Figuras do Pensável – As Encruzilhadas do Labirinto VI | Cornelius Castoriadis

CASTORIADIS, Cornelius. Figuras do Pensável – As Encruzilhadas do Labirinto VI. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. Resenha de: REZENDE, Antônio Paulo. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.21, n.1, p.327-331, jan./dez. 2003.

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Sobre o Tempo | Nobert Elias

A concepção de tempo acompanha, sempre, a reflexão do historiador. No cotidiano, muitas vezes, não percebemos o quanto ela é valiosa, para que se possa organizar a vida e estruturar as possíveis identidades culturais da sociedade. O livro de Nobert Elias é um ensaio que traz subsídios importantes para se pensar o tempo como uma construção social. A dimensão simbólica do tempo é ressaltada o que ajuda a ver os objetos da cultura permeados pelas mudanças e permanências que marcam a construção da história. Elias critica a perspectiva newtoniana, mostrando que o tempo não é dado objetivo, mas também não embarca na perspectiva kantiana que vê o tempo como uma estrutura a priori do espírito. Seus encaminhamentos teórico-metodológicos levam a estabelecer um rico diálogo da história com a sociologia do conhecimento.

Nobert Elias tem uma obra vasta. Muitos dos seus livros já foram publicados no Brasil, entre eles A Sociedade dos Indivíduos, Os Alemães e dois volumes do consagrado O Processo Civilizador. É inegável a erudição de Elias e suas contribuições para se compreender a modernidade. Suas reflexões têm esse propósito básico de investigar os rumos históricos da cultura, nas suas buscas por um sentido que a entrelaçasse. Nesse livro, ele não foge dessa perspectiva, destacando a complexidade social e lógica que está conectada com a invenção da concepção de tempo, predominante na sociedade contemporânea. Para isso, traça comparações com culturas de formações diferentes, inclusive de sociedades indígenas da América. Seu foco privilegiado é a cultura ocidental.

Pensar o tempo como uma relação social permite relativizar o discurso que estimulou a apologia do progresso, empobrecendo as interpretações do iluminismo, preocupado em demonstrar a riqueza social a partir da produção de mercadorias. A concepção de tempo não está dissociada das relações de poder que, inclusive, procuram naturalizá-Ia. As conquistas culturais não são feitas sem conflitos e têm fortes ligações com os interesses de cada grupo. Elias ressalta que o conceito tempo pressupõe um nível elevado de síntese e capacidade criadora dos indivíduos. Ele não é o resultado, apenas, da imaginação genial de algum pensador, mas resultado de um patrimônio cultural sofisticado, sobretudo se o relacionamos com a modernização ocorrida na chamada civilização ocidental.

“Todo indivíduo, por maior que seja sua contribuição criadora constrói a partir de um patrimônio de saber já adquirido, o qual ele contribui para aumentar”, essa é uma afirmativa que sustenta o alicerce do ensaio de Elias. Mas ele não deixa de destacar a importância da coerção social. Diz ele: ” A transformação da coerção exerci da de fora para dentro pela instituição social do tempo num sistema de autodisciplina que abarque toda existência do indivíduo ilustra, explicitamente, a maneira como processo civilizador para formar os hábitos sociais que são partes integrantes de qualquer estrutura de personalidade”. É inegável que Elias dialoga com maestria com a obra de Freud. A cultura não é o território exclusivo da construção do prazer, do fluxo contínuo do desejo. Sem repressão, sem controle e regra social seria impossível se pensar a convivência entre os seres humanos. Eles buscam um equilíbrio que nunca alcançam na sua plenitude.

Mesmo com o projeto vitorioso da modernidade ocidental, as temporalidades continuam existindo na multiplicidade. Quem lê O Labirinto da Solidão, do escritor Octavio Paz, verifica como as diversas as maneiras de conceber o tempo são importantes para construção de identidade social de um povo. As marcas da magia e da religiosidade estarão, sempre, presentes no cotidiano, por mais que se racionalizem as práticas sociais. Elias mostra, com vários exemplos, como o conflito entre a objetividade e a subjetividade deve ser compreendido para que as estruturas temporais de uma sociedade possam ser interpretadas. Dentro da sua perspectiva evolucionista, as instituições vão ganhando complexidade e a concepção de tempo hegemônica, na sociedade ocidental, é resultado dessa relação dinâmica.

A rica análise de Elias apresenta, porém, já no seu final, um comentário interessante. Diz o autor: ”Nada é mais freqüente do que ver historiadores erigirem-se em juízes dos homens do passado, que já não têm como se defender, tomando por norma os valores de sua própria época”(p. 148). Realmente, não se pode negar a existência dos julgamentos, dos juízos de valor presente em obras de historiadores. Não são apenas os historiadores que cometem esse tipo de pecado. Elias, no seu argumento mais geral, fortalece a idéia que sua análise está mais próxima da verdade, pois consegue captar as mudanças e permanências, percebendo com mais clareza o desenvolvimento das instituições sociais. Acrescenta: “Em suma a história dos historiadores é a história a curto prazo” (p.148). Sua afirmação é equivocada. Nem todos os historiadores dedicam-se a estudos localizados e privilegiam a curta duração. Esquece de toda contribuição trazida pela Escola dos Annales e das reflexões teóricas de Braudel e sua obra centrada na longa duração.

As conclusões críticas de Elias parecem retomar a polêmica entre Sociologia e História. A questão da produção da verdade ainda está presente na elaboração das pesquisas. Ela continua fundamental, mas não podemos isolá-Ia em determinados campos do saber. Cabe ao historiador não abandonar o diálogo entre passado e presente, com critérios definidos. Não há verdades definitivas. Ela é sempre relativa, mas isso não impede que se indiquem os caminhos da sua formulação e seus limites. As críticas ao positivismo não significam o fim dos critérios científicos, mas uma maneira diferente de se pensar a ciência.

Há, atualmente, uma troca de informações e teorias nas diversas áreas de produção do conhecimento, sem a adoção de hierarquias. O próprio ensaio de Elias revela essa dimensão, como também toda a trajetória da pesquisa história mais recente. Tanto o sociólogo quanto o historiador vivem dificuldades na articulação dos seus saberes. Não há como nomeá-Ios de maneira homogênea, pois as trilhas de cada um exigem também invenção e criatividade. Na História, a Escola dos Annales ressaltou a necessidade de procurar diálogo com os outros saberes para poder desvendar a complexidade do social.

Existe muita generalização, por parte de Elias, quando enfatiza: “Que a maioria dos historiadores, até o momento, deixe de levar em conta os processos sociais a longo prazo parece-me decorrer, em parte, de uma falta de reflexão sistemática sobre os problemas com que grupos humanos se confrontaram no passado e continuam a se confrontar no presente”(p.157). Mesmo quando se preocupa com a curta duração ou a micro-história, o trabalho do historiador não perde de vista uma reflexão sobre o tempo, as diferenças entre as suas dimensões. O perigo de uniformizar as experiências não é só do historiador mas de qualquer intérprete do social. O historiador não é apenas um sistematizador de fontes. Sua reflexão sobre a experiência humana está presente na construção da metodologia e nas conclusões da sua pesquisa.

É importante assinalar que “Sobre o Tempo” é melhor entendido quando o atrelamos a uma compreensão da modernidade, enquanto projeto civilizatório. Não podemos esquecer, porém, que esse projeto é construído sob o signo de confrontos. Existe um projeto que conseguiu se tornar vencedor, mas as resistências continuam, apesar da presença da cultura de massas. Outros projetos também buscam seus espaços, defendem a liberdade e autonomia, não desprezam a crítica e a dúvida como bases para fundação do conhecimento, no entanto se recusam a aceitar o mundo instalado pelo capitalismo, também ele herdeiro das aventuras da modernidade. A concepção de tempo hegemônica diz muito desses choques e dessas diferenças e nos leva a refletir sobre algumas conclusões otimistas de Elias, dentro de uma perspectiva evolucionista, de aperfeiçoamento das instituições sociais. Uma delas merece, com certeza, que o leitor retome suas peregrinações pela história, sem desprezar a complexidade que a envolve. Diz Elias: “Passo a passo, ao longo de uma evolução milenar, o problema do calendário, outrora irritante, foi mais ou menos resolvido. E como atualmente, os calendários já não criam muitas dificuldades, as pessoas esvaziam da memória as antigas épocas em que ainda causavam problemas”. Nem tudo está tão resolvido com parece entender Elias.

Os tempos históricos terminam por se condensar no presente, segundo reflexões de Santo Agostinho. O presente é síntese, mas também memória, utopia, sonho, resistência. As leituras do contemporâneo nos permitem constatar a diversidade de vivências temporais. Não é apenas o tempo dos calendários que nos domina. Lembramos, outra vez, o ensaio O Labirinto da Solidão que faz uma construção preciosa sobre as aventuras da modernidade, a partir da sociedade mexicana, trazendo também uma reflexão sobre tempo e sua dimensão mítica ainda presente. Se a linearidade dos calendários ajuda a modernizar as relações sociais, ela também revela toda uma estruturação de poder, que silencia as diferenças e busca o homogêneo. Esse tempo da produção das mercadorias, da eficiência técnica se confronta com outras maneiras de querer viver a vida e desfazer o peso de cultura tecnicista. O próprio exemplo dado por Elias de um ritual dos Índios americanos acena para a força das singularidades de cada cultura. O projeto civilizador continua sem esmagar todas as diferenças. Ainda bem, pois garante a possibilidade de reinventar a história e traçar travessias não muito previsíveis.

Antônio Paulo Rezende – Professor do Departamento de História da UFPE.


ELIAS, Nobert. Sobre o Tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1998. Resenha de: REZENDE, Antônio Paulo. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.19, n.1, p. 225-228, jan./dez. 2001. Acessar publicação original [DR]