Posts com a Tag ‘Rocco (E)’
Travestis: entre o espelho e a rua | Hélio R. S. Silva
De fácil leitura, mas sem perder em densidade, reúne revistos de dois livros notáveis de Hélio R. Silva, publicados há mais de dez anos – Travesti, a invenção do feminino e Certas Carioca .
A divisão capitular do livro compreende por partes de seu trabalho acadêmico (Silva, 1993). Através desses escritos, essa investigação inédita das dimensões sociais que envolvem a prostituição de travestis no Rio de Janeiro e é operacionalizada por meio de categorias analíticas e tem como objetivo levar algumas hipóteses ao estatuto da verossimilhança. Dentre essas categorias, destacam-se: as estruturas demográficas e sociais, por meio da história serial; as normalidades, pensando também a normatização, e desvios sexuais, através das relações de gênero; e os valores culturais e simbólicos, atuando ao nível da mentalidade coletiva. Dessa forma, o ineditismo que essa obra trouxe, sob o ponto de vista metodológico, é a compreensão da história da sexualidade das travestis sob um viés oposto ao que muitos historiadores faziam, ou seja, não mais contemplando exclusivamente os campos da ideologia e da moral; e a liga que deu forma às inferências é a história demográfica, articulada com os registros sobre os comportamentos sociais – fica evidente que ele intencionou escrever uma história dos costumes. Leia Mais
Correio Para Mulheres | Clarice Lispector
O histórico meramente tradicionalista em vista das mulheres da elite brasileira entre as décadas de 1950 e 1960 era descrito por Clarice Lispector em colunas de aconselhamento feminino para os jornais Comício, Correio da Manhã e Diário da Noite. Desta maneira, a autora produziu colunas que eram direcionadas exclusivamente para as mulheres sob a perspectiva de três pseudônimos diferentes: Tereza Quadros, na coluna “Entre Mulheres”, pelo jornal Comício, em 1952; Helen Palmer, na coluna “Feira de Utilidades”, pelo jornal Correio da Manhã, em 1959; e Ilka Soares, na coluna “Nossa Conversa”, pelo jornal Diário da Noite, em 1960. No decorrer destas colunas, Lispector apresentava dicas, diálogos, inquietações e questionamentos antes muito proveitosos para as mulheres e que representavam perfeitamente as experiências femininas pertencentes à classe média alta da sociedade burguesa daquela época, nunca deixando para trás o seu estilo literário inconfundível e o senso de humor ácido clariciano. Leia Mais
Santos Fortes: Raízes do Sagrado no Brasil | Leandro Karnal e Luiz Estevam de O. Fernandes
A proposta do livro é oferecer ao leitor características pertinentes de alguns santos canonizados institucionalmente e outros que fazem parte de uma devoção, apesar da não canonicidade institucional, apresentados em: São Jorge; São Sebastião; São Judas Tadeu; São Longuinho e Santo Expedito; Maria, Marias; São Francisco de Assis; São João, Santo Antônio; Santa Bárbara e Santos fora do altar. Estes são alguns, dentro de milhares do panteão católico, que influenciaram profundamente a nacionalidade brasileira, sejam em localidades específicas ou de um impacto majoritário na memória e vida cotidiana das pessoas devotas. Deste modo, os historiadores Leandro Karnal e Luiz Estevam destacam, fazendo um trabalho de buscar nas origens históricas da vida destes santos, o poder da entrega no simbólico e material que há nas relações religiosas do povo brasileiro com os santos católicos.
No primeiro capítulo São Jorge: salve, santo guerreiro!, é apresentado um panorama histórico da vida do santo, nascido na Capadócia, região da atual Turquia, e sido criado na região de Lida, hoje Estado de Israel. Durante a profunda perseguição do imperador Diocleciano, a última que o cristianismo sofreria, Jorge foi martirizado. No entanto, sua imagem fica atrelada a uma narrativa imaginativa, pois convencionou definir o santo como aquele que enfrentou um dragão com seu cavalo branco. Historicamente, de acordo com um dicionário da santidade realizado por especialistas em santos, é narrado que numa cidade ao norte da África havia um dragão que atacava a todos, e, por fim, restava a filha do rei para ser devorada. Sendo assim, é narrado o episódio: Leia Mais
Depois da fotografia: uma literatura fora de si | Natalia Brizuela
Depois da fotografia: uma literatura fora de si, livro escrito na forma de ensaio, busca analisar e problematizar a questão das fronteiras entre as diferentes linguagens, notadamente a literatura e a fotografia. Natalia Brizuela, professora da Universidade da Califórnia, em Berkeley, já é conhecida no Brasil por sua publicação Fotografia e Império: paisagens para um Brasil Moderno (Cia das Letras, 2012), em que aborda questões atinentes à produção e circulação de fotografias no Brasil do século XIX.
Em Depois da fotografia, temos a proposta de pensar as fronteiras entre a literatura e as outras artes, fazendo-nos perceber como os limites entre elas, atualmente, podem ser entendidos como uma zona porosa, que permite diversas contaminações. A proposta de Brizuela leva-nos a conhecer o trabalho de diversos escritores latino-americanos (Mario Bellatin, Diamela Eltit, Nuno Ramos e Juan Rulfo) e como, em suas obras, a fotografia aparece em meio à escrita. Leia Mais
Literatura e ética: da forma para a força – KLINGER (A-EN)
KLINGER, Diana. Literatura e ética: da forma para a força. Rio de Janeiro: Editora da Rocco, 2014. Resenha de ANDRADE, Antonio. A força ética de uma reflexão. Alea, Rio de Janeiro, v.17 n.2, july/dec., 2015.
O livro Literatura e ética: da forma para a força, de Diana Klinger – lançado pela coleção Entrecríticas (coordenada por Paloma Vidal) – situa, a meu ver, os leitores e pesquisadores da literatura contemporânea diante da problemática mudança de paradigmas que o declínio de valores éticos e estéticos da modernidade provoca. A passagem do campo da autonomia da obra de arte – do objeto literário, ficcional ou poético – para o “pós-autônomo” – termo utilizado por setores da crítica dedicados à reflexão sobre a produção contemporânea que se afasta das ideias de literariedade e autorreferencialidade do texto literário para aderir a um modo de escrita que se faz “em continuidade com os dados da realidade” (KLINGER, 2014: 41) – implica, para esta ensaísta, a necessidade de se repensar pressupostos teóricos que instrumentalizam o estudioso da literatura, com vistas a estabelecer uma rede de conceitos e estratégias de leitura capazes de funcionar como critérios de escolha e positivação de autores e textos.
Esse movimento do discurso crítico-ensaístico de modo algum é simples. Na verdade, constitui no texto de Diana um profundo empenho de ressubjetivação que se produz por meio de mecanismos de endereçamento, haja vista a mescla do gênero epistolar com o ensaio nas três cartas à amiga Luciana Di Leone, que marcam momentos fundamentais do livro: pela forte presença do autobiográfico na escrita crítica, configurada pela articulação da narrativa memorialística com a argumentação teórica ou analítica; pela construção de um lugar de autoria que joga, de maneira proposital, com referências dialógicas de ordens distintas ao desdobrar, por exemplo, reflexões em torno de poemas ou estudos críticos produzidos por amigos, alunos e colegas, ao lado de citações e discussões sobre Nietzsche, Adorno, Benjamin, Deleuze, Blanchot etc. Tal empenho não se produz, sem dúvida, isento de contradições. Ao buscar uma espécie de tom “menor” para seu ensaio, incorre na negação (psicanalítica) daquilo que se é, ou se deseja: “Os textos sobre esses autores não são de crítica literária nem têm essa pretensão. São anotações de pensamentos suscitados por essas leituras” (KLINGER, 2014: 14 – grifos meus). Não à toa, em alguns momentos centrais do texto, a autora não se vexa em assumir a enunciação assertiva, e até certas construções de caráter prescritivo, no afã de conduzir/persuadir seus leitores/destinatários: “A literatura não é uma força, mas é preciso transformá-la numa força” (ibidem: 191); “O que a poesia de Tamara encena é […]” (KLINGER, 2014: 107 – grifos meus). E, decerto, devido à percepção dessa contradição, enxerga a necessidade de modalizar suas formulações, que, se por um lado, “apostam” na recuperação ressignificada da ideia de resistência da literatura, por outro compreendem a relatividade do alcance da potência discursiva do literário – a qual parece advir de sua própria fragilidade: “Talvez seja possível, no entanto, apostar numa forma de resistência mais ‘fraca’ ou sutil” (KLINGER, 2014: 162).
Buscando através dessas sutilezas uma forma de expressão crítica que se coadune à ideia de crise, Diana tenta em seu texto configurar, retomando Barthes, o lugar tensivo de uma meia distância, isto é, de um distanciamento crítico “que não quebre o afeto” e que seja atravessado pela “delicadeza” (KLINGER, 2014: 118). Isso significa, em outros termos, ruptura com os valores de objetividade e frieza que tanto o estabelecimento de critérios de correferencialidade e padrões esteticistas canônicos da arte autônoma quanto os parâmetros generalistas da aparente “chave de leitura” concebida pela perspectiva pós-autônoma parecem projetar. Em oposição a eles, seu olhar crítico mobiliza-se em torno das ideias de singularidade, diferença e excepcionalidade, locupletando, por sua vez, o forte anseio por modos “singulares” de expressão e de subjetivação configurados pelos discursos teóricos relacionados às questões do contemporâneo. Cito, como exemplo, sua justificativa para a eleição dos autores focalizados no livro (a saber: Cortázar, Barthes, Kamenszain e Bolaño): “Trago Bolaño aqui não apenas porque ele me ajuda a pensar a vivência do medo. Também porque ele, como os outros autores a que me referi antes, sugere em sua obra uma aproximação com a própria vida que não tem nada a ver com propostas performáticas e autoficcionais de sua geração” (KLINGER, 2014: 134).
Nota-se, então, que nesse recorte está embutida certa “queixa” – a meu ver, também, bastante necessária – em relação à replicação de modelos estéticos que se tornaram hegemônicos na literatura atual. Entretanto, não se pode negar que suas escolhas, pelo menos as mais aprofundadas, se assentam sobre nomes consagrados do passado e do presente, cujo valor já constitui uma espécie de “indubitável”. Desse modo, não haveria já um forte processo de singularização desses autores e de seus textos? Se concordamos que sim, é possível compreender, então, que a tarefa crítica é menos a de desvelar singularidades camufladas em meio ao “semsentido” – para usar um termo empregado pela ensaísta -, e mais a de mediar a relação de seus interlocutores com essas vozes “singulares”.
Outro ponto que se explicita na construção de seu critério eletivo é a importância da relação literatura e vida, que fomenta e atravessa toda a discussão em torno do afeto e da ética no livro. Tal relação serve-lhe de base para pensar a escrita “como uma prática ou ritual, uma forma de estar no mundo” (ibidem: 49), concebendo-a assim fora do modelo estético da representação. E, também, para pensar a leitura, ou melhor, o modo como o sujeito pode ser afetado pelos textos, aproximando pois literatura e leitor no complexo processo de procura do sentido da vida. A condição paradoxal, no entanto, dessa busca é que ela se faz justamente negando tudo aquilo que se considera banal, tudo que estaria submetido à ordem do capitalismo cultural, ou preso às diretrizes da “sociedade de controle”, para usar um conceito deleuzeano discutido pela autora. Nesse sentido, a afirmação da vida, bem como a inscrição da ética no âmbito da imanência – de acordo com os pressupostos filosóficos que engendram aí a articulação entre Spinoza, Nietzsche, Foucault, Deleuze e Guattari – interpelam intelectuais como Diana a assumir um posicionamento contradiscursivo, avesso ao funcionamento comum da linguagem e aos dispositivos habituais de produção dos sentidos – sobretudo os que se ligam ao poder midiático.
“Da forma para a força” é a formulação postulada já no subtítulo da obra para sinalizar o movimento de passagem de uma instância de reflexão sobre o biopoder para a proposição de uma biopotência afirmativa: força de resistência não imobilizada pelo espectro das representações, e sim propulsora de “práticas alheias aos modos de subjetivação estatal” (KLINGER, 2014: 81), com o intuito de “construir um plano de consistência para afetos que não estejam atravessados pela axiomática da troca” (KLINGER, 2014: 71). O trajeto argumentativo de Literatura e ética é, portanto, o de afirmação desse lugar singular da potência: o que seria, em si mesmo, já uma atitude ética. Contudo, não só o fato de tal atitude ser pensada a partir da dicotomia entre gestos especiais, repletos de “intensidade”, e práticas cotidianas, ainda mais esvaziadas de sentido se vistas com as lentes desta ótica filosófica, mas também a consciência de um iminente fracasso da literatura nesse intento de criar e difundir práticas que liberem o desejo, os afetos e as relações dos aparatos culturais e discursivos que os (re)capturam a todo instante, deslocam qualquer grau de certeza em relação à noção de ética para o espaço de um interrogante: o que é ético? Esta atitude é realmente ética?
Percebe-se, em diversos momentos do texto de Klinger, a dimensão problemática dessa dúvida. Não à toa, no capítulo “O remorso da literatura” assinala-se a questão da culpa como aporia constitutiva tanto da arte autônoma quanto da pós-autônoma. Já em “O sentido da escrita”, a ensaísta trata de dar sustentação teórica à afirmação da ideia de potência e à aposta na literatura como forma de promessa, que, conforme demonstra sua releitura de Benjamin, deve ser contínua e simultaneamente desauratizada e apropriada como meio de busca do sentido em face do vazio e da banalidade. A construção dessa perspectiva, que para alguns leitores pode soar como demasiado positiva, é dialetizada pelo capítulo “Em nome próprio”, em que, por meio da incursão no terreno autobiográfico, tensamente relacionado à leitura de Tamara Kamenszain, Diana produz uma interessante reflexão a respeito das noções de fuga, esquecimento e sobrevivência, chamando a atenção para as possibilidades de proposição de novos agenciamentos políticos a partir da perda.
Todo o desenvolvimento dessa discussão parece impelir Diana a endossar uma visão filosófica negativa da ideia de comunidade, na clave de Bataille, Nancy e Blanchot. Isso é bem perceptível em “A comunidade em suspenso”, capítulo que, se por um lado revela grande fôlego teórico da autora/pesquisadora, não obstante conduz, por outro, a um fechamento da leitura, na medida em que desinveste os traços identitários que constituem os diversos tipos de arranjo comunitário de qualquer potencialidade possível, chegando a realizar afirmativas como: “o que os seres compartilham é a diferença que os singulariza” (KLINGER, 2014: 111). A meu ver, este tipo de frase tende a certa clicherização na esfera crítico-acadêmica. É preciso, portanto, ler nas dobras da contradição que esse discurso deixa escapar a produtividade da tensão entre fuga e pertencimento: note-se que, embora a ensaísta seja uma argentina radicada no Rio de Janeiro, suas escolhas afetivas de leitura nesse livro revelam a priorização de escritores também hispânicos – dois argentinos (Cortázar e Kamenszain) e um chileno (Bolaño) que, como ela, viveu durante muito tempo fora de seu país natal. E é justamente em “Queime os livros!”, capítulo onde analisa a obra de Bolaño, que o texto de Diana alcança grande capacidade de captura do leitor: após belo momento autobiográfico sobre a violência e o medo que ocupam suas memórias de infância e juventude na Argentina, a autora desenvolve a seguinte reflexão no bojo de sua leitura do romance 2666: “A literatura está imersa nesse território da violência, nesse deserto onde só cabe desaparecer; por outro lado, a literatura é o único território” (KLINGER, 2014: 140), reafirmando assim sua aposta no literário como espaço de potência ética.
Essa perspectiva ainda se desdobra no capítulo “Spinoza e a potência da literatura”, no qual se oferece ao leitor um bom estudo sobre os modos de recuperação e reverberação do pensamento spinoziano na filosofia contemporânea (Negri & Hardt, Deleuze & Guattari, sobretudo), e em “Uma pequenina luz”, capítulo em que chama a atenção para o caráter dúplice que o poder de resistência da literatura enceta: “força ambígua, ao mesmo tempo desmesurada e desesperançada. Essa frágil força do desejo” (KLINGER, 2014: 183-184). Porém, é sob essa luz pequenina, sob essa força frágil, que Diana ensaia o risco de uma escrita original e instigante, que, em vez de partir do prognóstico apriorístico da impotência do discurso literário na contemporaneidade, investe na indagação dessa potencialidade problemática, perguntando-se, ao longo de todo o percurso: “o que pode a literatura?” (KLINGER, 2014: 135).
Antonio Andrade – Professor adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atua como docente permanente do programa de pós-graduação em Letras Neolatinas da UFRJ. Desenvolve pesquisas nas áreas de análise do discurso, formação de professores e literatura contemporânea. Publicou diversos artigos em livros e revistas acadêmicas, dentre os quais se destacam “Diálogos e tombeaux: Haroldo de Campos, Néstor Perlongher e Severo Sarduy” (Gragoatá, v. 31) e “Literatura e comunidade na formação de professores de Espanhol/LE (Abehache, v. 4). E-mail: antonioandrade.ufrj@gmail.com.
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O Adeus à Europa: a América Latina e a Grande Guerra | Olivier Compagnon
Efemérides sempre acarretam uma série de eventos acadêmicos e lançamentos editoriais, que se aproveitam das datas para preencher as agendas e abastecer as estantes com títulos relacionados a um determinado evento tido como relevante. O ano de 2014 foi particularmente profícuo nesse sentido; no contexto nacional, os cinquenta anos do Golpe de 1964 foram relembrados por eventos de todos os tipos; no plano internacional, o acontecimento mais significativo foi, sem dúvida, o centésimo aniversário do início da Grande Guerra. As maiores livrarias do país ficaram abarrotadas de inúmeros títulos recém-lançados sobre a Grande Guerra. Dentre eles, chama a atenção O Adeus à Europa do historiador francês Olivier Compagnon, professor de história contemporânea da Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3. Leia Mais
História das prisões no Brasil | Clarissa Nunes Maia
O livro História das prisões no Brasil é composto por oito artigos que se debruçam sobre a temática do sistema carcerário no Brasil e na América Latina. O primeiro deles, intitulado “Cárcere e Sociedade na América Latina (1800-1940)”, do autor Carlos Aguirre, nos mostra que no período Colonial as prisões apareciam de forma esporádica e com a finalidade de “depositar” sujeitos suspeitos pela justiça, ou aqueles que estavam esperando sentença. Diante da situação de descaso surgem alguns críticos que acreditavam que as prisões deveriam ser um lugar que tivesse a capacidade de transformar os detentos em cidadãos dignos e laboriosos. No entanto, tais discursos não saíram do papel.
Foi somente no século XIX que a ideia de transformar a cadeia em um local que tivesse a capacidade de converter os detentos em cidadãos dignos e laboriosos foi incorporada ao discurso local, tendo como objetivo muito mais imitar os padrões europeus na busca pela modernidade do que alimentar a preocupação especifica com a atuação sobre os seus detentos. O que atraiu o Estado para esse modelo penitenciário foi também o desejo de reforçar os mecanismos de controle e encerramentos já existentes. Porém, mesmo com a construção de penitenciárias na América Latina é importante frisar que ainda havia uma rede de cárceres pré-modernos que faziam uso de castigos tradicionais a fim de corrigir os sujeitos com condutas desviantes. Em linhas gerais, pode-se dizer que, no final das contas, mesmo com as críticas e sugestões de advogados, criminólogos e médicos, as prisões ficaram à margem da regulamentação do Estado na América Latina.
No século XX, mesmo com a influência da criminologia positivista e penalogia científica, a realidade carcerária permanecia a mesma. Os presídios masculinos eram verdadeiros infernos, onde homens viviam sem as mínimas condições de higiene. Os presídios femininos não fugiam à regra, no entanto a situação era ligeiramente mais amena porque estas ficavam sob a tutela de instituições filantrópicas. O perfil de detentos era diversificado o que muitas vezes fazia com que o espaço carcerário se transformasse em palco de conflitos entre detentos de grupos distintos. Com esses pontos, a conclusão que o autor chega é que os presídios estavam longe de serem modelos na recuperação dos detentos.
O segundo artigo, “Sentimentos e ideias no Brasil: pena de morte e digerido em dois tempos”, Gizlene Neder se encarrega de tecer uma análise sobre o código penal de 1830. Durante o século XIX o Brasil torna-se palco de discussões sobre as políticas de segurança e de justiça criminal. Antes de se reportar ao período analisado, que é o início da República, a autora faz um recuo temporal para melhor entender esses debates.
No período, a pena de morte restringia-se a escravos rebelados, e tal castigo tinha um objetivo inibidor e, portanto, exemplar. Mesmo com as ideias iluministas no começo do século XVIII, que defendiam penas de prisões diferentes segundo natureza e gravidade, estas não alteravam a organização social e política.
Em Portugal, por exemplo, os castigos tradicionais: pena de morte e degredo era pouco aplicado e serviam mais para intimidar. Nesse quadro os reis apareciam como sujeitos misericordiosos, a eles caberia à decisão de dosar o perdão, propagando assim a ideia de que o rei, mais que punir, deveria ignorar e perdoar.
No fim do século XVIII, as ideias iluministas defendiam que esses castigos provocavam distúrbios sociais e que as prisões seriam a melhor forma de punir. Vários países da Europa passaram a observar tais ideias e formularam novos códigos penais. O código penal de 1830 do Brasil era altamente repressivo. Desde o início da República, ia da apologia ao trabalho e disciplina até as práticas mais agressivas. A pena de morte não era clara, ao contrário do degredo, que era destinado àqueles que se envolviam em sedições e revoltas militares. Tais penas desenvolveram inúmeros debates.
O artigo seguinte, “A presiganga Real (1808-1831): trabalho forçado e punição corporal na marinha”, da autoria de Paloma Siqueira Fonseca, trata de um navio português que transportou a família real para o Brasil em 1808 e que passou a ser usado como depósito de sujeitos que cometiam crimes graves, e, como punição, eram submetidos ao trabalho forçado. É importante destacar que esses detentos não eram condenados à presiganga, mas nela depositados para realizar trabalhos pesados ou para receber castigos corporais. Tal navio-presídio podia ser comparado aos navios negreiros, pois as situações ali eram semelhantes. Os sujeitos eram de cor escura, viviam em péssimas condições, acorrentados e amontoados uns sobre os outros, além de serem submetidos a rígidos castigos corporais, alguns chegando mesmo a receber 300 chibatadas.
Como se tratava de um lugar temporário, não havia leis que regulamentassem esse navio-presídio, talvez por conta disso o responsável pelo navio, Marcelino de Souza Mafra usasse de austeridade para com os detentos. Em um episódio violento que aconteceu na presiganga, Mafra foi denunciado por sua tirania. De acordo com os detentos, ele castigava por qualquer ato e abusava de seu poder. No julgamento, Mafra não recebeu nenhuma punição, ao contrario, era elogiado pelo tempo de serviço prestado e por manter o naviopresídio em ordem. Além disso, as autoridades afirmavam que a atitude de Mafra era correta, pois os detentos representavam um fardo tanto para a sociedade como para a Marinha. E assim Mafra continuou no seu cargo e fazendo uso dos mesmos métodos até a desativação do navio-presídio.
O artigo da autoria de Marcos Paulo Pedrosa Costa, intitulado “Fernando e o mundo – o presídio de Fernando de Noronha no século XIX”, traz o relato da ilha de Fernando de Noronha como um lugar permeado por paradoxos. Por um lado, a ilha encantava seus visitantes com sua beleza exuberante, mas por outro representava horror e desumanidade para os que ali se encontravam aprisionados.
Não se sabe ao certo quando a ilha começou a servir como prisão, parece remontar ao século XVIII, o certo é que naquele lugar não havia uma prisão como edifício, somente a prisão de aldeia que era destinada àqueles considerados incorrigíveis. A prisão era a própria ilha e suas paredes o mar. Na ilha viviam paisanos (pessoas que não eram detentos nem militares) detentos, viradeiros e militares. Essas pessoas tinha uma vida normal naquele lugar, alguns chegavam até mesmo a se casar e constituir família, no entanto não se pode imaginar esse lugar como um paraíso, apesar do aparente clima de conformismo dos alguns detentos, não raro havia brigas e discussões entre os moradores do local. Alguns se arriscavam tentando evadir-se daquele lugar, mesmo tendo por certo a morte, outros preferiam tirar suas vidas ali mesmo em Fernando cometendo suicídio.
No artigo subsequente, “O tronco na enxovia: escravos e livres nas prisões paulistas dos oitocentos”, Ricardo Alexandre Ferreira tem por objetivo analisar a equiparação da situação vivenciada por escravos e homens livres que acontecia até o século XIX na esfera da Justiça criminal brasileira. Para tanto, o autor lança mão da interpretação de relatórios da Presidência da Província de São Paulo, ofícios administrativos, autos de crimes e de obras jurídicas produzidas entre 1830 e 1888. São basicamente dois os argumentos que norteiam a construção do texto. No primeiro deles, através da comparação entre as Ordenações Filipinas e o Código Criminal do Império, se desenvolve a noção de que não existia um descompasso das leis imperiais brasileiras em relação aos princípios iluministas que norteavam a legislação europeia.
Entretanto, devido à manutenção da escravidão, existia a perpetuação de uma situação de exceção que se acomodou à sociedade. Por outro lado, e então entramos no segundo argumento, uma condenação judicial, em última instância, era bastante complexa e morosa. Sendo assim, o encarceramento era visto como um período transitório, a prisão era encarada como um local onde os presos deveriam aguardar o seu julgamento, o que poderia durar anos. Enquanto isso, livres, libertos e escravos, acusados das mais diferentes infrações e irregularidades, se encontravam durante um bom tempo, acorrentados ao mesmo tronco. Como conclusão, o autor alega que esta proximidade teve como fruto a aliança entre os que ali estavam, sendo, inclusive, registrada através de fugas planejadas e executadas de maneira compartilhada.
O artigo “Entre dois cativeiros: escravidão urbana e sistema prisional no Rio de Janeiro, 1790-1821” de Eduardo Araújo mostra que no final do século XVII existiam três categorias de prisões no Brasil: a Cadeia Pública, a Cadeia do Tribunal da relação e o Calabouço, esta última destinada à escravos. Tais presídios eram superlotados, caracterizados pela ausência de acomodações e proliferações de doenças devido as péssimas condições de higiene, os detentos pareciam zumbis, mal- alimentados e mal- vestidos. Dentro desse espaço, outra personagem ganhava destaque: os carcereiros, que também sofriam com o descaso, principalmente em relação aos seus pagamentos que frequentemente eram atrasados. A justificativa das autoridades era que estes exerciam outros ofícios e que devido às péssimas condições financeiras não era possível pagá-los.
A situação dessas prisões piorou com a chegada da Corte Real em 1808, visto que várias casas tiveram que ser desocupados para ceder espaço à comitiva Portuguesa, e isso aconteceu também com as prisões. Os presos foram transferidos para o Aljube, antigo espaço pertencente à Igreja, as condições ali eram ínfimas e degradantes. Somada à superlotação, muitos morriam vitimados pela proliferação de doenças. Com tanto horror e caos, a solução encontrada foi o conforto espiritual dos detentos com a realização de missas.
O sétimo artigo “O calabouço e o aljube do Rio de Janeiro no século XIX”, Thomas Holloway retrata o processo do Brasil rumo à formação de um Estado independente e nos termos daquela época, moderno. Nesse contexto foram estabelecidas instituições para controlar o comportamento populacional urbano, como a criação da intendência de polícia, a Guarda Real da Polícia e Corpo Municipal de Permantes. As duas principais prisões eram o Calabouço e o Aljube.
O calabouço era uma prisão destinada aos escravos que deveriam receber castigos à mando de seus donos. Com relação às condições de higiene, eram aterrorizantes, sem ventilação, e com escassez de alimento, além disso, muitos escravos morriam devido ao excesso de chibatadas. Dentro desse quadro de horror, surge uma figura importante Diogo Antônio Feijó que reconhecia a humanidade dos escravos, e ordenou que o chicoteamento de escravos no Calabouço não poderia ultrapassar duzentos acoites, em sessões de cinquenta por dia.
Já o Aljube não era uma prisão, ele passou a desempenhar tal função com a chegada da Família Real em 1808. Tornando-se o destino da maioria dos presos, escravos ou livres que aguardavam julgamento ou a sentença por crimes comuns. Esse espaço de depósito foi muito criticado, não só por conta das péssimas condições, mas também devido a sua arbitrariedade, uma vez que ali ficavam desde o ladrão de frutas até o bandido mais violento. Além do mais, não havia segurança, sendo constantes os conflitos tanto entre detentos, como também de detentos com guardas e carcereiros.
O último artigo, intitulado: “Trabalho e conflitos na casa de correção do Rio de Janeiro”, de autoria de Marilene Antunes S’Antana, mostra a construção da casa de correção como uma ruptura em relação ao que se tinha até a metade do século XIX no Brasil. Essa instituição foi construída com o objetivo de educar e (re) socializar o detento, o que deveria ser feito através da disciplina, trabalho e religião.
Várias eram as oficinas onde os presos tinham a oportunidade de aprender um ofício para depois aplicá-lo ao sair. No entanto, nem tudo saiu como se havia planejado, pois nessas oficinas passaram a sediar inúmeros conflitos e até mesmo a morte de alguns deles. De qualquer forma, outros obtiveram bons resultados e tiveram suas penas reduzidas ou foram perdoados graças ao trabalho. O livro, como um todo, cumpre seu objetivo que é analisar historicamente o sistema carcerário, mostrando como este passou por uma série de mudanças. É uma leitura recomendada não somente aos historiadores de profissão, mas também aos estudantes de direito visto que o livro é ancorado em análises de códigos penais.
Referência
MAIA, Clarissa Nunes [et al] (org.). História das prisões no Brasil. vol 1. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.
Jéssica Luana Silva Santos – Graduanda do curso de Licenciatura Plena em História da Universidade Estadual do Piauí (UESPI), Campus Heróis do Jenipapo.
MAIA, Clarissa Nunes [et al] (Org.). História das prisões no Brasil. vol 1. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. Resenha de: SANTOS, Jéssica Luana Silva. Vozes, Pretérito & Devir. Piauí, v.1, n.1, p. 241 – 245, 2013. Acessar publicação original [DR]
Fordlândia: ascensão e queda da cidade esquecida de Henry Ford na selva – GRANDIN (A)
GRANDIN, Greg. Fordlândia: ascensão e queda da cidade esquecida de Henry Ford na selva. Trad. Nivaldo Montingelli Jr. Rio de Janeiro: Rocco, 2010. Resenha de: COLACIOS, Roger Domenech. Antítese, v. 4, n. 8, jul./dez. 2011.
Lançado em português em 2010 “Fordlândia: ascensão e queda da cidade esquecida de Henry Ford na selva” do historiador norte-americano Greg Grandin pode ser considerada uma obra de fôlego. O autor utiliza a coleção de documentos dos Arquivos da Ford e uma bibliografia de apoio, num livro que conta com 23 capítulos e epilogo em pouco mais de 360 páginas. O empreendimento de Ford na Amazônia, trazendo a cultura e a tecnologia dos Estados Unidos para a floresta é retratado em vários ângulos e temas, desde aspectos sociais e políticos, até detalhes da vida cotidiana dos trabalhadores da cidade e uma extensa biografia de Henry Ford, que, aliás, toma conta de grande parte do livro. Em 1928, a Ford Motor Company inicia os trabalhos de construção da plantação de seringueiras no Brasil, marcando o começo de enormes desafios e de uma relação ambígua entre os brasileiros, a floresta e seus novos “conquistadores”: a tecnologia e os homens de Ford. O percurso de quase duas décadas girou em torno de corrupção, ignorância, desmatamentos, enganos, queimadas, lazer, trabalho, revoltas, padronização, recomeços, fungos e insetos, militares, política, e acima de tudo, quase nenhuma borracha produzida. Com o intuito de garantir a autossuficiência de borracha para os carros que produzia e se livrar das imposições de um premente cartel liderado pelos ingleses do produto, Ford deu inicio a uma plantação de seringueiras, e o local escolhido foi o berço destas árvores e décadas antes o maior produtor do mundo de látex, a Amazônia brasileira. Mais do que isto, devido a experiência de Ford nos EUA em reconstruir ou mesmo construir cidades no estilo tradicional norte-americano, o industrial pretendia trazer o progresso ao recriar a “América” na Amazônia. A crença na tecnologia, desde que útil para o ser humano, levou Ford a compreender a Amazônia como um espaço para colocar em prática sua missão civilizadora, tornando aquilo que enxergava como uma terra miserável e de gente bárbara, na origem de uma nova cultura na floresta. Ou melhor, de sua cultura, a “América” tradicional. Ao longo do livro Ford é mostrado por Grandin como um homem que não poderia ser descrito como um simples industrial. Dono de uma opinião política e social, por vezes antissemita, adepto do conservadorismo, ao mesmo tempo em que promovia a modernização do mundo, Ford era uma pessoa contraditória nos ideais, girando em torno de noções superficiais do mundo, mesmo assim movendo em sua órbita uma multidão e comandando os rumos da companhia com mão de ferro. Avesso a qualquer tipo de controle sobre as indústrias, seja de cunho governamental ou dos pares capitalistas, Ford não abriu a empresa ao capital financeiro, mantendo-a longe de Wall Street, e também não fazia parcerias com outras indústrias, não procurava o monopólio sobre determinado produto, apesar de controlar a produção de matérias-primas e peças de forma exclusiva para seus carros. Os trabalhadores das fábricas eram mantidos na linha, não somente de montagem, mas pela regularização e vigilância da vida cotidiana, como os hábitos alimentares e de higiene. Proibiu o quanto pode a formação de sindicatos, até mesmo com o uso de violência, e mesmo assim pagava os maiores salários dos EUA, o famoso “Dia de Cinco Dólares”. Manipulava gerentes e administradores, controlando as decisões e lhes dando prêmios pelo bom trabalho executado. O Fordismo significou não apenas um sistema industrial, fechado no modo de produção, mas todo um conjunto de regras de conduta e uma forma de vida, que incutia nos funcionários e que tentava transformar o mundo. Mas a Amazônia era outro mundo. Segundo a posição adotada por Greg Grandin, a Fordlândia foi o fruto de uma “conspiração” com vários atores incluídos, principalmente, Jorge Dumont Villares, sobrinho de Santos Dumont, que sabendo do interesse de Ford em montar um plantação de seringueira, tratou de organizar um esquema de corrupção, fraude e estelionato, com a intenção de vender terras, gratuitas por lei, para a companhia de Ford. O esquema de Villares envolvia políticos, diplomatas e funcionários do alto escalão da fábrica. Todos fisgaram Ford não pela lucratividade do empreendimento, mas sim por sua filosofia de levar a modernização para todo o planeta, convencendo-o que poderia mudar o quadro social e econômico da Amazônia devastada pelo fim da hegemonia como maior produtora de borracha. Ford procurava aquilo que Grandin definiu como “um novo espaço de liberdade”, onde poderia recomeçar seus sonhos e utopias. No ano de 1927 os reveses políticos e sociais no cenário norte-americano (mesmo que sua fábrica liderasse as vendas de carros e houvesse a estabilidade dos preços da borracha no mercado mundial) deu força a “conspiração” amazônica e o projeto foi autorizado, colocando toda a reputação de Ford em jogo. Villares e seus parceiros vendem as terras, com a ajuda do governo do Pará e a Companhia de Ford obtêm a concessão para a exploração total dos recursos naturais, além da borracha, e também isenção dos impostos. Um fato que viria a tona anos depois e provocaria um escândalo nacional e internacional, manchando a reputação de Ford no Brasil.
Deste momento em diante, Ford e a Fordlândia se viram em meio a diversos tipos de desafios e dificuldades, obtendo pouco sucesso e grande fracasso. Dois tipos de problemas se sobressaem na análise de Grandin, o caráter social e o natural da empreitada amazônica do industrial norte-americano. O autor expõe a origem destes problemas da seguinte maneira: a narrativa não está restrita à Amazônia, mas constantemente direciona o leitor até Michigan, na fábrica de Ford, ou nas vilas que construiu em locais estratégicos para a obtenção de matérias-primas. A relação é constante ao longo do livro, com comparações entre o ambiente amazônico e o da região de Ford, seja no aspecto natural ou então urbano. Revelando desta forma a experiência dos homens que trabalhavam para a fábrica e as expectativas daquilo que iriam encontrar no Brasil, o que se mostrou diverso e até mesmo incompreensível para eles. O maquinário, para a devastação da floresta e preparo da cidade e plantação, foi levado dos EUA para o Brasil por navios da Companhia, junto com os homens de confiança selecionados para a administração da cidade. Assim, um misto de trabalhadores brasileiros e gerentes norte-americanos formou a força de trabalho da Fordlândia. Um processo de adaptação que marcou toda a trajetória da cidade-plantação, revelando o conjunto de fragilidades. Por um lado, os norte-americanos procurava instituir entre os funcionários nativos a filosofia do fordismo, com a adequação das normas de higiene e saúde, alimentação e vestuário que agradavam a Ford. De outro lado, o caráter sazonal do trabalho na Amazônia, levava os nativos a permanecerem pouco tempo na Fordlândia, mesmo com os altos salários (em relação ao restante da Amazônia, mas longe dos cinco dólares diários pagos aos trabalhadores nos EUA), que logo voltavam para as famílias, sem contar o problema com a bebida e a prostituição que logo rondaram a cidade de Ford. Quando depois de alguns anos os gerentes conseguiram manter os trabalhadores regularmente na cidade, instruí-los quanto à dinâmica do trabalho fabril se tornou outro desafio, que gerou uma revolta em 1930, destruindo toda a cidade e expulsando momentaneamente os norte-americanos de suas casas. Ações trabalhistas e formação de sindicatos também deram a tônica das relações entre os nativos e os norte-americanos na plantação. A natureza tampouco ajudava. Promotor de uma junção entre indústria e agricultura, Ford acreditava que poderia demonstrar o uso racional da natureza e a pratica industrial na Amazônia. Porém, o desconhecimento dos norte-americanos do ambiente que os circundavam e a inexperiência em plantar seringueiras as tornou alvo das pragas e insetos, os mesmos que acabaram com a economia da borracha na região décadas antes. A ajuda de um especialista, James R. Weir, acabou por se tornar desastrosa, pois por sua sugestão abandonaram a Fordlândia, fundando outra cidade, Belterra, dando continuidade as práticas de plantação que favoreciam a disseminação dos fungos e insetos nas seringueiras. O resultado foi a baixa produtividade das árvores e até mesmo a devastação de muitos hectares. A técnica de enxerto foi utilizada e até aperfeiçoada para o fortalecimento das seringueiras, mas a forma da plantação, colocando as árvores próximas, continuava tornando o combate às pragas uma luta constante e dispendiosa. A plantação se tornou inviável, acumulando prejuízos desde sua fundação em 1928. Sendo vendida ao governo brasileiro em 1945, pelo valor das indenizações a serem pagas aos trabalhadores nativos. A missão civilizadora de Ford foi encerrada pelas mãos de seu neto Henry Ford II, que assumira a empresa, e também pela própria filosofia do industrial que cada vez mais se enterrava num passado bucólico do meio rural norte-americano. O livro de Greg Grandin tem seus méritos. Soube costurar uma trama trazendo para o leitor diversos aspectos da vida de Ford e seu ideário. O retrato do industrial no livro é de um homem marcado pelas contradições, traçando um Ford por vezes inocente e influenciável por sua própria fama. Mostrou também um fato, a possibilidade de se escrever a História do Brasil com uma bibliografia predominantemente estrangeira, utilizando poucos referenciais da historiografia brasileira. O autor coloca a Amazônia na rota do capitalismo do inicio do século XX e revela todo o jogo político e os interesses brasileiros na permanência de Ford no país. A narrativa de Grandin, porém, comete alguns excessos. O autor apresenta uma extensa biografia de Henry Ford, esquecendo-se por vezes da Fordlândia ou mesmo a tornando um objeto de segundo plano. Apesar das fontes primárias serem vastas, provenientes dos arquivos da Ford, o autor carece do olhar crítico para entender os documentos, compreendendo como verdades as informações contidas em cartas, correspondências internas e os diários dos norte-americanos, além das entrevistas com os sobreviventes em que leva ao pé da letra as palavras dos entrevistados. Em vários trechos podemos encontrar a descrição de sentimentos, sensações, beirando a ficção literária, inteiramente baseada nos diários e em obras de escritores que passaram pela região da Fordlândia, isso quando algumas passagens ficam sem referências, ou seja, deixando a dúvida se seriam frutos da imaginação de Grandin. Além disso, temos descrições de fatos e acontecimentos históricos que fogem inteiramente da proposta do livro, mas que ocupam páginas e páginas, desviando o leitor da temática. O autor apresenta algumas informações erradas, como a do escritor José Maria Ferreira de Castro, que indica ser brasileiro e, na verdade, é português, e também o nome de H. Kahn que não é Herbert, mas Hermann. Isto sem contar as repetições da mesma descrição sobre um determinado ator, como Henry Wickham que toda a vez que citado, Grandin escreve que ele roubou as sementes de seringueira do Brasil, ou Santos Dumont, que aparece algumas vezes para ser taxado em todas como o “homem que os brasileiros acreditam ser o inventor do avião”. Ford nunca veio ao Brasil conhecer as terras, apesar do apelo incessante dos brasileiros e convites de governantes. Mas ele não precisava vir para a Amazônia, sua marca e presença poderiam ser encontradas em qualquer lugar do país, nas ruas, nos carros, nos jornais ou na caixa d’agua da cidade que construiu.
Roger Domenech Colacios – Doutorando em História Social pelo Programa de Pós-Graduação do Departamento de História da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). Orientado pela Profa. Dra. Maria Amelia Mascarenhas Dantes. Bolsista FAPESP.
O cinema pensa – CABRERA (FU)
CABRERA, J. O cinema pensa. Rio de Janeiro: Rocco, 2006. Resenha de: PORTELLA, Sergio; KUSSLER, Leonardo. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.10, n.1, p.118-120, Jan./abr., 2009.
Seria critério de afirmação de um bom texto filosófico a estrita aceitação por uma comunidade especializada, logo, seu igual distanciamento ao público “leigo”, incapaz e indiferente às reflexões do filósofo? O ensaio intitulado O cinema pensa do professor Julio Cabrera, argentino radicado no Brasil e “apátrida” confesso, poria em xeque este critério. Seja pela linguagem complacente ao leitor ou pela tomada de objetos que fariam qualquer um desejar conhecer mais Platão, Hegel, etc., quais sejam, bons e inteligentes filmes, Cabrera não por isso relega em sua obra o delineamento de figuras conceituais e teorias filosóficas.
Tão reais quanto o rei, estas teorias mesmo brotariam da vivacidade cabível à filosofia do renomado filósofo analítico cujo pensamento “sempre oscilou entre análise e existência”. A filosofia não careceu da invenção do cinematógrafo para se constituir, isso é fato, mas também não deve se considerar uma prática cultural avessa às demais produções humanas. Esse alargamento da definição de filosofia, aliás, nem sequer esperou o cinema para se afirmar. O livro inicia com uma introdução teórica intitulada Cinema e filosofia: para uma crítica da razão logopática, onde Cabrera identifica no itinerário do pensamento ocidental, de Platão a Deleuze, duas posturas opostas acerca do otimismo reservado à linguagem escrita na exposição do problema filosófico. Seriam, primeiramente, os chamados filósofos apáticos aqueles que privilegiam a exposição proposicional linear da filosofia. Aristóteles, Kant e Wittgenstein seriam exemplares para esta filosofia que se caracteriza pela pretensão de exaurir lógico-analiticamente a compreensão racional do mundo. Contrariamente, os então chamados filósofos páticos, Platão, Hegel, Nietzsche e Heidegger, p.ex., admitiriam a pertinência de um elemento afetivo no “acesso [filosófico] ao mundo”. Este componente seria responsável pela capacidade de “desalojar” o ponto em análise de suas bases habituais de sustentação, sem, contudo, findar relações com o caráter cognitivo originariamente pretendido pela filosofia. “O emocional não desaloja o racional: redefine-o” bem expressa a “razão logopática”. O elemento afetivo comporia um “impacto emocional” que, proporcionando a emersão daquilo que até então se manteve velado na compreensão racional do mundo, facilitaria a empresa do filósofo de “traduzir” o problema, logo, mantendo seu valor epistêmico mediante os assim chamados “conceitos-ideias”.
Os conceitos-ideias teriam, não obstante seu longo histórico prévio ao surgimento do cinema, encontrado neste sua mais adequada expressão. Suas variadas formas percorreram o aforismo, a frase especulativa, o poema filosófico e a biografia para, ao cabo, encontrarem nos “conceitos-imagem” do cinema a “superpotencialização” dos seus elementos constitutivos. São, num todo, experiências [não experimentos] do caráter “existencial” do pensamento enquanto especulação sobre os limites da linguagem propositiva filosófica acerca do real. Justamente este é o sentido dado por Cabrera à “experiência do filme”, indescritível, somente experienciável. “As imagens parecem vincular conceitos e explorar o humano de maneiras mais perturbadoras que a lógica e ética escritas”. O valor conceitual de um filme reside nas “proposições imagéticas” por ele instauradas, incompatíveis à condição epistêmica prévia à sua experiência dado que nela emerge a sensibilidade condizente ao caso cinematográfico. Pois a “verdade” é então compreendida no horizonte de uma universalidade cuja manifestação não exclui as demais, como “possibilidades” cuja atualização remete ao contexto e ao caso face ao qual o expectador é colocado. Trata-se não do “acontece necessariamente, mas… [do que] poderia acontecer a qualquer um”. A riqueza conceitual de um filme é justamente dada a partir da forma como estas possibilidades são pressupostas e encontram seu desfecho, o que se dá mediante unidades iconográficas expressas ou postas em paralelo ao roteiro (a partida de xadrez do cavaleiro Antonius Block com a Morte em O sétimo selo – Det Sjunde Inseglet, do sueco leitor de Kierkegaard Ingmar Bergman, apresentaria uma tecitura sintática análoga aos episódios como compreendidos e vividos em um primeiro plano do roteiro pelo protagonista, expressando sua insuficiência em articular a realidade conforme seu saber e querer particulares face ao destino inevitável). Por conseguinte, o filme num todo se tornaria um único argumento cujo termo consequente residiria em premissas as quais é impossível isolar num tempo só seu, logo, numa temporalidade que só em seu desfecho reencontra o timer do projetor.
Postos os devidos referenciais teóricos, o autor propõe quatorze exercícios nos quais demonstra a articulação entre “conceitos-ideias” e “conceitos-imagem” e o cinema pensante que daí resulta. Os temas são clara e prazerosamente apresentados, de modo a contentar cinéfilos e filósofos num mesmo discurso. De Heidegger e a serenidade e Antonini e o tédio, somos mesmo convencidos de não compreender a profundidade de Platoon, de Oliver Stone, sem ler Platão por ele mesmo. A emocionalidade da guerra não se presta à tradução conceitual exaustiva pela filosofia política, requer mesmo o choque imagético trazido pela violência do filme, a convicção do testemunho como experiência subjetiva, único aporte às impressões do real. Neste e noutros casos de títulos provocantes (São Tomás e o bebê de Rosimery ou Hegel, Paris Texas), o fio de conduta é sempre a permanência essencial velada da verdade face à abordagem puramente abstrata racional da linguagem escrita.
A sequência da obra, capítulo intitulado O cinema pensa, divide-se em dois momentos. No primeiro, as relações apresentadas no ensaio inicial e desenvolvidas nos exercícios são retomadas numa perspectiva detidamente filosófica, ao passo que, no segundo, são evocadas as teorias de cinema que ocasionam o diálogo cinema e filosofia cujo sentido é justificar a afirmação basilar de que O cinema pensa, dando sentido à obra como um todo. Pois, como proposta de uma “introdução à filosofia através dos filmes”, um cinema pensante e uma filosofia mediante imagens em movimento não dispensariam uma definição de filosofia que propriamente os conjugasse. Contudo, assumidamente, a obra de Cabrera lança maior atenção a esta em detrimento daquele, fazendo um uso filosófico do cinema que dispensa uma maior construção cinematográfica da filosofia. Claro, a “problematicidade intrínseca da imagem” sustenta a metáfora de que O cinema pensa, o “acesso ao mundo” mediante a universalidade e pretensão de verdade da experiência pática comportadas pelo cinema. Mas esta relação unilateral entre cinema e filosofia, “filósofos cinematográficos” mas não “diretores filósofos”, dispensaria de todo o caráter intencional da estrutura de produção dos filmes?
A pergunta seria facilmente respondida pela alegação de tal não ser a finalidade de Cabrera (à filosofia importa o pathos do cinema, seu “componente afetivo”; os conceitos-imagem têm sua definição claramente delimitada na afirmação de que “não são categorias estéticas”). Mas tal resposta não eliminaria a questão de saber se o “impacto” provocado não teria sido intencionalmente causado no expectador (o cinema enquanto “linguagem”), o que, além de devolver o “estético” ao pático, lançaria luz à admissão de um caráter lógico-ordenador pressuposto ao caso apresentado pelo filme. Este decorreria não mais com base na “possibilidade” afirmada, mas mediante a “necessidade” negada. A afirmação do filme como um único conceito-imagem composto inferencialmente a partir de estruturas iconográficas impróprias ao isolamento funcional ao longo do seu desenvolvimento no roteiro ruiria. A unidade obtida se afirmaria a partir de um metassistema [lógico, ordenador] pressuposto à sistematização dos elementos objetivos [manifestos], qual seja, a linguagem utilizada pela direção na estruturação do filme. Um ponto a reforçar este argumento se revela no fato de que nenhum dos exercícios propostos pelo autor incide a um filme distinto da estrutura cinematográfica clássica (mesmo De Sica mantém-se num plano narrativo, sem falar em Quentin Tarantino ou Tim Burton), logo, uma suposta impositividade teórica dada com base numa falácia de generalização na proposta da obra. Ou se veria que somente alguns filmes se prestam à logopatia, dado o silêncio de Cabrera a um maior aprofundamento em teorias do cinema? Ou seja, andaria a logopatia de mãos dadas com roteiristas? Pois, ou dá-se o mero uso didático do cinema pela filosofia, ou admite-se uma delimitação funcional dos elementos iconográficos na unidade da obra cinematográfica como condição ao “impacto emocional”, o que, entendemos, requereria ajustes junto à própria definição de filosofia admitida pelo autor no âmago da sua obra O cinema pensa. A construção teórica de uma “filosofia cinematográfica” estaria, assim, suportada pela afirmação de um “cinema filosófico”, afirmação esta que ainda permanece aguardada pelo leitor.
Sergio Portella – Universidade do Vale do Rio dos Sinos. E-mail: sgportella@yahoo.com
Leonardo Kussler – Universidade do Vale do Rio dos Sinos. E-mail: leonardo.kussler@gmail.com
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