista de Warren.4 Sônia T. Felipe explica, por fim, que ela […] elabora sua crítica ao alcance aos limites da concepção da ética sensível ao cuidado de Warren, apontando falhas que sequer foram percebidas por outras feministas que a antecederam em suas visitas ao texto de Warren, especialmente as relativas ao silêncio dela sobre suas escolhas dietéticas (grifo da autora).5 A lógica da dominação como premissa moral Utilizando o gênero como uma categoria de análise, o ecofeminismo questiona os sistemas de dominação que oprimem diferentes grupos, entre eles, de afrodescendentes, pobres, idosos, crianças e de mulheres, considerados por Warren os “Outros humanos” (human Others), além dos “Outros terrestres” (earth Others), grupos constituídos por animais e florestas, todos discriminados injustificadamente. Citando a ecofeminista indiana Vandana Shiva, uma das referências presentes na obra de Warren, Rosendo explica que para Shiva, “[…] o desenvolvimento ocidental é na verdade um ‘subdesenvolvimento’ (maldevelopment), um desenvolvimento destituído do feminino, que vê todo trabalho que não gera lucro e capital como improdutivo”.6 De acordo com Rosendo (2015), para Warren “[…] há interconexões entre a dominação das mulheres e a dominação da natureza, cujo conceito compreende animais não-humanos, plantas e ecossistemas”,7 justificando, assim, a existência de uma teoria que considere moralmente a natureza e consiga abolir essa discriminação.
Ela apresenta a existência de dez tipos de interconexões na teoria de Warren: histórica, conceitual, empírica, socioeconômica, linguística, simbólica e literária, espiritual e religiosa, epistemológica, política e ética. Cada uma delas descreve diferentes formas de opressão social das mulheres e de exploração da natureza, mas Warren destaca a conexão conceitual como o elemento central da filosofia ecofeminista que apresenta diversas correntes.
Estruturas conceituais não são intrinsecamente opressoras. Contudo, a partir do momento em que passam a ser afetadas por fatores como gênero, raça, classe, idade, orientação afetiva, nacionalidade, formação religiosa etc., elas passam a ser opressoras, ou seja, elas são usadas para explicar, manter e “justificar” as relações de dominação e subordinação injustificadas. Assim, uma estrutura conceitual opressora de viés machista “justifica” a subordinação das mulheres pelos homens.8 A partir da estrutura conceitual, Warren identifica cinco características: pensamento de valor hierárquico (up-down), “[…] no qual se valoriza, confere mais status ou prestigia mais os ‘de cima” (up) e menos os ‘de baixo’ (down)”;9 dualismos de valor opostos (oppositional value dualisms), “[…] marcados por características opositoras e excludentes, ao invés de complementares e inclusivas, valorizando mais uma característica em detrimento da outra”;10 “[…] poder entendido e exercido como poder de dominação […]; […] criação, manutenção ou perpetuação da concepção e prática de privilégio concedido aos ‘de cima’ (ups) e negado aos ‘de baixo’ (downs)” e, por fim, “uma estrutura de argumentação que visa justificar a subordinação (lógica da dominação)”.11 Quando Warren fala sobre as pessoas e grupos “de baixo”, ela faz associação às mulheres, afrodescendentes, natureza e corpo, já os “de cima” são relacionados aos homens, brancos, a cultura e a mente (racionalidade). Para Rosendo (2015), “[…] Warren afirma que esse pensamento de valor hierárquico legitima a desigualdade ao invés de afirmar somente que existe a diversidade”.12 Com menos poder e privilégio institucional que os homens, as mulheres se mantêm na parte “de baixo” dessa hierarquia, já que os “[…] benefícios criados, mantidos e sancionados institucionalmente refletem o poder e o privilégio dos ‘de cima’ sobre os ‘de baixo’ e perpetuam os ‘ismos de dominação’ (sexismo, racismo, classicismo, heterossexismo, etnocentrismo)”.13 Essa lógica de dominação é apontada pela autora, a partir da teoria warreniana, como a premissa moral utilizada enquanto justificativa ética para perpetuar “[…] a subordinação dos ‘de baixo’, nas relações de dominação e subordinação, pelos ‘de cima’, ela é basilar para as estruturas conceituais opressoras”.14 Para Warren, as mulheres foram falsamente conceituadas como inferiores, em relação aos homens, baseando-se em três equívocos: o determinismo biológico, essencialismo conceitual e universalismo. A existência de uma “natureza” feminina e de características que ligam biologicamente as mulheres à natureza, por conta de sua capacidade reprodutiva, são difundidas pelos deterministas como atributos inerentes a existência das mulheres.
O essencialismo conceitual pressupõe erroneamente que o conceito de mulher é unívoco, que capta condições essenciais da mulher ou da feminilidade. O universalismo supõe incorretamente que todas as mulheres compartilham um conjunto de experiências simplesmente pelo fato de serem mulheres.15 Ao longo do livro Ecofeminist Philosophy, traduzido e apresentado por Rosendo em sua dissertação, Warren diferencia a opressão da dominação e afirma que a primeira sempre “[…] ‘envolve dominação. Em contrapartida, nem toda dominação envolve opressão’. A opressão implica em tolher a liberdade de fazer escolhas e opções. Portanto, não-humanos, por não terem tal liberdade, não podem ser ‘oprimidos’, apenas ‘dominados’”.
16 Ao considerar os não-humanos, Rosendo explica a proposta de Warren para reformular o feminismo, a filosofia feminista e a ética ambiental, por meio de outro argumento, onde o feminismo tradicional poderia incorporar o feminismo ecológico ou ecofeminismo, visando a consideração moral dos humanos para os não-humanos e a abolição do naturismo (dominação injustificada na natureza). “(1) O feminismo é, minimamente, um movimento para pôr fim ao sexismo. (2) O sexismo é conceitualmente ligado ao naturismo. (3) O feminismo é (também) um movimento para pôr fim ao naturismo”.17 Cuidado como fundamento ético Apesar de não formular uma ética ambiental inédita, de acordo com Rosendo, a proposta de Warren incorpora elementos existentes em outras teorias com um viés crítico que rejeita a faceta masculina da ética baseada em direitos, regras e princípios porque esses elementos não consideram outros conceitos defendidos pelas ecofeministas como a “singularidade” e a “vulnerabilidade”. Rosendo cita a ecofeminista e filósofa Sônia T. Felipe, precursora do tema no Brasil, que defende esses conceitos como sendo os “únicos que permitem considerar interesses naturais animais com a mesma seriedade com a qual consideramos interesses naturais humanos, semelhantes aos deles”.18 Para elaborar sua ética, Warren relacionou a teoria feminista à teoria da hierarquia, considerada a principal sobre a ecologia dos ecossistemas, e à ética da terra, elaborada por Aldo Leopold, que tem como princípio moral constitutivo o amor e o respeito a terra.
Warren conjuga essas duas teorias e afirma que, juntas, elas fornecem a base para considerar a filosofia ecofeminista uma posição ecológica. Por outro lado, ela argumenta que a filosofia ecofeminista pode contribuir tanto para a ecologia quanto para a ética da terra. O elo entre as três perspectivas (teoria da hierarquia, ética da terra e filosofia ecofeminista) é a orientação ecológica para o mundo, sobre a qual cada um contribui à sua maneira.
A ética sensível ao cuidado é caracterizada por três elementos: capacidade para o cuidado; universalismo situado e práticas do cuidado. Sobre a primeira característica, a filósofa faz referência à inteligência emocional que compreende entre as habilidades básicas a capacidade de cuidar. “Cuidar do outro, expressa uma capacidade cognitiva, uma atitude em direção àquele que está sendo cuidado, que merece tratamento respeitoso e independe de ter sentimentos positivos em direção a ele”.20 Quanto ao universalismo situado, a segunda característica da ética sensível ao cuidado, Warren desenvolve a ideia de que existem princípios éticos universais, mas que essa universalidade não consiste em eles serem princípios abstratos, transcendentais e essencialistas, guiados somente pela razão. O princípio orientador do universalismo situado é: “a universalidade reside na particularidade”.21 Sobre as práticas do cuidado, elas são responsáveis por manter, elevar ou promover a saúde, provocando bem-estar, e entre essas práticas estaria o vegetarianismo moral contextual. Para Warren, uma dieta vegetariana é uma “[…] atitude moralmente correta que se tem com relação aos animais”22 porque os não-humanos também são considerados membros de uma comunidade ecológica.
Rosendo apresenta os limites e os alcances da teoria warreniana, considerando entre os aspectos limitadores os momentos em que Warren não avança, “[…]seja por silenciar ou fazer propostas sem coerência com sua teoria ou uma ética genuína”.23 Um desses limites diz respeito ao vegetarianismo moral contextual que estaria ligado apenas a abstenção de comer carne, excluindo da lista outros produtos de origem animal como o couro utilizado em roupas e sapatos. Para Sônia T. Felipe (2012), Warren silencia o consumo humano de bilhões de seres sencientes, além dos produtos derivados como os laticínios, e acredita que a transformação proposta pela estadunidense só pode ser feita por meio do abolicionismo vegano.
Entre os alcances da ética sensível ao cuidado, Rosendo destaca o caráter político do cuidado “[…] com a ‘saúde’ das instituições, que, ‘adoecidas’, oprimem”.24 Além disso, ela reafirma o distanciamento de Warren da concepção essencialista da mulher, apesar das críticas de algumas ecofeministas, e, ainda, que “[…] a estratégia de argumentação é clara e mostra que os sistemas de opressão estão interligados, sendo necessário superar todas as formas de discriminação”.25 A perspectiva filosófica apresentada por Rosendo torna-se referência imediata para os “feminismos” discutidos e problematizados dentro e fora das universidades brasileiras com destaque para o caráter inédito da obra que se insere em um contexto onde as normativas essencialistas estão sendo debatidas. Assim, a natureza continua sendo uma questão feminista para Karen J. Warren, Daniela Rosendo, Sônia T. Felipe, mulheres e homens que consideram pertinente confrontar noções essencialistas nas quais o “Homem” ainda é considerado o sujeito universal, e a natureza, assim como as mulheres tentam ser invisibilizadas. Ao dedicar o livro “Sensível ao cuidado: uma perspectiva ética ecofeminista” às vozes dissidentes, Rosendo “escuta” os ecos de Warren e “fala” aos humanos e não-humanos sobre uma outra possibilidade de se colocar no mundo e se relacionar com todos os seres que o habitam.
Sobre a autora: Laís Dias Souza da Costa Mestre e doutoranda em História pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Jornalista.
1 ROSENDO, Daniela. Sensível ao cuidado: uma perspectiva ética ecofeminista. Curitiba: Prismas, 2015, p. 23.
2 ROSENDO, Daniela. Sensível ao cuidado, Op. cit., p. 191.
3 Ibidem, p. 16.
4 Idem.
5 Ibidem, p. 17.
6 ROSENDO, Daniela. Sensível ao cuidado, Op. cit., p.37.
7 Ibidem, p. 34.
8 Ibidem, p. 47.
9 Ibidem, p. 48.
10 Idem.
11 ROSENDO, Daniela. Sensível ao cuidado, Op. cit., p. 48.
12 Ibidem, p. 49.
13 Ibidem, p. 50.
14 Ibidem, p. 51.
15 Ibidem, p. 56.
16 ROSENDO, Daniela. Sensível ao cuidado, Op. cit., p. 58.
17 Ibidem, p. 61.
18 Ibidem, p. 77.
19 Ibidem, p. 79.
20 ROSENDO, Daniela. Sensível ao cuidado, Op. cit., p. 101.
21 Ibidem, p. 103.
22 Ibidem, p. 108.
23 Ibidem, p. 169.
24 Ibidem, p. 195.
Laís Dias Souza da Costa – Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) Correspondência: Programa de Pós-graduação em História – Universidade Federal de Mato Grosso Av. Fernando Corrêa da Costa, 2367 – Boa Esperança Cuiabá – MT – Brasil. CEP: 78060-900 E-mail : laisdscosta@hotmail.com.