Cronistas do Rio | Revista IHGRJ | 2021

Na opinião de Machado de Assis, o cronista seria uma espécie de historiador do cotidiano, que transita entre as fronteiras imprecisas da literatura com a história, a registrar acontecimentos corriqueiros que dificilmente renderiam manchetes nos jornais, mas que permitem ao historiador contemporâneo compreender as ideias que circulavam na sociedade durante uma determinada época, além de conhecer suas práticas e costumes1. Pois bem, este número da Revista é aberto pelo dossiê “Cronistas do Rio”, que contempla a obra de três escritores, que perscrutaram, cada qual a seu modo, a “vida ao rés-do-chão”2 da urbe carioca: o flâneur João do Rio (1881-1921), o rebelde Lima Barreto (1881-1922) e o “anjo pornográfico” Nelson Rodrigues (1913-1980), estudados respectivamente por Antonio Edmilson Martins Rodrigues, Luiz Ricardo Leitão e Marco Santos.

Como de costume, além do dossiê, a Revista se organiza em dois segmentos. O primeiro está voltado para contribuições acadêmicas, enquanto o segundo apresenta uma síntese da vida social do IHGRJ, eventos e informações de natureza institucional. Leia Mais

Do Rio para o mundo: na rota do café (com escala no Real Gabinete) | Anais do Museu Histórico Nacional | 2020

No intuito de realizar um encontro de pesquisadores interessados na história do café no Segundo Reinado, o Polo de Pesquisas Luso-Brasileiras (PPLB), vinculado ao Centro de Estudos do Real Gabinete Português de Leitura, promoveu nos dias 12 e 13 de setembro de 2019, o seminário Do Rio para o mundo: na rota do café (com escala no Real Gabinete).

O Real Gabinete Português de Leitura conserva importante acervo documental relativo às exposições nacionais e internacionais de café organizadas pelo Centro da Lavoura e Comércio (1881-1884), sediado no Rio de Janeiro. O centro era uma associação não-governamental, considerada o principal elo entre os cafeicultores brasileiros e os consumidores internacionais. Tal acervo pode ser explicado pelo fato de os comerciantes portugueses Eduardo Lemos e Joaquim Ramalho Ortigão terem sido membros fundadores do Centro da Lavoura e Comércio e, ao mesmo tempo, presidentes do Real Gabinete Português de Leitura. Ambos foram, também, responsáveis pela construção do atual prédio desta biblioteca, cujo teto traz em relevo ramos de café. Dentre as obras relativas à história do café no Brasil cabe destacar os Relatórios da primeira e segunda exposição de café (1881-1882), publicados pelo referido centro, bem como o Catálogo da Exposição de Amsterdã (1883), de autoria de Eduardo Lemos, e que serviu de modelo para Paranhos Júnior, futuro Barão do Rio Branco, quando da exposição de café, em São Petersburgo. Leia Mais

Rio de Janeiro e a Cidade Global: Histórias comparadas de cidades na Era Moderna da Globalização / Almanack / 2020

Em seu livro, descrevendo os seis meses que passara no Brasil em 1846, o americano Thomas Ewbank escreveu que “os gritos em Londres são bagatelas quando comparados aos da capital brasileira. Escravos de ambos os sexos anunciam seus produtos em todas as ruas.” Quer fossem frutas ou vegetais; itens de vidro, porcelana ou prata; ou ainda sedas e jóias “tais coisas, e milhares mais, são vendidas pelas ruas diariamente”[5]. A comparação feita com Londres sugere que ao tentar traduzir a sua experiência com o Rio de Janeiro para os seus leitores, Ewbank achou necessário referenciar a cidade que, no imaginário Americano, estaria mais associada a um comércio urbano vibrante e abundância de mercadorias advindas de regiões mundiais mais diversas. Na mesma época em que Ewbank publicava seu livro, Friedrich Engels compunha sua obra A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, onde ele descreveu Londres como o centro comercial do mundo [6]. É pouco provável que Ewbank e seus leitores conheciam o texto de Engels, mas certamente saberiam da reputação da capital do império Britânico e do alcance global de suas instituições financeiras e mercantis. Ao comparar as duas cidades, Ewbank associava o Rio de Janeiro oitocentista à cidade global por excelência daquela época.

Para Ewbank, o ponto de comparação com Londres era a disponibilidade de qualquer produto comercial imaginável em qualquer momento que o cidadão urbano o requeresse. O Rio de Janeiro da metade do século XIX estava, de fato, inserido em uma complexa rede de trocas comerciais e financeiras que se estendia pelo interior do território brasileiro, pelo mundo atlântico, e além [7]. Assim como Londres, a cidade portuária brasileira atuava, desde o século XVII, como nódulo importante na rede de centros urbanos e portos que conectava diferentes cantos do mundo e promovia a movimentação global de produtos comerciais, ouro e prata, pessoas, ideias e práticas. Mesmo com as restrições econômicas e políticas de monopólio do antigo regime, diferentes historiadores apontam a participação crucial de comerciantes do Rio de Janeiro, e da cidade portuária em si, na circulação econômica no império português [8]. Mas não é somente a referência a mercadorias diversas que, na passagem do texto de Ewbank, ilustra as conexões transoceânicas que caracterizavam o Rio de Janeiro oitocentista. O breve comentário sobre escravos de ambos os sexos, encarregados de animar tantas trocas comerciais, invoca um outro lado do caráter transnacional ou global daquela cidade: o papel central que o Rio de Janeiro tivera no tráfego de africanos escravizados entre diferentes regiões do Atlântico e do Índico [9].

Essa curta passagem de Life in Brazil aponta, sem necessariamente se dar conta, para a globalidade potencial do Rio de Janeiro, ou seja, a centralidade da cidade em processos de circulação globais que animaram a definiram realidades do século XIX e experiências urbanas de viajantes, consumidores, e comerciantes grandes e pequenos, livres e escravos. A notável cacofonia da cidade, evidência de um setor comercial urbano ativo, representa mais do que conexões mercantis; ela invoca um ambiente urbano familiar, reconhecível. Descrições como essa, disseminadas por viajantes, indicam como o Rio de Janeiro contribuiu para reforçar a imagem do que era típico, esperado, ou desejado em uma cidade[10]. Contribuía assim para noções do urbano no mundo oitocentista.

A relação entre o urbano e o global é a questão histórica que esse dossiê propõe examinar. A fundação da cidade do Rio de Janeiro em 1565 é um dos eventos que marcou um primeiro processo histórico de globalização. A expansão marítima e projeto colonizador de Portugal, Espanha e, eventualmente, de outras comunidades europeias, integraram novas rotas Atlânticas, e mercados nas Américas, a existentes rotas marítimas e redes de trocas econômicas do Mediterrâneo e Oceano Índico. Os séculos XV ao XIX testemunharam, pela primeira vez, a circulação global de mercadorias e o contato entre as populações humanas de todos os continentes[11]. A articulação dessa rede global se deu nas águas e navios, feitorias e mercados, e nos vários centros de poder onde atividades mercantis e alianças políticas foram negociadas. Especificamente, grande parte desse processo se deu em cidades e vilas, tanto portuárias quanto algumas interioranas, onde atores urbanos moldaram espaços e práticas locais para manejarem melhor oportunidades e pressões criadas por forças e conexões globais. O urbano e o global, enquanto fenômenos históricos, interagiram de forma dialógica: dinâmicas urbanas sustentaram a criação de um mundo moderno globalmente conectado enquanto a movimentação global de pessoas, bens, ideias e práticas ajudou a definir realidades e imaginários urbanos. A perspectiva que salienta a interconexão entre a cidade e globalização—a cidade global—é corrente em estudos urbanos do fim do século XX e início de XXI[12].A adoção dessa mesma perspectiva analítica para o princípio do período moderno nos permite entender melhor o papel que cidades como o Rio de Janeiro e populações urbanas tiveram naquela era de globalização, assim como a maneira pela qual aquele momento histórico definiu a cidade.

Interrogar o diálogo entre o urbano e o global a partir de trabalhos somente sobre o Rio de Janeiro não seria suficiente. Estudos individualizados de cidades frequentemente produzem biografias de centros urbanos que tendem a exagerar o distinto ou excepcional de uma localidade e ignorar importantes conexões com outras localidades ou contextos para além do contexto nacional ou imperial [13]. A história global, enquanto disciplina, encoraja comparações e contextualizações amplas que revelam sincronicidades históricas, novas geografias de análise que não a nação ou império, e conexões entre eventos distintos e diacrônicos14. Histórias globais urbanas oferecem também comparações e contextualizações férteis, capazes de produzir narrativas e análises inovadoras, porém ancoradas em localidades e experiências humanas tangíveis15. É em busca dessa perspective urbana global, e seu potencial para elucidar o processo de globalização durante o período moderno e a centralidade da cidade nesse processo, que o dossiê O Rio de Janeiro e a Cidade Global combina textos de pesquisadores de renome internacional sobre o Rio de Janeiro e sobre outras comunidades urbanas do mundo Atlântico. Juntos, os sete artigos aqui reunidos contribuem duas principais intervenções historiográficas: expandir o corpo literário ainda limitado que aborda o Rio de Janeiro como um importante estudo de caso para a discussão sobre a história urbana global e sedimentar a relevância de uma perspectiva comparativa e voltada para o período moderno para estudos de cidades como agentes de globalização.

O leitor encontrará aqui uma análise de processos históricos que marcaram os séculos XVII ao XIX centrada em comunidades urbanas do mundo Atlântico. Luciano Figueiredo e Paul Musselwhite avaliam a relevância histórica de cidades—Rio de Janeiro e James Town, e cidades do mundo Atlântico Britânico, respectivamente—na construção de uma geografia política imperial de proporções globais. Eles ressaltam a importância de populações urbanas para o processo de articulação e negociação de vínculos políticos e econômicos entre o velho e o novo mundos. Em particular, eles demonstram a atuação de espaços urbanos como forjas de identidades políticas e palcos de conflitos e confrontações que reconfiguraram a relação entre colônia e metrópole num contexto imperial influenciado por processos globais.

Jesus Bohorquez e Fabrício Prado examinam comunidades e redes mercantis centradas no Rio de Janeiro, Montevideo, Buenos Aires e além, e sua relevância para a organização de uma economia, assim como alinhamentos políticos, trans-imperiais. Eles exploram os esforços feitos pelas coroas portuguesa e espanhola para regulamentar e controlar uma economia cada vez mais globalizada e assim proteger seus interesses e dominação política. Ao focarem, porém, conexões comerciais entre diferentes cidades, eles demonstram que mais do que projetos imperiais, essas redes de troca se materializaram graças às ações de agentes econômicos e mercados coloniais. Essa análise revela ainda a necessidade de se pensar as conexões econômicas dessa região inseridas numa geografia global muito mais ampla do que o Atlântico Sul e mais influentes na maturação das ambições políticas regionais do que os ideais pro-independência da era das revoluções atlânticas.

Emma Hart, Randy Sparks e Ynaê Lopes dos Santos dedicam seus artigos a uma discussão de populações urbanas comumente marginalizadas em narrativas da formação do mundo Atlântico e de processos globalizadores: trabalhadores manuais, imigrantes voluntários e forçados, africanos e seus descendentes, pessoas escravas e libertas. Os séculos XVIII e XIX testemunharam a intensificação de trocas comerciais e movimento de populações ao longo de rotas Atlânticas organizadas em torno de algumas cidades específicas. Hart, Sparks e Santos examinam a trajetória de Charleston, na Carolina do Sul, de Annamaboe, na Costa do Ouro, e do Rio de Janeiro. Dialogando com a historiografia que explica a centralidade de cada cidade em termos das atividades econômicas e poder político de elites e populações europeias ou euro-descendentes, os autores demonstram que foram as diferentes iniciativas e prioridades de populações marginalizadas, de agentes econômicos africanos e de escravos negros que moldaram Charleston, Annamaboe, e o Rio de Janeiro, respectivamente. Esses grupos urbanos, repetidamente ignorados em histórias dominantes do mundo Atlântico, construíram espaços, mercados, e práticas urbanas que viabilizaram articulações econômicas, sociais, e culturais cruciais à constituição do mundo setecentista e oitocentista.

O presente dossiê, através da comparação implícita entre a cidade do Rio de Janeiro e centros e comunidades urbanas do Atlântico britânico, espanhol, e da Costa do Ouro na África, oferece uma nova perspectiva da relação entre o urbano e o global durante o período moderno. Por um lado, ele ilumina a relação dialógica entre dinâmicas e experiências urbanas e a formação de redes de contato e troca globais que marcaram aquela era histórica. Por outro, ele revela a relevância de cronologias, geografias, e atores históricos ao processo de globalização centrado na cidade—e portanto ao fenômeno da cidade global—que são pouco explorados na literatura corrente, a qual tem se preocupado mais em focar o chamado norte global durante o final do século XX e começo do XXI.

Notas

5. EWBANKS, Thomas. Life in Brazil, or, A journal of a visit to the land of the cocoa and the palm. New York: Harper & brothers, 1856. p. 92-93.

6. ENGELS, Friedrich. The Condition of the Working Class in England in 1844. London: Sonnenschein & Co, 1892. p. 23.

7. COSTA, Sérgio; GONÇALVES, Guilherme Leite. A Port in Global Capitalism: Unveiling Entangled Accumulation in Rio de Janeiro. London: Routledge, 2019.

8. FRAGOSO, João Luís. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro, 1790-1830. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. PESAVENTO, Fábio. “Para além do império ultramarino português: as redes trans, extraimperiais no século XVIII.” In: GUEDES, Roberto (org.). Dinâmica Imperial no Antigo Regime Português. Rio de Janeiro: Mauad Editora, 2013. p. 97-111. GUIMARÃES, Carlos Gabriel. Os ingleses no Rio de Janeiro da primeira metade do século XVIII: o caso da família Gulston, c. 1710-1720 – primeiras impressões.” In: MATHIAS, Carlos Leonardo Kelmer; SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de; GUIMARÃES, Carlos Gabriel; RIBEIRO, Alexandre Vieira. Ramificações Ultramarinhas: Sociedade Comerciais no Âmbito do Atlântico Luso. Rio de Janeiro: Mauad Editora, 2018. p. 93-114.

9. FLORENTINO, Manolo. Em Costas Negras: uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro, séculos XVIII e XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. BORUCKI, Alex. From Shipmates to Soldiers: Emerging Black Identities in the Río de la Plata. Albuquerque: University of New Mexico Press, 2015. p. 25-56.

10. MARTINS, Luciana de Lima. O Rio de Janeiro dos viajantes: o olhar britânico (1800-1850). Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2001.

11. ABU-LUGHOD, Janet. Before European Hegemony: The World System A.D. 1250-1350. New York: Oxford University Press, 1989. CROSBY, Alfred. The Columbian Exchange: Biological and Cultural Consequences of 1492. Westport: Greenwood, 1972. PAGDEN, Anthony. Lords of All the Worlds: Ideologies of Empire in Spain, Britain, and France, c. 1500-c.1800. New Haven: University of Connecticut Press, 1995. RUSSELL-WOOD, A.J.R. The Portuguese Empire, 1415-1808: A World on the Move. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1998, p. 8-26.

12. SASSEN, Saskia. The Global City: New York, London, Tokyo. Princeton: Princeton University Press, 2013. TAYLOR, Peter; DERUDDER, Ben. World City Network: A Global Urban Analysis. London: Routledge, 2015. KING, Anthony. Writing the Global City: Globalization, Postcolonialism, and the Urban. New York: Routledge, 2016.

13. SAUNIER, Pierre-Yves; EWEN, Shane. Another Global City: Historical Explorations into the Transnational Municipal Moment. New York: Palgrave: 2008. NIGHTINGALE, Carl. Segregation: A Global History of Divided Cities. Chicago: University of Chicago Press, 2012.

14. CONRAD, Sebastian. What is Global History? Princeton: Princeton University Press, 2016.

15. ARAÚJO, Erick Assis de; SANTOS, João Júlio Gomes dos, Jr. (orgs.). História Urbana e Global: novas tendências e abordagens. Fortaleza: Editora UECE, 2018.

Referências

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Mariana Dantas – Ohio University. É autora do livro Black Townsmen: Urban Slavery and Freedom in the Eighteenth-Century Americas (2008). Ela foi a co-investigadora do projeto de rede de pesquisa internacional “Global City: Past and Present”, financiado entre 2015 e 2017 pelo Conselho de Pesquisa em Artes e Humanas do Reino Unido. http: / / orcid.org / 0000-0003-2691-5033

Emma Hart – University of St. Andrews. É autora dos livros Building Charleston: Town and Society in the Eighteenth-Century British Atlantic World (2010) e Trading Spaces: The Colonial Marketplace and the Foundations of American Capitalism (2019). Ela foi a investigadora principal do projeto de rede de pesquisa internacional “Global City: Past and Present”, financiado entre 2015 e 2017 pelo Conselho de Pesquisa em Artes e Humanas do Reino Unido. http: / / orcid.org / 0000-0003-0749-3701


DANTAS, Mariana; HART, Emma. O urbano e o global na era moderna em uma perspectiva comparativa. Almanack, Guarulhos, n.24, abr., 2020. Acessar publicação original [DR]

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Transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro / Tempo / 2008

Tempo 24 traz ao público acadêmico um conjunto de artigos, reunidos aqui em razão de duas preocupações principais. Em primeiro lugar, a extraordinária oportunidade de apresentar um conjunto de estudos dedicados à análise de alguns dos aspectos mais relevantes, recentemente contemplados pela historiografia especializada sobre a temática da transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro. Tema que tem recebido grande atenção por parte dos historiadores por ocasião dos duzentos anos de tal acontecimento. Evento que marcou de modo singular a história do Brasil e que, enfim, tem recebido a merecida atenção dos pesquisadores. Em segundo lugar, o objetivo de se considerar tal tema de estudos do ponto de vista de uma abordagem que priorize a utilização de certos recursos analíticos: trajetórias e formas de sociabilidade. Tal estratégia destaca a relevância dessas ferramentas de análise no desenvolvimento do debate historiográfico, que recentemente – graças às novas contribuições advindas da micro-história, em particular da antropologia de Fredrick Barth – passou a instaurar um amplo campo de possibilidades de estudo em torno desses instrumentos de reflexão.

Nesse sentido, é de destaque a forma como Barth desenvolveu uma metodologia capaz de analisar a experiência do indivíduo enquanto um processo. Em sua reflexão, cultura é sempre entendida como sendo distributiva por ser fruto da interação de valores diferenciados, gerando processos generativos, resultantes de acontecimentos interdependentes. Processos esses que acabam como por constituir um padrão de interação social em que os indivíduos buscam defender seus interesses no que diz respeito às diferentes posições que ocupam, uns em relação aos outros. Por isso, a incerteza é algo inevitável e sempre presente no jogo social, assim como é uma constante a permanente capacidade de escolhas de cada um dos indivíduos relacionados. Como conseqüência, o caráter altamente dinâmico, no qual incerteza é um dado inerente a qualquer padrão de ação social. Padrões que acabam por constituir costumes e comportamentos, tornando-se referência da ação social. O indivíduo só se torna perceptível por meio de sua relação com outros indivíduos. Daí as redes sociais, a correspondência entre o ator social e a sociedade como um todo.

Os artigos aqui reunidos procuram – cada um a seu modo – descortinar novas facetas da história do período joanino, utilizando algumas dessas propostas analíticas. Abrindo o dossiê, tem-se o artigo de Kirsten Schultz, intitulado Perfeita civilização: a transferência da corte, a escravidão e o desejo de metropolizar uma capital colonial. Rio de Janeiro, 1808-1821. Nesse artigo, a autora analisa de forma bastante dinâmica o processo ambivalente de transformação da cidade do Rio de Janeiro em nova corte régia do Império português. Ao “metropolizar” a cidade, os oficiais régios buscaram limitar a presença da escravidão naquele espaço, procurando redefinir as fronteiras físicas e sociais até então existentes em face da incontornável presença e circulação dos escravos africanos e afro-descendentes – contingente que somava cerca de quase metade do total da população da cidade. Esforços que, entretanto, esbarraram na efetiva necessidade de ampliação do uso do trabalho escravo e o profundo apego desses mesmos oficiais régios a certos ideais de manutenção das hierarquias sociais e da ordem social na cidade. Sociabilidades e trajetórias surgem aqui como elementos privilegiados para se analisar o quadro mais amplo de transformações então observadas no Rio de Janeiro.

O artigo de Andréa Slemian, intitulado Entre a corte e a revolução: a atuação de um “negociante” na América sede do Império português, examina a trajetória de Manuel Luís da Veiga, um comerciante de Portugal que acabou por se dedicar à instalação de uma fábrica de cordas em Pernambuco, no período logo após a chegada da família real à cidade do Rio de Janeiro. Tal empreendimento vinculava-se à expectativa de que um amplo campo de novas possibilidades socioeconômicas no Império português surgia então. O estudo analisa o campo das sociabilidades políticas no interior do qual Veiga se encontrava posicionado. Ao fazer isso, a autora destaca de modo particular dimensões indissociáveis da prática social da personagem – os aspectos relativos ao velho e ao novo modo de ser e agir naquela sociedade. Sua trajetória traduz vários elementos que cristalizam um mundo em profunda mudança em termos de seus paradigmas mais fundamentais. Mundo esse impossível de ser sintetizado por meio da simples identificação dos modos mais precisos de como se ia estabelecendo uma distinção entre as velhas e as novas formas de comportamento sociopolítico verificadas no alvorecer do século XIX.

O terceiro artigo a integrar o dossiê intitula-se A metamorfose de um militar em nobre: trajetória, estratégia e ascensão social no Rio de Janeiro joanino e é de autoria de Adriana Barreto de Souza. Nesse texto, a autora estuda a trajetória de um jovem oficial português, José Joaquim de Lima da Silva, para desse modo reconstituir – através de sua experiência institucional – as estratégias utilizadas por esse indivíduo na gestão de sua prática social como militar do Império português. O Exército setecentista se apresentava como uma instituição formada por diferenciados padrões de trajetórias militares, construídas por diferentes meios e recursos. Essa pluralidade de formas em ser militar resultava em parte do monopólio exercido pela Coroa na distribuição de patentes, então percebidas como um de vários bens simbólicos conferidos pelo rei em remuneração a serviços prestados por seus súditos. A hierarquia do Exército tornava-se, desse modo, permeável à hierarquia social vigente à época.

A seguir, tem-se o artigo de Márcia Abreu, intitulado Livros ao mar – Circulação de obras de Belas Letras entre Lisboa e Rio de Janeiro ao tempo da transferência da corte para o Brasil. Nesse estudo, a autora dedica-se a examinar o ritmo de circulação entre Lisboa e o Brasil de um determinado conjunto de obras de Belas Artes. O ano de 1808 se revela um claro divisor de águas no que tange ao extraordinário avanço dessa circulação. Não apenas isso, mas destaca-se também o fato de que a cidade do Rio de Janeiro passava a progressivamente se constituir numa área produtora de obras lidas em Portugal, traduzindo assim uma nítida inversão no padrão daquela circulação observado até então.

Maria do Socorro Ferraz Barbosa apresenta o artigo intitulado Liberais constitucionalistas entre dois centros de poder: Rio de Janeiro e Lisboa, quinto artigo a integrar o presente dossiê da Tempo. Nesse estudo, a autora analisa os conflitos verificados entre o absolutismo e o constitucionalismo, tanto em Portugal, quanto no Brasil. A província de Pernambuco é tomada como caso privilegiado para se observarem as diferentes facetas do movimento constitucionalista, haja vista o constitucionalismo defendido por D. Pedro, príncipe regente no Rio de Janeiro, e o constitucionalismo dos vintistas de Portugal. Os sobreviventes revolucionários de 1817 acabaram por retornar ao poder, de diferentes maneiras, articulando uma perspectiva política constitucionalista, porém monárquica.

Os artigos aqui reunidos representam uma importante oportunidade para se realizar um balanço das novas possibilidades de análise apresentadas pelas pesquisas mais recentes sobre a temática da transferência da corte portuguesa para a cidade do Rio de Janeiro. Trata-se de estudos que demonstram com vigor e sagacidade o caráter essencialmente ambivalente, por vezes contraditório, das inúmeras transformações introduzidas por tamanha inovação: a fuga de um monarca europeu para a sua colônia nos trópicos americanos. Processo esse multifacetado, cuja riqueza de aspectos e questões se torna mais claramente perceptível através do estudo de trajetórias e formas de sociabilidade que se fizeram presentes em tal conjuntura.

Maria de Fátima Silva Gouvêa – Professora Associada ao Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. E-mail: fatimagouvea@gmail.com


GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. Apresentação. Tempo. Niterói, v.12, n.24, 2008. Acessar publicação original [DR]

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O Rio no acervo do Museu Histórico Nacional  | Anais do Museu Histórico Nacional | 2003

Organizador

José Neves Bittencourt

Referências desta apresentação

BITTENCOURT, José Neves. Apresentação. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v.35, p.267-270, 2003. Acesso apenas no link original [DR]

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