Revoltas populares / História Social / 2006

Em 1988 Michelle Perrot reuniu uma série de artigos escritos, entre as décadas de 1970 e 1980, sob o título de Os excluídos da história. [1] Mulheres, prisioneiros e operários eram considerados como objetos fundamentais para a análise. Da mesma forma, em 1985, foi publicado History from bellow: studies in popular protest and popular ideology, [2] que homenageava George Rudé, um dos pioneiros historiadores na investigação exaustiva das formas de protesto de trabalhadores rurais e urbanos. Os autores procuravam afirmar a importância de indivíduos que permaneceram por décadas esquecidos e levantar as questões possíveis, apresentando resultados de pesquisas e mostrando as profícuas interlocuções teórico-metodológicas de seu tempo. O cotidiano de pessoas comuns, os sistemas de valores e costumes identitários, as solidariedades e conflitos existentes, assim como as suas diferenças, eram cada vez mais investigados. Reivindicava-se um espaço que estava inexplorado na produção acadêmica.

Esta mudança de perspectiva teve contribuição de variados questionamentos suscitados por pesquisadores sobre a participação dos trabalhadores na história – fruto de um momento de conturbadas mudanças políticas, como o fim do stalinismo e a crítica a certo marxismo, assim como das recentes interlocuções teórico-metodológicas que ampliaram as possibilidades na abordagem do objeto. Neste momento, entre as diversas variantes de investigação da questão, é possível citar, sumariamente, duas delas. Em um caso, os trabalhadores apareciam secundariamente, distantes do centro das decisões. Surgiam, mais detalhadamente, apenas em períodos de revolta ou atuação mais conflitante. Ou seja, o dia-a-dia destes homens e mulheres era ignorado, suas vidas tornavam-se vazias de informações, por serem supostamente desinteressantes ou pouco marcantes no movimento da história. Quando muito, apareciam descritos como indivíduos desprovidos de capacidade para racionalizar as informações que lhes chegavam. Enfim, pessoas que não eram sujeitos de suas próprias histórias, mais reativas que propositivas, e com reações mais espasmódicas que cotidianas. Suas lutas eram geralmente explicadas pela ação de alguma liderança esporádica ou, quando muito, por meio da chefia de algum homem letrado ou poderoso, “capaz” de planejar algo significativo.

No segundo caso, mormente marxista, os conceitos de “classe” e “luta de classes” tornaram-se centrais para as análises, desviando a experiência do trabalhador comum para o segundo plano. Ou seja, esquecendo do trabalhador como indivíduo em suas múltiplas experiências e a identidade deste indivíduo. Diferentemente da abordagem anterior, os marxistas mostravam a formação de associações, ideologizadas ou não, que construíram movimentos sociais fortes, como foi o caso da organização operária. No entanto, o trabalhador comum era investigado restritamente aos interesses do grupo, da classe, conflitantes com os de outro grupo de homens. “Classe” e “luta de classes” foram utilizados como conceitos apriorísticos, únicos a serem investigados e distantes das vicissitudes dos trabalhadores em suas experiências mais comuns. Em outras palavras, a análise caminhava da “luta de classes” e da “classe” para os indivíduos e havia pouco espaço para o sentido contrário.

Nas últimas três décadas, aproximadamente, houve por parte dos historiadores um esforço para ampliar a compreensão das complexas identidades de trabalhadores e trabalhadoras. No Brasil, o papel dos imigrantes e a atuação sindical desses marcou boa parte de trabalhos de Michael Hall, Paulo Sérgio Pinheiro e Bóris Fausto. Os estudos acerca da escravidão rural e urbana cresceram a passos largos e trouxeram à tona questões novas, fontes e metodologias de análise inéditas, diferentes interlocuções teóricas a exemplo da influência de Edward P. Thompsom (marxista que defende uma relação direta entre economia e moral).

Acredito que o resultado destas abordagens foi revelar outras informações acerca dos trabalhadores. O cotidiano das suas atividades, suas idades, nacionalidades, gênero, cores e etnias, seus conflitos mais comuns, seus anseios e esperanças, a vida amorosa e de prazer, as crenças e os sistemas de valores tornaram mais transparentes a história destes homens e mulheres. Com as novas fontes e metodologias empregadas, tivemos a oportunidade de reconstruir o indivíduo num momento específico de sua vida, descrevendo a cor e tipo do traje, o caminho que estava fazendo numa hora exata do dia e até a motivação que levara uma outra pessoa a cometer o desatino de matá-lo com uma arma qualquer. Estes “detalhes” mostraram as possibilidades crescentes de investigação. A história individual e coletiva dos trabalhadores passou a ser possível, e com ela surgiram outras explicações capazes de vencer uma “história dos vencedores” e trazer à luz “sujeitos históricos” e seus embates mais comuns e, tantas vezes, silenciosos.

Certamente, persistem algumas barreiras que precisam ser vencidas. Uma delas diz respeito à divisão entre história do movimento operário e do trabalhador escravo. Estas histórias foram separadas entre abolição e república, que a tudo pareciam explicar. Era como se trabalhadores escravos não tivessem história que se irmanasse a de seus colegas do pós-abolição. Novamente, o conceito de “classe” separava temporalmente trabalhadores escravos de operários, sugerindo a aceitação de uma linearidade histórica. Outra barreira é aquela criada pela ausência de problematizações sobre diferenças de cor, nacionalidade e sexo no processo de extinção do trabalho escravo e de formulação de novas relações de trabalho. Há pesquisas que abordam esta questão, mas ela segue timidamente explorada. Tantas vezes não passa de uma menção. Problema seriíssimo para um período no qual o discurso racista levava a conflitos cotidianos entre os próprios trabalhadores, além do fechamento de postos de trabalho para aqueles cuja cor não fosse a desejada pelo patrão.

Os artigos deste número da Revista História Social refletem questionamentos que mobilizaram os historiadores nestas últimas décadas. Procuram compreender a história mediante o estudo de medidas governamentais ou patronais, mas também, e principalmente, sob a ótica dos próprios trabalhadores. Percebe-se o afastamento dos autores em relação a conceitos outrora canônicos na historiografia, o uso de fontes diversas para investigar o passado. Lê-se interlocuções teórico-metodológicas que ampliam nosso olhar para o passado. O leitor terá importante contribuição às suas reflexões no que tange à história de trabalhadores e trabalhadoras e às revoltas e conflitos que esses mesmos homens e mulheres protagonizaram.

Álvaro Pereira do Nascimento

Novembro / 2006

Notas

1. PERROT, M. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

2. Edição brasileira: Krantz, F. (org.). A outra história: ideologia e protesto popular nos séculos XVII a XIX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.

NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Apresentação. História Social. Campinas, n.12, 2006. Acessar publicação original [DR]

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