Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália – ROLLEMBERG (HU)

ROLLEMBERG, D. Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália. São Paulo: Alameda Editorial, 2016. 376 p. Resenha de: CODARIN, Higor. “Resistencialismo” e resistência: as tensões entre história e memória. História Unisinos 24(2):334-337, Maio/Agosto 2020.

A trajetória intelectual da historiadora Denise Rollemberg, professora e pesquisadora da Universidade Federal Fluminense (UFF), é indissociável das temáticas, das tensões e dos dilemas envolvendo o passado recente, em específico relacionado às experiências autoritárias ao redor do globo, ao longo do século XX. Em um primeiro momento, sua produção acadêmica edificou-se através de análises consistentes a respeito dos caminhos e descaminhos das esquerdas brasileiras diante da ditadura civil-militar, seja a partir da construção analítica a respeito da perspectiva de revolução difundida por essas esquerdas, ou pela vigorosa análise a respeito do exílio experimentado por esses militantes ao longo da ditadura.2 Contudo, a partir de então, a historiadora, influenciada por parte da historiografia francesa empenhada em renovar as análises a respeito da resistência à ocupação nazista e/ou em relação à construção social do regime instaurado em Vichy, das quais falaremos adiante, passa a centrar seus esforços em outros aspectos dos regimes autoritários, buscando iluminar sua compreensão através de duas linhas centrais: por um lado, de que modo esses regimes foram construídos socialmente e se mantiveram por longos anos? Por outro, e de modo mais importante para o objetivo desta resenha, como se relacionam memória e história na construção do conhecimento a respeito dessas experiências? Mais especificamente: de que modo a construção da memória coletiva sobre esses regimes buscou criar oposições binárias entre Estado e Sociedade, sedimentando a perspectiva de sociedades oprimidas, manipuladas e, sobretudo, resistentes a esses regimes? Confirmação dessa nova vereda analítica são as obras organizadas em conjunto com a também historiadora da UFF Samantha Quadrat – A construção social dos regimes autoritários (2010); História e memória das ditaduras do século XX (2015) – e Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália (2016).

Neste que é seu mais recente livro, Rollemberg busca, como objetivo central, analisar o movimento de constante construção e desconstrução dos discursos memoriais a respeito das experiências de resistência francesa e italiana às ocupações nazistas que ocorreram durante a II Guerra Mundial. Dividido em cinco capítulos, Resistência parte de um consistente balanço historiográfico indicativo dos esforços e das dificuldades em conceituar o termo “resistência” (capítulo 1), para, em seguida, passar ao exercício analítico de sua ampla gama de fontes: os museus e memoriais franceses (capítulo 2), as cartas de despedida dos resistentes e reféns fuzilados (capítulo 3), que constroem a primeira parte do livro, dedicada à França, e, por fim, os museus e memoriais italianos (capítulo 4), com especial destaque à construção da memória e historiografia a respeito da trajetória da família Cervi, e do fuzilamento dos sete irmãos – os Sette Fratelli – integrantes da Resistência3 italiana (capítulo 5).

De modo inicial, é importante ressaltar, Rollemberg indica que as populações dos países ocupados “experimentaram comportamentos que variaram de país para país, ao longo do tempo, num amplo campo de possibilidades desde a colaboração mais aguerrida com os vencedores até a resistência mais combativa” (Rollemberg, 2016, p. 17). Nessa perspectiva, a autora, como cerne da argumentação que permeia todo o livro, busca desconstruir não apenas a visão maniqueísta entre Estado e Sociedade, conforme citamos anteriormente, mas também a visão que opõe, drasticamente, resistentes e colaboradores, como se resistir ou colaborar fossem as únicas possibilidades de atuação dentro desses contextos históricos. Para isso, inspira-se, essencialmente, no historiador Pierre Laborie, mais especificamente em seus conceitos de zona cinzenta e pensar-duplo, que realçam o amplo espaço de atuação entre os dois polos, marcado por contradições e ambivalências.4 Enveredando pela discussão conceitual, a autora busca explicitar que as experiências variadas de país para país deram origem, também, a conceituações diferentes. Assim, distingue as discussões historiográficas realizadas na França, Itália e Alemanha.

Sobre a França, campo com que Rollemberg tem maior familiaridade, a discussão é robusta. Demonstra, como prelúdio, que logo após o fim da ocupação, 1944, o termo resistência iniciou um processo de naturalização no seio da sociedade francesa, por intermédio da memória oficial que ia sendo desenvolvida pelo governo surgido do processo de libertação, comandado por Charles de Gaulle.

Criava-se, então, o mito da resistência, ou “resistencialismo”, no neologismo de Henry Rousso (2012). Ou seja, o mito de que a sociedade francesa havia, em sua totalidade, resistido aos alemães e ao governo instaurado em Vichy, sob o comando de Philippe Petain. Por muitos anos, o termo ficou sob o domínio dessa memória, estando fora dos objetivos e anseios dos historiadores. Realizando uma genealogia do conceito, a historiadora demonstra que a historiografia francesa se voltou à “resistência” apenas em 1962, com a tese de Henri Michel, que abre os debates acadêmicos a respeito do termo, ainda sob forte influência do processo de mitificação. Contudo, é com o livro de Robert Paxton, Vichy France (1972), que há uma guinada no debate. A revolução paxtoniana, como ficou conhecido o impacto da tese de Paxton, abriu novas temáticas e interpretações, pois deu início a uma corrente historiográfica indicativa de que o Estado de Vichy era produto da própria sociedade francesa e não uma marionete da Alemanha de Hitler. Iniciava-se, portanto, o processo historiográfico de problematização do mito da resistência.

Passeando com propriedade pelas contribuições de François Bédarida, Pierre Azéma, Pierre Laborie, Jacques Sémelin, François Marcot, Henry Rousso e Denis Peschanski, a historiadora apresenta, de forma nítida, reflexões a respeito da criação do mito de resistência como “necessidade social” (Rollemberg, 2016, p. 33) e, sobretudo, tentativas de conceituar o termo. Em uma diversidade de propostas de conceituação que, conforme diz a própria autora, engolfam-se, por vezes, em “excessivas filigranas e retórica” (Rollemberg, 2016, p. 37), vemos emergir a problemática fundamental do debate: resistência é apenas expressão coletiva, consciente, organizada e clandestina contra um invasor estrangeiro, como propõem alguns autores, ou também podem ser considerados resistentes as expressões individuais, cotidianas e anônimas, seja contra o regime alemão instaurado na zona ocupada ou contra o regime de Vichy? Cria-se, assim, um dilema, bem sintetizado por Jacques Sémelin: “ou bem se mergulha nas profundezas do social, mas sua especificidade [da resistência] tende a se diluir; ou bem se define exclusivamente através de suas [da resistência] estruturas e ações e ele se reduz à sua dimensão organizada” (Rollemberg, 2016, p. 32). Apesar de parecer intransponível, a historiadora apresenta um caminho possível para sua resolução, demonstrando a importância das propostas teóricas de Laborie para sua análise: A zona cinzenta, o pensar duplo, o homem duplo, segundo a perspectiva de Pierre Laborie que considera comportamentos ambivalentes nuançados entre resistir e colaborar, por outro lado, talvez seja a solução para o impasse levantado por Sémelin (Rollemberg, 2016, p. 148).

Seja como for, adotando-se ou não as posições de Laborie para resolver o impasse sintetizado por Sémelin, o exercício reflexivo que o desencadeou, segundo Rollemberg, demonstra, per se, a importância e a necessidade de reflexão a respeito do conceito de resistência, pois concei tuá-la “é mais lidar com as possibilidades e os limites das próprias definições, aproveitando as tensões e riquezas que são intrínsecas ao dilema observado por Sémelin, do que buscar resolvê-lo” (Rollemberg, 2016, p. 37).

Para o caso italiano, a discussão é menos densa. Segundo a autora, isso se deve ao fato de que para a historiografia italiana importa menos definir “o que foi e o que não foi resistir”, centrando os esforços, em contrapartida, no “papel de seus atores, principalmente das lideranças ou de militantes destacados” (Rollemberg, 2016, p. 47). Apesar da não importância da conceituação, a historiadora alerta que as contribuições historiográficas têm buscado desconstruir, também, o mito da resistência.

Por fim, finalizando o primeiro capítulo, está a reflexão a respeito do conceito de resistência proposto pela historiografia alemã. Rollemberg oferece destaque à definição proposta por Martin Broszat. Esta, ao contrário de utilizar o termo resistência (Widerstand), prefere utilizar Resistenz, cuja tradução é imunidade, termo devedor da biologia, que diz respeito a “reações espontâneas e naturais dos organismos vivos a micro-organismos como vírus e bactérias” (Rollemberg, 2016, p. 52). Assim, com essa nova definição, procurou-se jogar luz sobre a “resistência a partir de baixo”, como bem sintetizou Klaus-Jürgen Müller a respeito da definição proposta por Broszat.

Nos capítulos seguintes, sejam relacionados ao contexto francês ou italiano, notamos, com clareza, dois aspectos predominantes: por um lado, o esforço analítico da autora, buscando demonstrar e desenvolver as relações tensas e mutáveis entre história e memória, por intermédio, essencialmente, dos museus e memoriais como corpus documentais de análise. Por outro, o realce e a recorrência, ao longo de todo o texto, na importância de compreender as ações dos sujeitos que fizeram parte desse processo histórico a partir de suas ambivalências e contradições, buscando problematizar as visões romantizadas e heroicizadas construídas sobre esses indivíduos. Assim, a historiadora reforça a necessidade de compreendê-los sem operar distinções binárias e estéreis. Nas palavras da própria Rollemberg a respeito da criação de museus e homenagens aos resistentes:

A homenagem precisa incorporar a complexidade, as contradições, as ambivalências da realidade. A produção do conhecimento, resultado da incorporação das múltiplas dimensões dos acontecimentos e dos homens e mulheres neles envolvidos, submetidas à interpretação crítica, é a melhor homenagem que se possa fazer. A sacralização da memória afasta o herói de todos nós, condena-o ao desconhecimento, mesmo que inúmeros museus e memoriais sejam erguidos em seu nome (Rollemberg, 2016, p. 97).

Portanto, perseguindo essa trilha, Rollemberg empreende uma análise ampla acerca de 15 museus/memoriais ao redor da França, 130 cartas de resistentes ou reféns5 prestes a serem fuzilados e, por fim, analisa oito museus/memoriais italianos. É digno de nota demonstrar a metodologia empregada pela historiadora na construção dos museus/memoriais como corpus documentais para discussão das questões propostas na obra. Seguindo a senda proposta por Jacques Le Goff, a respeito do conceito documento/monumento6, a historiadora compreende a criação e, consequentemente, os próprios museus/memoriais através dessa dinâmica. Assim, a disposição dos museus/memoriais, os locais onde foram construídos, seus acervos, suas narrativas, dinâmicas e relações com o poder público são importantes ao olhar analítico da autora.

Todos os aspectos, constituintes da criação e perpetuação dos museus/memoriais, são vistos como esforços “das sociedades históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si própria” (Rollemberg, 2016, p. 90). Outrossim, constatando que os museus/memoriais são criados com uma dupla-função, informativa e comemorativa, a historiadora compreende- os como espaços privilegiados de manifestação das tensões entre história e memória, analisando, assim, de que modo esses espaços incorporam ou recusam os avanços e novos temas propostos pela historiografia (Rollemberg, 2016, p. 90).

Sobre a França, vale ressaltar que a autora deslinda de que modo foi construído o “resistencialismo”. Apresenta a importância da memória nesse processo, a memória como construção social, como maneira de “lidar com a história, reconstruindo-a” (p. 84), formulada no período pós-ocupação, “comportando a lembrança, o esquecimento, o silêncio” (Rollemberg, 2016, p. 84), como aponta Beatriz Sarlo (2007), a memória como captura do passado pelo presente; o mito da resistência, o mito que explica a ausência, ao menos na grande maioria dos museus, de informações a respeito da colaboração dos franceses com os nazistas e com o regime de Vichy; o “resistencialismo” tornando ausente das narrativas dos museus “a zona cinzenta, o pensar duplo, a ambivalência” (Rollemberg, 2016, p. 142).

Com relação à Itália, deve-se atentar para a valiosa trilha percorrida pela historiadora ao confrontar a história e a memória do caso dos Sette Fratelli. Realizando uma genealogia da criação do mito, que remonta a dois textos de Italo Calvino publicados em 1953 (Rollemberg, 2016, p. 335), Rollemberg expõe as relações de legitimação dos mais diversos setores da sociedade italiana com a criação e manutenção de uma narrativa romantizada acerca dos sete irmãos fuzilados em 1943. Aponta não apenas para a necessidade do Partido Comunista Italiano (PCI) em vincular- se à história dos irmãos, mas, também, a necessidade do próprio governo italiano, simbolizado na recepção de Alcide Cervi, pai dos sete irmãos, pelo primeiro presidente eleito pós-ocupação, Luigi Enaudi, em 1954, no Palácio Quirinale, em Roma, além de diversas medalhas de honra que Alcide recebeu como representante dos filhos (Rollemberg, 2016, p. 318). A história dos irmãos resistentes e, consequentemente, da superação do sofrimento de um pai que teve a família devastada como símbolos da história italiana recriada pela memória, a Itália resistente, a exemplo dos sete irmãos, livre do nazifascismo, que buscava superar o sofrimento, como Aldo Cervi buscava superar a perda dos filhos.

Resistência, portanto, cumpre os objetivos a que se propõe, descortinando as relações problemáticas e, ao mesmo tempo, férteis entre história e memória em meio à construção da memória coletiva na França e na Itália a respeito das ocupações nazistas ao longo da II Guerra Mundial. Mais do que isso, o livro da historiadora é um interessante ponto de vista metodológico para os interessados em compreender as complicadas questões vinculadas à História do Tempo Presente.7 Se vivemos, como aponta o historiador François Hartog (2017), um regime de historicidade presentista, em que a Memória busca destronar a História de seu lugar privilegiado como intérprete hegemônica do passado, Resistência é uma contribuição fundamental à historiografia brasileira para aqueles que buscam fugir às armadilhas da Memória, que opera, na maioria das vezes, por intermédio de uma cultura binária de demonização ou sacralização de indivíduos e/ ou períodos históricos. Rollemberg, portanto, em seu novo caminho analítico, do qual Resistência é a reflexão mais profunda até o presente momento, apresenta os desafios dos historiadores que trilham as temáticas envolvendo experiências sociais traumáticas do passado recente. Ao buscar recolocar os personagens em seus respectivos contextos históricos, questionando as construções memoriais e realçando a importância de lançarmos luz às zonas cinzentas, contradições e ambivalências dos sujeitos históricos, a autora deixa-nos – aos historiadores – um sinal de alerta: o dever do historiador é compreender o passado, não o mitificar.

Referências

HARTOG, F. 2017. Crer em História. Belo Horizonte, Autêntica, 252 p.

LABORIE, P. 2010. 1940-1944: Os franceses do pensar-duplo. In: S.

QUADRAT; D. ROLLEMBERG (org.), A construção social dos regimes autoritários: vol. I, Europa. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, p. 31-44.

LE GOFF, J. 2013. História e Memória. 7ª ed. Campinas, Editora da Unicamp, 504 p.

PAXTON, R. 1973. La France de Vichy. Paris, Seuil, 475 p.

QUADRAT, S.; ROLLEMBERG, D. (org.) 2010. A construção social dos regimes autoritários. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 3 vols.

QUADRAT, S.; ROLLEMBERG, D. (org.) 2015. História e memória das ditaduras do século XX. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2 vols.

ROLLEMBERG, D. 2000. Exílio: entre raízes e radares. Rio de Janeiro, Record, 375 p.

ROLLEMBERG, D. 2016. Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália. São Paulo, Alameda Editorial, 376 p.

ROUSSO, H. 2012. Le Régime de Vichy. 2ª ed. Paris, PUF, 128 p.

ROUSSO, H. 2016. A última catástrofe: a história, o presente, o contemporâneo. Rio de Janeiro, Editora FGV, 341 p.

SARLO. B. 2007. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo, Companhia das Letras / Belo Horizonte, Editora da UFMG, 129 p.

2 Referimo-nos aqui, respectivamente, à sua dissertação de mestrado (A ideia de revolução: da luta armada ao fim do exílio (1961-1979)) e à tese de doutorado (Exílio. Entre raízes e radares), esta última publicada pela Editora Record (1999).

3 O termo Resistência, com letra maiúscula, consolidou-se na historiografia como modo de referir-se a posições e ações ligadas a organizações, partidos e movimentos (p. 175).

4 Para maior aprofundamento a respeito dos conceitos, cf. Laborie (2010).

5 “Reféns” denominam-se os indivíduos presos, seja na França ocupada ou na França de Vichy, em represália às ações da Resistência.

6 Para maiores detalhes, cf. Le Goff (2013).

Higor Codarin – Universidade Federal Fluminense. Rua Prof. Marcos Waldemar de Freitas Reis, s/n. 24210-201 Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). Número do processo: E-26/201.860/2019. E-mail: higor.codarin@gmail.com.

Resistência: memória da ocupação nazista: memória da ocupação nazista na França e na Itália – ROLLEMBERG (Topoi)

ROLLEMBERG, D. Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália. São Paulo: Alameda, 2016. Resenha de: GHERMAN, Michel. “Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália.” Uma perspectiva comparativa acerca do uso da memória. Topoi v.19 n.37 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2018.

Em seu livro Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália, publicado pela editora Alameda em 2016, a historiadora Denise Rollemberg propõe uma reflexão relativamente rara em trabalhos produzidos no Brasil: a análise dos lugares de memória da resistência ao nazismo em países que tiveram distintas experiências em relação à ocupação na Segunda Guerra Mundial, França e Itália.

Sua obra se divide em uma apresentação e em mais duas partes. Na apresentação, capítulo “Resistência: o desafio conceitual”, a autora faz um cuidadoso debate acerca das formas de resistência, de sua historiografia e de seus usos políticos. A Parte I, que trata de “Memória e resistência na França” se divide em dois capítulos.

No capítulo 2, “Museus e memoriais franceses”, é feita a análise de monumentos e museus da resistência francesa, discutindo referências teóricas de história e de memória e suas distintas adaptações nos vários casos dos “lugares de Memória” (p. 92) no país. No capítulo 3, “Em algumas horas vou morrer… As cartas de despedida dos resistentes”, a autora analisa cartas de despedida deixadas por resistentes que seriam, às vezes algumas horas depois de escrevê-las, fuzilados. Interessante notar aqui a tentativa de desconstrução de percepções prévias, por vezes consolidadas na memória da resistência, sobre os “mártires” assassinados pela repressão nazista.

Finalmente, na parte II: “Memória e resistência na Itália”, composta por mais dois capítulos, a autora faz uma reflexão sobre o uso da memória no país. O capítulo 4, “Museus e memoriais italianos” é aberto por um interessante debate sobre a própria construção da história italiana, no que diz respeito à memória da resistência. A partir dessa percepção, a resistência aberta ao nazifascismo, de fato estabelecida a partir da invasão estrangeira ao país (em 1943), teria sido iniciada, segundo a narrativa italiana do pós-guerra, já com a subida de Mussolini ao poder. Aqui, exposições e memoriais analisados parecem tentar estabelecer uma história contínua de resistência ao fascismo a partir da década de 1920. No livro, a autora aponta estratégias usadas na construção da memória sobre a resistência na Itália ao utilizar referências da unificação italiana (risorgimento, em fins do século XIX), como forma de estabelecer uma narrativa nacional contra a invasão alemã e o fascismo (p. 236).

Por fim, no capítulo 5, “Os sete fratelli”, o livro trata dos memoriais em homenagem a sete irmãos, militantes contra o fascismo, fuzilados em 1943. Aqui a autora analisa como os irmãos, simpatizantes do comunismo e moradores do interior da Itália, são alçados, no pós-guerra, à condição de símbolo nacional de resistência ao fascismo no país. Ao refletir sobre memoriais e museus em homenagem aos “sete fratelli”, a historiadora estabelece uma reflexão sobre a construção de uma memória sacralizada (p. 235) que transforma o caso específico de resistência e fuzilamento em referência simbólica da luta contra o nazifascismo na Itália.

O livro Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália constitui um trabalho importante por estar baseado em duas propostas de análise distintas e complementares. A primeira delas pretende estabelecer um estudo acerca da ocupação nazista em alguns países da Europa ocidental (França, Itália e Alemanha). Nesse contexto, a ideia de “uma resistência europeia” é desafiada. Para isso, a autora tenta historicizar a noção de resistência, ao propor questões determinadas pelas especificidades da política de ocupação em cada país.

A segunda proposta de análise está relacionada com a construção de uma memória da resistência. Aqui, Rollemberg analisa as narrativas sobre a resistência nos países citados. Essa revisitação da história é feita a partir da reflexão sobre os “usos da memória” na França, na Itália e na Alemanha, apresentando importante contribuição para debates acerca da ideia de memória sobre a resistência ao nazismo (p. 40).

O desafio de estudar museus e monumentos em países que tiveram experiências tão diferentes em suas respectivas relações com a expansão do nazismo na Europa demanda extrema habilidade na análise documental (de museus e memoriais), bem como uma perspectiva metodológica que garanta pertinência aos objetos escolhidos. Acredito que o livro de Denise Rollemberg tem muito sucesso em suas escolhas.

Esse sucesso está relacionado à cuidadosa análise que a autora faz do próprio conceito de resistência. Ao propor uma espécie de “dialética da resistência” (p. 20), Rollemberg afirma que o sentido de resistência deve estar menos vinculado, como propunha uma historiografia mais tradicional, com análises reificadas e absolutizadas da resistência propriamente dita. Aqui, a autora busca uma análise mais aprofundada a partir perspectivas mais críticas da própria resistência. Os diversos regimes escolhidos são analisados em conjunto com as respectivas formas de resistências ao nazismo. Nesse contexto, a historiadora propõe uma dinâmica comparativa entre dois (ou três) países com experiências bastante distintas na guerra: França e Itália (e Alemanha). Apesar de regimes diversos e das diversas formas de resistir, é proposto no livro que as referências de comparação podem ser não apenas possíveis, mas devem ser uma importante referência de pesquisa (p. 19).

Em sua pesquisa a historiadora propõe que seja estabelecida uma relação entre “forma da ocupação” e “forma da resistência”. Assim, o livro relaciona os diversos regimes de ocupação nazista às várias formas de resistência. Segundo a autora, onde as expressões do totalitarismo e da ocupação fossem mais pungentes e completas, mais flexíveis e menos específicas seriam as possibilidades de resistência. Nos casos em que o totalitarismo e a ocupação tivessem menos sucesso, as formas da resistência apareceriam de maneira menos ampla e mais objetiva.

Nesse sentido, países onde estruturas do regime fossem efetivamente hegemônicas, como é o caso da Alemanha, as formas de resistência deveriam ser vistas com lentes que dessem a elas maior expressão. Em países como a França (principalmente no norte do país), as análises sobre resistência deveriam ser feitas com mais exigência e fôlego, afinal, haveria, a princípio, maior espaço social e político para formas mais específicas e objetivas de resistência ao regime ocupante (p. 20).

Ao se debruçar sobre o caso francês, a autora faz um estudo de casos sobre “a história da memória” da resistência à ocupação. Se após a libertação a França produziu uma memória de “todos os resistentes”, essa memória se desloca para outro lugar depois das primeiras três décadas depois da ocupação nazista. Aqui, o livro aponta como referência o lançamento do documentário Le Chagrin et La Pitié, como forma de localizar e justificar a mudança da memória francesa no que diz respeito à resistência de todos. A perspectiva do documentário desafiava a memória oficial francesa, justamente por inverter esses sinais. A tese central do filme era de que, na França, todos foram, de uma maneira ou de outra, colaboracionistas (p. 21).

Nesse contexto, o “mito da resistência”, utilizado por governos do pós-guerra, seria substituído pelo “mito da colaboração”. Em um movimento de “contramemória”, os franceses revisitam as experiências do nazismo com, por assim dizer, sinais trocados. A autora defende que as transformações no tratamento da memória da resistência tenham sido um subproduto das manifestações de maio de 1968. Desse modo, a derrubada de heróis (típica da rebelião dos estudantes) chegava à experiência da resistência na guerra. Importante notar, como bem apontado no livro, que a produção dessa contramemória ocorre em um momento em que a geração dos “resistentes”, ou “colaboradores”, ainda estava ativa na França (p. 26).

Nessa dinâmica de memória e contramemória, a autora nota que outro debate começa a consolidar-se historiograficamente justamente após a publicação de uma importante obra que será referência. Vichy, France escrita pelo britânico Robert Paxton, propunha uma análise mais complexa do fenômeno da resistência. Nesse contexto, se buscava fugir das lógicas absolutas fosse da “nação de resistentes”, fosse da “nação de colaboradores”. De fato, o modelo paxtoniano apresenta uma nova abordagem sobre a história da resistência francesa, ou, segundo Rollemberg “entre os dois modelos de memória, ou entre as duas memórias, a historiografia buscou seu caminho próprio” (p. 23).

A partir desse momento, o livro debate modelos “pós-paxtotianos” da historiografia francesa que vão estabelecer critérios mais claros no que diz respeito às formas de resistência e as formas de colaboração. Afastando-se da noção do “homem providencial” (p. 27) e da naturalização da resistência (ou da colaboração) a historiografia francesa estabelece fronteiras e critérios para discutir formas de resistência na história do país.

A partir de então, a autora propõe que, para além de perspectivas “sacralizadas” das vítimas (p. 9), o “giro historiográfico” francês passa também a lidar com referências mais complexas de resistência. Saindo do debate baseado em figuras heroicizadas (no caso de resistentes) ou vilanizadas (no caso de colaboracionistas), a autora propõe análises a partir das “zonas cinzentas” de atuação (usando o conceito que Laborie pega emprestado de Primo Levi) (p. 9). A disputa entre a vítima sacralizada e a produção historiográfica mais crítica ainda está, entretanto, presente nos monumentos e nos debates sobre a memória francesa, como a autora bem demonstra no decorrer do livro (a abertura da obra com o exemplo do memorial de Jean Moullin ilustra muitíssimo bem esse debate) (p. 9).

Na parte sobre a resistência italiana, a autora trabalha a partir da perspectiva comparativa e estabelece características distintas em relação à resistência francesa. A resistência italiana se inicia com a ocupação nazista no país, justamente após a derrota do fascismo. Ou seja, há uma clara definição temporal e política sobre o início da resistência. Em comparação com a oposição contra o fascismo, a relação com os ocupantes nazistas aliados do fascismo era de combate (p. 44).

Esse período se estabelece quando estruturas de poder nazistas (como a Gestapo e a perseguição aos judeus) (p. 45) começam a se apresentar na Itália. Nesse momento, os opositores históricos ao fascismo italiano iniciam a resistência aos nazifascistas. Assim, a resistência italiana teria surgido, conforme propõe a autora, em 1943, junto à ocupação estrangeira.

Como bem coloca a historiadora, o combate e o apoio dos resistentes italianos é mais militar do que político (em comparação com a resistência francesa), apesar dos vários grupos envolvidos no combate aos nazistas (comunistas, democratas cristãos, socialistas, anarquistas etc.) e de suas perspectivas distintas de combate e de vitória sobre nazifascismo (tese das três guerras, p. 47).

Nesse sentido, inclusive haveria dois ocupantes no mesmo momento, os aliados (percebidos como parceiros na luta contra o nazifascismo) e os nazistas (em sua aliança com os fascistas), que teriam se transformado em inimigos e alvo da resistência italiana na guerra.

Nessa realidade, apresentada como referência comparativa ao que ocorria na França, a Itália vai produzir uma rede de memoriais, museus e monumentos muito específicos, como a autora apresenta na última parte do livro.

O último caso comparativo da obra de Denise Rollemberg é o caso da Alemanha, que por algum motivo não aparece no título e nem é alvo de análise quando a autora fala dos monumentos à resistência, na última parte da obra. Bastante diferente dos dois casos discutidos anteriormente, o caso da resistência na Alemanha é único.

Em primeiro lugar por não se tratar de uma resistência a invasão de potência estrangeira. A “resistência” alemã se estabelece no enfrentamento (ou na oposição) a um movimento social e político do próprio país. O segundo ponto importante está relacionado com o caráter do regime. Ao contrário do que ocorria na Itália e na França, a base social, as possibilidades de delação e o diminuto espaço para resistências criavam um tipo muito específico de oposição ao regime. Conforme proposto pela autora, no caso da Alemanha, o estabelecimento de um regime de alto grau de controle demanda que as análises de possíveis resistências sejam mais flexíveis e amplas. É isso que a autora faz.

A resistência alemã ao regime nazista fez com que ao fim da guerra se estabelecesse uma percepção de “grande élan moral e com um engajamento político intenso” (p. 50) que procurava se opor à “tese da culpabilidade coletiva”. Nesse sentido, se pretendia estabelecer uma espécie de lastro político para que “da outra Alemanha” pudesse surgir uma “nova Alemanha” (p. 51).

A ideia de que seria inviável, dado às expressões totalitárias do regime, que houvesse resistências internas na Alemanha foi largamente aceita, conforme mostra a autora, pelos historiadores do pós-guerra. A ideia de impossibilidade fazia com que se buscassem novas formas de compreensão da resistência alemã no contexto do regime nazista.

Essa perspectiva foi desafiada por Martin Boszat já na década de 1970. Para o historiador, a noção de “resistenze” (reações espontâneas, quase naturais) poderiam descrever as formas de “resistência” na Alemanha. Assim, a simples negação de uma saudação nazista, ou a não participação em desfiles do regime, seriam, em última instância, maneiras de resistir ao regime totalitário. Dessa forma, posicionamentos quase que exclusivamente individuais e “funcionalistas” (em oposição à natureza intencionalista da resistência francesa e italiana, p. 53), seriam as referências possíveis em uma Alemanha dominada pelo nazismo.

Na década de 1980, Ian Kershaw vai desafiar as perspectivas propostas por Boszat. Segundo ele, referências individuais e pontuais de “resistenze” poderiam apagar “zonas cinzentas ideológicas” (p. 54) que foram estabelecidas pelo próprio regime. Aqui, Kershaw chamaria a situação de dissidência, mas não utilizaria o conceito de resistência, sob o risco, segundo ele, de produzir-se heroicização de atitudes individuais. A autora faz, então, um levantamento de tentativas de resistência a partir de movimentos políticos coletivos que, apesar de poucos e dispersos, aconteceram na Alemanha nazista.

Esse debate sobre “culpabilidade coletiva”, “outra Alemanha” e sobre formas individuais e coletivas de resistência vai criar outro modo de produção de memoriais e museus que, infelizmente não são tratados no livro, centrado nos casos da Itália e da França.

A publicação no Brasil de um livro sobre a memória da resistência em países ocupados pelos nazistas na Europa é de fundamental contribuição em nosso país, no qual o debate sobre memória e resistência à ditadura parece encontrar novos desafios políticos e historiográficos.

Referências

ROLLEMBERG, D Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália. São Paulo: Alameda, 2016. [ Links ]

2Como citar: ROLLEMBERG, D Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália. São Paulo: Alameda, 2016. Resenha de GHERMAN, Michel. Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália. Uma perspectiva comparativa acerca do uso da memória. Topoi. Revista de História, Rio de Janeiro, v. 19, n. 37, p. 232-236, jan./abr. 2018. Disponível em: <http://www.revistatopoi.org>.

Michel Gherman – Pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: michelgherman@gmail.com.