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Revoluções de independência e nacionalismos nas Américas | Marco Antonio Pamplona
A Coleção Margens, América Latina – Revoluções de independências e nacionalismos nas Américas, organizada por Marco A. Pamplona e Maria Elisa Mäder reúne em seus quatro volumes artigos de 19 autores de diversos países com especializações nas áreas de História, Sociologia, Ciência Política e Literatura. O tema fundamental que percorre todos os artigos é o das identidades políticas coletivas e o complexo processo de conversão destas em uma identidade nacional. A diversidade da formação dos autores permite que sejam abordados aspectos da história cultural, política e intelectual de diferentes países da América ibérica durante o período das independências.
A perspectiva histórica que orienta os trabalhos é a preocupação em visitar as margens da América Latina, isto é, revelar possíveis espaços de trocas e intersecções entre os seus diversos territórios – o que os organizadores chamam de “entrelugares”. Tal objetivo não se confunde com a proposição de um modelo interpretativo único para as independências dos países latino-americanos, tampouco reforça a existência de uma identidade latino-americana que seja capaz de resumir a totalidade das muitas identidades existentes na América. Pelo contrário, esta visão permite identificar e explorar as diferenças entre estes espaços coloniais face à crise das monarquias ibéricas e, posteriormente, em seus respectivos processos de construção das nações.
Publicado em 2007, o primeiro volume da coleção coincide com a abertura das comemorações do bicentenário das Independências na América Ibérica. Toma-se como marco o avanço das guerras napoleônicas sobre a Península em 1807 e a consequente criação de novos espaços de exercício de poder na América como resposta à crise nas metrópoles ibéricas. O volume um trata da Região do Prata e Chile em cinco artigos escritos por João Paulo Pimenta, Jorge Myers, Rafael Sagredo Baeza, Fernando Purcell e Bernardo Ricupero. O segundo volume traz estudos de Márcia Regina Berbel, Alfredo Ávila e Gabriel Torres Puga, Roberto Breña e Natividad Gutiérrez a respeito da Nova Espanha (2008). O terceiro volume trata de Nova Granada, Venezuela e Cuba nos textos de Hans-Joachin König, Inés Quintero, Maria Lígia Coelho Prado e Stella Maris Scatena Franco, Rafael de Bivar Marquese (2009). Finalmente, o quarto volume é formado por quatro artigos sobre Peru e Bolívia, elaborados por Natalia Sobrevilla Perea, Marcel Velázquez Castro, Herbert S. Klein e Antonio Mitre (2010). Está previsto um quinto volume com ensaios comparados sobre a América ibérica e uma discussão sobre o surgimento do estado-nação brasileiro, entretanto, este volume não foi publicado até o momento.
Na introdução e em diversos artigos da coleção, reitera-se a insuficiência de abordagens históricas circunscritas aos limites nacionais para a compreensão do período das revoluções de independência, e o risco de incorrer em anacronismo ao considerar a existência de uma nação e um nacionalismo anteriores ao processo de construção dos estados nacionais. Ainda que defenda uma perspectiva atlântica na análise dos processos de independência da América ibérica, bem se vê pela divisão dos capítulos e dos volumes da coleção que os marcos nacionais continuam guiando a forma de se estruturar o pensamento histórico.
A constatação acima apresentada de modo algum indica o demérito das interpretações, mas reforça a necessidade de se revisitar um tema amplamente investigado e revisado. O recurso muitas vezes meramente didático da delimitação do objeto de investigação de acordo com as definições geográficas e políticas atuais – ou ao menos posteriores ao período em questão – não precisa ser necessariamente tratado como anacronismo ou falta de rigor histórico. Reconhecer as dificuldades para o estudo das revoluções de independência no marco mais amplo de uma perspectiva atlântica não deve ser inibidor de novas pesquisas; pelo contrário, deve incentivar historiadores, antropólogos, sociólogos e cientistas políticos a debruçarem-se sobre o tema, propondo novas abordagens, distintas metodologias e, sobretudo, estabelecerem constantes debates que certamente contribuirão para uma melhor compreensão desse processo histórico. Dito de outra maneira, utilizar estas unidades políticas que não estavam claramente definidas à época das independências é um dos pontos de partida possíveis para o estudo das independências, ainda que o objetivo último das interpretações possa ser justamente a desconstrução destas divisões.
A forma de apresentação dos artigos, que são bastante claros e presumem pouco conhecimento prévio do leitor, garantem à coletânea condições de divulgação das discussões historiográficas mais recentes também para um público não especializado. Este grande mérito é identificado sobretudo em face de um mercado editorial escasso de materiais relativos ao tema geral da coleção. Outro mérito da coleção é que ela disponibiliza, ao final da maioria dos artigos, um conjunto de fontes traduzidas, entre elas: periódicos, proclamas, decretos, poemas, trechos de romances, retratos, trechos de debates das Cortes de Cádiz, entre outras. Estas fontes, selecionadas pelos autores dos artigos, relacionam-se diretamente com o tema abordado em cada texto, permitindo um aprofundamento dos assuntos tratados. Entretanto, esse potencial da coleção faz-nos pensar que alguns dos artigos poderiam articular melhor as discussões desenvolvidas e os documentos apresentados. Embora não seja esta a proposta específica da coleção, em alguns casos as fontes poderiam ser melhor problematizadas e exploradas, para evitar que sejam meramente ilustrativas dos temas tratados.
A crítica às historiografias que consideraram a existência de um nacionalismo prévio ao surgimento dos estados nacionais aparece de forma muito consistente já no primeiro artigo da coleção, que discute as dificuldades de se superar este tipo de enfoque ainda hoje. João Paulo Pimenta trata o caso específico da construção do nacionalismo uruguaio, um caso exemplar da complexidade das identidades coletivas no mundo colonial ibérico, resultado da interação dos critérios identitários europeus com as especificidades de cada um dos espaços coloniais. A análise do processo de independência do Uruguai evidencia, mais do que qualquer outro, a existência de pontos de intersecção entre os mundos hispano e luso- americano. O artigo “Província Oriental, Cisplatina, Uruguai: elementos para uma História da identidade Oriental (1808-1828)” está bem colocado como capítulo de abertura da coletânea, uma vez que apresenta uma critica historiográfica fundamental para a compreensão também dos demais espaços coloniais e reforça uma das propostas da coleção, que é a de tratar as independências da América Latina a partir de uma perspectiva comparada.
Outro artigo que indica a necessidade de inserção de seu objeto de análise em uma unidade mais ampla é o de Rafael de Bivar Marquese, “A escravidão caribenha entre dois atlânticos: Cuba nos quadros das independências americanas”, apresentado no quarto volume. A fim de avaliar as relações entre a escravidão e a independência da ilha, ocorrida no final do século XIX, Marquese as insere no panorama geral da crise do colonialismo. O autor aponta, entretanto, a necessidade de se levar em conta a coexistência de duas estruturas temporais distintas a partir da segunda metade do século XVII: a do Sistema Atlântico Ibérico e a do Sistema Atlântico do Noroeste Europeu, sendo que os personagens tinham consciência desta situação e praticavam comparações entre os dois sistemas.
Vários dos artigos apresentam discussões sobre os caminhos que levaram à construção das identidades nacionais e apontam que elas foram o ponto de chegada – não necessariamente imediato – dos processos de independência, não o seu ponto de partida. Os artigos de Jorge Myers (“A revolução de independência no Rio da Prata e as origens da nacionalidade argentina”, vol.1), Alfredo Ávila e Gabriel Torres Puga (“Do francês ao gachupin: a xenofobia no discurso político e religioso da Nova Espanha”, vol.2), Hans-Joachin König (“Independências e nacionalismos em Nova Granada/Colômbia”, vol.3) e Natalia Sobrevilla Perea (“Questionando o significado de Pátria: tornando-se peruano durante a guerra”, vol.4) apresentam as vicissitudes desse processo em algumas das regiões da América ibérica. Sendo assim, a coleção coloca em relevo as particularidades regionais ao mesmo tempo em que permite uma análise panorâmica da América de colonização luso e hispano-americana como parte de uma mesma conjuntura revolucionária, que tem origem na Europa, marcadamente a partir da Revolução Francesa e das Guerras Napoleônicas, mas que desencadeia profundas transformações também nas colônias americanas.
Acompanhar o processo de conversão das identidades políticas coletivas em uma identidade nacional requer a compreensão dos diversos projetos políticos e dos múltiplos sentidos de nacionalidade em disputa pelos vários atores políticos em cada um destes espaços coloniais. São vários os colaboradores da coleção que enfocam a participação dos diversos grupos sociais nas lutas pela independência e procuram destacar o espaço que lhes coube – ou na maioria das vezes, que lhes foi negado – na definição dos critérios de participação política nos recém-criados estados nacionais. No primeiro volume, o texto de Fernando Purcell, “Discurso, práticas e atores na construção do imaginário nacional chileno (1810-1850)”, investiga a participação popular na construção do imaginário nacional no Chile, a despeito desses grupos populares estarem oficialmente excluídos da cidadania política nos anos iniciais da república. Já Inés Quintero revisita o clássico binômio permanências/continuidades a propósito do debate dos resultados e alcances sociais da independência na Venezuela, colocando a questão em um novo e matizado patamar no artigo “A independência da Venezuela: resultados políticos e alcances sociais” (vol.3).
Três dos textos discorrem, sob enfoques diferentes, acerca da participação das mulheres nos movimentos de independência. Natividad Gutierrez (“O nacionalismo no México: em busca das leitoras da comunidade imaginada”, vol.2) trata da relação entre gênero e nacionalismo, indicando que as mulheres, apesar de excluídas da “comunidade imaginada alfabetizada”, tiveram participação ativa na independência da Nova Espanha. Maria Lígia Coelho e Stella Maris Scatena, no artigo “A participação das mulheres na independência da Nova Granada: gênero e construção de memorias nacionais” (vol.3) dedicam-se ao caso específico de duas personagens que atuaram como sujeitos políticos na independência: Manuelita Sáenz e Policarpa Salavarrieta. Neste texto as autoras apresentam a forma como os estereótipos femininos manifestam-se nos escritos sobre estas personagens e levantam a interessante questão da apropriação política da memória dessas mulheres ao longo do tempo, sobretudo nos últimos anos. Finalmente, o artigo de Marcel Velázquez (“Afrodescendentes limenhos: emancipação, gênero e nação 1791-1830”, vol.4) analisa as construções culturais dirigidas à população afrodescendente em Lima no início do século XIX e destaca o posicionamento singular da mulher afrodescendente nesta sociedade.
Questões de base do trabalho de pesquisa histórica são suscitadas por estes textos, que evidenciam a necessidade de se buscar não só novas fontes, como também novas ferramentas metodológicas para dar conta da amplitude social dos envolvidos nesse processo histórico, sobretudo quanto se pensa na grande proporção de analfabetos que estavam excluídos da sociedade letrada, mas que atuaram nas lutas pela independência. Os novos espaços de sociabilidade surgidos no final do século XVIII e início do XIX colaboraram para que estes atores participassem dos debates a respeito das transformações históricas vividas e em torno da construção da nacionalidade.
Em comum entre a maioria dos artigos está a capacidade de transitar entre estudos de casos muito particulares e reflexões teóricas que enriquecem, ampliam e diversificam a análise dos processos de independência de toda a América de colonização ibérica. Um recorte interessante é apresentado por Rafael Sagredo Baeza a respeito das transformações da realidade geográfica da ilha de Chiloé durante o período colonial e após a independência do Chile. Em “Nação, espaço e representação. Chiloé: de ilha imperial a território continental chileno” (vol.1) o autor evidencia que a posição geográfica não se refere somente a uma realidade material, está sujeita também a concepções políticas, que podem se modificar ao longo do tempo.
De maneira semelhante, o texto “Uma reflexão sobre as comemorações dos bicentenários, a questão do liberalismo (espanhol) e a peculiaridade do caso novo-hispânico” proposto por Roberto Breña, extrapola seu objeto específico de análise – um balanço sobre os estudos que tratam do liberalismo espanhol e das particularidades deste na Nova Espanha. O autor enfatiza a questão que pode parecer um tanto quanto óbvia, mas nem por isso de menor importância: o risco de projetarmos uma experiência política, atribuir significados e preocupações inexistentes na época estudada. Tal prática torna-se ainda mais frequente no momento atual devido às comemorações do bicentenário das independências. Em meio a uma imensa produção sobre o assunto nos últimos anos e que pode se prolongar ainda por uma década, o autor alerta que toda comemoração representa um significado e, portanto, atende a interesses e objetivos distintos. Diante desta constatação, Breña indica a responsabilidade dos acadêmicos em evitar estas simplificações e usos dos mais variados – inclusive políticos – da história e dos personagens das independências.
Em sintonia com novos enfoques historiográficos, a coleção também permite o acesso a algumas das contribuições da história dos conceitos e das linguagens políticas nos artigos de Fernando Purcell (“Discursos, práticas e atores na construção do imaginário nacional chileno 1810-1850”, vol.1); de Bernardo Ricupero (“As nações do romantismo argentino”, vol.1) e de Alfredo Ávila e Gabriel Torres Puga (“Do francês ao gachupin: a xenofobia no discurso político e religioso da Nova Espanha, 1760-1821”, vol.2). A compreensão dos múltiplos e conflitantes sentidos de conceitos como, por exemplo, nação, nacionalismo e soberania em um período de rápidas e profundas mudanças nos discursos e nas práticas políticas é uma das contribuições da história intelectual, elaborada a partir de uma contextualização dos debates e das linguagens políticas dos discursos.
Cabe ainda destacar que outro grande valor de vários dos textos apresentados é a preocupação em trazer para a atualidade os temas tratados, seja através da inserção nos debates historiográficos mais recentes, seja pela discussão dos problemas enfrentados atualmente pelos países latino-americanos. As características específicas de cada país, assim como as que lhes são comuns, podem ser vistas como herança não somente do período colonial, mas também da forma de condução das estruturas políticas, sociais e econômicas após as independências.
A coletânea reúne valiosos esforços por atualizar as discussões a respeito dos processos de independência da América Latina, procurando tratar a grande diversidade encontrada entre as respostas dadas à crise das Monarquias ibéricas na Península e nos vários espaços coloniais. Tradicionalmente, a região do Caribe, e em especial Cuba, é tratada como um universo separado da América hispânica continental, uma vez que a sua independência somente ocorre no final do século XIX. A presença de Cuba entre os textos da coleção é um feliz sintoma de que a perspectiva de uma análise mais ampla começa a incorporar regiões que geralmente estiveram excluídas.
É de se lamentar que não tenha sido publicado até a presente data o último volume previsto, que deveria tratar da formação do estado-nacional brasileiro e propor ensaios comparados sobre a América ibérica. A promessa de um quinto volume com estudos sobre o Brasil permite vislumbrar oportunidade de discutir uma interpretação que a historiografia recente tem lutado para recusar: a da absoluta singularidade do caso brasileiro face às demais colônias americanas. Desta forma, espera-se com positiva expectativa o encerramento dessa coleção com a publicação de seu quinto volume.
Maria Júlia Neves – Mestranda em História pela Universidade de São Paulo (FFLCH/ USP – São Paulo/Brasil) e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). E-mail: maria.julia.neves@usp.br
PAMPLONA, Marco Antonio; MÄDER, Maria Elisa Noronha de Sá (orgs.). Revoluções de independência e nacionalismos nas Américas. Coleção Margens: América Latina. Vol.01 – Região do Prata e Chile (2007, 299p.); Vol.02 – Nova Espanha (2008, 241p.); Vol. 03 – Nova Granada, Venezuela e Cuba (2009, 321p.); Vol.04 – Peru e Bolívia (2010, 274p.). São Paulo: Paz e Terra, 2007-2010. Resenha de: NEVES, Maria Júlia. Entre a unidade e a diversidade: a construção das nações na América Latina. Almanack, Guarulhos, n.6, p. 168-172, jul./dez., 2013.