História intelectual: “ideias e conhecimentos: produção, circulação, transmissão” / História – Questões & Debates / 2010

Partindo da própria fundamentação da história intelectual, este dossiê, intitulado “Ideias e conhecimentos: produção, circulação, transmissão”, pretendeu enfatizar os procedimentos de construção, de transposição e de apropriação do saber.

Praticada nestas últimas três décadas, notadamente na Europa, a história intelectual se afirmou como uma área de pesquisa das ciências humanas, tendo por ambição principal elucidar a formação, a produção, a circulação e a recepção das ideias e dos conhecimentos. Apreender tanto as ferramentas de análise como os mecanismos de transposições intelectuais constitui, por consequência, seu objeto de estudo.

Ora, este vasto campo de pesquisa interdisciplinar requer, inevitavelmente, uma abordagem que ultrapassa as fronteiras disciplinares, passível de melhor apreender os elementos componentes, a saber: a produção das obras, a posição dos autores e as respectivas inscrições nos contextos emergentes (culturais, intelectuais, históricos).

Objeto de controvérsias e de debates, esta área se situaria, para uns, na continuidade da história das ideias, e, para outros, ela se demarcaria radicalmente desta última.

Ora, a fim de evitar análises redutoras e simplistas, seus pesquisadores, nos dias atuais, recusam-se a se restringir unicamente às leituras internalistas e / ou externalistas dos textos, privilegiando a interconexão entre contextualismos e análises das obras. Rica em pesquisas, tanto na França (François Dosse) como fora dela, a partir da versão anglo-saxã (Skinner, Pocock) e da versão germânica (Koselleck), a história intelectual se afirmou como um ramo indispensável da história e das demais ciências sociais.

História dos conceitos, semântica histórica, sócio-história das ideias, ela vem se enriquecendo graças aos aportes de outras áreas do conhecimento e de diferentes métodos de análise, como a hermenêutica e as chamadas “transferências culturais”.

Abordando contextos históricos e intelectuais do final do século XIX ao início do século XXI e espaços culturais distintos (Europa e América), este presente dossiê teve por preocupação combinar diferentes objetos e temáticas: obras, autores, disciplinas, métodos de trabalho, correntes de pensamento, debates intelectuais, engajamentos políticos, circulações de ideias e de pessoas, procurando interligar a função de produtor do conhecimento ao efeito das ideias produzidas.

A emergência de uma disciplina, ou seja, a institucionalização de um conhecimento, neste caso a filosofia grega – os pré-socráticos –, no final do século XIX, inicia este dossiê. Neste texto, André Laks, filósofo da antiguidade, questiona o significado desta “escola de pensamento”, procurando mostrar como a criação desta corrente pré-socrática decorre tanto dos procedimentos intelectuais, ligados à instituição acadêmica moderna, como do legado de uma historiografia aristotélica.

Analisando o debate de ideias ocorrido na França, no final do século XIX, opondo dois cientistas sociais – Gabriel Tarde e Émile Durkheim –, adversários uma vez que concorrentes, Márcia Consolim explica a razão de suas divergências disciplinares e científicas. Como bem mostra seu artigo, esta polêmica é reveladora do estado do campo intelectual francês do momento, marcado pela disputa em torno do reconhecimento e do conhecimento entre dois pesquisadores e duas disciplinas emergentes: a sociologia e a psicologia social.

Sobre o processo de relações culturais entre a Alemanha e o Chile, na virada do século XX, o texto de Carlos Sanhueza propõe questionar as implicações destas transições de ideias e de modelos (militares e educacionais), via os intelectuais de ambos os países. Seu objetivo consiste em mostrar que, embora a Alemanha represente “o lugar” da ciência e do conhecimento, sua “presença” no Chile não deixa de projetar uma imagem negativa. Isto em razão das controvérsias e dos debates, por parte dos intelectuais chilenos, sobre o dito “embrujamiento alemán”. Em outras palavras, ele questiona se a “influência” cultural alemã não ameaçaria as culturas de raízes latinas.

Aliando análises antropológicas e estudos de linguagem, Maria de Lourdes Patrini Charlon investiga os “cadernos de campo” de Roger Bastide, redigidos ao longo de seu itinerário de pesquisador pelo Brasil, pela África e pela Europa. Professor visitante na Universidade de São Paulo durante vários anos, Bastide formou uma nova geração de professores brasileiros e desenvolveu inúmeros estudos sobre a cultura afro-brasileira. Instrumentos de trabalho etnológico, os “cadernos de campo” não só revelam o olhar deste antropólogo sobre o “outro”, mas permitem entrever as etapas e as modalidades de uma abordagem de pesquisa.

Buscando apreender o procedimento da circulação mundial das ideias, nos contextos intelectuais chileno e latino-americano, Eduardo Devés-Valdés elabora uma pesquisa sobre o cristianismo social na década de 1960. Especialista no pensamento latino-americano desta época, ele privilegia os enfoques, por um lado, sobre a importação de ideias através da “rede econômica e do humanismo” e, por outro, sobre a exportação de valores, através da rede dos chamados “cristãos para o socialismo”.

Autor de uma biografia intelectual de Gilles Deleuze, François Dosse demonstra como a obra deste filósofo, elaborador de conceitos, é perpassada pela questão política. “Pensador rebelde”, Deleuze participa de maio de 68 e se investe, na década de 1970, em movimentos sociais concretos (como o GIP) e em debates políticos e intelectuais que marcaram este momento. Engajada contra toda forma de institucionalização, de repressão e de poder, sua obra testemunha sua vontade de liberar o “fluxo de desejo” a partir da necessidade, que ela própria proclama, de procurar as “linhas de fuga”.

Por sua vez, o texto de Laurent Jeanpierre sobre as invenções e as reinvenções transatlânticas da “Critical Theory” remete a questões da migração de conceitos e da assimetria na circulação internacional do conhecimento. Forjada por Horkheimer, em 1937, durante o exílio do Institut für Sozialforschung nos Estados Unidos, esta expressão é abandonada nos anos 1960, mas reapropriada, em seguida, pelas universidades americanas sem que, no entanto, esta etiqueta “teoria crítica” tenha a mesma equivalência na Europa continental.

Fechando o dossiê, o texto sobre as “transferências culturais” pretende indagar a operacionalidade desta teoria e desta metodologia para o estudo da história intelectual. Buscando questionar as modalidades e as condições de possibilidade de sua utilização, Helenice Rodrigues apresenta seus pressupostos de análise, a saber: as interações, as imbricações, as apropriações e as transformações como resultado do processo de deslocamento das ideias no tempo e no espaço. Aliando o método comparativo ao cruzado, os utilizadores desta área se esforçam em mostrar a necessidade de se ultrapassar as áreas culturais nacionais pelos espaços transnacionais, a fim de melhor entender os fenômenos de circulação e de transferência do conhecimento.

Por fim, um artigo e uma resenha encerram os textos deste volume. O artigo, de autoria de Fernando Nicolazzi, tem como proposta a análise de alguns trabalhos recentes do historiador francês François Hartog, com o intuito de expor suas incursões sobre a cultura histórica contemporânea. Partindo de noções-chave como regimes de historicidade e presentismo, a análise empreendida pelo autor se insere no âmbito geral de uma história da historiografia.

A resenha, escrita por Nataniél Dal Moro, faz uma análise da obra Arte na rua: o imperativo da natureza, de autoria da historiadora Suzana Cristina Souza Guimarães. A obra procura refletir sobre o impacto provocado pela migração populacional ocorrida nas décadas de 1960-70 no cotidiano urbano da cidade de Cuiabá, com o objetivo de analisar a relação entre a arte, a natureza e a identidade do povo cuiabano a partir de fontes produzidas no campo das artes plásticas.

Helenice Rodrigues – Professora Associada da Universidade Federal do Paraná (UFPR)


RODRIGUES, Helenice. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.53, n.2, jul./dez., 2010. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê