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Fama pública: Poder e costume nas Minas setecentistas – ROMEIRO (VH)
SILVEIRA, Marco Antonio. Fama pública: Poder e costume nas Minas setecentistas. São Paulo: Hucitec, 2015. 356 p. ROMEIRO, Adriana. Varia História. Belo Horizonte, v. 33, no. 61, Jan./ Abr. 2017.
Mais de quinze anos depois de sua defesa como tese de doutorado, vem à luz o livro Fama pública: poder costume nas Minas setecentistas, de Marco Antônio Silveira, em cuidadosa edição da Hucitec, prefaciada por João Adolfo Hansen.
Trata-se de um livro original. E por várias razões, a começar pelo investimento maciço num corpus documental tão rico quanto pouco explorado pela historiografia sobre Minas Gerais: os libelos cíveis, depositados no Arquivo Histórico do Museu da Inconfidência. Em segundo lugar, pela sofisticação de sua abordagem teórico-metodológica, presente também em trabalho anterior do mesmo autor, O universo do indistinto, inegavelmente uma referência obrigatória sobre a sociedade mineira do século XVIII, cujas questões centrais são aqui retomadas e aprofundadas a partir de uma nova perspectiva. E, por fim, pelo olhar arguto com que Silveira formula seu repertório de problemas às fontes.
A arquitetura do livro merece destaque. Já de início, o autor apresenta as referências conceituais que orientam a investigação, expondo ao leitor os fundamentos teóricos sobre os quais constrói o seu argumento. Cada um dos capítulos é dedicado então à análise de um ou mais libelos cíveis, os quais desvelam histórias de vida, conflitos familiares, solidariedades vicinais, enfim, a trama microscópica que compunha o cotidiano das comunidades rurais da capitania, ao longo do século XVIII. Essa trama densa, protagonizada por brancos, negros e mestiços, é a matéria-prima de uma reflexão sólida e instigante sobre a natureza e a dinâmica da sociedade mineira. Ao final de cada capítulo, o autor junta os fios dispersos e alinhava as suas teses, desenhando uma interpretação inovadora sobre a “invenção da sociedade mineira” (p.27).
Do ponto de vista metodológico, a obra alia uma abordagem antropológica a uma perspectiva histórica. Como antropólogo, Silveira se debruça ao rés-do-chão, aproximando as suas lentes do cotidiano das comunidades rurais, com o propósito de sondar as ideias, os valores, as práticas e os comportamentos que estruturavam a vida social. É da antropologia inglesa, particularmente dos trabalhos de Victor W. Turner, que vem a inspiração para a estratégia analítica calcada na “possibilidade de traçar, por meio deles, as estruturas sociais que lhes emprestavam significado” (p.29). Graças ao conceito de drama social, o leitor se vê como o espectador privilegiado de uma cena que se desenrola diante dos seus olhos: a experiência cotidiana de homens e mulheres, extraída da vida real e concreta. Nota-se também a influência do método de descrição densa de Clifford Geertz, sobretudo na ênfase dada à dimensão social dos significados partilhados pelos sujeitos históricos; e do paradigma indiciário de Carlo Ginzburg.
Como historiador, Silveira investiga o impacto das transformações em curso no século XVIII na dinâmica da sociedade mineira, articulando-o ao contexto macroscópico da emergência do mercado capitalista, que solapou os velhos valores e solidariedades, transtornando as sociabilidades tradicionais. É nesse cenário que a sociedade mineira teve de se inventar, elaborando os seus códigos de estratificação, em meio a forças de sedimentação e subversão, do que resultou um universo fluido, convulsionado e instável, permeado por contradições de toda sorte. Contradição entre as diferentes propostas de ordenamentos social, entre o costume e a lei, entre as solidariedades comunitárias e o apego à propriedade privada, entre as sociabilidades e a privacidade burguesa, entre a piedade e a violência das relações mercantis, entre a caridade e o lucro… Contradições que dão lugar a uma sociedade extremamente conflituosa, que Silveira descreve recorrendo a metáforas bélicas, tais como “campos de batalha” e “guerra”, em tudo contrária à imagem de comunidades idílicas e harmoniosas.
Ao leitor atento, não passam despercebidos os ecos das geniais análises de Sérgio Buarque de Holanda sobre a instabilidade congênita do universo social mineiro, que mal conseguia “dissimular a ebulição íntima”, pois que nascido sob a égide do aluvionismo, era “uma estrutura movediça que se desmancha, em partes, e se recompõe continuamente, ao sabor de contingências imprevisíveis (…)” (Holanda,1982, p.259-310) Para Silveira, é no arrivismo que se encontra a origem dessa dinâmica: de negros a brancos, todos buscavam ali a ascensão social, legitimando suas demandas por meio do repertório dos costumes locais, dos valores cristãos como piedade e caridade, do direito formal, num esforço para esgarçar as fronteiras da classificação social.
É de Sérgio Buarque de Holanda também outro conceito-chave do livro: o descrédito do formalismo, ou seja, o embaralhamento dos signos de distinção, típico do processo vertiginoso de ascensão, esvaziada dos padrões europeus de civilização. Homens rudes que o ouro enriquecia, mas não civilizava, transformavam a lógica social do Antigo Regime numa espécie de simulacro banal.
Os libelos cíveis põem a nu esse intrincado e complexo processo de ordenamento social, no qual a cultura jurídica funcionava como mais um instrumento de disputa nas mãos de homens e mulheres empenhados em fazer valer seus direitos, privilégios e benefícios, em meio à fragilidade do Estado, à economia moral comunitária e às exigências da nova ordem econômica. Nas palavras do autor, “manipulando o choque entre formal e informal, homens e mulheres reunidos no buraco negro das obrigações mútuas buscavam remodelar a seu favor as disposições de poder e patrimônio” (p.273).
O livro de Silveira ainda nos coloca diante de uma questão fundamental: será possível falar em colonização, sem levar em consideração os múltiplos sentidos que ela adquiriu no cotidiano de homens e mulheres? Aqui, já não se trata mais de privilegiar modelos teóricos apriorísticos, ou de perseguir a adesão ou a resistência ao projeto colonizador português, mas de reconhecer o peso da dimensão cultural e valorativa dos agentes históricos e sua imensa capacidade de criar sentidos novos. A colonização surge então como experiência – no sentido de E.P. Thompson – que só pode ser entendida à luz das inúmeras dimensões da vida social, num emaranhado em que se confundem “as práticas sociais e os valores, a vida material e as elaborações simbólicas, as instituições e o cotidiano.” (Silveira, 2001, p.985)
Fama pública é, por fim, um livro corajoso. Nesses tempos em que conceitos como acomodação e negociação tendem a elidir contradições e conflitos, ele nos proporciona uma representação da sociedade mineira como guerra sem trégua…Ou, ainda, quando se assiste ao deslocamento da escravidão como chave para compreensão do mundo colonial, em nome de aproximações com as categorias do Antigo Regime, Silveira, inspirado pela melhor tradição historiográfica brasileira, nos lembra que, afinal, a colônia foi, acima de tudo, uma sociedade escravista.
Referências
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Metais e pedras preciosas. In HOLANDA, Sérgio B. de (ed.). História Geral da Civilização Brasileira , 5a ed., tomo 1, vol. 2. São Paulo: Difel, 1982. p.259-310. [ Links ]
SILVEIRA, Marco Antonio . Ideologia, colonização, sociabilidade. In JANCSÓ, István e KANTOR, Iris (org.) Festa: cultura e sociabilidade na América Portuguesa . vol. 2 São Paulo: FAPESP/Imprensa Oficial, 2001. p.979-990. [ Links ]
Adriana Romeiro – Departamento de História, Universidade Federal de Minas Gerais, Av. Antônio Carlos 6627, Campus Universitário, Belo Horizonte, MG,Brasil 31.270-901, adriana.romeiro@uol.com.br.
Territórios de mando: banditismo em Minas Gerais, século XVIII – SILVA
SILVA, Célia Nonata da. Territórios de mando: banditismo em Minas Gerais, século XVIII. Belo Horizonte: Crisálida, 2007. Resenha de: ROMEIRO, Adriana. Varia História, Belo Horizonte, v.23, n.37, p. 237-240, jan./jun., 2007.
Originalmente escrita como tese de doutorado, defendida no Programa de Pós-Graduação do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais, o livro Territórios de mando – banditismo em Minas Gerais, século XVIII debruça-se sobre um campo raramente explorado pela historiografia mineira: a vasta região rural da capitania, dominada por potentados e poderosos locais, perdidos em meio às lonjuras de um sertão inóspito e distante. Poucos foram os estudiosos que se aventuraram por esse verdadeiro continente indevassado, a exemplo de Bernardo da Mata-Machado1e, mais recentemente Carla M. J. Anastasia, num trabalho pioneiro sobre as turbulentas zonas de fronteira, intitulado A geografia do crime.2 Ao contrário do enfoque predominante na historiografia sobre o Setecentos mineiro, voltada para o universo das vilas e arraiais, a urbanização restringia-se a uns poucos núcleos populacionais, para além dos quais abria-se, imenso e inquietante, o sertão.
Filiada às novas tendências historiográficas, a autora se propõe a examinar a configuração política peculiar que floresceu à roda dos grandes potentados sertanejos, responsáveis pela constituição de vigorosos pólos de poder privado, que, ao longo de todo o século XVIII, minou insidiosamente as sucessivas tentativas da Coroa portuguesa no sentido de estender os seus tentáculos por toda a capitania. Afinal, como se dava o exercício do poder e do mando entre esses homens, tidos freqüentemente por facinorosos e rebeldes? Que valores pautavam o imaginário político deles? Ao longo da pesquisa, Célia Nonata da Silva descobre uma cultura política singular, profundamente marcada pelas concepções barrocas do Portugal restaurado, reinventadas no contato com as tradições locais. Mestiça, essa cultura política estruturava-se em formas de mando complexas, que estavam longe do estereotipo fixado pelos contemporâneos, que viram nelas tão-somente a expressão de uma violência irracional, típica do cenário bárbaro em que supostamente viviam os sertanejos.
Encarnando um poder que fustigava a Coroa, contra a qual empreenderam uma tenaz e bem-sucedida resistência, os potentados dominavam vastas extensões de terra – os chamados territórios de mando -, nos quais eram reconhecidos como chefes políticos legítimos, e por essa razão, obedecidos e respeitados por um número expressivo de moradores. Um exemplo disso é a situação inusitada em que se viu o Conde de Assumar, por ocasião do motim de Barra do Rio das Velhas, obrigado a enviar bandos para informar a população local de que ela devia obediência e vassalagem ao rei de Portugal e não a Manuel Nunes Viana. Apesar disso, este último continuou a reinar soberano e absoluto na região, desafiando acintosamente os esforços desesperados do governador para estabelecer ali o poder público.
Ao carisma destes potentados, somavam-se práticas de dominação que se traduziam sob a forma de ritos de violência específicos, como o recurso à vingança, a valorização da honra, a exibição de signos de virilidade, como a valentia, a bravura e o desafio, dos quais resultou um exercício de poder marcadamente privado, refratário, em alguns casos, à negociação, em outros, abertos à transação. Em torno deles, gravitava uma complexa rede de solidariedades, de que faziam parte escravos, forros, homens livres e pobres – e por vezes, as próprias autoridades locais – organizados em bandos armados, dispostos a executar os desígnios dos chefes locais, engalfinhados na luta pela expansão de seus territórios de mando e nas contendas entre famílias.
O principal mérito do livro reside no estudo sistemático da lógica e racionalidade do poder privado, buscando apreendê-lo como uma outra forma de exercício de poder, e não como mera negação da ordem pública. Dele emergem potentados a um só tempo fascinantes e perturbadores, como o contrabandista Mão de Luva, líder de uma quadrilha que aterrorizou por anos a Mantiqueira, ou o já mencionado Manuel Nunes Viana, que se valia de crenças mágicas africanas – como o ritual do corpo fechado – para controlar as populações da Barra do Rio das Velhas. Situados numa zona cinzenta, nos tênues limites entre a ordem e a desordem, os poderosos do sertão resistem à tipologia simplificadora proposta por Eric Hobsbawm em seu clássico Bandidos, cujo objeto são os indivíduos considerados criminosos pelo Estado. O caso dos potentados mineiros é muito mais complexo: se desafiavam as leis de Sua Majestade, perpetrando toda sorte de crimes e violências, ainda assim era os seus mais valiosos aliados, os únicos capazes de impor alguma ordem em meio às lonjuras da América. A este respeito, é bem reveladora a trajetória de Manuel Nunes Viana – que nada tinha de extraordinária ou excepcional, se comparada à de outros potentados. Tido pelos contemporâneos por um dos mais homens mais experientes nas matérias relativas ao sertão, investido de uma autoridade reconhecida pelos sertanejos, o chefe emboaba era, na opinião de um ouvidor do Rio das Velhas, o único indivíduo capaz de levar alguma ordem àquele “receptáculo para criminosos de toda a América”. Endossando esta idéia, o marquês de Angeja tecia-lhe elogios em carta ao rei, observando que “é certo que o dito Manuel Nunes Viana não só é o homem mais capaz que tem aqueles distritos, tanto para fazer o cabal informe que se lhe manda, e executar as ordens de V. Majestade fazendo-as observar e respeitar como devem ser; mas é o único que atualmente dá cumprimento ao que se lhe mandam, e faz ter em sossego e respeito o distrito, que se lhe tem assinado como sua capitania mor, sossegando-a e limpando-a dos ladrões todas as vezes que aparecem alguns por aqueles distritos…”.3 Existia mesmo, no início da década de 1710, um consenso generalizado entre os funcionários régios sobre o seu papel estratégico nos sertões distantes e, mesmo os inimigos, a exemplo do conde de Assumar, reconheciam que, não obstante seus excessos e tiranias, ele era uma figura respeitada e obedecida nos territórios distantes do controle da Coroa. Sensíveis à importância do conhecimento acumulado por estes potentados, verdadeiros depositários de um saber essencialmente sertanejo, que abrangia desde as condições ecológicas até a índole dos moradores, os sucessivos governadores-gerais sempre os tiveram em altíssima conta, encarregando-os de uma série de diligências relevantes nos confins da capitania.
O caráter ambíguo das relações entre os poderes público e privado é refutado veementemente pela autora, que vê nos potentados e poderosos do sertão o foco de um poder privado, a serviço de interesses particulares – e por essa razão, incompatível com as exigências das autoridades. Aliás, mesmo essas, como a própria autora admite, submeteram-se ao processo de privatização do poder, transformando-se também em pólos de poder concorrente, capazes de prejudicar – e mesmo subverter – a soberania portuguesa em terras mineiras.
Atenta às formas de expressão e consolidação da ordem privada, a autora opta por não esmiuçar o outro pólo do exercício político dos chefes sertanejos: a comunidade que a eles devotava respeito e admiração. Para além do nível mais imediato de capangas, caboclos e escravos, configurando os bandos armados, havia largos setores da população que os reconheciam como uma liderança política legítima e absoluta. Tudo indica que, nas paragens distantes em que a Coroa não havia instalado o seu aparato administrativo, a ordem privada desempenhava um papel decisivo no cotidiano miserável dessas populações, uma vez que proporcionava desde o exercício da justiça e a solução dos conflitos vicinais até a cura de doenças e o auxílio a doentes e inválidos.
Campo vasto, mas árduo, o tema do poder privado nos sertões mineiros esbarra em inúmeras dificuldades, sendo a principal delas o fato de que as fontes disponíveis reproduzem o olhar das autoridades e por essa razão tendem a mascarar a natureza complexa da ordem privada, reduzindo-a à mera violência e barbárie. Se os potentados não tiveram direito à palavra, o mesmo também aconteceu com os seguidores deles: sociedade de analfabetos, não legaram aos estudiosos relatos mais densos sobre as suas motivações políticas. É através do olhar enviesado dos seus detratores que o historiador tem de adentrar no imaginário político desses homens, buscando nas entrelinhas as pistas e indícios das idéias e práticas que floresceram no sertão.
Por fim, é preciso elogiar a bela edição da Crisálida – cuja única restrição é a falta de uma revisão cuidadosa -, com um destaque especial para a sugestiva capa, inspirada numa xilogravura de Arlindo Daibert. A promissora editora firma-se assim como mais um veículo de publicação que se abre às numerosas e competentes dissertações de mestrado e teses de doutorado que, a exemplo do trabalho de Célia Nonata da Silva, tem revigorado a historiografia mineira.
Notas
1 MATA-MACHADO, Bernardo Novais da. História do sertão noroeste de Minas Gerais (1690-1930). Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1991.
2 ANASTASIA, Carla M. J. A geografia do crime: violência nas minas setecentistas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.
3 Ambos os documentos foram citados por RUSSELL-WOOD. Manuel Nunes Viana: paragon or parasite of Empire? The Americas, April 1988, v.37, p.488-489, n.4.
Adriana Romeiro – Professora do Programa de Pós-graduação da UFMG. E-mail: adriana.romeiro@uol.com.br
[DR]
O universo do indistinto: estado e sociedade nas Minas setecentistas (1735-1808) – SILVEIRA (VH)
SILVEIRA, Marco Antônio. O universo do indistinto: estado e sociedade nas Minas setecentistas (1735-1808). São Paulo: Hucitec, 1997. Resenha de: ROMEIRO, Adriana. Varia História, Belo Horizonte, v.16, n.22, p. 207-211, jan., 2000.
Muitos foram os autores que se debruçaram sobre os caracteres específicos do sociedade mineira do século XVIII, em busca dos processos e da dinâmica social responsáveis por uma feição tão peculiar. Como, por exemplo, explicar a fluidez e a instabilidade- características apontadas por Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Laura de Mello e Souza, entre outros – sem incorrer no lugar-comum ultrapassado de uma sociedade menos rígida e por isto mais democrática?
É neste domínio que se situa o livro “O universo do indistinto: estado e sociedade nas Minas setecentistas”, de autoria de Marco Antonio Silveira. A questão que o autor se propõe a responder é: de que modo os códigos e a simbologia da sociedade patrimonialista e estamental foram reinterpretados e reinventados no contexto da mineração e do aluvionismo social?
O pano de fundo do livro é o contexto europeu da segunda metade do século XVII, quando aparecem uma nova sensibilidade e uma nova sociabilidade, atrelado às transformações em curso do capitalismo industrial. Gestos e hábitos considerados até então como naturais e corriqueiros passam a ser execrados em nome das boas maneiras e do refinamento – cada vez mais necessários numa sociedade que se caracteriza pelo convívio prolongado, pelas relações de dependência entre os indivíduos. Toda uma nova ética do comportamento individual e social é construída em torno destes novos valores ditos civilizados. É por esta trilha, explorada por Norbert Elias, Peter Burke, Keith Thomas e Mikhail Bakhtine – este último, a partir de uma perspectiva muito diferente- que Marco Silveira se envereda para pensar a sociedade mineira do século XVIII. Mas, familiarizado com a já não tão mais recente historiografia sobre as relações entre cultura popular e cultura erudita na Europa da Época Moderna, ele formula o seu problema de forma diferente: como vislumbrar formas de contestação e resistência a estes modelos civilizadores forjados a partir das novas exigências do capitalismo industrial ? Como articular, teoricamente, o problema da releitura e da reinterpretação de significados e códigos culturais? O autor responde: ” em toda abordagem cotidiana do fim da época moderna devem-se considerar as inúmeras reconstruções de valores e comportamentos difundidos pela sociedade. Ao mesmo tempo em que os grupos dominantes buscavam distinguir-se, suas formas de distinção eram reprocessadas na vida cotidiana. O estudo da cultura desse período é, portanto, também o estudo do fundo comum capaz de fornecer lógica no interior de um processo caracterizado por heranças culturais diferentes e em constante movimento” (p. 40). Para fortalecer seu ponto de vista, recorre a Goethe e a defesa da virtude em oposição ao cerimonial empolado e artificial. Em fins do século XVIII, as primeiras lufadas do romantismo já anunciariam as fissuras deste processo civilizatório. É assim que as Minas vão encarnar, em sua análise, o lugar por excelência de resistência a este processo civilizatório, desafiando o aparato simbólico das sociedades estamentais do Antigo Regime.
É esta matriz teórica- que privilegia os embates e conflitos culturais em detrimento do conceito de mentalités- que fundamenta a empreitada do autor pelas Minas do século XVIII. Em que medida a feição peculiar e original da sociedade mineira aponta para uma reinvenção igualmente original dos códigos, valores e normas que pautavam a sociedade européia do Antigo Regime? Apresentada a estrutura teórica e metodológica da investigação, o autor persegue, no capítulo 2, “Império e civilização”, as evidências de que nos trópicos reinava a mais absoluta barbárie, em contraposição aos apelos insistentes da Coroa, preocupada em levar o verniz da polidez, da etiqueta e da civilidade aos confins do sertão, porque, segundo o autor, ser civilizado passou a significar “bom vassalo”. É isto que vai permitir ao autor detectar nas velhas e repetidas ladainhas sobre o bom vassalo o propósito determinado da Coroa em lustrar seus mais rústicos vassalos – e mais importante – proceder a uma leitura da refração aos códigos de bom-tom como o sinal inequívoco de uma aclimatação da sociabilidade refinada: corrupção, troca de favores, desvios morais e religiosos. Diante de quadro tão assustador, só resta ao reformismo setecentista formular a utopia de uma nova sociedade, assentada sob as bases da civilização.
No capítulo 3, As Minas cadávericas e os “habitantes do universo”, o autor detecta na crítica dos administradores, governadores, religiosos e viajantes sobre a natureza indómita das gentes das Minas uma preocupação com a rusticidade e a grosseria dos mineiros. A começar pela paisagem urbana irregular e tortuosa e dela passando à gente da capitania, espécie de “monstruosidade indómita”, avessa ao modelo do bom vassalo e ignorante dos princípios religiosos e políticos- cuja expressão mais brilhante é de autoria do Conde de Assumar. Contra este estado de coisas vai se bater o discurso reformista, propugnador de uma sociedade fundamentada sobre o espírito público e na reforma dos costumes e comportamentos.
A parte 11, As bocas deste mundo, divide-se em dois capítulos. No primeiro deles, “Aiuvionismo social”, o que está em jogo são os sistemas de valor que se debatem numa economia complexa como a das Minas setecentistas: diante de uma realidade adversa, a ética da honra e da palavra, próprios da sociedade estamental, sucumbem diante de uma outra ética, a do dinheiro e da circulação, mais apropriados a uma sociedade fluida e aluvionista. Aqui estamos diante de mais um daqueles rearranjos que se forjaram nas Minas, resultantes de uma adaptação, para a realidade da mineração, do universo normativo do Antigo Regime. No capítulo 2, “Escravidão como valor”, o autor desenvolve a tese de que as Minas teriam conhecido uma variante peculiar do escravismo moderno: “a própria experiência cotidiana, entretanto, criou também as condições para que a escravidão fosse vivida como um valor. Dessa forma, embora a fluidez e a mobilidade convidassem à desagregação final do espaço público, persistiam elementos morais capazes de conferir certa legitimidade ao mundo mineiro. Em meio às reconstruções diárias, os cativos e forros buscaram, muitas vezes. formas peculiares de ‘ascensão’, mediante alforrias, quartações, empréstimos, escritos e outros métodos aptos a simbolizar a identidade”(p. 185).
No capítulo 1, “Justiça e criminal idade” que compõe a parte 111, A outra legislação, é analisada a estrutura ineficiente, morosa e venal do aparelho de justiça, responsável pela criação de novos expedientes, capazes de funcionar como uma legislação paralela, mais imediata e eficaz. Novamente aqui, o autor retoma a tese da multiplicidade dos rearranjos cotidianos. No capítulo 2, “A vontade da distinção” o autor discute a obsessão pela honra e pela distinção numa sociedade fluida, flexível e aluvionista. De que modo a simbologia e a ritualística que no universo estratificado e estamental têm por objetivo conferir visibilidade aos lugares sociais poderiam funcionar aí ? O final do século XVIII foi marcado pela integração dos mulatos aos postos civis e militares, abrindo virtualmente a possibilidade de ascensão das demais camadas sociais, dominadas pelo desejo de distinção. Daí o paradoxo da dinâmica social nas Minas: se a distinção visava marcar os lugares sociais, numa sociedade caracterizada pela instabilidade e pela fluidez, a busca desenfreada pela fidalguia e pelos símbolos estamentários conduzia à indistinção e à banalização de tal simbologia.
Vazado numa linguagem elegante e fluente, o livro de Marco Antonio Silveira revela uma pesquisa documental rica e minuciosa, e aqui e ali afloram casos e histórias interessantes, que, nas mãos do autor, transformam-se em exemplos fulcrais da complexidade da dinâmica social das Minas setecentistas. Atento ao detalhe e ao particular, Silveira os interpreta à luz de suas preocupações teóricas, captando-os no contexto mais amplo do universo colonial.
Talvez seja este olhar voltado ao particular que compromete, em vários momentos, a clareza e o entendimento dos objetivos mais gerais perseguidos pelo autor. Mesmo a introdução, cuja finalidade é introduzir o tema de estudo, falha ao restringir-se a uma discussão metodológica pouco relevante, que bem poderia ser substituída por uma apresentação da natureza das questões a serem desenvolvidas ao longo do livro. Além disso, os capítulos não evidenciam de forma explícita a unidade e a coerência dos temas nele analisados, parecendo muitas vezes pouco amarrados entre si. Fica por explicar a escolha dos temas da escravidão e da justiça para enfocar a natureza da sociedade mineira. Por que estes e não outros ? Por outro lado, alguns pressupostos teóricos não convencem totalmente: refiro-me à tese de que a Coroa portuguesa teria tentado implantar nos trópicos uma sociabilidade marcada pelo refinamento e pela polidez, identificando nela o ideal do bom vassalo. Se é inegável que um topos recorrente na documentação relativa às Minas é precisamente a condenação do mineiro, visto como sinônimo de rebelde e indômito, resta, no entanto, problematizar até que ponto tal topos não se constituiu numa peça de retórica, manipulada pelas autoridades administrativas segundo interesses bastante definidos. Ademais, raramente a estigmatização do mineiro como mau vassalo parece ter uma relação direta com a sua impermeabilidade às normas de civilidade e boas maneiras. Vale indagar até que ponto é legítimo afirmar que fazia parte do projeto político da Coroa portuguesa aplicar o verniz da civilidade nos seus colonos rústicos incrustados nos sertões do Novo Mundo. Que políticas o Estado português implantou na capitania com o objetivo de civilizar seus vassalos?
Cumpre notar que, ainda que o autor esteja atento para o fato de que a troca de favores, o tráfico de influência, o apadrinhamento e mesmo o desvio de dinheiro fossem práticas aceitas e correntes nas sociedades do Antigo Regime, em várias passagens do texto ele parece tender a considerá-las como exemplos de corrupção.
Um outro ponto a ser destacado diz respeito às fontes teóricas do autor. Eclético, ele se inspira em Thompson, Stuart Clark, Carlo Ginzburg, Norbert Elias, Huizinga, Peter Burke, Keith Thomas, entre outros, para pensar os mecanismos de distinção social em Minas. Na verdade, a estrutura teórica do trabalho é mais condizente com uma abordagem cultural do que uma abordagem da mecânica social – à exceção de Thompson e Elias, este último aliás incorporado sem uma crítica consistente de suas posições evolucionistas. E o problema a ser enfrentado é ainda o da dinâmica específica de uma economia mineradora no contexto colonial, pois não se trata aqui de pensar numa resistência concebida como reinvenção e reinterpretação. Cabe notar, além disso, que esta imagem de uma outra sociedade, em tudo diferente à européia, mais sensível ao dinheiro que à honra, foi amplamente manipulada tanto pela Coroa quanto pelas próprias autoridades locais.
Finalmente, podemos indagar se este padrão estamental, civilizador e ordenado, instaurador de uma nova sensibilidade, não teria desencadeado também na Europa da Época moderna as suas próprias reinterpretações, à luz de outros valores culturais, obrigando-nos a relativizar a força do modelo e por consequência a originalidade do mundo construído nas Minas …
Adriana Romeiro – Departamento de História/UFMG.
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