Revoltas Populares Contemporâneas numa Perspectiva Comparada / Estudos Ibero-Americanos / 2015

A realidade é uma hipótese repugnante / fora de mim,

entrando por mim a dentro Solidão errante / órfã de centro.

(Manuel António Pina em La fenêtre éclairée)

O século XXI nasceu sob o signo da insurreição. Num mundo em desassossego, e um pouco por todo o lado, a ideia de que “nada será como dantes” parece ter vindo para ficar. As palavras cansam-se na tentativa de definir uma realidade que, de tão apressada, parece tropeçar sobre si mesma. Protestos, tumultos, revoltas, revoluções, contrarrevoluções sucedem-se, trocam de lugar, aparecem, desaparecem, teimosamente resistem, ou transformam-se em sombras que inspirarão num futuro que cada vez mais se confunde com um longo presente, outros protestos, outros tumultos, e outras revoltas. E a cabeça do ser humano neste nosso ainda jovem século roda, e gira, vertiginosamente à procura de um centro, de uma orientação, de um eixo, para um mundo que parece ter saído dos eixos.

A geografia da crise não tem um centro difusor, e ela, nas suas várias manifestações, tanto pode ser econômica, financeira, política, social, cultural ou todas ao mesmo tempo. A Oriente, ditaduras foram combatidas nas ruas, e enquanto umas caíram, outras resistiram, transformaram-se, ou revigoraram-se. A Ocidente, movimentos estudantis e sociais desafiam o Estado, a democracia-liberal, e a globalização capitalista, e muitos proclamam que um “outro mundo” não só é possível, como inevitável. E toda esta onda de protesto rebentou nas ruas, nas calçadas, nas avenidas, e nas praças, nas televisões, na Internet e nas redes sociais, lugares físicos e virtuais, onde se mobilizaram desejos e se celebraram indignações, inconformismos, e a rejeição do mundo tal como ele é. E no meio da ebulição, também irromperam guerrilhas urbanas, fizeram-se pilhagens e destruiu-se propriedade, surgiram terroristas e lobos solitários, e aperfeiçoaram-se técnicas avançadas de controlo, vigilância, e repressão de protestos por parte do poder público, sempre reforçando essa “lei” não escrita da História que nos diz que qualquer procura de emancipação popular tem sempre como hipótese latente, como via possível, a violência, seja de manifestantes, seja da ordem estabelecida.

Nesta geopolítica contemporânea do protesto, a força propulsora do ativismo deriva, mais do que de teorizações complexas, ou de programas detalhados para se revolucionar a sociedade, do fato desse mesmo ativismo ser visto, sentido, e experimentado, como um combate de todos aqueles que se encontram “em baixo” contra a minoria dos que se encontram “em cima”. Independentemente do contexto, o alvo a abater são sempre as elites; que podem ser personalizadas por tiranos, claro, mas também pelas oligarquias políticas e financeiras das democracias, por famílias todo-poderosas, pelos governantes, pela classe política, por grupos de media, e por toda uma rede de interesses e mecanismos, nacionais e transnacionais, que sustenta o poder e a soberania destes “príncipes” enquanto perpetua a destituição da “plebe”. Tudo isto é ainda mais notável quando se sabe, na senda dos trabalhos sobre protestos políticos de Charles F. Andrain e David Apter, que, ao longo dos tempos, a maioria das pessoas escolhem aceitar passivamente, e por razões pragmáticas, os regimes existentes e estabelecidos. A confrontação implica sempre custos, pessoais, familiares, profissionais, que fazem dela apanágio, sobretudo, de minorias. Mas hoje em dia, esta tendência para a resignação não parece ser suficientemente forte para impedir, em muitos países, a oposição mais vasta a regimes que, por uma miríade de razões, são vistos como ilegítimos.

Para muitos destes indivíduos, grupos, e movimentos de contestação, a avaliação sobre os males do mundo não deixa margem para dúvidas. O diagnóstico é pessimista. Mas isso não é desculpa para a inação. Esse desencanto é contrabalançado pela crença que os atuais sistemas político-econômicos podem ser superados, que a democracia pode ser revitalizada, e que a opressão, a injustiça e a desigualdade podem e devem ter um fim. Em suma, através da mobilização e do voluntarismo é possível provar como falsa a ideia que durante muito tempo foi corrente, sobretudo no Ocidente, de que “não há alternativa” para o mundo atual e que este é o melhor dos mundos possíveis. Não é assim de estranhar que muitos destes ativistas do século XXI falem de novo em palavras como “revolução” e “utopia”; e fazem-no sem vergonha ou inibição, mas com a consciência que o resgatar desta imaginação radical constitui um necessário primeiro passo para a transformação das nossas sociedades. Para muitos grupos, no fundo, é como se combatessem entre dois mundos, um no crepúsculo, e outro na aurora.

É assim o mundo de hoje: em fluxo, em movimento, e também imprevisível. E de uma maneira geral toda esta turbulência contemporânea apanhou as pessoas de surpresa. É verdade que pode-se afirmar que estamos perante a História como ela realmente é, e como sempre foi. Ou seja, como a emergência do novo, do nunca visto, daquilo que nunca se pensou que pudesse acontecer, do que causa espanto, horror, ou maravilha. Mas importa dizer que num passado não muito distante, ou seja, durante boa parte da segunda metade do século XX, e por razões históricas concretas, esta interpretação da História como devir permanente era vista com muito mais cautela, contenção e ceticismo. Afinal de contas, o século XX despertou com uma sucessão de tentativas de aplicação na prática de impulsos utópicos e de projetos de transformação coletiva que, cada um a sua maneira, tinha como fim libertar o ser humano das alienações e misérias da História. Assim, o mundo assistiu à tentativa soviética de fazer do ideal comunista uma realidade viva, ao projeto fascista de iniciar uma nova História (um “novo começo”) e de purgar a civilização da sua decadência (seja através da nação, seja através da raça), e mesmo muitos movimentos coloniais de libertação assentaram numa esperança radical de inaugurar não apenas um Estado-nação mas o começo de uma nova época na História (o revolucionário anticolonialista Frantz Fanon apontou mesmo como finalidade da descolonização “a substituição de uma espécie humana por outra… o mundo virado ao contrário, os últimos transformam-se em primeiros”). E no horizonte os amanhãs cantavam.

Mas esta narrativa de revolução e emancipação esbarrou contra um obstáculo. Algo correu mal. E esse “algo” foi a própria realidade. Desta forma, o programa de libertação marxista acabou por servir de justificação ideológica para regimes totalitários, o projeto fascista tornou-se sinônimo de brutalidade humana e extermínio, e mesmo regimes de Estados pós-coloniais, não obstante as esperanças de muitos, na prática foram durante muito tempo exemplos de exploração, repressão e guerras sem fim. A conjugação destas experiências falhadas, e as suas consequências (guerras mundiais e civis) provocaram uma hecatombe nos meios intelectuais e culturais da época. Na altura, e como sinal desse terremoto, foi lançado um livro por dissidentes comunistas, publicado nos anos 50, com o elucidativo titulo “O Deus que falhou”, testemunhando essa transformação de sonhos infalíveis em pesadelos reveladores da falibilidade humana. É exatamente neste contexto que se levanta todo um movimento intelectual contra os males das ideologias, contra o utopianismo e contra as tentativas irrealistas e perigosas de encontrar alternativas totalizantes para o estado das coisas, seja nas sociedades, seja nas nações, seja no mundo. A lógica, apoiada na experiência de tragédias recentes, parecia ser um prolongamento do senso-comum. Ou seja, mais valia manter as coisas como estavam, ou, no máximo, fazer mudanças progressivas e equilibradas, do que lançar-se em quimeras de transformação coletiva que inevitavelmente iriam deixar o mundo em pior estado.

Intelectuais antiutópicos do pós-guerra, de todos os quadrantes ideológicos, repudiaram qualquer possibilidade de emancipação coletiva. À direita, Karl Popper, o filósofo da sociedade aberta e uma das grandes referências do pensamento liberal, retratou projetos utópicos como inevitavelmente perigosos, perniciosos e autodestrutivos. Sociedades ideais emergem “apenas a partir de nossos sonhos e dos sonhos dos nossos poetas e profetas. Elas não podem ser discutidas, apenas proclamadas em cima dos telhados. Elas não apelam para a atitude racional do juiz imparcial, mas para a atitude emocional do pregador apaixonado”. A partir da esquerda, Hannah Arendt perguntou: “E o que mais, enfim, é este ideal [de emancipação] de sociedade moderna, senão o velho sonho dos pobres e miseráveis, que pode ter um charme próprio, desde que ele é um sonho, mas que se transforma em um paraíso dos tolos, assim que é realizado?” Aleksndr Solzhenitsyn, que teve experiência íntima com um desses “paraísos” (conheceu o Gulag soviético, e esteve oito anos em campos de trabalhos forçados) sabia de quem era a culpa: “Graças à ideologia, o século XX experimentou a maldade humana numa escala nunca vista. Isto não pode ser negado, não pode ser ignorado, não pode ser suprimido”. E a “lição” não foi esquecida.

Como consequência vai-se assistir a uma defesa vigorosa, sobretudo na Europa e na América do Norte, da política do equilíbrio, orientada para a gestão do real, fazendo ajustes e mudanças importantes no sistema político e social, mas sem impulsos de transformação total e potencialmente destrutiva. Em suma, uma política desprovida de excessos ideológicos e sem febres utópicas. O pensador francês Raymond Aron aplaudia este novo estado de espírito. Tinha chegado a hora de “desafiar os profetas da redenção” e de “celebrar a chegada dos cépticos”. É verdade que esta narrativa do “ fim das ideologias” foi contestada nos anos 1960 e 1970 por teologias da libertação, hippies, guerras de libertação nacional, lutas anti-imperialistas, subculturas alternativas, cruzadas pelos direitos civis, o ativismo antiguerra, protestos feministas e várias forças sociais de uma “nova esquerda” empenhada em derrubar o “sistema” e alcançar uma total transformação do mundo moderno. O conteúdo da sonhada utopia divergia em seus detalhes, mas geralmente incluía, entre outros elementos, a eliminação de tabus sexuais, o fim da violência, o estabelecimento de uma igualdade completa, a ascensão de comunidades abrangentes de amor e de partilha e o imaginário da emancipação. Contudo, para muitos intelectuais, a suspeita de que não havia possíveis alternativas positivas para o status quo permaneceu. Movimentos utópicos seriam apenas aberrações, que em breve seriam englobados na marcha inevitável em direção a um futuro racional. Essa perspectiva receberia seu aval com a desintegração da União Soviética, cujo colapso foi visto como evidência convincente de que o previsto “fim” da história havia de fato chegado, bem como o fim das ideologias e o fim da revolução. O historiador François Furet termina o seu livro “O passado de uma ilusão” com uma frase que é testemunho de toda uma mentalidade: “Aqui estamos nós, condenados a viver no mundo tal como ele é”. “Condenados”, portanto, a não haver alternativa.

Na verdade, parecia que o mundo ocidental tinha entrado em um período de endism (ou o período dos “fins”), em que as utopias de transformação já não podiam ser imaginadas, muito menos propostas. O racionalismo burocrático e uma suposta “tecnificação da política”, ao que parecia, tinha esmagado todos os rivais; a democracia representativa saía vitoriosa e o capitalismo era o triunfador. Os conflitos tormentosos sobre os sistemas políticos e económicos (para não mencionar os espirituais), que deviam reger os assuntos humanos, haviam sido, com uma ou outra exceção, resolvidos. Este sentimento era difuso na época e manifestava-se de várias formas. Havia até um triunfalismo sobre a globalização liberal-capitalista, como um quebrar definitivo de barreiras, e de fronteiras. E os próprios Estados-nação, para alguns, poderiam desaparecer debaixo desse magma do globalismo. E isto de certa forma também se relaciona com o entusiasmo de muitos estudos na década de noventa do século passado sobre a globalização, como uma Nova Ordem Mundial, assente na expansão por todo o globo de uma “democracia cosmopolita”, como inevitável, e em benefício das relações internacionais. Em suma, o melhor dos mundos possíveis.

Aliás, a própria transformação dos partidos políticos em “máquinas” de angariação de votos, dedicados a objetivos limitados e estreitos, de curto prazo, com o único objetivo de vencer eleições, revela esta dinâmica avassaladora do pragmatismo. Ao contrario dos partidos de massa de antigamente, que eram autenticas escolas de doutrinação e refúgio espiritual, e que tinham um numero enorme de militantes, nos partidos contemporâneos a militância é cada vez menor, e guiada mais pelo interesse e carreirismo do que, francamente, pelo entusiasmo. A política, desligada cada vez mais dos grandes projetos mobilizadores de transformação da sociedade, foi-se progressivamente desencantando. Dai que a apatia, o desinteresse, e a abstenção, surjam quase como consequências naturais, e ainda sentidas, da política partidária de hoje.

E é neste contexto que a narrativa do “fim das ideologias” vai ser levada para um outro patamar, mais além: Francis Fukuyama foi o portavoz mais conhecido da ideia do “Fim da História”. Logo em 1989 ele melancolicamente observou que “o fim da história será um momento muito triste”. No entanto, a luta ideológica mundial que apelava para a ousadia, a coragem, a imaginação, a criatividade e o idealismo era uma coisa do passado. Havia sido “substituída pelo cálculo econômico, a resolução interminável de problemas técnicos, as preocupações ambientais e a satisfação das exigências dos consumidores mais sofisticados”. O seu livro chamar-se-á “O fim da História e o último Homem”. E quem é o “último Homem”? É o homem liberal. E é a sua política do pragmatismo, do real contra a abstração, da moderação, do debate razoável e racional e da gestão de interesses. Numa política que é esvaziada de antagonismo, de intensidade e de paixão. É por isso que, como nos avisa o filósofo político americano Michael Walzer, para um liberalismo que assenta a sua razão de ser na domesticação das paixões (vistas como irracionais, e abstratas) o excesso de entusiasmo na política é potencialmente subversivo, e leva facilmente ao que é visto como o inimigo mortal do liberalismo: o fanatismo, seja de esquerda, seja de direita. Não estranha portanto, que, na passagem do século XX para o século XXI o sociólogo Zygmunt Bauman reclamasse que estávamos todos a viver numa vergonhosa era “pós-ideológica” e “pós-utópica”, sem grandes projetos, exceto para o indivíduo (o centro absoluto do liberalismo), e a busca incessante do autointeresse e da felicidade individual.

Mas, quando caminhamos para a terceira década do século XXI, terá esta “acusação” razão de ser? Os movimentos sociopolíticos renunciaram mesmo aos elementos utópicos em seus modos de vida e imaginários? Não existem projetos, lúcidos ou não, de transformação da sociedade? Os “grandes” sonhos e a ousadia de imaginar, e tentar por em prática, o mundo imaginado não estarão de volta (assumindo como verdadeira a ideia improvável de que alguma vez desapareceram)? Qualquer observador, por mais desatento que esteja, sabe qual a resposta a dar a estas interrogações. A verdade é que o Zeitgest (essa palavra alemã que significa “o espírito dos tempos”) da nossa época é decididamente menos conformado, mais combativo, e acima de tudo, com uma crença difusa da insustentabilidade de muitos dos arranjos políticos, econômicos, sociais e até culturais do mundo de hoje. A mobilização popular, seja quais forem as razões, e em contextos geográficos e culturais diferentes, encontra-se em alta no mundo. Uns fazem-no para derrubar ditaduras ou regimes vistos como ilegítimos, outros para por um fim à exploração econômica das elites sobre as massas, contra a austeridade, por educação e transportes gratuitos, pela defesa da qualidade de vida ou simplesmente (e muitas vezes paralelamente) por uma nova política, uma nova democracia, uma nova sociedade. Se há pouco tempo imperava a ideia do fim, agora muitos destes grupos de contestação são galvanizados pela ideia de começo (início de novas relações políticas, sociais, humanas, e de novas experiências). Da ideia de que “não há alternativa” para as sociedades liberais-capitalistas passou-se, em muitos casos, para a ideia que não existe outra alternativa senão imaginar, e lutar, por um status quo distinto do de hoje.

O sociólogo Daniel Bell, um dos antigos defensores da ideia do “fim das ideologias”, deu uma marcha-ré no ano 2000, reconhecendo que talvez esse paradigma se tenha esgotado e que o “recomeço da história” se tenha iniciado. É sobre esta mudança de paradigma, e sobre este “recomeço”, que este dossiê encontra a sua razão de ser no início do século XXI.

A Estrutura do Dossier

Através da discussão dos seus episódios mais marcantes, das ideias, formas de pensamento, quadros mentais, ações coletivas, e propostas, assim como das suas possíveis consequências, a ideia deste dossiê é a de mapear, percorrer e dar uma visão abrangente – ainda que obviamente limitada a um número concreto de exemplos – deste ciclo global de protestos. Não há, nem pode haver uma única narrativa para capturar uma onda de protestos que é diversa, e que não obedece a um único guião. Todos os protestos dependem de contextos nacionais, e de especificidades próprias. Não há, aliás, um único movimento, mas vários que, contudo, obedecem a um mesmo fio condutor, ou seja, a ideia de protesto, e a sua rejeição do status quo através da intensa mobilização nas ruas e, também nalguns casos, através do ciberativismo. Este dossiê reflete essa ausência de uma interpretação unívoca. Optimismo e pessimismo percorrem, em igualdade, as suas páginas. Se estamos ou não numa mudança de paradigma civilizacional ainda esta por confirmar, mas os contributos deste dossiê tem em atenção tanto a influencia da hegemonia dos velhos hábitos de pensar e de fazer a política, como as novas esperanças, experiências, e quem sabe, futuras hegemonias que se avistam no horizonte.

Revoltas populares contemporâneas numa perspectiva comparada está dividido em duas partes. A primeira, constituída por seis artigos, centra-se sobre as lições mais gerais – e de vários contextos geográficos – que se podem tirar deste ciclo global de protestos. Partindo do exemplo da América do sul, Carlos de la Torre descreve a ascensão da “política das ruas”, e da ideia, cada vez mais difundida, de que a “verdadeira” democracia é direta, comunal e nos antípodas da democracia representativa. Ele descreve as dinâmicas desta visão, assim como os seus perigos. Importante também notar que este ciclo de protestos populares não é exclusivo de países com economias em queda, ou em dificuldade. Por exemplo, novas potências económicas como a Turquia e o Brasil também foram abaladas por uma massiva onda de contestação. Para Bulent Gokay e Farzana Shain, os protestos turcos de 2013 foram acima de tudo uma reivindicação de melhor qualidade de vida nos centros urbanos, contra a privatização dos espaços comunitários, num ambiente político progressivamente repressivo e antidemocrático. Muitas destas revoltas foram estudantis, tornando-se símbolos de mobilização popular, nas ruas, por um futuro diferente para a educação. No Québec, como retrata Cayley Sorochan, assistiu-se a mais longa greve estudantil na história do Canadá, com o sindicalismo estudante a clamar, através de uma greve geral, e da desobediência cívica, pelo fim do aumento dos custos da educação para os alunos. Se uma característica fundadora destes protestos global é a contraposição permanente entre o povo e as elites, a inclusão do Tea Party neste volume não deve causar estranheza. Como refere George Michael, o Tea Party procura uma renovação conservadora da cultura política americana, em termos fiscais, mas também culturais, e a sua ação coletiva, a sua política das ruas, o seu ativismo na Internet, refletem o desejo de tomar de assalto um sistema visto como injusto e não-representativo dos interesses dos “verdadeiros” americanos. De certa forma, tem-se assistido a revoltas contra o Estado. Na forma dos tumultos ingleses de 2011, por exemplo, em que a destruição, os saques, e as pilhagens são um sintoma, como escreve Daniel Briggs, de exclusão social e, ao mesmo tempo, de excessiva dependência de uma cultura de consumo como a única capaz de dar identidade a vidas sem sentido. A contestação popular também emergiu fortemente (e mediaticamente) no movimento espanhol dos Indignados, e Carlos Taibo refere que o movimento de 15 de Maio (a denominação preferida dos ativistas) criou uma nova “identidade contestatária” (primariamente anticapitalista) em Espanha assim como novas experiências de fazer política através de assembleias populares e espaços autónomos.

Já a segunda parte do dossiê foca o caso português e, numa perspectiva histórica e contemporânea, aborda as dinâmicas de contestação popular desde as ultimas décadas do século XX à segunda década do século XXI. Tiago Fernandes argumenta que a democracia portuguesa – que teve a sua origem numa revolução social – revela maiores índices de mobilização da sociedade civil (como organizações de base popular, associações e partidos) do que as democracias (como a espanhola) que resultaram de uma trajetória de reforma política. Mas também Portugal, como retratado por Guya Accornero e Pedro Ramos Pinto, conheceu um ciclo de protestos populares (e um movimento de Indignados), nomeadamente com os protestos da Geração à Rasca em 2011, que mobilizaram e depois desmobilizaram. Para estes autores, no entanto, existiram consequências no mapa político: a emergência de novos atores políticos e de possíveis colaborações entre eles e atores tradicionais na esquerda do espectro político. Finalmente, Riccardo Marchi, mostra como esse impulso revolucionário não é exclusivo da esquerda mais à esquerda, persistindo e manifestando-se também na direita radical, sobretudo na sua versão contemporânea de um nacionalismo étnico e exclusivista. Ela visa tirar partido das contradições das democracias modernas, mas, em termos eleitorais, continua sem conseguir, em Portugal, os mesmos resultados dos populismos identitários em voga noutros países europeus. O dossier fica completo com a entrevista aos historiadores António Manuel Hespanha e Ernesto Castro Leal, centrada exatamente nesse temática do “Poder e Resistência na História de Portugal: do Antigo Regime à Primeira República”, mostrando a evolução das manifestações de resistência aos poderes instituídos, assim como a sua repressão, num período histórico alargado. Finalmente, na resenha ao livro Presos Políticos e perseguidos estrangeiros na Era Vargas (Rio de Janeiro: Mauad X; Faperj), Maurício Parada, releva como seu grande mérito a sua chamada de atenção para a tradição autoritária do Estado brasileiro, que no caso da Era Vargas, se manifestou numa política acentuada de repressão da (variada) oposição.

Referências

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WALZER, Michael. Politics and passion: toward a more Egalitarian Liberalism. New Haven, CT: Yale University Press, 2004.

José Pedro Zúquete – Organizador. Investigador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS / UL). Tem experiência na área de História Contemporânea e Ciência Política, atuando principalmente nas pesquisas sobre nacionalismo, assim como aos estudos sobre antiglobalização e geopolítica. Doutor em Política Comparada pela University of Bath, possui pós-doutoramento na Harvard University. Faz parte da rede europeia COST sobre populismo. Autor de vários artigos científicos, publicou os livros Missionary Politics in Contemporary Europe (Syracuse University Press, 2007) e The Struggle for the World (Stanford University Press, 2010). Coeditou também A vida como um filme (Leya, 2011) e Grandes Chefes na História de Portugal (Leya, 2013), além de ter colaborado na obra Dimensões do poder: história, política e relações internacionais (EdiPUCRS, 2015).

António Costa Pinto – Coorganizador. Investigador Coordenador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS / UL) e Professor Convidado no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE). Doutorado pelo Instituto Universitário Europeu e Agregado pelo ISCTE. Foi Professor Convidado na Universidade de Stanford e Georgetown, Investigador Visitante na Universidade de Princeton e na Universidade da California – Berkeley. Entre 1999 e 2003 foi regularmente Professor Convidado no Institut D’Études Politiques de Paris. As suas obras têm incidido sobretudo sobre o autoritarismo e fascismo, as transições democráticas e a “justiça de transição” em Portugal e na Europa. A longevidade do Estado Novo português levou-o inicialmente ao estudo comparado dos sistemas autoritários. Mais recentemente dedicou-se ao estudo do impacto da União Europeia na Europa do Sul. Outro tema a que se tem dedicado é o das elites políticas e as mudanças de regime. É autor de dezenas de artigos em revistas académicas portuguesas e Internacionais, publicou vários livros, dentre os quais destacam-se: Os camisas azuis: Rolão Preto e o Fascismo em Portugal (EdiPUCRS, 2015).


ZÚQUETE, José Pedro; PINTO, António Costa. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 41, n. 2, jul. / dez., 2015. Acessar publicação original [DR]

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