Festa: cultura e sociabilidade na América portuguesa – JANCSÓ; KANTOR (HE)

JANCSÓ, István; KANTOR, Íris. (orgs.). Festa: cultura e sociabilidade na América portuguesa. São Paulo: Imprensa Oficial; Hucitec; Edusp; Fapesp, 2001. 2v. 992p. (Coleção Estante USP – Brasil 500 anos, 3). Resenha de: RODRIGUES, André Figueiredo. História & Ensino, Londrina, v.8, p. 157-160, out. 2002.

A ligeira mulata, em trajes de homem

Dança o quente hmdu e o vil batuque;

E aos cantos do passeio inda se fazem

Ações mais feias, que a modéstia oculta.1

o poeta e jurista Tomás Antônio Gonzaga em suas Cartas Chilenas aludiu ao lundu e ao batuque, respectivamente, canto e dança, muito populares nas festas mineiras do século ‘I’11 como ele, alguns historiadores observam as festas, ou melhor, as manifestações da cultura popular como um lugar de subversão, de transgressão à norma disciplinadora do poder. Gonzaga, por ser aristocrata e moralista, vê a festa como uma grande promiscuidade, onde se misturam brancos, negros e mulatos, chegando mesmo a comparar Vila Rica em festas (atual Ouro Preto) às cidades bíblicas de Sodoma e Gomorra.

Ao historiador, seguindo uma tradição herdada da Sociologia e da Antropologia, ficou a percepção que as manifestações populares nos dão acesso às experiências cotidianas de segmentos da população que ficaram por muito tempo silenciados. Daí o fascínio pela festa, um cenário privilegiado para observação do universo cultural dominante e, também, ambiente onde se encontra mesclado elementos próprios da cultura popular, com suas tradições, seus símbolos e suas práticas, constituindo-se num espaço de grande sociabilidade.

Assim, entender esse espaço, mostrar pesquisas que estão em andamento e fazer um balanço da produção recente sobre as festividades na América portuguesa e, conseqüentemente, suas implicações na formação da nacionalidade e da cultura nacionais, são os objetivos da edição da coletânea Festa: cultura e sociabilidade na América portuguesa, organizada pelos professores e historiadores István Jancsó e lris Kantor.

O livro, fruto de um seminário internacional realizado na USP em 1999, reúne 49 artigos escritos por pesquisadores brasileiros e portugueses, que se preocuparam em compreender as manifestações coletivas (festas, cerimônias, ritos, atos de sociabilidade, etc.) que influenciaram na construção de nossa identidade nacional. Segundo os organizadores, as festas são um dos pontos principais da imagem que o brasileiro faz de si mesmo e do estrangeiro sobre o país. Para grande parte da população, elas significavam um instrumento fuga ao controle exercido pelo Estado absolutista, com o qual sempre tivemos uma relação de sofrimento e de antagonismo. O Estado criado por nossas elites nunca foi um instrumento de harmonia, mas sim de desagrega1ção, pois jamais ele foi utilizado como mecanismo de identificação e de libertação.

Comu as festas coloniais nem sempre tinham a mesma dinâmica nem os mesmos objetos de pesquisa e, portanto, não podiam ser abordadas da mesma forma e através dos mesmos instrumentos analíticos, a obra pode ser dividida em três grandes momentos: um primeiro que trata das festas religiosas ligadas aos jesuítas e a catequese dos indígenas; um segundo período ligado ao processo de consolidação da sociedade urbana desde fins do século XVII e durante a centúria seguinte, notadamente em Minas Gerais. Isso se explica devido à urbanização ocorrida ao longo do setecentos, resultado de uma extensa rede de centros urbanos, e à diversificação da economia através do comércio, do artesanato, da mineração (do ouro e de diamantes), da agricultura e da pecuária. Somam-se a esses dados ainda o contingente populacional, a estrutura administrativa e a constituição de um mercado consumidor interno.

Nas sociedades urbanas, muitas festas, seguindo o modelo ditado pela metrópole, cultuavam o rei e/ou se dedicavam aos ritos processuais católicos, como as celebrações da Semana Santa, do Triunfo Eucarístico e do atual “Corpus Christi”. Mas, ao lado destas festividades, tínhamos também a existência de um número quase que incontável de festas de caráter popular.

Nas interessantes “subversões e inversões da ordem festiva”, uma das divisões do livro que pode ser incluída nesse segundo momento, nota-se que conhecemos muito pouco das festas de caráter político não oficial que integravam o cotidiano das vilas coloniais. Um exemplo dessas curiosas celebrações jocosas que utilizavam signos de poder ocorreu em 1732, quando desafetos do governador dom Lourenço de Almeida promoveram-lhe enterro simbólico, por ocasião de sua partida da capitania de Minas Gerais, enquanto outros celebraram uma missa paródica pela sua alma que, julgava-se, ardia no inferno.

Outras formas de resistência à ordem festiva e social vieram através da circulação de cartas e sátiras anônimas que insuflavam a população à rebeldia, ou ainda através da existência de representações teatrais, como a “Serração da Velha” -cerimônia caricata que ocorria na época da Quaresma, onde um grupo de foliões serrava uma tábua, aos gritos estridentes e prantos intermináveis, fingindo serrar uma velha que, representada, ou não por algum dos vadios da banda, lamentava-se num berreiro. A Velha representava uma entidade maléfica (3 morte) ou algo grotesco que perturbava a felicidade ou dificultava a conquista legítima de alguma coisa. Nesses casos, a festa era um “lugar por excelência capaz de tornar realidade uma das exigências básicas dos protestos: a mobilização popular, que constituiu recurso imprescindível da prática amotinadora a fim de garantir poder de pressão às suas exigências” (p. O terceiro momento é o das “festas na corte portuguesa”, período que se inicia com a transmigração da família real lusitana para o Brasil e vai até a nossa Independência. Nesse instante, as festas tornaram-se mais seletivas e as músicas se apresentaram com novos elementos funcionais, técnicos e estéticos, devido à importação de novos instrumentos musicais e a enriada de novos ritmos na corte dom João Além dos dois volumes que compõe a obra, encontra-se encartado no primeiro exemplar um belo CD com 26 músicas que acnrnpanharam o universo sonoro festas na América portuguesa, desde as tradiçôes medievais, no século XIII, até as práticas indígenas, religiosas e afro-americanas do século XVIII. A apresentação coube ao historiador e músico Maurício Monteiro c a direção artística à Ana Maria Kieffer.

Referências

GONZAGA, Tomás Antônio. Carta 6ª: Em que se conta o resto dos festejos. In: Cartas Chilenas. Edição organizada por Pereira Furtado. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.143.

André Figueiredo Rodrigues – Mestre em História Social / FFLCH-USP.

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Perfeitos Negociantes: Mercadores das Minas Setecentistas – CHAVES (RBH)

CHAVES, Cláudia Maria das Graças. Perfeitos Negociantes: Mercadores das Minas Setecentistas. São Paulo: Annablume, 1999, 184p. (Selo Universidade. História, 87). FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de Negócio: A Interiorização da Metrópole e do Comércio nas Minas Setecentistas. São Paulo: Hucitec, 1999, 289p. (Estudos Históricos, 38). RODRIGUES, André Figueiredo. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.21, n.42, 2001.

O país das Minas é, e foi sempre, a capitania de todos os negócios.

Para Waldemar de Almeida Barbosa.

A exploração econômica e a evolução populacional sentidas na América portuguesa no período colonial deveram-se a inúmeros fatores, tanto externos quanto internos. Relativamente a estes últimos, salienta-se prioritariamente, estudando o século XVIII, o povoamento e a colonização de Minas Gerais.

A penetração rumo ao interior exigiu que Portugal abrisse novas rotas comerciais que ligassem o litoral e os seus portos de abastecimento de mercadorias ao intricado, afastado e desconhecido “sertão” central da América portuguesa. O descobrimento e a exploração do ouro e das pedras preciosas definiram a forma de ocupação da capitania mineira. A concentração de grande quantidade de habitantes, nos centros urbanos das Minas Gerais, acelerou o desenvolvimento das novas rotas de abastecimento.

Desde o início do século XVIII, produtores rurais estabeleciam-se na circunvizinhança desses centros urbanos e ao longo dos principais caminhos que levavam às zonas mineradoras, com o intuito de fornecer os suprimentos básicos à sobrevivência daquela população.

Não só de produtores rurais vivia o abastecimento da região mineira. Para lá, também se dirigia um grande número de comerciantes ligados às casas comerciais do Rio de Janeiro, Bahia e de Portugal. Estes ofereciam aos mineiros toda a sorte de gêneros, sobretudo artigos de luxo, destinados à população mais abastada, como, por exemplo, comestíveis importados do reino, equipamentos para a mineração e instrumentos agrícolas, além de uma série de utilidades domésticas.

Os estudos das relações comerciais e dos mercadores que atuaram na capitania de Minas Gerais, na primeira metade do século XVIII, ganharam duas novas contribuições: os livros de Cláudia Maria das Graças Chaves, Perfeitos Negociantes: Mercadores das Minas setecentistas, e de Júnia Ferreira Furtado, Homens de Negócio: A Interiorização da Metrópole e do Comércio nas Minas Setecentistas.

Estas obras estão ligadas às novas abordagens historiográficas que vêm procurando entender a história mineira do século XVIII para além da economia mineradora. Tributárias de análises que chamam a atenção para a importância da agricultura de subsistência e a constituição de um mercado de abastecimento interno, articulado aos demais mercados regionais na época, esses estudos abarcam novas interpretações que nos ajudam a compreender a história brasileira, separando-a daquela vinculada ao grande latifúndio exportador, das discussões teóricas acerca do “tradicional” sistema colonial e dos ganhos obtidos com a atividade mineradora, assim como das teses que apontam para a estagnação da economia mineira após a retração aurífera, na segunda metade do setecentos. As autoras superam, destarte, esses temas para tratar da constituição e do desenvolvimento de um vigoroso mercado interno na América portuguesa. Em ambas, a preocupação central é analisar o comércio e os comerciantes mineiros da primeira metade do século XVIII.

A obra de Cláudia Chaves, Perfeitos Negociantes, tem por objetivo estudar a atuação dos tropeiros, responsáveis por quase todo o transporte de mercadorias destinadas ao comércio mineiro, e como se tornou possível a existência de um mercado interno que garantisse a circulação dos produtos importados e dos produzidos no interior das Minas Gerais.

Assim, compreender as Gerais, levando-se em consideração as práticas agrícolas e a formação de um mercado interno, praticados intensa e independentemente dos interesses metropolitanos, conduziu a autora a detectar a articulação dos tropeiros no transporte e no comércio de mercadorias, tanto originários de outras capitanias quanto os produzidos nas Minas.

Valendo-se dos códices da “seção colonial” do Arquivo Público Mineiro e das Câmaras Municipais de Ouro Preto, Mariana e Sabará, além dos códices dos livros de registro ou de passagem da Delegacia Fiscal — que são livros de “contagem” da capitania que contêm as anotações diárias dos fiéis desses postos sobre os produtos que circulavam no interior das Minas Gerais — o livro de Cláudia Chaves centra sua pesquisa na movimentação de mercadorias nas comarcas de Rio das Velhas e de Serro Frio.

A obra é dividida em quatro capítulos. No primeiro, “A economia colonial: velhos problemas, novas abordagens” procura, a partir de uma revisão bibliográfica sobre o tema do mercado interno colonial, traçar alguns pontos específicos do comércio sobre o abastecimento na capitania mineira. A seguir, em “O mundo do comércio nas Minas setecentistas”, identifica os principais agentes do comércio mineiro, as suas regras e as taxas que incidiam sobre esta atividade.

No terceiro (“Um negócio bem sortido: as mercadorias do comércio mineiro”) e quarto (“Perfeitos negociantes: mercadores das Minas setecentistas”) capítulos, trabalhando especificamente com a documentação fazendária, Cláudia Chaves procurou levantar as rotas que levavam às Minas e os produtos que passavam pelos postos fiscais localizados naqueles caminhos. É nesse momento que encontramos a presença de personagens como Manoel Gomes Cruz, que comerciava com várias regiões das Minas Gerais e com outras capitanias, passando por vários registros, anos sucessivos, com grandes carregamentos. Ou ainda, e em grande número, diversas outras pessoas, como Antônio, Francisco, João, José, Juliana — todos “fulanos de tal” (são nomeados na obra) — que andavam pelos caminhos comercializando pequenas e variadas cargas. Comerciantes eventuais que, em muitos casos, passavam uma única vez pelos registros para vender prolongamentos de suas lides produtivas — milho, feijão, linho, açúcar, arroz, trigo, etc.

Assim, enquanto Cláudia Chaves estuda os pequenos e “itinerantes” comerciantes, Júnia Furtado analisa em Homens de Negócio a correspondência trocada entre o grande homem de negócio português Francisco Pinheiro e seus agentes comerciais, que se localizavam nas comarcas de Rio das Velhas, Serro Frio e Ouro Preto, em Minas Gerais, entre os anos de 1712 e 1744.

O livro de Júnia divide-se em quatro capítulos. No primeiro (“Fidalgos e, lacaios”) apresenta o que é ser comerciante no Brasil e em Portugal no século XVIII. Trata neste item das origens da classe mercantil, sua distinção em Portugal como cristão-novo, a ordenação das companhias privilegiadas de comércio, o papel do ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, mais tarde marquês de Pombal, no desenvolvimento do comércio luso-brasileiro. Assim como da intrincada rede comercial, que os agentes comerciais portugueses estabeleceram no além-mar, fazendo com que vários interesses metropolitanos aqui se enraizassem e se misturassem aos dos mineiros, ocorrendo o que Maria Odila Leite da Silva Dias nomeou de “a interiorização dos interesses metropolitanos na colônia”1. Idéia central da obra Homens de Negócio, de Júnia Furtado.

Ao longo do segundo capítulo (“O fio da narrativa”), do terceiro (“As Minas endemoniadas”) e do quarto (“Negociantes e caixeiros”), percebemos que havia duas ordens de interesses circundantes nas práticas comerciais. A primeira refere-se aos interesses portugueses que se expandiam nas Minas Gerais por meio de atividades mercantis, como o controle do abastecimento, a arrecadação de impostos sobre o transporte e o comércio de mercadorias nos registros e nas lojas abertas nos centros urbanos, e os mecanismos de endividamento da população que ficavam nas mãos dos comerciantes. A segunda dizia respeito aos interesses dos agentes de Francisco Pinheiro que, por outro lado, enraizavam-se em outras atividades comerciais, como a pecuária, a agricultura e a mineração, sendo estas práticas econômicas difíceis de serem, muitas vezes, definidas como puramente metropolitanas, uma vez que seus interesses estavam tão enraizados na terra. Esses comerciantes passavam também, com o transpor dos anos, a atuar como colonos.

A figura central da documentação estudada na obra — Francisco Pinheiro — era extremamente atenta aos seus negócios, como se percebe pelo montante de correspondência analisada por Júnia. Esses documentos estão pontilhados de instruções, repreensões e exigências quanto ao cumprimento de suas instruções e à manutenção da ordem na prestação de contas devidas. Sua fortuna foi feita à sombra da corrida do ouro, na primeira metade do século XVIII. Portanto, ao utilizar as correspondências comerciais, os inventários e/ou testamentos de 212 negociantes que atuaram nas Minas na primeira metade do setecentos e que tinham ligações com Francisco Pinheiro, assim como livros de devassas das visitações eclesiásticas, Júnia Furtado procurou acompanhar o processo de expansão e interiorização da colônia para o interior da América portuguesa. O relato de acontecimentos cotidianos, tanto públicos quanto privados, que existiram naquela época e que repercutiram nas práticas comerciais: motins, fome, intempéries, cobranças de impostos e inépcia de administradores são assuntos tratados pela autora em sua obra.

Cláudia Chaves e Júnia Furtado levam-nos instigantemente a penetrar no universo setecentista, em que as práticas comerciais permitem-nos pensar nos mecanismos metropolitanos, para levar o seu poder ao interior das Minas Gerais através das práticas comerciais e das redes informais de comerciantes que se estabeleceram nas diversas partes do reino e da América portuguesa. Tanto assim que, em 1732, o secretário das Minas enviou representação ao rei dom João V, comentando que Minas Gerais era, “e foi sempre, a capitania de todos os negócios”2. Negócios sortidos e de pequeno porte, como estudou Cláudia, e/ou grandes empreendimentos comerciais, como pesquisou Júnia.

Enfim, vendia-se nas Gerais toda a sorte de gêneros da América e de outras partes do mundo. Os mercadores mineiros especializaram-se em tudo para se tornarem perfeitos negociantes, como nos indicou Cláudia Chaves no título de sua obra.

Notas

* São Paulo: Annablume, 1999, 184p. (Selo Universidade. História, 87).

**São Paulo: Hucitec, 1999, 289p. (Estudos Históricos, 38).

1 Conferir: DIAS, Maria Odila Leite da Silva. “A interiorização da metrópole (1808 — 1853)”. In MOTA, Carlos Guilherme (org.). 1822: dimensões. São Paulo: Perspectiva, 1982, pp. 160–184.

2 “Representação do secretário das Minas ao rei, 1732”. Arquivo Público Mineiro. Seção Colonial, Códice 35. In FURTADO, Júnia. Homens de negócio: a interiorização da metrópole e do comércio nas Minas setecentistas. São Paulo: Hucitec, 1999, p. 197.

André Figueiredo Rodrigues – Mestre-História/USP

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História da Vida Privada no Brasil: Cotidiano e Vida Privada na América Portuguesa – SOUZA (VH)

MELLO e SOUZA, Laura de Mello e (Org.). História da Vida Privada no Brasil: Cotidiano e Vida Privada na América Portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997 (História da Vida Privada no Brasil, 1). Resenha de: RODRIGUES, André Figueiredo. Varia História, Belo Horizonte, v.16, n.22, p. 211-214, jan., 2000.

” … verdadeiramente que nesta terra andam as coisas trocadas. porque toda ela não é república, sendo-o cada casa”. Esta é uma frase da epígrafe do primeiro capítulo da publicação História da Vida Privada no Brasil: Cotidiano e Vida Privada na América Portuguesa, livro organizado por Laura de Mello e Souza, primeiro volume da coleção História da Vida Privada no Brasil, dirigida por Fernando Novais. A frase, extraída da obra História do Brasil (1500- 1627), escrita por nosso primeiro historiador, frei Vicente do Salvador, anuncia o primeiro problema encarado pelos autores do livro e que constitui motivo central da reflexão de Fernando Novais: o desenvolvimento do espaço privado sem que a vida privada estivesse totalmente consolidada. Os níveis de público e privado estão enredados. A noção de privado está associada à formação da nacionalidade, como nos alerta Novais. Assim, a rigor, não existiria uma “vida privada” durante o período colonial, mas só a partir do século XIX, momento da formação de um Estado Nacional.

Guiando-se pelos passos de Philippe Ariês e Georges Duby, que coordenaram a edição de uma História da Vida Privada para a Europa ocidental [Histoire de la Vie Privée. Paris: Seuil, 1985], os historiadores que escreveram a versão brasileira alargaram o conceito de vida privada, considerando as especificidades da América portuguesa e particularizando-o ao abordarem cada um dos temas tratados.

A forma de trabalho adotada para a elaboração de nossa história da vida privada inspirou-se na Nova História e, de resto, nos Annales. Desde 1929, com a criação da revista francesa Anais de História Econômica e Social por Marc Bloch e Lucien Febvre, as observações sobre o cotidiano de um determinado momento, de uma localidade ou de uma personagem, assim como as suas crenças, as suas atividades e valores sociais, políticos e econômicos são retratados, além de serem auxiliados pelo intercâmbio com as outras ciências humanas, como a antropologia e a sociologia. Optou-se por uma história narrativa como forma de expressão do pensamento, da linguagem, dos hábitos, de gestos, de amores e das sensibilidades. A obra em questão procurou combinar e articular diversas propostas temáticas da história da cultura, do cotidiano e das representações sociais, advindas de uma historiografia não só francesa, mas inglesa e italiana. É preciso ressaltar, ademais, que o livro é tributário de dois marcos nas ciências humanas no Brasil: Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre. Por fim, o livro prossegue o esforço inaugurado pelo pioneiro Vida Privada e Quotidiano no Brasil na Época de d. Maria I e de d. João VI, de Maria Beatriz Nizza da Silva, obra que já havia retratado aspectos dessa temática entre nós historiadores.

A influência antropológica e sociológica de Gilberto Freyre, um dos pioneiros nos estudos sobre a sexualidade e a religiosidade do “brasileiro”, é observada nos capítulos da obra. Freyre mostrou que a sexualidade poderia ser apreendida em manifestações cotidianas e, por outro lado, que o cotidiano da América portuguesa impunha a preocupação acentuada com as questões sexuais: na vastíssima colônia, portugueses, ameríndios e, depois, também os negros, mergulharam de corpo e alma em deleites sexuais; além disso, atribuíram aos santos um papel intermediário entre os amores, ou conceberam-nos como entidade propiciadora de fertilidade e vantagens amorosas1 . Na medida em que eram atribuídos papéis aos santos, estes eram envolvidos numa forte carga afetiva. O amaciamento entre senhores e escravos levou a miscigenação e a relações de intimidade entre ambos; aspectos levantados por Freyre, também, destaques nesses capítulos. Todos esses assuntos desenvolvidos na obra já haviam sido tratados em Casa Grande & Senzala e Sobrados e Mucambos, obras freyrianas, fundadoras dos estudos sobre a vida privada no Brasil.

A obra História da Vida Privada no Brasil procura compor a pré-história de nossa vida privada. Articulada em 8 capítulos interligados entre si, apresentando como eixo temático questões como a escravidão (que medeia todos os capítulos), privacidade e relações familiares. Em seu capítulo inicial, “Condições de privacidade na colônia”, o historiador Fernando Novais desenvolve questões teóricas sobre as condições para a existência de vida privada na América portuguesa. No capítulo 2º: “Formas provisórias de existência: a vida cotidiana nos caminhos, nas fronteiras e nas fortificações”, a historiadora Laura de Mello e Souza estuda as expedições de bandeirantes e viandantes que adentraram no território, defrontando-se com mosquitos, animais de diversos portes, a falta de comodidade e desconforto das pousadas e as andanças realizados no outro lado da fronteira- o sertão, em detrimento da vida do litoral.

A partir do capítulo escrito por Leila Mezan Algranti (“Família e vida doméstica”), seguindo-se os de Luiz Mott (“Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu”), Ronaldo Vainfas (“Moralidades brasílicas: deleites sexuais e linguagem erótica na sociedade escravista”) e Mary del Priore (“Ritos da vida privada”), a questão da privacidade colonial começa a ganhar contornos mais claros, em assuntos como a sexualidade, a família e a religiosidade.

Através dos capítulos de Lei la Algranti e Ronaldo Vainfas, percebemos que as relações de privacidade estavam longe de serem desvendadas, devido à escassez de fontes. Essa ausência talvez se explique pela falta de cadernos, cartas ou diários dedicados ao relato das intimidades. Como bem observa Algranti, a ausência desse tipo de exposição deve-se à própria estrutura da sociedade colonial: a intimidade era mantida na esfera do privado, não se escrevendo sobre recordações e intimidades. O alto índice de analfabetos é um outro dado a ser destacado. As famílias convivem em casas sem um mínimo de privacidade, onde os cômodos têm múltiplos usos, onde os móveis- aí enquadram-se as camas – são montados e desmontados de acordo com as necessidades do dia. Havia, além disso, pouca distinção entre o público e o privado, ocorrendo, muitas vezes, a inversão entre esses dois espaços: o que é público torna-se privado e vice-versa. Vainfas esclarece: um espaço por assim dizer, público, como era o mato ou a beira do rio, podia ser mais apto à privacidade exigida por intimidades secretas do que as próprias casas de parede-meia ou cheias de frestas” (p. 257).

No nosso entender, entre os 8 capítulos que compõe o livro, 2 sobressaem-se aos demais. O primeiro deles, o do antropólogo Luiz Mott, sobre a religiosidade e, o segundo, o da historiadora Mary del Priore sobre os ritos da vida privada. As práticas supersticiosas constantes na sociedade colonial mesclavam-se às vivências da religião oficial do império português – o catolicismo. O isolamento geográfico possibilitou aos habitantes do interior da América portuguesa o aparecimento de práticas religiosas privadas como o eremitismo, chegando-se a encontros sabáticos. Através do diário (borrador) do senhor de engenho falido Antônio Gomes Ferrão Castelo Branco, uma peça documental inédita pertencente à coleção particular do bibliófilo José Mindlin, Mary dei Priore perfaz os caminhos desse senhor, demonstrando que a relação entre o público e o privado estava, mais do que nunca, interligadas. Demonstra, ainda, que a privacidade misturava-se com o cotidiano na vivência de certos ritos como o casamento, a morte e o nascimento.

O sétimo capítulo (“O que se fala e o que se lê: língua, instrução e leitura”) foi escrito pelo historiador Luiz Carlos Villalta e trata das práticas de leitura, da educação e da língua na América portuguesa. No último capítulo (“A sedução da liberdade: cotidiano e contestação política no final do século XVIII “), o historiador lstván Jancsó analisa as revoltas ocorridas no final do setecentos. Em ambos ensaios, nota-se o aparecimento do intelectual do século XVIII: o libertino de idéias afrancesadas, influenciado pelo pensamento iluminista. Ambos os autores observam uma questão: aonde começa e aonde termina a vida privada? Através das sílabas F de fé, L de lei e R de rei , Villalta conclui que a identidade privada e a pública confundem-se. Estudando as bibliotecas e o teor de algumas obras nelas existentes, dá gancho para o capítulo seguinte, o de lstván. Este, através da análise dos movimentos sediciosos ocorridos em Minas Gerais, no Rio de Janeiro e na Bahia, investiga as categorias de privacidade entre os que se envolveram nas práticas conspiratórias ocorridas no final do setecentos.

Enfim, acho que a amostra é suficiente para os que não conhecem o livro. Os leitores não se arrependerão de travar com ele uma discussão fecunda sobre a nossa pré-história da vida privada.

Nota

1 Laura de Mello e Souza. Sexualidade e religiosidade popular no Brasil colonial. In: Suzel Ana Reily & Sheila M. Doula (orgs.). Do Folclore à Cultura Popular. São Paulo: FFLCH/USP, 1990, p. 87.

André Figueiredo Rodrigues – Mestrando em História/ USP.

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ultura portuguesa na Terra de Santa Cruz | Maria Beatriz Nizza da Silva

Resenhista

André Figueiredo Rodrigues – Graduando em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e Bolsista de Iniciação Científica pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Referências desta Resenha

SILVA, Maria Beatriz Nizza da (Coord.). Cultura portuguesa na Terra de Santa Cruz. Lisboa: Estampa, 1995. História de Portugal, 14. Resenha de: RODRIGUES, André Figueiredo. História Revista. Goiânia, v.2, n.1, p. 171-173, jan./jun.1997. Acesso apenas pelo link original [DR]