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En présence de Schopenhauer – HOUELLEBECQ (V-RIF)
HOUELLEBECQ, Michel. En présence de Schopenhauer. Paris: Editions de L’Herne, 2017. Resenha de: RODRIGUES, Eli Vagner Francisco. Voluntas – Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v.8, n.2, p, 140-149, 2017.
O Enfant terrible da literatura francesa contemporânea, Michel Houellebecq, premio Goncourtem 2010 (Prix Goncourt du premier roman1) por La Carte et le Territoire (O Mapa e o Território), lançou, em 2017, pela editora francesa “Editions de LHerne”, seu livro sobre a filosofia de Schopenhauer. Houellebecq e autor da recente e pole mica obra “Submissa o”, uma espécie de distopia na qual uma França, enfraquecida em suas lideranças progressistas pelas disputas políticas contemporâneas, pautadas pela tolerância e pelo multiculturalismo, seve , depois de um rápido processo de transição política, totalmente inesperado pela maioria dos analistas políticos, dirigida por um líder islâmico. A derrota do pensamento explicitamente descrita em “Submissa o” e a resistência em defender certos ideais do iluminismo, como a ideia de progresso, por exemplo, apontam, nesta e em outras obras, para uma aproximação de Houellebecq com pontos de vista muito próximos da perspectiva schopenhaueriana. Entre suas obras mais conhecidas figuram “Partículas Elementares”, de 1998, sucesso editorial que praticamente lançou Houellebecq no mundo literário (e da pole mica) e que gerou um filme do diretor alemão Oskar Roehler. A obra e considerada um clássico do niilismo literário contemporâneo, título que, por si só , aponta para diversas contradiço es, mas que também revela que alguns traços da atmosfera filosófica do final do seculo XIX constituem uma influencia perene na cultura ocidental. O romance recebeu o Premio Décembre de melhor livro do ano em 1998. Em 2001, Houellebecq publicou “Plataforma”, e, quatro anos depois, “La Possibilité d’une île” (A possibilidade de uma ilha), que ganhou o Premio Interallié. Em 2015, no mesmo dia em que Houellebecq retornou a s livrarias com “Submission” (Submissa o – a palavra/tradução- ocidental para Isla ), a equipe editorial de Charlie Hebdo foi dizimada por dois terroristas islâmicos. Com prefacio de Agathe Novak-Lechevalier, docente sênior
da Universidade de Paris X – Nanterre, e editora do “Cahier” dedicado a Michel Houellebecq da mesma editora, (L’Herne), a obra sobre Schopenhauer e um apanhado de comenta rios a trechos dos dois volumes de O mundo como vontade e representação e dos Aforismos sobre a sabedoria de vida.
Houellebecq tem em Schopenhauer, segundo ele próprio, um dos autores centrais para o desenvolvimento, tanto das características de seus personagens, quanto da visa o geral sobre a cultura e a civilização atuais. Suas obras representam o que já foi definido pela crítica como um exemplo de uma escrita niilista efetivamente marcada pelas contradição es da chamada modernidade tardia (pós-modernidade), na contramão do politicamente correto, sobretudo na caracterização do comportamento das personagens, invariavelmente envolvidas em uma atmosfera de miséria afetiva, nas contradições da sexualidade pós 68 e no tratamento de questões políticas e culturais. Mas como seria possível tal influencia se na o se trata de um filosofo pós-moderno? A resposta para tal vínculo estaria na inspiração pessimista em relação aos ideais civilizatórios, uma concepção muito próxima da concepção e do papel do artista em relação a verdade metafísica e moral e, por assim dizer, nenhum entusiasmo em relação ao islamismo, entre outros aspectos. A obra Em Présence de Schopenhauer (Editions de L’Herne, Paris, 2017, 91 paginas), ainda sem previsão de tradução para o português, pretende, segundo o próprio autor, em linhas gerais, sustentar a tese segundo a qual a atitude intelectual de Schopenhauer deve ser uma referencia para aqueles que se ocupam da filosofia nos dias atuais. Sua estratégia de escrita foi a de analisar longos trechos do “Mundo como Vontade e como Representação”, dos suplementos ao “Mundo” e dos “Aforismos sobre a sabedoria de vida”, passagens pelas quais declara ter um apreço especial, e comenta -las de maneira livre, ensaística. O resultado evidencia que Houellebecq e um leitor, como se esperava, experimentado em questões este ticas e que apresenta uma interpretação atenta e penetrante de passagens cruciais da obra do filosofo de Frankfurt. Por outro lado, a obra pode ser considerada um “pequeno livro”, pela extensa o e pelo formato (livro de bolso).
Houellebecq, como indico acima, optando pela abordagem ensaística, nao nos entrega uma obra em padrão acadêmico, pautada e orientada pelo rigor metodológico das analises e interpretações, mas, ao mesmo tempo, demonstra um conhecimento “técnico” incomum entre escritores e ensaístas e tece comenta rios, na maioria das vezes, oportunos, seguros e estimulantes. Sua abordagem evidencia um conhecimento de problemas relacionados a política, epistemologia e, sobretudo a este tica e historia da filosofia. Sobre um problema crucial da teoria do conhecimento, Houellebecq afirma:
Há algo de reconfortante sobre imaginar o próprio corpo como um objeto imediato; e preocupante em considerar a pluralidade, uma fonte inesgotável de infortúnio na prática, como consequência das condições formais do conhecimento; especialmente quando sabemos (e será o mérito do século XX ter estabelecido) que eles não têm a segurança de posse que Kant emprestou a eles. (p. 29, tradução nossa)2.
No capítulo introdutório, intitulado “Sors de L’enfance, Ami, Reveille-toi”, epígrafe de “O Mundo como Vontade e como Representação”, Houellebecq narra seu encontro com a obra de Schopenhauer. “Quando peguei emprestados os Aforismos sobre a sabedoria na vida na biblioteca municipal do VII distrito, eu poderia ter vinte e seis ou vinte e sete anos. Em qualquer caso, e muito tarde, para uma descoberta tão considerável”. (p. 22). Nessa apresentação o traço crítico e sarcástico, que alia s se nota em toda sua obra, transparece no texto do autor de “Partículas Elementares” em relação a filosofia nietzschiana:
Depois de duas semanas de pesquisa, consegui obter “O Mundo como Vontade e Representação”, numa prateleira da livraria de Presses Universitaires de France, boulevard Saint-Michel; na época, o livro só estava disponível naquela ocasião (durante meses eu estava surpreso, em voz alta, tive que expressar meu espanto para dezenas de pessoas: estávamos em Paris, uma das principais capitais europeias, e o livro mais importante do mundo nem sequer foi republicado! Na filosofia eu estava quase em Nietzsche; em uma constatação de falha, na verdade. Achei sua filosofia imoral e repulsiva, mas seu poder intelectual se me impôs. Gostaria de destruir o nietzscheanismo, espalhar seus fundamentos, mas não sabia como fazê-lo; intelectualmente, fui espancado. Escusado será dizer que a leitura de Schopenhauer, novamente, mudou tudo. Eu nem o culpo pelo pobre Nietzsche; Ele teve a infelicidade de vir depois de Schopenhauer, assim como ele teve o infortúnio, na música, de atravessar o caminho de Wagner. (p. 23).
Apesar da declarada aversão a filosofia moral de Nietzsche, Houellebecq, concorda com o jovem filo logo da Terceira Extemporanea e determina assim o proposito específico de sua obra sobre Schopenhauer. Houellebecq destaca que, na obra
supracitada, escrita pouco antes da guinada crítica, Nietzsche elogia a profunda honestidade de Schopenhauer, sua probidade, seu senso de justiça como pensador. Nietzsche destaca magnificamente seu estilo, um tipo de bonomia mal-humorada que lhe da certo desgosto elegante característico dos grandes estilistas em literatura. “Tal e o objeto ampliado deste volume: proponho mostrar, através de algumas das minhas passagens favoritas, por que a atitude intelectual de Schopenhauer continua a ser um modelo para qualquer futuro filosofo” (p. 25).
Houellebecq destaca que na primeira parte de sua obra capital, na qual Schopenhauer determina o mundo dos objetos como um todo, na primeira perspectiva como representação, permanece-se sempre condicionado pelo sujeito. Nesta fase de seu trabalho, “ele na o tem trinta anos”, nota um Houellebecq admirado: Schopenhauer, apo s duas obras (“Da quadrupla raiz do princípio de razão suficiente” e “Sobre a visa o e as cores”), chegou a um uma posição perfeitamente clara: ele assimilou a crítica kantiana, da qual teria dado uma visa o mais franca e mais exata. “O mundo e minha representação”. Segundo Houellebecq, o primeiro Wittgenstein, em seu Tractatus Logico Philosophicus, não dirá nada ale m disso: “O mundo e o que acontece”3. As primeiras paginas do “Mundo” seriam, segundo Huellebecq, apenas uma síntese, particularmente clara, desses primeiros trabalhos. As afirmações do autor podem causar algum incomodo no publico especializado, mas, apesar de Houellebecq na o pretender ficar meramente na para frase do texto schopenhaueriano, ele também na o tem a intenção, como ja constatamos, de aprofundar temas com rigor acadêmico. Ao contra rio de Wittgenstein – retoma Houellebecq – que emite a famosa conclusa o ao final de seu Tractatus “sobre o que na o se pode falar devemos nos calar”, Schopenhauer vai nos falar exatamente sobre o que na o se pode falar: sobre o amor, a morte, a piedade, a tragédia e a dor. Assim, segundo Houellebecq, ele alcançou uma gloria imperecível penetrando no domínio mais comum aos romancistas, aos músicos e aos escultores (romanciers, musiciens, sculpteurs). Sua introdução neste mundo se da , nota Houellebecq, de maneira segura e serena, pois ele leva consigo na o uma obra esotérica e subjetiva, mas a estrutura de um verdadeiro sistema filosófico. O traço destacado com entusiasmo por Houellebecq e que essa introdução ao universo das “questões proibidas” se da magistralmente e com uma ênfase e predileção pela estética.
Houellbecq inicia o segundo capítulo convidando o leitor da mesma forma que Schopenhauer: a olhar para as coisas (Porte un regardattentifsur les choses). O convite e provocativo e inicia tico. Houellebecq explica com clareza exemplar o conceito de Ideia platônica a partir desse convite alvissareiro. Quando, animados pelo poder da mente, afirma, abandonamos o modo habitual de considerar as coisas, deixamos de desvendar, a luz do princípio de razão em suas diferentes formas, suas relações entre elas. Quando, pela contemplação, ja na o se considera o lugar, o onde, o quando, e o porque e o proposito das coisas, mas simplesmente e apenas a natureza delas; quando também na o se deixa o pensamento abstrato, os princípios da razão ocuparem a consciência; quando, ao invés de tudo isso, se depara com a intuição de todo o poder da mente, que recai no próprio eu e a consciência inteira esta cheia da contemplação pacífica de um objeto natural diretamente presente – seja uma paisagem, uma arvore, uma rocha, um edifício ou qualquer outro objeto, nesse momento o sujeito se esquece de si próprio. O sujeito puro, como um espelho claro do objeto, de tal maneira que e como se o objeto estivesse sozinho, sem que ninguém o percebesse, e que na o podemos mais distinguir a intuição de quem a experimenta. Na medida em que a consciência e inteiramente preenchida e absorvida por uma imagem intuitiva e u nica; quando finalmente o objeto se libertou de toda relação com outra coisa, e o sujeito de toda relação com a vontade: então o que se sabe na o e mais o particular, mas a Ideia, a forma eterna. Ora, a apresentação de Houellebecq, ale m de ser clara e didática, introduz o leitor em um aspecto fundamental para a compreensão da obra de Schopenhauer, a saber, a transição da este tica para a e tica. O objeto imediato da vontade, continua Houellebecq, nesse estado de contemplação, deixa de ser um objeto para a vontade, porque o indivíduo desapareceu no momento da contemplação: tornou-se o puro sujeito do conhecimento, liberado da vontade, da dor e do tempo.
E nesse ponto que Houellebecq da uma contribuição para o tema da este tica e para a cultura contemporânea. A proposito do papel do artista nesse processo e, considerando a inatualidade do conceito de gênio para a condição este tica de nosso século, Houellebecq afirma:
Esta descrição da contemplação límpida – na origem de toda a arte – é tão limpa que se esqueceria de seu caráter profundamente inovador. Antes de Schopenhauer, vimos todo o artista como alguém que fabricava coisas – certamente de uma fabricação difícil e de uma ordem especial… Mas o ponto original, o ponto gerador de toda a criação, é fundamentalmente diferente; consiste em uma disposição inata – e, consequentemente, não ensinável – na contemplação passiva e estupefata do mundo…Para o mundo de hoje, no qual a arte se tornou acessível para as massas e gera fluxos financeiros consideráveis, isso tem consequências cômicas…O artista, sozinho entre os homens, conserva uma faculdade de percepção pura, que normalmente é encontrada apenas na infância, na loucura ou no reino dos sonhos. O homem comum, este produto industrial da natureza, que fabrica milhares a cada dia, é, como dissemos, incapaz, pelo menos de maneira sustentada, dessa percepção puramente desinteressada que constitui a contemplação. (p. 40 e ss).
A analise de Houellebecq introduz um dos problemas mais relevantes da este tica, retomada por Nietzsche, e que se encontra na própria cisão de duas filosofias fundamentais para a historia do problema e que envolve a ética e a arte. Houellebecq vai ao ponto nevrálgico da discussão ao indicar a famosa frase de Stendahl, segundo a qual “A beleza e uma promessa de felicidade”. Esta frase pode ser considerada como o foco de uma grande disputa filosófica. Se tal proposição fosse transformada em uma pergunta, a resposta a questão determinaria, necessariamente, viso es radicalmente opostas sobre o papel da arte em relação a vida humana e a e tica. Houellebecq lança mão do curtíssimo para grafo 40 do Mundo, que trata do conceito de sublime e no qual Schopenhauer, a guisa de conclusa o de um raciocínio anterior, afirma que “o Excitante, portanto, e , em toda parte, para ser evitado na arte” (p. 47). Além da oposição entre as concepções de Schopenhauer e Nietzsche em relação a este tica apontada por Houellebecq, uma questão um tanto mais contemporânea na o deixa de ser notada pelo autor francês. Apos a arte do século XX, observa, o “espectador e quem põe a mesa”, os ReadyMade de Duchamp são objetos conceituais. Ora, nada poderia ser mais contra rio a concepção de Schopenhauer em relação a intuição artística, afirma Houellebecq. Para Schopenhauer, a beleza na o e uma propriedade pertencente a certos objetos do mundo, a exclusa o dos outros; na o e , portanto, uma habilidade técnica que possa produzir sua aparência. O que ele expressa, ainda mais brutalmente, pela frase: “Dizer que uma coisa e bela e expressar que e o objeto de nossa contemplação este tica”. Segundo Houellebecq, como a ideia é e continua a ser intuitiva, o artista não esta ciente em abstração da intenção e proposito de seu trabalho: não e um conceito, mas uma ideia que o guia: ele não pode dar nenhuma explicação sobre sua maneira de fazer as coisas: ele trabalha como que inconscientemente. Certamente esse destaque relativo a este tica distanciando conceito de ideia como fundamento da arte, ale m da questão da contemplação o desinteressada, mereceriam analises mais aprofundadas a partir da interpretação de Houellebecq. O autor, por sua vez, mesmo em um capítulo demasiado curto, apresenta um problema complexo com objetividade.
No terceiro capítulo, Houellebecq deixa sua veia polemista mais uma vez em evidencia. Intitulado “Ainsis’objective le vouloir-vivre”, “Assim, objetiva-se a vontade de vida”, expressa o extraí da diretamente do texto do “Mundo”, o capítulo apresenta trechos dos para grafos 23 e 24, bem como trechos do capítulo XXVIII do segundo volume (Suplementos), a fim de demonstrar, a partir dos textos schopenhauerianos, que sua própria concepção de natureza e sociedade encontra solida argumentação a partir das teses do “Mundo”. A vida animal na o e apenas absurda, e atroz, afirma. A visa o de mundo que Houellebecq desenvolve em obras como “Partículas elementares”, “O mapa e o território” e mesmo no recente “Submissa o” revelam traços inegáveis da influencia da filosofia da natureza de Schopenhauer.
Se é o mundo como um todo inaceitável, não é proibido experimentar, para a vida, um desprezo particular. Não para “vida humana”; por toda a vida. A vida animal não é apenas absurda, é atroz. Que coisa execrável é essa natureza da qual somos parte! Exclama Schopenhauer seguindo Aristóteles. A passagem citada, com sua imensa frase final, profunda como o abismo, a majestosa desolação e o horror, é uma daqueles que podem causar uma estupidez, uma consciência final, como uma cristalização do relâmpago dos sentimentos espalhados pela experiência da vida; é difícil imaginar que alguém, em qualquer momento da história, possa adicionar uma única palavra. Quero dedicar isso especialmente aos leitores ecologistas (p. 61).
A passagem a que se refere Houellebecq, do para grafo 29 do mundo, ultimo para grafo, do segundo livro do “Mundo”, trata do fluxo infinito dos desejos humanos intercalados pelo tedio.
No capítulo intitulado “Le the a tredu monde” (O teatro do mundo), Houellebecq destaca a importância da perspectiva trágica para a filosofia de Schopenhauer. Para tal empreende uma analise da tragédia enquanto forma artística privilegiada. Na esteira de Schopenhauer afirma que as formas de descrição de um grande infortúnio são elementos indispensáveis para a constituição da tragédia. As muitas maneiras diferentes pelas quais o poeta traz esta descrição, lembra Houellebecq, podem ser reduzidas a três espécies: através da malícia excepcional, ao lado dos limites do possível, de um personagem que será o arquiteto do infortúnio; através de um destino cego, isto e , por acaso e erro e finalmente pela simples situação dos personagens, um contra o outro, pelas circunstancias; na o ha necessidade de um erro monstruoso, de um destino extraordinário ou de um personagem atingir os limites da perversidade humana; pelo contra rio, personagens que são moralmente familiares para no s, colocados em circunstancias comuns, esta o em relação um ao outro em situações que os obrigam a se prepararem, em plena consciência e em plena consciência, os Infortúnios mais horríveis, sem que a culpa seja claramente atribuível a uma das partes. Esta e , no fundo, a maior das tragédias, pois tem seu fundamento na natureza volitiva corriqueira. Em suas manifestações cotidianas e natural e simples, por outro lado, determina, na soma total das ações, o fundo absurdo da discórdia natural.
Ao final de sua apresentação, Houellebecq questiona o papel dos “Aforismos para a sabedoria de vida”. Na interpretação do autor, paralelamente a sua missa o de apresentar uma representação do mundo consistente com o estado das ciências, acessível a intuição e que satisfaça a razão, a filosofia tem tradicionalmente uma outra função que seria a de fornecer conselhos aplicáveis a condução da vida. Houellebecq afirma que e difícil dizer porque Schopenhauer decide se lançar a tal empresa, mas que certamente lamentaríamos a inexistência desse livro tão brilhante e tão acessível (Aforismo para a sabedoria de vida). Assim, mesmo apresentando sua versa o trágica do mundo Schopenhauer nos apresenta a mensagem sempre u nica e radical do budismo. Mas, segundo Houellebecq, de um budismo, temperado, humanizado e adaptado a nossa cultura. Ao final de sua apresentação, o autor de “Submissa o” sugere uma filiação de sua obra com o pensamento do mestre alemão ao afirmar que a tragédia da banalidade, produzida por circunstancias comuns, tornada ainda mais inescapável, continua a ser escrita, sugerindo claramente sua adesão a esta visão estética.
No ultimo capítulo, denominado “La conduit da la vie: ce que lon a” (O caminho da vida: o que temos), o autor retoma a questão da validade, eficácia e valor dos “Aforismos” através de uma questão sobre a força de interferência do intelecto em relação a fortuna. Nesse sentido, Houellebecq coloca uma questão fundamental que seria a de saber se as forças intelectuais são favoráveis ou na o a felicidade humana. Com uma passagem do capítulo terceiro dos “Aforismos” (Daquilo que alguém tem), Houellebecq ilustra a posição de Schopenhauer favorável a conservação de riquezas que possam conferir ao indivíduo autonomia para se esquivar da “corveia geral”, isto e , dos regimes de trabalho aos quais a imensa maioria da humanidade e submetida a ponto de uma multidão esmagadora e esmagada pelo trabalho árduo na o poder afirmar “O dia me pertence”. Mas, e bom lembrar, a citação escolhida por Houellebecq para fechar o livro finaliza com uma depreciação em relação aqueles que, possuindo riqueza e condições, na o investem seu tempo no desenvolvimento da humanidade através do estudo da ciência e do investimento no desenvolvimento intelectual próprio. A passagem dos Aforismos nos faz lembrar, em vários aspectos, o famoso texto de Kant sobre o esclarecimento, no qual o filosofo de Konigsberg afirma que a preguiça e a covardia são causas da tutela e inimigas da autonomia do indivíduo.
Mas a fortuna herdada alcança o seu valor supremo quando cabe àquele que, dotado de forças espirituais superiores, persegue aspirações que não são de todo compatíveis com a atividade remunerada. Nesse caso, tal homem é duplamente dotado pelo destino e pode agora viver para o seu gênio, mas pagará multiplicada por cem a sua dívida para com a humanidade, realizando o que nenhum outro poderia e produzindo algo que contribui para o bem e a honra da coletividade humana. Outro, por sua vez, em tais condições tão favoráveis, merecerá o reconhecimento da humanidade pelas suas atividades filantrópicas. Quem, ao contrário, possuidor de fortuna herdada, nada realizar com ela, mesmo se de modo parcial ou por tentativa, ou sequer chegar a viabilizar para si mesmo, mediante o estudo profundo de uma ciência, a possibilidade de fomentála, é um mandrião desprezível. (p. 90).
Houellebecq parece querer destacar tanto a crítica feroz de Schopenhauer as condições brutais a s quais a massa humana esta submetida quanto dar voz ao moralista esclarecido que habitaria nos recônditos da alma schopenhaueriana.
De forma declaradamente ensaística e, por isso mesmo, na o referenciada pela fortuna crítica e por recursos exegéticos – esta nunca foi a intenção do autor -, a obra Em Présence de Schopenhauer na o pode ser considerada uma grande obra de um autor contemporâneo sobre a filosofia de Schopenhauer. No entanto, guardadas as proporções e as expectativas, pode ser apreciada com algum proveito pelo público especializado interessado em questões este ticas e pelo leitor comum interessado em uma introdução. De qualquer forma, aos estudiosos da obra de Schopenhauer e de sua influencia sobre a cultura contemporânea em geral, acrescenta-se mais um testemunho do alcance, profundidade e perenidade da obra do mestre de Frankfurt.
Notas
1 O prêmio Goncourt é considerado o maior prêmio literário da França. É atribuído a um romance para celebrar o melhor livro de ficção em prosa a cada ano.
2 Todas as traduções do texto de Houellebecq são de autoria do autor da resenha. Para os trechos nos quais o autor do livro cita a obra de Schopenhauer optei pela tradução do Prof. Jair Barboza, como no caso dos “Aforismos para a sabedoria de vida”.
3 No original “Die Weltistalles, was der Fall ist”. Na tradução de Luiz Henrique Lopes dos Santos, “O mundo é tudo o que é o caso”. Tractatus Lugicus-Philosophicus, Editora EDUSP.
Eli Vagner Francisco Rodrigues – Professor da Universidade Estadual Paulista (UNESP). E-mail: elivagner@faac.unesp.br
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