II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação / Revista Ingesta / 2020

Fome e Identidade

Começamos esta edição em um cenário muito diferente daquele em que a finalizamos. Ainda no início deste ano de 2020, estávamos reverberando as perspectivas positivas resultantes do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação (spalimenta.hypotheses.org), realizado em dezembro de 2019 a partir da parceria deste Laboratório de Estudos Históricos das Drogas e da Alimentação com o portal de divulgação acadêmica Comida na Cabeça (com apoio do Laboratório de Estudos sobre o Brasil e o Sistema Mundial, do Programa de Pós-Graduação em História Social e do Museu Paulista, todos da Universidade de São Paulo). O que vivenciamos, depois disso, foi uma sequência de estranhamentos. Em meio à pandemia do novo coronavírus, ao mesmo tempo que as desigualdades sociais ficaram ainda mais visíveis, muitos “monumentos” públicos erguidos no passado em homenagem a escravagistas e colonialistas foram (e continuam sendo) derrubados, ou ao menos questionados, depois do assassinato de George Floyd, nos Estados Unidos, intensificando uma tendência geral a reivindicar e a reconfigurar identidades historicamente marginalizadas.

Na microescala de nosso simpósio sobre alimentação em dezembro passado, temáticas decorrentes das marcantes desigualdades sociais brasileiras e do repensar de identidades já repercutiam de maneira significativa. A maior parte das comunicações submetidas para o evento direcionou-se, exatamente, aos grupos de trabalho intitulados “Fome e (in)segurança alimentar” e “Identidades e representações”, que acabaram se tornando os mais concorridos da programação, com sessões lotadas de apresentadores e ouvintes. No primeiro grupo, congregaram-se pesquisas sobre os processos que desencadearam situações de escassez/falta de alimentos e de deficiência nutricional no Brasil ao longo da história e também na contemporaneidade das políticas públicas de saúde e da ainda questionável “segurança alimentar”. Boa parte delas tinha, como pano de fundo, a intenção de ampliar o conhecimento geral sobre essas problemáticas, que ainda não estão restritas ao passado, e de reclamar novos posicionamentos e reconfigurações de projetos na seara pública atual.

No segundo grupo, “Identidades e representações”, discutiram-se diversas práticas alimentares e culinárias em suas relações com a construção social de identidades migrantes, nordestinas, polonesas, quilombolas, sertanejas, mineiras, nipo-brasileiras, italianas, de refugiados, de mulheres… O que ficou patente, e também entre os trabalhos apresentados no grupo “Patrimônio e cultura material”, foi a necessidade de repensar a constituição de “comidas/cozinhas emblemáticas” comunitárias, regionais ou nacionais, para compreender as razões que levaram a essas construções identitárias e que, em muitos casos, serviram para pacificar o passado, exaltando certas memórias e escamoteando outras, em especial aquelas ligadas a grupos marginalizados, a conflitos e contradições sociais. Parece inevitável, portanto, que, assim como os monumentos públicos vêm sendo questionados e problematizados, também o sejam os “monumentos culinários”, ou as narrativas canônicas, produzidas a partir de estereótipos ou de ideias que clamam por revisão – como a que, consensualmente, define a cozinha brasileira como expressão de uma supostamente harmônica mistura das “três raças”.

No Dossiê do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação, que apresentamos nesta edição, alguns dos trabalhos que se aproximaram dessas discussões durante o evento podem ser lidos em formato estendido. Em “Estigma e experiência do malungo”, artigo que abre o dossiê, o historiador Lucas Avelar analisa o consumo de bebida alcoólica pelos grupos escravizados nas vendas-tavernas do Brasil, questionando a pecha de “cachaceiro” que foi continuamente atribuída a eles e refletindo sobre a conformação de identidades e resistências não violentas à escravidão a partir da vivência nesses locais. O consumo de aguardente também está no foco de “O elogio à cachaça”, do historiador Sergio Willian de Castro Oliveira Filho e da gastrônoma Luana Costa Pierre de Messias, que estudam os relatórios médicos e suas recomendações sobre a bebida entre os tripulantes das viagens dos navios da Marinha Brasileira, no século XIX.

Indo além das bebidas alcoólicas, o antropólogo e mestre em História Esteban Zabala Gómez, em “Comida de negrería”, volta-se para diversos aspectos da alimentação dos escravizados em uma região de Nova Granada (atual Colômbia), entre a segunda metade do século XVIII e a primeira do XIX, sem deixar de questionar a construção de associações entre africanos/afro-americanos e certos alimentos e produtos como a banana e a aguardente de cana, consideradas “causas”, respectivamente, da preguiça e da embriaguez comumente tidas como características alusivas a eles. Ainda dentro da temática das identidades afrodiaspóricas nas Américas, mas saltando para os tempos atuais, o artigo da historiadora Iamara de Almeida Nepomuceno e da nutricionista Juliana Cesário Aragi, “Rede de conhecimento sobre a produção quilombola de alimentos”, traz um importante registro das possibilidades de ampliação do conhecimento, em uma instituição de ensino de Registro, no Vale do Ribeira, em São Paulo, sobre a memória de comunidades quilombolas, a partir de suas práticas tradicionais de cultivo e de consumo.

Memórias e identidades também estão no cerne da discussão proposta pelo artigo “Tradições, rituais e memórias alimentares”, dos pesquisadores Victor Ridel Juzwiak, Teressa Ridel Juzwiak e Claudia Ridel Juzwiak, que, usando fontes orais, estudam a construção de uma “identidade bicultural” entre a segunda geração de uma família polonesa estabelecida no Brasil. Em “Grãos sacralizados”, Myriam Melchior e Marcella Sulis concentram-se na construção histórica – e eurocêntrica – de uma visão estigmatizada sobre o milho, apesar de sua importância na alimentação popular e de suas potencialidades simbólicas, sobretudo, em rituais de ascendência africana e indígena. E em “Vegetarianismo muito além do prato”, as pesquisadoras Divair Doneda, Camila Horn Soares, Maria Catarina Zanini e Vanuska Silva identificam os diversos aspectos envolvidos na escolha contemporânea por uma alimentação sem carne, constatando o grande peso que os motivos éticos, ligados aos direitos dos animais, têm nessa decisão, bem como o significativo impacto dessa opção nas sociabilidades e mesmo no ativismo político assumido por essas pessoas.

Também estruturados na contemporaneidade, mas na área da Geografia, Marina Araújo e Fábio Tozi desenvolvem uma interessante pesquisa sobre a implantação de uma rede norte-americana de fastfood no Brasil e, em especial, em Belo Horizonte. No artigo “A rede de fast-food KFC e o hábito de consumir frango frito no balde”, eles abordam as resistências e os ajustes que estabelecimentos nacionais e regionais fizeram para servir essa comida antes e depois da chegada da franquia internacional, atendendo aos gostos locais. Diferentemente do que se imagina, os autores mostram que aquilo que se pode preconceber como “globalização” ou uniformização de um hábito alimentar se revela como um fenômeno muito mais complexo, não isento de tensões e adaptações.

Já entre os trabalhos que se ocuparam das desigualdades sociais a partir do viés da alimentação está “Desigualdade no acesso à terra e insegurança alimentar e nutricional”, que fornece um utilíssimo panorama histórico dos marcos políticos, legais e institucionais que influíram nas situações de fome e pobreza no Brasil ou procuraram revertê-las, partindo da Lei de Terras de 1850, que destituiu muitos lavradores de seu principal sustento e favoreceu os grandes latifúndios, e seguindo até as primeiras ações sobre alimentação e nutrição do Governo Vargas. Produzido por um conjunto multidisciplinar de autoras (a socióloga e nutricionista Vanessa Daufenback, a nutricionista Juliana Giaj Levra Jesus, a geógrafa Letícia Machado, todas pós-graduandas em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, bem como as professoras doutoras Cláudia Maria Bógus e Maria Cristina da Costa Marques, do Departamento de Gestão, Política e Saúde da referida instituição), o trabalho vai além do panorama, debatendo a permanência de uma estrutura desigual nesse longo período.

A questão da fome ainda aparece no artigo que se destaca dos demais no tempo e no espaço. Em vez do Brasil e das Américas e do período moderno, o historiador Gabriel Rodrigues Sanches Cordeiro volta-se para a Europa e para a Alta Idade Média em “Fome e redes comerciais na Bacia Parisiense”, discutindo a situação alimentar nessa região entre os séculos VIII e XI, a partir de vestígios arqueológicos de diferentes sítios, e questionando as ideias comumente aceitas de crise e fome generalizadas nesse período. Ainda que constate as tentativas de contenção da fome, Cordeiro identifica também diferentes graus de acesso aos alimentos, possivelmente condizentes a uma estratificação social existente mesmo entre os camponeses.

Para além do dossiê, esta edição reúne três artigos submetidos fora do escopo do simpósio: “Querem matar de fome”, do historiador Rodrigo Otávio da Silva, um trabalho inovador sobre a ainda pouco tratada “alimentação institucional”, no caso, a dieta alimentar e as complexidades de sua implantação no Hospital de Caridade Juvino Barreto, em Natal, no Rio Grande do Norte, no período entre 1909 e 1927; “Entre ingredientes, cozinhas e afetos”, de Isabella Altoé, doutoranda em Estudos Culturais na Queen’s University, no Canadá, e da professora doutora Elaine de Azevedo, da Universidade Federal do Espírito Santo, sobre as íntimas relações entre o ato de cozinhar e os cozinheiros profissionais; e “O papel das oferendas de alimentos na manutenção do status das Esposas Divinas de Âmon”, uma pesquisa do historiador André Shinity Kawaminami, que nos leva para os séculos VIII-VI a.C., para uma análise de quatro ricas imagens que mostram a importância das comidas em rituais egípcios.

Completam a edição três resenhas de livros: Burn the place: a memoir (2019), de Iliana Regan, assinada por Arthur Lazzarotto e Deise Schell; Eating Nafta: Trade, Food Policies and the Destruction of Mexico (2018), de Alyshia Gálvez, por Ewerton Reubens Coelho-Costa; e O que iremos comer amanhã?, versão brasileira da obra de Warren Belasco que, embora tenha sido lançada em 2009, há mais de uma década, mereceu atenção e resenha cuidadosa de Matheus Henrique da Mota Ferreira, doutorando em Filosofia na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Como se vê, o segundo volume da Revista Ingesta apresenta-se de maneira essencialmente interdisciplinar, como também é o próprio campo em que o referido simpósio se estruturou, o dos estudos de alimentação (“food studies”). Ao incluirmos o dossiê com trabalhos derivados do evento, abrimos a edição para estudos não só históricos, apoiados em diferentes motes teóricos e metodológicos. Acreditamos, com isso, fornecer um amplo quadro das produções relacionadas à alimentação no Brasil, embora, nas próximas edições, voltemos a privilegiar, mais especificamente, as pesquisas históricas centradas na temática tanto da alimentação quanto das drogas e/ou na relação entre ambas.

Ainda que a presente edição tenha se aberto a visões plurais sobre a alimentação, também parece notório que, como já dito, a temática geral dela – e deste nosso contexto atual – pareça ter se imposto por meio de discussões sobre desigualdades sociais e a constituição ou o repensar de identidades alimentares/culinárias. E foram estas também as discussões que inspiraram a designer Ziza Pasqual, a quem mais uma vez agradecemos por sua constante contribuição com a revista, a criar a imagem da capa. Nela, o desenho rabiscado de uma mesa e de uma panela sobre a fotografia de uma casa velha e desgastada destaca aquilo que não existe (mas deveria existir) em qualquer moradia: alimento, em seus múltiplos sentidos, materiais e simbólicos. A um só tempo, são a fome e o desejo de transformação coletiva que entrelinham a ausência/presença da alimentação naquele ambiente, direcionando à janela, ao centro, a possibilidade de chegada de algum futuro…

Desejamos, enfim, uma boa leitura.

Viviane S. Aguiar – Comissão Editorial


AGUIAR, Viviane S. Editorial. Revista Ingesta. São Paulo, v.2, n.1, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Ingesta | USP | 2019

Ingesta Ingesta

A Revista Ingesta (São Paulo, 2019-) é uma publicação eletrônica de periodicidade semestral, editada por alunos de pós-graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, membros do Laboratório de Estudos Históricos das Drogas e Alimentação (LEHDA), fundado em 2016 na mesma instituição.

Nosso objetivo é publicar artigos, resenhas e dossiês temáticos (em português, inglês ou espanhol) produzidos por pós-graduandos e pesquisadores pós-graduados, que possam contribuir com o desenvolvimento dos estudos históricos sobre alimentação e drogas, em seus amplos aspectos.

Textos relacionados ao campo da História serão privilegiados, mas aqueles que abordarem a temática e estiverem relacionados a disciplinas afins, como a Antropologia, a Sociologia, a Arqueologia, entre outras, também serão considerados para avaliação do Conselho Editorial e do Conselho Científico da revista.

[Periodicidade semestral].

Acesso livre

ISSN 2596-3147

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