Cinemão. Espaços e subjetividades darkroom – MAIA (REF)

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 MAIA H T Cinemão Espaços e subjetividadesHelder Thiago Maia / www.youtube.com

MAIA, Helder Thiago. Cinemão. Espaços e subjetividades darkroom. ., Salvador, BA: Devires, 2018. Resenha de: PERALTA, Jorge Luis. Explorando la sala oscura: el cine porno como espacio (literario) subversivo. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.28 n.2 2020.

Ciertos espacios, así como los textos literarios que los representan, han sido soslayados de la investigación académica como si careciesen de la entidad suficiente para ser objeto de un análisis serio y riguroso. Los cines pornográficos constituyen un caso paradigmático de esa espacialidad marginal y marginada: asociados automáticamente con actividades sexuales furtivas y desordenadas, ocupan incluso uno de los eslabones más bajos en la jerarquía espacial de la sociabilidad homoerótica. No debe sorprender entonces el desinterés de la crítica por sus figuraciones literarias, habida cuenta de que en general son escasos los estudios sobre cómo han sido (re)construidos por la literatura los espacios frecuentados por varones que se relacionan sexual y/o afectivamente con otros varones. Leia Mais

Meu corpo, minhas medidas – TOVAR (REF)

TOVAR Virgie www wbur org cortesia da autora Espaços e subjetividades

Virgie Tovar (cortesia da autora) www.wbur.org/hereandnow

TOVAR Vigie Meu corpo minhas medidas Espaços e subjetividadesTOVAR, Virgie. Meu corpo, minhas medidas. Costa, Mabi. São Paulo: Primavera Editorial, 2018. Resenha de: ALMEIDA, Lysia da Silva. Você pode ser gorda: questões para os feminismos. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.28 n.2 2020.

A escritora Virgie Tovar, uma das principais especialistas em discriminação baseada no peso e imagem corporal da atualidade, se apresenta como feminista, palestrante e ativista gorda. Sua luta contra a gordofobia ficou muito conhecida quando criou a campanha #LoseHateNotWeight1, o que condiz com sua linguagem concisa e bem-humorada. Bacharel em Ciência Política, mestra em Estudos da Sexualidade, com ênfase nas interseções entre tamanho corporal, raça e gênero, Tovar começou a escrever livros como parte de sua atuação política.

Lançou nos EUA o livro Hot & Heavy: Fierce Fat Girls on Life, Love and Fashion2, pela editora Seal Press em 2012, e já tem outra obra prevista para 2020 intitulada The Self-Love Revolution: Radical Body Positivity for Girls of Color3, pela New Harbinger Publications. O manifesto You Have the Right to Remain Fat4, lançado em 2018 pela editora Feminist Press, é a obra de estreia da autora no Brasil. Chegou no mesmo ano pela Primavera Editorial e aqui recebeu o título Meu corpo, minhas medidas. Ainda que o título em português não expresse tanto o caráter de confrontamento ao status quo, a obra está recheada de críticas importantes para a sociedade atual e reflexões fundamentais para a construção dos feminismos contemporâneos Leia Mais

Family values: between neoliberalism and the new social conservatism – COOPER (REF)

COOPER, Melinda. Family values: between neoliberalism and the new social conservatism. New York: Zone Books, 2017. Resenha de: SANTOS, Rayani Mariano dos. A família no centro das disputas políticas nos Estados Unidos. Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, v.28 n.2 2020.

While neoliberals called for an ongoing reduction in budget allocations dedicated to welfare […] neoconservatives endorsed an expanding role for the state in the regulation of sexuality. Despite their differences, however, neoliberals and neoconservatives converged on the necessity of reinstalling the family as the foundation of social and economic order. (Melinda COOPER, 2017, p. 49).

O trecho acima sintetiza a centralidade da família na aliança formada nos anos 1970 entre neoconservadores e neoliberais nos Estados Unidos e faz parte do livro Family values: between neoliberalism and the new social conservatism, escrito por Melinda Cooper e publicado em 2017 pela editora Zone Books. Melinda Cooper concluiu seu doutorado em 2001 na Universidade Paris VIII e atualmente é professora na Universidade de Sydney, onde pesquisa financeirização, neoliberalismo e novos conservadorismos sociais. Leia Mais

Vira-vira, Violeta – LACERDA (REF)

LACERDA, Socorro. Vira-vira, Violeta. Petrolina, PE: Edição da Autora, 2017. Resenha de: DINIZ, Rozeane Porto; KARLO-GOMES, Geam. Representações de gênero em Vira-Vira, Violeta. Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, v.28 n.2 2020.

Socorro Lacerda, professora, feminista e filha do Rio São Francisco – autodescrição da autora -, lançou, em 2017, o seu segundo livro: Vira-Vira, Violeta. Trata-se de uma obra de literatura infantojuvenil com discussões sobre diversas representações de gênero, apresentando, de forma estratégica, personagens que estão no cerne dessa problematização. É surpreendente o quanto o livro é acessível, podendo ser lido por pessoas de qualquer idade, pois, mesmo numa linguagem coerente com o público infantojuvenil, traz configurações de personagens históricas muito significativas para o contexto de luta por igualdade de gênero.

O livro de Socorro aborda as relações de gênero a partir da protagonização de uma luta das mulheres, representadas na narrativa pelas personagens nomeadas como Violetas, em prol da igualdade de direitos em relação aos homens, configurados no livro como Cravos. Violetas e Cravos são nomes e personagens simbólicos usados pela autora para protagonizar a luta e a resistência entre homens e mulheres. Leia Mais

Aquí se baila el tango: una etnografía de las milongas porteñas – CAROZZI (REF)

CAROZZI, María Julia. Aquí se baila el tango: una etnografía de las milongas porteñas. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2015. Resenha de CASTELAO-HUERTA, Isaura. Prácticas generizadas del tango milonguero. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.28 n.2 2020.

A través de un lenguaje fluido y fácil de seguir, María Julia Carozzi nos introduce al mundo del tango milonguero en donde las distintas prácticas espaciales y corporales hacen el género. Para lograrlo, Carozzi realiza un doble ejercicio: traza un recorrido histórico sobre el tango y desarrolla una etnografía con una inmersión profunda debido a que su trabajo de campo incluyó, además de clases de tango como alumna y posteriormente como profesora, acudir a milongas y a todo tiempo de eventos donde se baila tango casi todos los días de la semana (María Julia CAROZZI, 2015, p. 30).

María Julia Carozzi es doctora en Antropología por la Universidad de California, Los Ángeles. Actualmente es investigadora independiente del Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET) de Argentina. Asimismo, coordina el Núcleo de Estudios Antropológicos sobre Danza, Movimiento y Sociedad en el Instituto de Altos Estudios Sociales de la Universidad Nacional de San Martín. Ha investigado sobre educación y relaciones inter-étnicas, sobre la religión Umbanda, el movimiento new age, la religiosidad popular y el culto a Gardel y el tango bailado. Leia Mais

Contra os filhos – MERUANE (REF)

MERUANE, Lina. Contra os filhos. Vidal, Paloma. São Paulo: Todavia, 2018. Resenha de ÁVILA, Alana Aragão. Armadilhas da culpabilização materna. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.28 n.2 2020.

Abordar a maternidade e o instinto materno enquanto construções sociais permanece sendo tarefa árdua. Desde Simone de Beauvoir ([1949] 2016), passando por Elizabeth Badinter (1985) até Silvia Alexim Nunes (2000) e Lurdes Fidalgo (2003), a discussão sobre esses temas é recebida de forma controversa na arena quase sacralizada da construção da feminilidade pela via do papel materno. Propondo uma discussão atualizada não apenas sobre a maternidade em suas diversas formas e práticas, mas também sobre seus efeitos produtivos, Lina Meruane entrou para a miríade de autoras que desafiaram as convenções em torno do tema.

O mais recente livro de Lina Meruane a chegar no mercado brasileiro leva a provocação para além do título. Contra os filhos se propõe a ser um ensaio que discute o local privilegiado em que os filhos foram colocados na atualidade. Meruane revisita o “ideal do dever-ser-da-mulher” (Lina MERUANE, 2018, p. 17) e anuncia que esse imaginário está tomando novas formas, a saber, “sua encarnação contemporânea agita os pés entre fraldas e berra sem descanso junto a nós” (MERUANE, 2018, p. 17). Leia Mais

Bifobia: Etnografía de la bisexualidad en el activismo LGTB – DOMÍNGUES (REF)

DOMÍNGUEZ RUIZ, Ignacio Elpidio. Bifobia: Etnografía de la bisexualidad en el activismo LGTB. Barcelona/Madrid: Editorial Egales, 2017. Ebook. Resenha de: MONACO, Helena Motta. Uma chuva constante. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.28 n.2 2020.

Publicado em outubro de 2017 pelo Editorial Egales, Bifobia: Etnografía de la bisexualidad en el activismo LGTB é, de acordo com o autor, o primeiro livro espanhol sobre bissexualidade (Juan ROURES; Ignacio DOMÍNGUEZ RUIZ, 2018). Nele, Ignacio Elpidio Domínguez Ruiz se dedica ao tema da bifobia no interior do ativismo LGTB, sobretudo em uma associação de Madrid, a Arcópoli, que foi fundada em 2004 e vinculada à Universidad Politécnica de Madrid. Em 2006, se uniu à Federación Estatal de Lesbianas, Gais, Transexuales y Bisexuales (FELGTB), organização que reúne o maior número de associações LGTBs espanholas. Não por acaso a sigla LGTB é utilizada por Domínguez Ruiz nessa ordem, por corresponder ao vocabulário usual nesses contextos de ativismo. O autor ressalta que é devido a esse ativismo que o T aparece antes do B na sigla, ao contrário do que ocorre no mundo anglo-saxão.

No primeiro capítulo, “Metodologia, contexto e compromisso”, Domínguez Ruiz apresenta a metodologia utilizada na pesquisa, o contexto do estudo e tece reflexões sobre possibilidades e limites de sua posição enquanto pesquisador e militante filiado à Arcópoli. No segundo, “Bissexualidade e bifobia”, explora diferentes definições de “bifobia”, provenientes da literatura e de ativistas, e discute as diferenças entre tomá-la como discriminação ou como opressão. No capítulo seguinte, “Estereótipos e resistências”, lista estereótipos comumente associados à bissexualidade – por exemplo, estereótipos de promiscuidade e de incapacidade de compromisso -, bem como as formas de resistência adotadas por bissexuais, novamente mobilizando a literatura e relatos de ativistas. O quarto capítulo, “Imagens e conflitos representacionais” trata da dificuldade de representação da bissexualidade através de imagens, as quais se relacionam com diferentes definições e estereótipos de bissexualidade, e quanto a algumas críticas e estratégias utilizadas por ativistas para representar visualmente a bissexualidade. No último capítulo, “Desafios e revoluções futuros” Domínguez Ruiz explora o caráter revolucionário atribuído à bissexualidade na literatura e em discussões sobre bissexualidade. Leia Mais

50 anos de feminismo – BLAY; AVELAR (REF)

BLAY Eva Foto Cecília Bastos 2018 USP Imagens jornal usp br Espaços e subjetividades
Eva Alterman Blay. Foto: Cecília Bastos/2018/USP Imagens. jornal.usp.br

BLAY e AVELAR 50 anos de feminismo Espaços e subjetividadesBLAY, Eva Alterman; AVELAR, Lúcia. 50 anos de feminismo: Argentina, Brasil e Chile: a construção das mulheres como atores políticos e democráticos. São Paulo: EUSP, Fapesp, 2017. Resenha de: ALEIXO, Mariah Torres. Argentina, Brasil, Chile entre feminismos e os direitos das mulheres. Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, v.28 n.2 2020.

Em abril de 2017, a socióloga Eva Alterman Blay e a politóloga Lúcia Avelar publicaram1 a obra 50 anos de Feminismo: Argentina, Brasil, Chile: a construção das Mulheres como Atores Políticos e Democráticos. O livro é uma coletânea de artigos que transitam entre sociologia, ciência política, antropologia, demografia, comunicação e os ativismos feministas.

Embora o contexto político sul-americano recente indique retrocessos no que concerne às conquistas de direitos das mulheres, a publicação – ao fazer a genealogia e a problematização de mobilizações, conquistas e desafios feministas na Argentina, no Brasil e no Chile – mostra que há feminismo consolidado nesses países, induzindo pensar no caráter provisório de alguns recuos atuais. Nesse sentido, os feminismos, especialmente nesses países, não seguem um traçado evolutivo unilinear em direção ao progresso, mas seu percurso é espiralado, permeado de conquistas, derrotas e transformações. Leia Mais

Women as Foreign Policy Leaders: National Security and Gender Politics in Superpower America – BASHEVKIN (REF)

BASHEVKIN, Sylvia. Women as Foreign Policy Leaders: National Security and Gender Politics in Superpower America. Oxford: Oxford University Press, 2018. Resenha de: SALOMÓN, Mónica. La política exterior ya no es cosa de hombres. Revista Etudos Feministas, Florianópolis, v.27, n.2, 2019.

¿En qué medida las mujeres que ocupan altos cargos en el poder ejecutivo representan a las mujeres como un todo o categorías específicas de mujeres? ¿Qué nos dice el desempeño de mujeres con responsabilidad en la conducción de la política exterior y de seguridad de sus países – y, específicamente, de los Estados Unidos – en relación a la discusión sobre la supuesta mayor disposición al pacifismo de las mujeres en comparación con los hombres? ¿Las decisiones de esas mujeres son evaluadas con los mismos criterios habitualmente empleados para juzgar a sus homólogos masculinos?

Women as Foreign Policy Leaders avanza en las respuestas a esas y a otras instigadoras preguntas centrales en las discusiones del campo de conocimiento de género y política y en sus intersecciones con otras áreas, como los estudios sobre seguridad internacional, la historia diplomática o el análisis de política exterior. Lo hace a través del estudio de las trayectorias vitales y políticas de cuatro mujeres que ocuparon altos puestos diplomáticos en los Estados Unidos: Jeane Kirkpatrick, embajadora ante la ONU durante la administración Reagan; Madeleine Albright, primera embajadora ante la ONU y luego secretaria de estado con Bill Clinton; Condolezza Rice, consejera de seguridad nacional en el primer mandato de George W. Bush y secretaria de estado en el segundo mandato y por último Hillary Clinton, secretaria de estado en el gobierno Obama. Leia Mais

Pedagogías y políticas – KOROL (RES)

KOROL, Claudia. Feminismos populares: Pedagogías y políticas. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: El Colectivo; Editorial Chirimbote; America Libre, 2016. Resenha de: PAULA, Thaís Vieira de; GALHERA, Katiuscia Morena. Feminismos plurais: a América Latina e a construção de um novo feminismo. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.27, n.2, 2019.

Lançado em 2016, na Argentina, com o apoio da Fundación Rosa Luxemburgo e com fundos do Ministério Federal de Cooperação Econômica e Desenvolvimento da Alemanha, o livro é resultado de diversos âmbitos de esforços coletivos. Pautado no feminismo latino-americano, expresso livremente e a partir de experiências plurais concretas, a obra compila escritos organizados por Claudia Korol a partir de diversas organizações de base. Em comum, o livro e as organizações de base têm a preocupação com a vocalização de experiência de mulheres do Sul Global. A partir de feminismos populares na América Latina e, em menor medida, de outros países do Sul, vozes subalternizadas de movimentos de mulheres locais, comunitárias, populares, bolivarianistas, indígenas e de luta pela terra, dentre outras pautas, são mobilizadas.

São diversas as correntes feministas que permeiam o livro: há, por exemplo, tanto o feminismo liberal que percebe na aprovação de leis pelo Congresso o processo acertado de conquista de direitos, quanto o feminismo construtivista que pauta a necessidade do entendimento do contexto cultural e como influencia na construção social do objeto. Há, ainda, feministas que bebem de diversas correntes para montar sua ação: o caso da feminista marxista que se apoiou no Congresso para o avanço de direitos de pessoas transexuais, ou seja, a militante se apoiou em repertórios políticos dos feminismos liberais e dos transfeminismos, embora se identifique como marxista. Leia Mais

Linguagens pajubeyras: re(ex)istência cultural e subversão da heteronormatividade – LIMA (REF)

LIMA, Carlos Henrique Lucas. Linguagens pajubeyras: re(ex)istência cultural e subversão da heteronormatividade. Salvador: Devires, 2017. Resenha de: OLIVEIRA, João Manuel de. Performatividade Pajubá. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.27, n.2, Florianópolis, 2019.

Este livro, editado pela Devires, que no panorama editorial brasileiro tem sido vital para sustentar e fomentar uma cultura de literatura e ensaio queer, é um marco no pensamento sobre subversão da heteronormatividade que poderíamos chamar de kuir/queer. Carlos Henrique Lucas Lima, autor da obra, recorre ao termo queer, sem o manter acriticamente. Toda a obra é precisamente uma celebração, de formas de resistir culturalmente, de torcer a norma e ressignificá-la, de produzir uma teoria e prática torcidas.

Carlos Henrique Lucas Lima é professor na Universidade Federal do Oeste da Bahia e escreveu este livro como resultado do seu doutoramento em Cultura e Sociedade na Universidade Federal da Bahia e fez esse trabalho no CuS, Cultura e Sexualidades, recentemente constituído como núcleo de pesquisa. Com formação inicial em Letras e História da Literatura, o seu olhar simultaneamente interdisciplinar e indisciplinar ajuda a entender algumas das propostas intrincadas deste texto híbrido que a editora Devires publicou. Leia Mais

Neoliberalismo sexual: el mito de la libre elección – MIGUEL (REF)

MIGUEL, Ana de. Neoliberalismo sexual: el mito de la libre elección. Madrid: Ediciones Cátedra/Universidad de Valencia, 2016. Resenha de: ALVES, Ismael Gonçalves. Neoliberalismo sexual: o mito e a sedução da liberdade nas sociedades formalmente igualitárias. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.27, n.2, 2019.

Nas últimas décadas temos presenciado no mundo ocidental a proliferação de um conjunto sincrônico de discursos afirmando que as desigualdades e a falta de liberdade das mulheres seriam condições já superadas. Tal realidade teria sido alcançada pela ratificação de legislações que supostamente garantiriam em diversos âmbitos da vida pública, e também privada, a paridade social, econômica, política e cultural entre os sexos. Baseadas nesse axioma, as mulheres estariam aptas a adentrar sem restrições nos mundos do trabalho, a controlar livremente seus corpos e suas sexualidades, além de dividir de forma equânime com os homens as tarefas domésticas e de cuidados. Para os artífices de tais prédicas, as sociedades democráticas contemporâneas teriam chegado a tal nível de igualdade formal que o movimento feminista, como teoria e práxis, já não justificaria mais sua existência, tornando-se, assim, uma peça obsoleta e antiquária, digna apenas de um velho gabinete de curiosidades do século XIX.

Dessa forma, tocadas pelas luzes da liberdade neoliberal, as mulheres do século XXI seriam suficientemente autônomas para fazer suas escolhas e desbravar um mundo totalmente igualitário. De acordo com Nancy Fraser (2015), o discurso neoliberal que atualmente enreda nossas vidas ancora-se na premissa de que as relações sociais contemporâneas estão fundamentadas na livre escolha, nas trocas entre iguais e, sobretudo, nas conquistas meritocráticas, fechando os olhos para as desigualdades estruturantes que cuidadosamente foram questionadas por grupos subalternos. Nesse cenário de suposta autodeterminação, patriarcado e neoliberalismo se retroalimentam por meio de mecanismos em que a violência já não se exerce mais na forma legislações discriminatórias, mas é também fomentada por uma poderosa indústria cultural, que transforma tudo em mercadoria, inclusive os corpos e as sexualidades das mulheres. Leia Mais

Género y cuidado: teorías, escenarios y políticas – ARANGO GAVIRIA et al (REF)

ARANGO GAVIRIA, Luz Gabriela; AMAYA URQUIJO, Adira; PÉREZ BUSTOS, Tania; PINEDA DUQUE, Javier. Género y cuidado: teorías, escenarios y políticas. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia, Pontificia Universidad Javeriana, Universidad de los Andes, 2018. Resenha de: GASCA, Ells Natalia Galeano. La dimensión política del cuidado Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.27, n.2, 2019.

El libro Género y cuidado: teorías, escenarios y políticas contiene reflexiones sobre la interrelación entre las categorías de género y cuidado desde diferentes perspectivas. La edición académica a cargo de Luz Gabriela Arango, Adira Amauya, Tania Pérez Bustos y Javier Pineda Duque resulta de un esfuerzo interinstitucional entre la Universidad Nacional de Colombia, la Universidad Javeriana y la Universidad de los Andes de Bogotá. Se abordan debates teóricos y aportes empíricos derivados de investigaciones de autoras/es adscritas/os a distintas instituciones alrededor del mundo, lo que permite vislumbrar cómo el fenómeno del cuidado mantiene ciertas continuidades en el nivel doméstico, local y global. Las aportaciones contribuyen a entender cómo la categoría de cuidado tiene un potencial político de importancia, sobre todo en lo referente a la necesidad de encontrar formas de relación más justas y equitativas, desde los espacios micro sociológicos que afectan la vida cotidiana, hasta los macro sociales que afectan a los colectivos.

El libro se encuentra divido en tres secciones: “Ética y ethos del cuidado”, “Escenarios y significados del trabajo del cuidado” y “Organización social del cuidado y política pública”. El primer capítulo, de autoría de Joan Tronto, es titulado “Economía, ética y democracia: tres lenguajes en torno al cuidado”. La autora hace una reflexión ética desde la óptica del cuidado, vinculando aspectos relativos a la democracia. Igualmente, reflexiona sobre las atribuciones inequitativas de responsabilidades de cuidado y las asocia con las desigualdades de poder, expresadas en la clase social, la raza, la etnicidad, la sexualidad, entre otras diferencias. Aquí, la autora tipifica diversas formas de exención de las responsabilidades. Su enfoque intenta evitar que, al considerar la dimensión ética, se dejen de lado las preocupaciones sociales y estructurales, intentando tener presentes las dimensiones morales y las asociadas a la economía del cuidado. En este sentido, considera que es importante enmarcar el cuidado de manera que nadie se entienda ni totalmente dependiente, ni totalmente autónomo. Leia Mais

Ambulare – PRADO (REF)

PRADO, Marco Aurélio Máximo. Ambulare. Belo Horizonte: PPGCOM UFMG, 2018. Resenha de: COACCI, Thiago. Como funciona a despatologização na prática? Revista Etudos Feministas, v.27, n.2, Florianópolis,  2019.

Muita tinta tem sido gasta sobre a (des)patologização das transexualidades (Guilherme ALMEIDA; Daniela MURTA, 2013; Berenice BENTO; Larissa PELÚCIO, 2012; Daniela MURTA, 2011; Amets SUESS, 2016). O assunto já foi tema de reuniões no Ministério da Saúde, de debates em várias universidades e foi discutido também na Organização Mundial de Saúde (OMS). Desde 2008, a OMS iniciou o processo de reformulação de sua Classificação Internacional de Doenças, a CID. Esse documento orienta as práticas e as políticas de saúde em todo o mundo. Até a décima revisão, publicada em 1990, as formas de vida trans eram classificadas como uma patologia mental e traduzidas no diagnóstico F64.0 – transexualismo, dentre outros códigos similares. É essa classificação, em conjunto ao DSM, que tem orientado os documentos oficiais da política pública brasileira do processo transexualizador1.

Uma das principais demandas dos movimentos internacionais de pessoas trans era justamente a despatologização dessas experiências, isto é, sua retirada desses manuais e, principalmente, sua retirada do capítulo relativo aos transtornos mentais. Diversos grupos como o GATE* e a TGEU2 se mobilizaram para influir nesse processo. Participaram das reuniões, fizeram campanhas e mobilizações internacionais para sensibilizar as/os pesquisadoras/es e profissionais envolvidas no Grupo de Trabalho responsável por repensar as práticas de cuidado com essas pessoas. O desejo sempre foi pela despatologização, todavia, como Guilherme Almeida e Daniela Murta (2013) já chamavam atenção, fazendo coro a algumas organizações do movimento social, despatologizar não pode ser sinônimo de descuidar ou desassistir. A despatologização não poderia, nem deveria implicar perda de direito para essa população. Leia Mais

Feminismo em Comum: Para Todas, Todes e Todos – TIBURI (REF)

TIBURI, Marcia. Feminismo em Comum: Para Todas, Todes e Todos. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018. 125pp. Resenha de: LUCENA, Srah Catão. Da teoria às práticas: a epistemologia cotidiana de um feminismo em comunhão. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.27, n.3, 2019.

Filósofa de formação, a também escritora, artista plástica, professora e militante associada ao Partido dos Trabalhadores Marcia Tiburi publicou seu oitavo livro de ensaios, o qual vem avultar uma produção já robusta desta intelectual que também escreve romances, livros infantis, além de participar de antologias em coautoria com outras autoras de referência no campo da filosofia, como Suzana Albornoz e Jeanne Marie Gagnebin. De maneira geral, Feminismo em Comum amplia o projeto intelectual de Marcia Tiburi ao alinhavar recortes da sua biografia profissional à sua produção escrita, dotada de um estilo perspicaz, porque sabe traduzir filosofia, política e arte em linguagem acessível. Neste volume, a escritora reúne em um total de 125 páginas um debate que conecta seus temas predominantes, filosofia e política, à problemática de gênero. Ao elaborar como a estrutura opressora do patriarcado sistematiza a ordem social e mental brasileiras de maneira a cingir a vida das mulheres, a autora propõe, através de uma dicção prática e por vezes pungente, a perspectiva feminista como uma alternativa à recuperação da democracia para todas, todes e todos.

Organizado em dezessete capítulos, o ensaio inicia com uma chamada, “Feminismo já!”, convocando leitoras e leitores a compreenderem os extremos em que se encontra a questão feminista, separada, de um lado, pelo grupo que teme e rejeita o feminismo e, do outro, pelo que se entrega ao conceito com muita esperança, mas sem necessariamente pensá-lo como prática e, portanto, modo de vivência e atuação na sociedade. A questão da transfiguração da teoria feminista em exercício social é uma preocupação atual do campo de estudos e encontra-se presente em trabalhos de referência do pensamento feminista, a exemplo de Sara Ahmed no seu Living a Feminist Life (2017). Nesse sentido, propor o feminismo como ferramenta de trabalho e modo de estar no mundo é um ponto forte do livro de Tiburi, já que sintoniza a sua discussão a um contexto amplo e universal, mas sem perder de vista a especificidade brasileira que serve como referência direta para quem tem seu livro em mãos. Leia Mais

Debates feministas. Um intercâmbio filosófico – BENHABIB et al (REF)

BENHABIB, Seyla; BUTLER, Judith; CORNELL, Drucilla; FRASER, Nancy. Debates feministas. Um intercâmbio filosófico. Trad. de Fernanda Veríssimo, São Paulo: Editora Unesp, 2018. Resenha de: SANTOS, Patrícia da Silva. Feminismo, filosofia e teoria social: mulheres em debate. Revista Estududos Feministas, Florianópolis, v.27, n.3 2019.

O discurso filosófico e teórico nas sociedades ocidentais estabeleceu-se, por muito tempo, como território predominantemente masculino. O debate acerca da boa vida e as concepções em torno de suas instituições subjacentes à filosofia e à teoria social eram, até há pouco, protagonizados por homens que se apresentavam como as vozes “neutras” e “objetivas” de nossas formulações teóricas. O que acontece quando quatro feministas se reúnem para debater suas questões em profundo diálogo com algumas das mais relevantes tendências teóricas contemporâneas – como a teoria crítica, o pós-estruturalismo e a psicanálise? É claro que não se poderia exigir dessa empreitada a homogeneidade e o consenso próprios da suposta “universalidade” com que se disfarçou a moderna racionalidade ocidental.

Debates feministas, publicado originalmente no início dos anos 1990 e só agora disponível em edição brasileira, não é somente um livro sobre teoria feminista (uma das lições implícitas é justamente a impossibilidade de se pensar tal concepção no singular). É um testemunho de que o abalo geral provocado pelo pensamento contemporâneo em concepções basilares como identidade, normas e cultura exige que sejam autorizados sujeitos de discurso até então silenciados para que a filosofia e a teoria social se dispam da falsa neutralidade e incorporem os ruídos do não-idêntico, da subversão e da diferença. Em seus debates, Seyla Benhabib, Judith Butler, Drucilla Cornell e Nancy Fraser buscam apontar o lugar dos discursos feministas nessa tarefa de reelaboração do pensamento filosófico e teórico – as quatro pensadoras já apareciam, juntamente a outras, em volume publicado no Brasil há um bom tempo (Seyla BENHABIB; Drucilla CORNELL, 1987). Leia Mais

Narradoras del Caribe hispano – CENTENO AÑESES (REF)

CENTENO AÑESES, Carmen. Narradoras del Caribe hispano. Río Piedras, Puerto Rico: Publicaciones Gaviota, 2018. 134 p. Resenha de: ORSANIC, Lúcia. Voces feministas y disidentes en el Caribe hispano. Revista Estududos Feministas, Florianópolis, v.27, n.2, 2019.

Los aportes intelectuales de Carmen Centeno Añeses han sido muy relevantes para la inserción de Puerto Rico en el mapa de la crítica literaria. Su fluidez tanto en el campo académico como de divulgación científica queda demostrada por una serie de publicaciones en terrenos diversos, que van desde libros de carácter académico y artículos en revistas especializadas hasta trabajos de índole ensayístico, mayormente publicados en periódicos puertorriqueños y cubanos. Pese a la variedad de los temas que ha abarcado a lo largo de su vasta trayectoria, la escritura de Centeno Añeses es coherente en cuanto a sus intereses: los derechos humanos en general y los derechos de las mujeres en particular, la descolonización de Puerto Rico, la importancia del ensayo puertorriqueño en materia de independencia, el lugar de las mujeres en la tradición ensayística local, los discursos patriarcales que han dominado la historia de la literatura y la crítica literaria, la educación, entre otros temas.

Su más reciente libro, Narradoras del Caribe hispano, dialoga en cierta medida con una publicación inmediatamente anterior, Intelectuales y ensayo (2017). En este sentido, Narradoras… podría ser visto como una continuación de su labor interpretativa desde una perspectiva feminista. Si entre los intelectuales que trataba en su obra anterior, Centeno Añeses había hecho hincapié en la importancia del ensayo femenino y feminista en Puerto Rico – a través de figuras como Nilita Vientós Gascón, Áurea María Sotomayor y Marta Ponte Alsina -, ahora se adentra en el análisis narratológico de una serie de escritoras caribeñas, extendiendo el hilo feminista que las (nos) une y reúne en torno a una serie de prácticas contrahegemónicas. Y aunque no aparece explícitamente el término sororidad en las páginas de las Narradoras…, Centeno Añeses deja entrever que eso es lo que la mueve, dando lugar a una polifonía femenina pero sobre todo feminista. Leia Mais

Testo Yonqui – PRECIADO (REF)

PRECIADO, Beatriz. Testo Yonqui. Madrid: Espasa, 2008. 324 p. Resenha de: LESSA, Patrícia. Mulheres testosteronadas: adictas, malditas, transgressoras, bombásticas? Revista Estudos Feministas v.19 n.1 Florianópolis Jan./Apr. 2011.

Beatriz Preciado é filósofa, estudou teoria de gênero na New School for Social Research, em Nova York, onde foi aluna de Jacques Derrida e Agnès Heller. É autora do livro Manifesto contra-sexual, traduzido para cinco idiomas, e entre seus ensaios destacamos Sex Design (Centre Pompidou, 2007), Multitudes Queer (Multitudes, 2004) e Savoirs-Vampires@War (Multitudes, 2005). Atualmente, ensina teoria contemporânea de gênero em diferentes universidades, entre as quais destacamos Paris VIII, l’École des Beaux Arts de Bourges, e Programa de Estudios Independientes del Museu d’Art Contemporani, de Barcelona. A autora se fundamenta nas teorias feministas contemporâneas, que problematizam a performatividade dos gêneros e servem como marco conceitual para discutir corpo, sexualidade e gênero.

O livro Testo Yonqui é dividido em 13 capítulos, dentre os quais destacamos as seguintes discussões: era farmacopornográfica; história da tecnossexualidade; farmacopoder; pornopoder; micropolítica de gênero na era farmacopornográfica; e vida eterna. Preciado qualifica sua obra como livro de autoficção, pois se trata de um protocolo de intoxicação voluntária à base de testosterona sintética, de um ensaio corporal, do corpo experimental em mutação no período que dura a escrita do livro. Ela descreve o uso da testosterona sintética em forma de gel, que é absorvida na pele; basta uma dose de 50 miligramas de Testogel diárias para experienciar o que ela nomeia como mutação de uma época. Leia Mais

Sob o signo de Atena: gênero na diplomacia e nas Forças Armadas – MATHIAS (REF)

MATHIAS, Suzeley Kalil (Org.). Sob o signo de Atena: gênero na diplomacia e nas Forças Armadas. São Paulo: UNESP; Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas, 2009. 279 p. Resenha de: MOREIRA, Rosemeri. Igualdade de gênero nos meandros das missões de paz e na carreira diplomática. Revista Estudos Feministas v.19 n.1 Florianópolis Jan./Apr. 2011.

Temática ainda pouco explorada nos meios acadêmicos, a presença de mulheres militares nas missões de paz e na carreira diplomática é o ponto nodal dos dez artigos que compõem este livro organizado pela socióloga Suzeley Kalil Mathias.

Os quatro primeiros artigos fazem parte do projeto “La mujer en las Fuerzas Armadas y Policía: una aproximación de gênero y las operaciones de paz”, realizado pela Red de Seguridad y Defensa de América Latina (Resdal). Em comum, esses quatro artigos apresentam dados sobre a situação socioeconômica das mulheres diante das diversas realidades nacionais, a discussão histórica da inclusão de mulheres nas respectivas Forças Armadas e a análise da situação profissional das mulheres militares. Com relação ao último item, os dados traduzidos na riqueza de gráficos e tabelas enfocam os percentuais numéricos por sexo e as possibilidades femininas de acesso aos postos de comando e às armas de combate e, principalmente, discutem a presença de mulheres nas missões de paz. Pontos-chave das reflexões, as análises das autoras sobre essa presença vão ao encontro das concepções da ONU sobre a paz, defesa e segurança humana, apregoadas após a Guerra Fria. São apontadas as dificuldades, as resistências e/ou as deficiências das Forças Armadas em levar adiante o projeto de igualdade de gênero nos respectivos contextos nacionais. Comum ainda aos quatro textos é a reflexão sobre a carência, na maior parte desses países, de um debate civil e público sobre a questão que se configura ainda como um “não assunto”. Leia Mais

Linguagem, gênero, sexualidade: clássicos traduzidos – OSTERMANN (REF)

OSTERMANN, Ana Cristina; FONTANA, Beatriz. Linguagem, gênero, sexualidade: clássicos traduzidos. São Paulo: Parábola Editorial, 2010. 166 p. Resenha de: ANDRADE, Daniela Negraes Pinheiro. Questões linguísticas envolvendo gênero, sexualidade e interação social. Revista Estudos Feministas v.19 n.1 Florianópolis Jan./Apr. 2011.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos,1 no seu artigo primeiro, diz que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos” e que, portanto, “dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”. Partindo do pressuposto, elaborado pelo filósofo alemão Immanuel Kant, de que o ser humano é, primordialmente, fruto daquilo que a educação faz dele, é plausível pensar que a construção de uma sociedade livre, fraterna e igualitária passa pelo acesso ao conhecimento. É sabido, contudo, que não todo e qualquer tipo de conhecimento se põe a serviço do respeito à diversidade em amplo aspecto como fator preponderante para a humanização das relações sociais de modo a assegurar o convívio livre, fraterno e igualitário entre as pessoas.

Se o conhecimento é a chave para o entendimento e o aprimoramento das relações sociais dos seres de natureza humana, independentemente de raça, etnia, credo, opinião política, orientação sexual etc., toda obra que contribua para a construção do saber nesse sentido é digna de elogio. O livro Linguagem, gênero, sexualidade: clássicos traduzidos, sendo assim, merece ser celebrado. A obra presta um grande serviço à comunidade acadêmica leitora do português brasileiro e aos demais públicos interessados em prol do fortalecimento dos estudos voltados para a construção de um saber humanizador no tocante à questão da diversidade de gêneros e à questão da sexualidade no âmbito das interações sociais. Organizada por Ana Cristina Ostermann, ph.D. em Linguística (Universidade de Michigan, EUA), e por Beatriz Fontana, Doutora em Letras (UFRGS, Brasil), a publicação traz a compilação, competentemente traduzida, de artigos acadêmicos escritos por pesquisadores e pesquisadoras estadunidenses e britânicos/as considerados basilares dentro do escopo compreendido por gênero, sexualidade e interação social, abordado sob o viés da linguística interacional. Leia Mais

La aventura de escribir: la narrativa de Angélica Gorodischer – ALETTA DE SYLVAS (REF)

ALETTA DE SYLVAS, Graciela. La aventura de escribir: la narrativa de Angélica Gorodischer. Buenos Aires: Corregidor, 2009. 288 p. Resenha de: ALLOATTI, Norma. A la ventura de las palabras. Revista Estudos Feministas v.19 n.1 Florianópolis Jan./Apr. 2011.

La narrativa de Angélica Gorodischer, estudiada en sus pormenores en el libro de Graciela Aletta de Sylvas, invita a recorrer el camino trazado por los libros de la prestigiosa escritora argentina con el oportuno complemento de un repaso por teorías y enfoques lingüísticos que, además de la rigurosidad, dan cuenta de una actualización tenaz en su tratamiento.

El estudio del conjunto de cuentos, novelas y ensayos de Angélica Gorodischer, emprendido por Aletta de Sylvas como tarea académica (es la primera tesis doctoral dedicada a la producción de Gorodischer), conduce a lectoras y lectores por un recorrido signado por la abundancia de instrumentos conceptuales que, si en los primeros capítulos atienden a posicionar a la escritora en el lugar que ocupa en la literatura argentina, en los últimos muestran una profunda mirada sobre los relatos y la vinculación que cada uno de ellos tiene con géneros narrativos de variada factura, producidos por Gorodischer en su prolífica vida escritural. Advierte con certeza las influencias que en cada texto, en cada narración, quedan manifiestas desde la vida misma de la autora, desde la energía y la vitalidad que ella irradia. Las estampas biográficas que aparecen en el primer capítulo lo traducen con claridad y le permiten adentrarse, a partir del segundo, en un análisis perspicaz de las inscripciones literarias que la autora rosarina ha desenvuelto a partir de su primer cuento policial publicado en 1964, para recalar en sus escritos más recientes. No soslaya, tampoco, la marca feminista que la escritora introduce en sus textos y, en este análisis desde la perspectiva de género, Aletta de Sylvas bucea en pródigos conceptos que le proporcionan mayor profundidad en la dilucidación de la narrativa en estudio. Leia Mais

Poemas da recordação e outros movimentos – EVARISTO (REF)

EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Belo Horizonte: Nandyala, 2008. 72 p. (Coleção Vozes da Diáspora Negra, v. I). Resenha de: ALÓS, Anselmo Peres. O lirismo dissonante de uma afro-brasileira. Revista Estudos Feministas v.19 n.1 Florianópolis Jan./Apr. 2011.

A estreia de Conceição Evaristo nas letras brasileiras foi relativamente tardia, remontando aos inícios dos anos 1990, quando começa a colaborar em periódicos literários. Um dos principais meios nos quais Evaristo publica é a série Cadernos Negros, fundada pelo grupo Quilombhoje Literatura, coletivo de escritores fundado em 1980 com o objetivo de discutir e aprofundar a experiência afro-brasileira na literatura, incentivar o hábito da leitura e promover estudos, pesquisas e diagnósticos sobre literatura e cultura negra. Em 2003, a escritora publica o seu primeiro livro individual, Ponciá Vicêncio, romance que logo chamou a atenção da crítica, particularmente pela maneira com que a autora articula a reflexão sobre questões de gênero, raça e classe social. Três anos depois, Evaristo publica Becos da memória. Ainda que, em termos de publicação, este seja o segundo romance de Evaristo, a escrita dessa narrativa remonta à década de 1980. Tal como a própria escritora assinala, o livro se encontrava pronto desde 1988, mas acabou ficando no fundo da gaveta, adormecido. Chegou-se a cogitar uma publicação através da Fundação Cultural Palmares, ainda em 1988, mas “o livro já havia se acostumado ao abandono. E só agora, quase 20 anos depois de escrito, acontece sua publicação”.1

Em seu mais recente livro, Poemas da recordação e outros movimentos (2008), aparecem os motivos da diáspora negra, da autoria feminina e da construção da identidade negra como temas recorrentes. Em seu exercício de expressão, o lirismo dos poemas de Evaristo trabalha explicitamente no sentido de instaurar uma retórica da resistência, dando especial atenção ao desmantelamento dos estereótipos em torno do negro e da mulher (e mais especificamente, da mulher negra) no imaginário brasileiro. Tal como já afirmou Eduardo de Assis Duarte, as constantes temáticas da obra de Conceição Evaristo a inserem em um continuum de autores afrodescendentes, para os quais as questões étnico-raciais não são apenas um aspecto da realidade brasileira a ser incorporado em sua escrita, mas uma experiência constitutiva de suas subjetividades, signo indelével da diferença corporificado por tais autores: Leia Mais

Maternidade tardia: mulheres profissionais em busca de realização plena – HEWLETT (REF)

HEWLETT, Sylvia Ann. Maternidade tardia: mulheres profissionais em busca de realização plena. Tradução de Grace Khawali. Osasco, SP: Novo Século, 2008. 287 p. Resenha de: SPONCHIADO, Justina Inês. A árida arte de conciliar carreira e plenitude nos vários âmbitos do viver. Revista Estudos Feministas v.19 n.1 Florianópolis Jan./Apr. 2011.

Doutora em Economia, Sylvia Ann Hewlett foi professora nas universidades de Cambridge, Columbia e Princeton; e fundadora presidente da ONG Center for Work-Life Policy. Autora de seis livros, articulista do New York Times, foi também a primeira mulher a presidir, nos anos 1980, o Conselho de Políticas Econômicas nos EUA. Vive em Nova York. Sua ação social dirige-se, sobretudo, a empresários e empresárias, apostando na formação de opinião e na construção de políticas que apoiem a família, na perspectiva de criar condições para que as mulheres possam conciliar carreira e vida.

Relativizando sua aposta irrestrita na família de modelo tradicional, colheremos elementos relevantes para as reflexões sobre relações de gênero, considerando a condição de mulheres profissionais heterossexuais. Depois do prefácio em que declara sua alegria de viver um casamento feliz e sua infinita paixão por ser mãe, expõe sua intensa luta para conciliar carreira e maternidade e para ter filhos mais tarde; sentimentos envolvidos ao sofrer um aborto de gêmeos iniciado durante um dia exaustivo e estressante de trabalho; críticas de colegas por engravidar, desviando-se do foco da carreira e do trabalho, e por insistir em ter [ainda] mais filhos. Ela conta como enfrentou – e confrontou – tudo isso. Leia Mais

História da Maria do Céu na terra CFEA – (REF)

CENTRO FEMINISTA DE ESTUDOS E ASSESSORIA. História da Maria do Céu na terra. Brasília: CFEMEA, 2009. Resenha de: FLEISCHER, Soraya. Revista Estudos Feministas, Vol. 18, No. 3, setembro-dezembro – 2010.

Há algumas décadas, os movimentos feministas, brasileiros e internacionais, vêm tentando desenvolver argumentos e tecnologias para tratar do tema do aborto, seja simplesmente falando do tema, seja intervindo em grande escala pela descriminalização e/ou pela legalização da prática. Muitas iniciativas foram experimentadas, com maior ou menor sucesso, principalmente em termos de eficiência da comunicação.

Chega-nos, agora, um material que me chamou excepcional atenção pela sua criatividade e singeleza. O Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA) e a Rede de Desenvolvimento Humano (REDEH), com o apoio da Safe Abortion Action Fund (SAAF) do Governo britânico, lançaram no final de 2009 o livreto História da Maria do Céu na terra. Em 32 páginas, o material contém um conto mezzo ficcional (à frente explicarei esse ponto); informações estatísticas sobre a realidade do aborto; razões vividas pelas mulheres para interromper uma gravidez; razões para se ser a favor do aborto legalizado; um glossário das palavras recorrentes; e uma listagem de referências bibliográficas. Leia Mais

Mujeres e imaginarios de la globalización (reflexiones para una agenda teórica global del feminismo) – AMORÓS (REF)

AMORÓS, Celia. Mujeres e imaginarios de la globalización (reflexiones para una agenda teórica global del feminismo). Argentina: Homo Sapiens Ediciones, 2008. 338 p. Resenha de: LEÓN, María Antonia García de. Celia Amorós, o la maestría de uma filosofa feminist. Revista Estudos Feministas, vol. 18, no. 3, setembro-dezembro – 2010, pp. 952-956.

No parece ocioso mencionar la llamada de atención en pro de la teoría que hace la conocida feminista mexicana, Marta Lamas, en una obra reciente,1 la cual se suma al esfuerzo de reflexión de las teóricas feministas, entre las cuales, sin duda, destaca la maestría de Celia Amorós, en este libro que reseñamos, como en tantas otros, de su ya fecunda producción. La ilustración es la fuente de la que bebe Amorós: la Ilustración francesa, en sentido estricto, y la ilustración que proviene del gran arsenal de lecturas clásicas y modernas que articula con sabiduría nuestra autora.

La distancia y la crítica son el quid del oficio intelectual. Sin crítica, ni balances, no avanza el conocimiento ni la causa feminista. La maestría de Amorós nos ofrece una excelente ración de todo ello. La obra que reseño es un auténtico compendio de autoras/es revisados y “digeridos” por un buen paladar, además está escrita con claridad expositiva y gracejo. ¿Se puede pedir más? Leia Mais

Prazeres dissidentes. – DÍAZ-BENÍTEZ; FIGARI (REF)

DÍAZ-BENÍTEZ, María Elvira; FIGARI, Carlos Eduardo (Orgs.). Prazeres dissidentes. Rio de Janeiro: Garamond, 2009. 600 p. Resenha de: NICHINIG, Claudia Regina. Entre a perversão e a dissidência: práticas sexuais, corpos e prazeres. Revista Estudos Feministas, vol. 18, no. 3, p. 943-945, setembro-dezembro – 2010.

Ao publicizar novas pesquisas sobre formas de sexualidade no Brasil, a partir de novos e velhos enfoques revisitados, Prazeres dissidentes demonstra a importância e a efervescência do campo. A coletânea lançada em setembro em Buenos Aires, em outubro em São Paulo e em novembro de 2009 no Rio de Janeiro é fruto do encontro de pesquisadores no Grupo de Trabalho “Corpos, desejos, prazeres e práticas sexuais ‘dissidentes’: paradigmas teóricos e etnográficos”, que aconteceu em Porto Alegre no ano de 2007, durante a VII Reunião de Antropologia do Mercosul (RAM).

Permeado por autores como Michel Foucault e Georges Bataille, considerados autores clássicos no estudo do erotismo e da sexualidade, e somadas as discussões teóricas levantadas por Judith Butler, principalmente no artigo de abertura da coletânea de Vitor Grunvald,1 que traz com propriedade a discussão acerca dos conceitos de abjeção, política da performatividade e lesbianidade, o livro se divide em quatro partes – “Corpos e interações de fronteira”, “Encontros ao avesso”, “Sociabilidades fluidas” e “Jogos proibidos” -, que revelam formas de sexualidade e busca de prazeres considerados marginais. Leia Mais

Igreja e educação feminina (1859-1919): uma face do conservadorismo – MANOEL (REF)

MANOEL, Ivan Aparecido. Igreja e educação feminina (1859-1919): uma face do conservadorismo. Maringá: UEM, 2008. 102 p. Resenha de: FONSECA, André Dioney. Religião, Estado e educação feminina. Revista Estudos Feministas v.18 n.3 Florianópolis Sept./Dec. 2010.

O chamado catolicismo ultramontano tem sido nas últimas décadas objeto de inúmeros estudos na área de história. É compreensível o interesse dos pesquisadores nesse projeto católico ao se considerarem os reflexos dessa autocompreensão em diferentes esferas da sociedade, em seu longo período de vigência (1800-1960). Em poucas palavras poderíamos afirmar que o ultramontanismo foi uma resposta da Igreja às ameaças que vinham se avolumando desde a ruptura das relações feudais e da ética católica, com a introdução do assalariamento, da ética mercantilista, da constituição dos Estados nacionais e da preponderância do poder civil sobre o religioso e, em especial, das transformações abruptas na esfera intelectual que abririam caminho, a partir do humanismo, à Reforma Protestante, ao Iluminismo, ao Liberalismo, ao materialismo dialético e ao socialismo.

Em face de todas essas perdas, no século XIX, a Igreja resolveu agir de maneira radical, provocando uma verdadeira agitação sociopolítica ao anunciar sua reação ao mundo moderno, condenando o capitalismo e suas teorias, bem como a esquerda em todas as suas vertentes. Em suma, o projeto político ultramontano estruturou-se em torno da rejeição à ciência, à filosofia e às artes modernas, condenando o capitalismo, a ordem burguesa, os princípios liberais e democráticos e todos os movimentos esquerdistas, como o socialismo e o comunismo. Leia Mais

Prazeres dissidentes – DÍAZ-BENÍTEZ; FIGARI (REF)

DÍAZ-BENÍTEZ, María Elvira; FIGARI, Carlos Eduardo (Orgs.). Prazeres dissidentes. Rio de Janeiro: Garamond, 2009. 600 p. Resenha de: NICHNIG, Claudia Regina. Entre a perversão e a dissidência: práticas sexuais, corpos e prazeres. Revista Estudos Feministas v.18 n.3 Florianópolis Sept./Dec. 2010.

Ao publicizar novas pesquisas sobre formas de sexualidade no Brasil, a partir de novos e velhos enfoques revisitados, Prazeres dissidentes demonstra a importância e a efervescência do campo. A coletânea lançada em setembro em Buenos Aires, em outubro em São Paulo e em novembro de 2009 no Rio de Janeiro é fruto do encontro de pesquisadores no Grupo de Trabalho “Corpos, desejos, prazeres e práticas sexuais ‘dissidentes’: paradigmas teóricos e etnográficos”, que aconteceu em Porto Alegre no ano de 2007, durante a VII Reunião de Antropologia do Mercosul (RAM).

Permeado por autores como Michel Foucault e Georges Bataille, considerados autores clássicos no estudo do erotismo e da sexualidade, e somadas as discussões teóricas levantadas por Judith Butler, principalmente no artigo de abertura da coletânea de Vitor Grunvald,1 que traz com propriedade a discussão acerca dos conceitos de abjeção, política da performatividade e lesbianidade, o livro se divide em quatro partes – “Corpos e interações de fronteira”, “Encontros ao avesso”, “Sociabilidades fluidas” e “Jogos proibidos” -, que revelam formas de sexualidade e busca de prazeres considerados marginais. Leia Mais

Antropólogas, politólogas y sociólogas (género, biografia y cc. sociales) – LEÓN; FÍGARES (REF)

LEÓN, María Antonia García de; FÍGARES, María Dolores Fernández. Antropólogas, politólogas y sociólogas (género, biografia y cc. sociales). Madrid (España): Plaza y Valdés S. L., 2008. 256 p. Resenha de PAULILO, Maria Ignez. Feminismo e disputas pela memória na Espanha. Revista Estudos Feministas v.18 n.3 Florianópolis Sept./Dec. 2010.

As últimas décadas do século XX colocaram em pauta o instante, o presente em contraposição ao “império do passado”. Contudo, as mesmas décadas que evidenciaram a dissolução do passado e sua celebração também trouxeram com força a expansão memorialística, com suas museificações e institucionalização de passados-espetáculos,1 e, no campo das relações sociais, as disputas pelas memórias. O passado e seus usos, bem como a construção dos acontecimentos e a institucionalização de algumas memórias em detrimento de outras passaram a ser importantes para diferentes grupos. Sobre isso Pierre Nora já chamava a atenção em 1978, dando conta de que o esfacelamento, a mundialização, o aceleramento e sua democratização, chaves para o entendimento do “breve século XX”, multiplicaram as memórias coletivas, os grupos sociais preocupados em preservar ou recuperar seus próprios passados.2 Essa preocupação com o passado, com a construção de uma memória para as mulheres feministas espanholas, parece ser o eixo central por onde se distribuem as questões e as discussões do livro Antropólogas, politólogas y sociólogas (género, biografia y cc. sociales), das autoras espanholas María Antonia García de León e María Dolores Fernández Fígares.

E esse, a nosso ver, constitui um dos principais motivos para apresentarmos esta obra às feministas brasileiras (e também aos feministas, convém não esquecer). É que esse tipo de preocupação não é comum no Brasil, ou seja, ver a importância heurística que tem a biografia das estudiosas feministas para compreendermos sua própria obra e o contexto em que foi escrita. Mas há uma importância mais primária: fazê-las aparecer como protagonistas na história da humanidade, pois, se dependêssemos da história e da imprensa oficiais, elas seriam esquecidas. Como diz Marina Subirats, autora do prólogo,3 poder e memória são inseparáveis e sem poder não se pode criar e legitimar um novo relato, uma nova maneira de ver a posição das mulheres no mundo. E sem memória fica difícil cumprir uma das principais etapas do pensamento científico crítico “a reflexividade”, à qual as autoras dão grande importância na medida em que sentem falta, na Espanha, de mentores que façam esse trabalho de apreciação, avaliação e ancoragem do conhecimento que está sendo produzido. Leia Mais

El Sufrágio – VASQUES (REF)

VASQUES, Maria L. Osta. El Sufrágio. Montevidéu: Obsur, 2006. 155 p. Resenha de: ZOMER, Lorena; VIANA JR, Mário Martins. Por uma história social das mulheres: os movimentos sufragistas uruguaios. Revista Estudos Feministas v.18 n.2 Florianópolis May/Aug. 2010.

Há aproximadamente vinte anos iniciavam-se os trabalhos do Observatório do Sul (OBSUR), que tinham como pretensão investigar as atividades desenvolvidas pelas mulheres uruguaias. Nas mais diversas áreas das Ciências Humanas, mais do que temáticas e objetos de pesquisa, o OBSUR buscava inclusive transformar as próprias pesquisadoras em sua trajetória investigativa. Tratava-se, portanto, de um duplo trabalho em que objeto e pesquisadora eram os alvos e do qual o presente livro de Maria Laura Osta é tributário ao se apresentar como o primeiro número da série de Cadernos do OBSUR.

Calcada em uma perspectiva de História Social, essa obra, ainda que se diferencie da literatura de gênero, tem como principal pretensão enxergar as mulheres uruguaias como sujeitos ativos com importante participação no avanço das conquistas políticas durante fins do século XIX e início do XX. Essas mulheres modificaram os papéis sociais femininos e imprimiram importantes transformações no seio da sociedade uruguaia, como a conquista do voto em 1932. Leia Mais

Assassinato de mulheres e Direitos Humanos – BLAY (REF)

BLAY, Eva Alterman. Assassinato de mulheres e Direitos Humanos. São Paulo: Ed. 34, 2008. 248 p. Resenha: RAMOS, Maria Eduarda. Homicídio de mulheres: pesquisa e proposta de intervenção de Eva Alterman Blay. Revista Estudos Feministas v.18 n.2 Florianópolis May/Aug. 2010.

O livro Assassinato de mulheres e Direitos Humanos, da socióloga Eva A. Blay, apresenta a extensa pesquisa feita pela autora e por sua equipe. Com relação aos julgamentos de tentativas ou homicídios de mulheres, a autora questiona: “Será que nada mudou na passagem dos séculos XX para o XXI?” (p. 22). Sua pesquisa buscou entender o contexto de violências contra mulheres que resultam em mortes.

A pesquisa teve três focos objetivos: pesquisar os tipos de tentativa ou homicídio em que as mulheres são vítimas; pesquisar os homicídios ou tentativas em todas as faixas etárias; propor políticas públicas transversais que atuem no aspecto de hierarquia de gênero. Desde o início do livro, percebe-se a preocupação da autora com a intervenção no sentido de não apenas investigar, levantar informações ou teorizar, mas também de propor possíveis ações preventivas para evitar a violência contra mulheres. Trata-se de assunto pertinente, já que atualmente há inúmeras discussões sobre a Lei 11.340 (para coibir a violência doméstica e intrafamiliar contra mulheres) e a implementação de políticas públicas que não fiquem apenas na punição aos/às autores/as de violência. Leia Mais

Nunca você sem mim – TEIXEIRA (REF)

TEIXEIRA, Analba Brazão. Nunca você sem mim: homicidas-suicidas nas relações afetivo-conjugais. São Paulo: Annablume, 2009. 192 p. Resenha de: COSTA, Patrícia Rosalba Salvador Moura; GROSSI, Miriam Pillar. Violências de gênero: assassinos/as impiedosos/as ou enlouquecidos/as pela dor do amor? Revista Estudos Feministas v.18 n.2 Florianópolis May/Aug. 2010.

Em tempos de Lei Maria da Penha, a violência de gênero ganha maior visibilidade junto à sociedade civil e reconhecimento, por parte do Estado brasileiro, dos diversos problemas que são gerados em consequência de tais atos.

Há muito que pesquisadoras e a militância feminista se debruçam sobre o tema para mostrar as faces e interfaces das variadas violências que atingem as mulheres, e para marcar um espaço de luta em busca de proteção dos direitos humanos, direitos das mulheres. Várias foram as conquistas no campo das políticas públicas: criação das delegacias das mulheres, em 1985; promulgação da Lei Maria da Penha (Lei 11.340), em 2006;1 e, em 2009, promulgação da nova Lei do crime de estupro (Lei 12.015),2 que altera a redação de alguns crimes sexuais previstos no Código Penal Brasileiro. Essas e outras alterações têm contribuído para que a violência perpetrada contra as mulheres saia do espaço privado e se insurja na tela dos espaços públicos com tonalidades de indignação e cores de esperança. Esperança de que essas práticas deixem de fazer parte das estatísticas institucionais e que o reconhecimento dos direitos das mulheres esteja na pauta de toda a sociedade. Leia Mais

Cultura, gênero e infância: nos labirintos da história – NASCIMENTO; FARIA GRILLO (REF)

NASCIMENTO, Alcileide Cabral do; FARIA GRILLO, Maria Ângela de. Cultura, gênero e infância: nos labirintos da história. Recife: Editora Universitária UFPE, 2008. 282 p. Resenha de: SOARES, Ana Carolina Eiras Coelho. Ariadne da infância e do gênero: deslindando labirintos culturais. Revista Estudos Feministas v.18 n.2 Florianópolis May/Aug. 2010.

Publicar uma coletânea de artigos é amalgamar desejos e inquietações. Fruto de pesquisas e encontros do Grupo de Estudos em História Social e Cultural (GEHISC) sediado na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), o livro Cultura, gênero e infância: nos labirintos da história consolida a ideia de que pesquisas são necessariamente a combinação entre paixão, rigor teórico-metodológico e esforço coletivo de reflexão e debate. O livro composto de 14 artigos e dividido em três partes abarca diferentes aspectos e olhares sobre o universo da cultura, gênero e infância.

Na primeira parte, “Cultura e cidade”, três autores dão conta do entendimento dos espaços urbanos como lugares de experiências humanas e de grupos heterogêneos que disputam constantemente espaços e poder. As cidades são percebidas como invenções sociais, pois se constituem e se representam através das relações entre o homem e a natureza, a concretude do ambiente visível e as sensibilidades sutis que se constroem no trânsito dos sujeitos nos espaços.

O texto de Durval Albuquerque vem, em uma defesa apaixonada da Nova História Cultural, reiterar a necessidade de um novo olhar para os saberes e duplos do conhecimento histórico, as brechas na teia de Ariadne, que a História tradicional acreditava serem fiapos sem relevância na trama. Ao analisar o livro de José Saramago O homem duplicado,1 o autor tece uma série de considerações e questionamentos epistemológicos da Historiografia brasileira. As subjetividades, os novos métodos e as novas questões mostram que a renovação trazida pela História Cultural é fundamental para o escrutínio de novas e antigas fontes e para interpretações diversas, cujos duplos de si trarão sempre a possibilidade de novas investigações. No tom efervescente e conciso das palavras, o autor instiga e desafia o leitor a buscar na trama do passado respostas, que sempre serão novas perguntas, no desafio axiológico da pós-modernidade.

Os caminhos da Rua Nova no centro de Recife em 1920 e seus transeuntes peculiares surgem na escrita do artigo de Sylvia Costa Couceiro. O espaço urbano se revela como propõe Richard Sennet em Carne e pedra,2 constituído de cimento e sangue, singrando entre os muros e o asfalto. A Rua Nova de origem velha do século XVIII encarna o símbolo de uma população que almejava o progresso, a esperança e as mudanças da modernidade. À narrativa histórica mescla-se boa dose de lirismo e criatividade. Personagens são compostos e recompostos no cenário urbano, e o leitor embarca nas páginas de uma divertida narração/análise das figuras, hábitos e costumes que frequentavam a Rua Nova. No entanto, tal recurso narrativo não diminui o compromisso com o rigor teórico-metodológico e uma minuciosa pesquisa de diversas fontes. Na cena urbana moderna personagens circulam pelo espaço como num palco: querem observar e serem observados. A rua é, como bem sintetiza Walter Benjamin, “as vitrines da modernidade”.3

Para pensar essa modernização e seu caráter excludente e hierárquico, o artigo de Luís Manuel Domingues do Nascimento traz à baila os sacrifícios que a cidade de Recife sofre na década de 70 do século XX, ao custo de um discurso modernizador do espaço urbano. Para o autor, condensada ao discurso do progresso, Recife expandiu-se sob a égide de uma lógica que nega sua memória e suas experiências históricas. A crítica assume tom de denúncia ao analisar os problemas e deficiências consequentes dessa modernização, em especial com relação à burocratização e tecnocratização das autoridades e ao aumento das favelas e classes baixas dependentes de um sistema administrativo incapaz de solucionar as crises instaladas nas áreas públicas da saúde, moradia e educação.

Em “Representações, cultura política e sexualidade na seara dos gêneros” reverberam as imagens sociais e culturais de Pernambuco. Personagens e linguagens típicos consolidados no imaginário nacional – como a literatura de cordel e o cangaceiro – são perscrutinados em análises atentas às construções históricas de múltiplas representações, à diversidade de discursos e às possibilidades de interpenetrações na construção das narrativas históricas.

Maria Ângela de Faria Grillo apresenta de maneira bastante didática inicialmente uma breve retrospectiva historiográfica de importantes estudos realizados no campo de gênero, para então expor sua análise das representações construídas sobre o homem e a mulher, e suas relações na literatura de cordel na primeira metade do século XX.

A dificuldade em lidar com as transformações do mundo moderno tendem a cristalizar o papel da mulher dona de casa/mãe ao mesmo tempo que revelam as novas situações e valores sociais. Regras sobre casamento, imagens de Eva e Maria e lições de comportamento, preconceitos e ambiguidades da época transparecem no estudo historiográfico dos versos de cordel. Imagens e representações femininas como peças-chave para a compreensão de determinados modelos e costumes sociais, a literatura de cordel é o manancial de estudo fortemente pesquisado por Grillo.

Antonio Silvino é a figura explorada através dos jornais no artigo de Rômulo José F. de Oliveira Junior. Cangaceiro, prisioneiro a maior parte de sua vida, “macho nordestino”… as representações em torno do masculino constroem-se a partir de um personagem sólito e presente no imaginário popular pernambucano, ratificando modelos e convenções da sociedade. Homem fora da lei e ao mesmo tempo preocupado com a aparência e a elegância, Antonio Silvino foi alvo de intensos debates na imprensa, cujo discurso é esmiuçado e interpretado detalhadamente pelo autor.

As imagens de ser masculino do sertão nordestino são acompanhadas em seguida pela “Cultura da beleza: práticas e representações do embelezamento feminino”, de Natália Conceição Silva Barros. A autora levanta importantes questões, alicerçada em fontes valorizadas pela História Cultural, tais como revistas, jornais, memórias e obras literárias. Ao longo do texto busca compreender as maneiras como as recifenses e os recifenses reconheciam, controlavam e moldavam seus corpos entendidos aqui como um território “biocultural”, onde as relações de poder entre os gêneros feminino e masculino se explicitam em um campo de forças diferenciado nos discursos sobre a beleza e o embelezamento dos corpos.

O culto à beleza e o consumo de produtos que realçariam e/ou consertariam traços de fealdade fizeram parte das estratégias do mercado e da modernização dos hábitos e costumes da época.

Saindo dos anos 20, o leitor embarca em uma Recife feminina insurgente dos anos pré-golpe militar entre 1960 e 1964. Juliana Rodrigues de Lima Lucena investiga a intelectualidade feminina através de três eminentes figuras pouco ou nada lembradas pela historiografia tradicional: Anita Paes Barreto, do Movimento de Cultura Popular; Geninha da Rosa Borges e Diná de Oliveira, do Teatro de Amadores de Pernambuco. Os movimentos artísticos e intelectuais que surgiram na época, a partir das discussões sobre novas ideias e modelos sobre cidadania e sociedade, tinham o intuito tanto de atingir uma parcela marginalizada da população quanto de criar uma atmosfera propícia a uma remodelação social com a inclusão na vida política dessa parcela da população.

O último artigo dessa segunda parte da coletânea lida com uma questão da História do tempo “recentíssimo”: a violência e a intolerância contra mulheres, adolescentes e crianças exploradas sexualmente no município de Serra Talhada no século XXI. Os registros de estupro, de lesões corporais, deformações e homicídios na região entre 2004 e 2006 são uma marca que, embora alarmante, não mobilizou ainda o suficiente o poder público para criar na região, por exemplo, uma delegacia feminina. Esse artigo denuncia uma situação insustentável nos tempos atuais que demonstra a permanência de discursos sexistas, preconceituosos e homofóbicos, além de perigosas práticas de violência cuja legitimidade se encontra em representações incrustadas socialmente – dados vultosos de uma realidade violenta cuja luta por mudanças passa necessariamente pela denúncia, discussão e mobilização para o exercício da tolerância e do respeito ao Outro.

Na última parte do livro, “Infâncias, histórias e rebeldias em Pernambuco”, a atenção é voltada para a infância. Enjeitados, trabalho de rua e doméstico e o cotidiano infantil são os temas de pesquisa presentes. Através de uma Pernambuco criança, percebida no limiar entre a ordem e a transgressão, os artigos demonstram os espaços de inserção e de exclusão da criança bem como as diversas políticas sociais em torno da infância desenvolvidas no Estado. Ressalto que, nesse momento da coletânea, a presença de Alcileide Cabral do Nascimento pode ser amplamente observada. Dos seis artigos a autora assina a coautoria de mais quatro trabalhos, além de seu próprio trabalho que abre essa terceira parte. Apenas o último artigo, de Humberto Miranda, não conta com a colaboração de Alcileide. Tais trabalhos podem ser interpretados como desdobramentos de um esforço coletivo de pensar a temática da infância, violência, rejeição, abandono e estratégias do Estado e da sociedade, ao longo da história de Pernambuco, para conformar e disciplinar essa população pobre, órfã e marginalizada.

Intolerância, rejeição e abandono. O final da segunda parte da obra consegue se articular perfeitamente, e infelizmente – uma vez que as permanências de uma zona sombria e tortuosa de nossa história social e cultural se evidenciam -, com o primeiro artigo da terceira parte. “A Roda dos Enjeitados” é cenário do trabalho de Alcileide Cabral do Nascimento sobre as práticas de infanticídio e/ou esquecimento dos nascimentos não desejados. O discurso legitimador da roda encontra raízes na manutenção da ordem social, encobrindo, por exemplo, atitudes que depusessem contra a honra de “moças de famílias honestas ludibriadas” ou tentadas pelos “pecados da carne”; os casos de pobreza extrema; as doenças; a viuvez e seus impedimentos morais; a loucura e/ou a prisão e seus impedimentos sociais.

Quaisquer que fossem os motivos, a Roda dos Enjeitados chancelou os desvios do padrão social constituído na ordem colonial. Qual o destino dessas crianças? De que maneira inseri-las socialmente? São as questões do artigo de Rose Kelly Correia de Brito, que analisa os mecanismos pelos quais o Estado, entre 1831 e 1860, buscou disciplinar, controlar e conformar as meninas pobres enjeitadas e órfãs do Recife. A educação elementar e o trabalho doméstico são comumente vistos como caminhos possíveis de utilidade social dessa população cujo destino parecia preocupar as autoridades, dada sua potencialidade perigosa, caso permanecesse à margem da sociedade. Conformadas ao lar e aos trabalhos domésticos, as moças eram disciplinadas dentro dos parâmetros sociais aceitáveis ao mesmo tempo que isso lhes garantia um meio de sustento, o que desoneraria o Estado. Entre os obstáculos ressaltados sobre esse projeto estavam a própria lentidão e burocracia do Estado em criar condições efetivas para a educação dessas moças, além do preconceito e repúdio das famílias em pagar por serviços que poderiam explorar das escravas. A questão racial interferiu, inclusive, na condução dos mecanismos de controle em cercear a vida social, na qual mulheres brancas tiveram claras vantagens em relação ao tratamento dispensado às mulheres pardas e negras.

Os dois artigos subsequentes, de autorias respectivas de Hugo Coelho Vieira e Wandoberto Francisco, abordam as maneiras como o Arsenal de Guerra de Pernambuco e o Arsenal da Marinha do Recife serviram como espaço de serviços educacionais e militares para populações de órfãos, pobres e renegados em meados do século XIX. Remontando à genealogia desses locais, os autores seguem a trilha da expansão desses trens militares, que inicialmente serviriam apenas como aparatos burocráticos de armazenamento de materiais, e cujas funções e ofícios aumentaram historicamente, conforme a demanda de serviços da cidade e dos materiais de guerra. A formação, o tratamento dispensado no processo educativo e as interdições sociais compõem um cenário de lutas e contradições entre o discurso dessas instituições e a realidade dispensada a essas populações.

Wendell Rodrigues Costa preocupou-se com a formação e a inserção social de meninos e jovens pobres, enjeitados e escravos no mercado de trabalho urbano em Recife no século XIX. A prática de aprendiz aparece como uma estratégia política de combate à criminalidade. Aprender um ofício afastaria esses jovens da ociosidade e da possível marginalidade. A instrução desses moços era feita em espaços escolares permeados pela discriminação de cor e status social, onde, por exemplo, a cobrança de taxas de matrícula ou excluía as camadas mais pobres do acesso à educação, ou instituía a prática do “apadrinhamento”, o que reforçava a ordem social marcada por privilégios.

Através desses três artigos, pode-se perceber que estudar no Brasil dependia da condição social das famílias e que os estabelecimentos destinados a aprendizes pobres sofriam com um menor auxílio e aparato do governo.

Humberto Miranda fecha a terceira parte dessa coletânea pensando o cotidiano dos meninos confinados em instituições supostamente correcionais de Recife entre 1927 e 1937. Entre os abusos e transgressões cometidas pelos agentes penitenciários da Casa de Detenção e a modernização desse espaço no início do século XX com a criação, em 1932, do Instituto Profissional 5 de Julho, posteriormente chamado de Abrigo de Menores, buscou-se ressocializar e mesmo curar tais crianças através dos mesmos mecanismos vistos nos demais artigos dessa parte: estudos profissionalizantes, que seriam para o governo a resposta para a inserção social desse grupo marginal.

Há uma triste conclusão histórica ao final dessa leitura: a pobreza sofre duplamente, tanto pela sua condição cotidiana quanto pelo tratamento preconceituoso dispensado pelas autoridades encarregadas em lidar com as estratégias que deveriam diminuir e mesmo sanar essa questão social.

É preciso ressaltar que toda publicação possui as limitações da materialidade. O livro não inclui, por exemplo, questões sobre as representações da maternidade – fundamentais nas discussões de gênero e infância -, pois, se o fizesse, certamente o volume de páginas acabaria por inviabilizar sua publicação. A árdua tarefa de edição não pode prescindir de cortes e moldes. Cabe escolher e esculpir a obra com sentido e sentimento. Não obstante, apresentando ao público leitor a consistência e seriedade das pesquisas desenvolvidas pelo GEHISC, as organizadoras tranquilizam-no com a promessa de “gestação” de mais frutos dessa seara. E assim o primogênito desse grupo, Cultura, gênero e infância…, nasceu sob o prisma das interrelações entre cidades, representações femininas e masculinas e o mundo infantil.

Alcileide Cabral do Nascimento e Maria Ângela de Faria Grillo, organizadoras do livro, desejam que “o leitor se perca e se encontre nos labirintos da história e da beleza de compreender os duplos de si” (p. 9). Esse livro permite que os duplos se transformem em múltiplos significados nas possibilidades de compreensão de falas e silêncios, cujas marcas são sensíveis às narrativas das pesquisas contidas na obra.

Notas

1 SARAMAGO, 2002.

2 SENNET, 2001.

3 BENJAMIN, 1975.

Referências

BENJAMIN, Walter. A modernidade e os modernos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.         [ Links ]

SARAMAGO, José. O homem duplicado. São Paulo: Companhia das letras, 2002.         [ Links ]

SENNET, Richard. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro: Record, 2001.         [ Links ]

Ana Carolina Eiras Coelho Soares – Universidade Federal de Goiás.

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Mais ao sul – VIDAL (REF)

VIDAL, Paloma. Mais ao sul. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2008. 128 p. Resenha de: ARRUDA FILHO, Raul J. M. Paloma Vidal e as mulheres mais ao sul, mais próximas de si mesmas. Revista Estudos Feministas v.18 n.2 Florianópolis May/Aug. 2010.

Escrever qualquer um consegue. Raros são aqueles que produzem literatura de qualidade. Isto é, conseguem dominar a linguagem, obtêm a contenção exata no desenvolvimento do enredo e, sobretudo, o poder de impacto de um golpe bem encaixado no queixo do leitor. Cortázar comparava a literatura com o boxe: no romance, o escritor vence por pontos; no conto, por nocaute.

Paloma Vidal (nascida em Buenos Aires, em 1975, e vivendo no Brasil desde os dois anos de idade) é uma dessas raras exceções. Os excelentes contos de A duas mãos (Rio de Janeiro: 7Letras, 2003) mostraram um pouco do seu talento – confirmado agora com a publicação de Mais ao sul (Rio de Janeiro: Língua Geral, 2008).

Em A duas mãos, livro que recebeu boas resenhas de Beatriz Resende e Flávio Carneiro, as personagens femininas estão em destaque, mulheres que tentam sobreviver em um mundo adverso, quase sempre controlado por homens ausentes, pouco preocupados em compreendê-las. Como reação a esse abandono afetivo, a esse distanciamento, surge um mecanismo compensatório: a construção de um cenário que nunca se tornará real, mas que ameniza o desamparo (“Contradança”, “A ver navios”, “A duas mãos”).

Mais ao sul segue esse projeto, com vários acréscimos. Procurando retratar mulheres desenraizadas, habitantes de um mundo feérico e que, por inúmeros motivos, proclamam que a felicidade reside mais ao norte, Paloma Vidal, com coração pulsando mais ao sul, vai tecendo suas narrativas com tranquilidade, certa de que, no momento adequado, haverá de atingir o ponto exato, expor a fratura e a dor.

Na primeira parte do livro, o longo e dramático “Viagens” revela como esses temas estão à flor da pele, a sensação de que falta um chão para plantar raízes, as vidas estraçalhadas pelas complicações da política latino-americana: “Esse navio vai cruzar o Atlântico até Barcelona, onde nossa amiga vai morar, a milhares de quilômetros de distância de seu país, onde seu filho caçula foi seqüestrado e assassinado pelo regime militar”. A narradora, que procura conter a ansiedade entre tantos escombros, se ocupa em relatar a recuperação de parte da história familiar que nunca compartilhou. Ao mesmo tempo, com as entranhas corroídas pela tristeza, sabe que, independentemente do que possa descobrir, é preciso sobreviver no exílio constante, procurando por um lugar onde possa se sentir em casa.

Os outros contos são mais curtos, poucas páginas. Os mais significativos são três. Em “A aula de tango”, os vínculos não nomeados estabelecem, através do interdito, a sensação crescente de que é a falta que completa o destino dos personagens. “O retorno” relata/reata a vontade de preencher esses vazios (“Deu um passo adiante erguendo a mala e equilibrou-se na soleira da porta, num limiar entre dois mundos”), a luta sem quartel entre o desejado e o possível, o deslocamento entre os dois aeroportos construindo uma ponte entre o passado e o futuro. “Desassossego” é uma narrativa mais tensa, intensa, a história de uma mulher que põe “a mesa para o seu fantasma”, aceitando o embate contra as forças que a ameaçam e, ao mesmo tempo, a acariciam: “Andou por várias horas, sem vontade de se proteger, e só voltou para casa quando seus pés o exigiram. Naquela noite, esperaria seu fantasma como se espera um convidado, uma visita desejada”. Embalada pela nostalgia das delícias que deixou de provar, abre as portas da casa e derruba as fronteiras demarcadas pelo proibido.

Os contos de Mais ao sul, histórias repletas de aflição, relatos de mulheres que, de uma forma ou de outra, aguardam pelo tempo de partir ou de encontrar a si mesmas, constituem um daqueles momentos literários em que a voz feminina se pronuncia com clareza, sem reter sentimentos, sem fazer concessões. Ao mesmo tempo, como que a lembrar as duas faces da mesma moeda, em alguns momentos Paloma Vidal reatualiza o mito de Cassandra, vidente condenada a prever um futuro em que ninguém acredita.

Por último, cabe destacar uma característica da prosa de Paloma Vidal: a publicação de várias versões de seus contos, muitas vezes suprindo parágrafos, alterando pequenos detalhes, lapidando o texto. Exemplos desse “work-in-progress” são “Desassossego” que, ligeiramente modificado, foi publicado com outro título (“A espectadora”) na antologia A visita (São Paulo: Barracuda, 2005); “Viagens”, que sofreu grandes mudanças depois de publicado inicialmente em Paralelo – 17 contos da nova literatura brasileira (Rio de Janeiro: Agir, 2004); “Mundos paralelos”, publicado em 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (Rio de Janeiro: Record, 2004), que se transformou em “O retorno”.

Raul J. M. Arruda Filho – Universidade Federal de Santa Catarina.

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Uma história do corpo na Idade Média | Jacques Le Goff e Nicolas Truong

LE GOFF, Jacques; TRUONG, Nicolas. Uma história do corpo na Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. 207 p. Tradução: Marcos Flamínio Pires. Revisão técnica: Marcos de Castro. Resenha de ROIZ, Diogo da Silva. O corpo no Ocidente Medieval. Revista Estudos Feministas v.18 n.2 Florianópolis May/Aug. 2010.

O corpo está no centro de toda relação de poder.
Mas o corpo das mulheres é o centro, de maneira imediata e específica.
1

Desse modo, Michelle Perrot, em 1994, sintetizava as relações de poder que mediavam estreitamente os debates sobre ‘gênero’ na Europa. Muito embora Jacques Le Goff apenas circunstancialmente houvesse tratado do assunto, com Uma história do corpo na Idade Média, que foi escrito em parceria com Nicolas Truong, os autores ofereceram uma bela contribuição para o entendimento desse tema na Civilização do Ocidente Medieval. Leia Mais

Gerações, família, sexualidade | Gilberto Velho e Luiz Fernando Duarte

Os organizadores deste livro já são conhecidos dos cientistas sociais no Brasil. Tanto Gilberto Velho quanto Luiz Fernando Duarte representam uma parte importante da antropologia urbana brasileira e foram os responsáveis por esta obra. Além deles, contribuíram para o livro Myriam Moraes Lins de Barros, Jane Russo e Maria Luiza Heilborn, também autoras bastante conhecidas dos cientistas sociais.

Inicialmente, os autores ressaltam a importância do tema para a antropologia urbana, citando a Escola de Chicago e a antropologia social britânica como fontes importantes para a discussão. Também destacam a discussão interdisciplinar, principalmente através da psicologia, como uma rica contribuição para esses debates.

O texto trata das transformações no âmbito da sexualidade e da família, enfocando prioritariamente as mudanças sociais referentes a gênero e gerações. Tal temática já vem sendo abordada de forma interessante por autores como Michel Bozon, cientista social francês que tem produzido principalmente com Maria Luiza Heilborn.

O texto “Sujeito, subjetividade e projeto”, de Gilberto Velho, aborda uma discussão que o autor já faz desde a década de 1980. Velho – que cita Alfred Schutz e George Simmel como fontes importantes do seu trabalho – apresenta seu objeto de investigação, que são as trajetórias individuais dos sujeitos e as gerações. Isso porque analisa hoje a geração dos que seriam filhos dos seus pesquisados do passado. Sua preocupação com a temática aparece há muito tempo, desde quando elaborou sua tese de doutorado. Só que neste texto fica explícito o que tem procurado investigar: o que muda nessas gerações, principalmente através dos “objetivos e metas, […] valores e autopercepções de individualidade e subjetividade” (p. 9).

O autor aponta para mudanças significativas dos sujeitos e suas relações consigo mesmo e com aquilo que ele chama de “ethos psicologizante” (grifo do autor). Curiosamente, localiza nos estoicos esse processo sobre a individualização dos sujeitos, mas, devido à brevidade do artigo, não chega a aprofundar seus argumentos. No fim do artigo, o autor estabelece as relações da sua pesquisa com países como Portugal e Estados Unidos, além de citar alguns pesquisadores da mesma temática, como já foi apontado por Simmel. Sem apresentar grandes novidades, o artigo faz uma retrospectiva do que o autor produziu até os dias de hoje.

O texto de Luiz Fernando Dias Duarte – intitulado “Família, moralidade e religião” – aponta para a complexidade da administração da vida privada nas diferentes camadas sociais da vida urbana no Brasil. Há, conforme o autor, uma oposição entre os valores como religião, família, moralidade e, principalmente, sexualidade na modernidade. Três interessantes questões vêm sendo estudadas por ele, junto a camadas populares, são elas: a) há formas de conjugalidade diferentes de modelos tradicionais contrastando com formas que reforçam padrões de casamento tradicionais; b) existe um aumento da individualização da sexualidade, ao mesmo tempo que existe uma ampliação sobre seu controle; e c) ocorre um aumento da adesão às religiosidades específicas de certos segmentos, simultaneamente à diminuição da religiosidade e da crença em jovens. Para o autor, isso tem relação com o aumento do subjetivismo.

Segundo Duarte, não existe uma diferença entre camadas sociais sobre essas alterações de moralidade. Assim, tanto camadas médias superiores quanto camadas populares podem oscilar entre esses padrões. Uma pista interessante sugerida por Duarte e que pode contribuir com as pesquisas sobre essa temática é que, independentemente dos diferentes níveis de camadas sociais, o processo de individualização também é importante presença na constituição da singularidade de camadas sociais de baixa renda. Esse fato é muitas vezes negligenciado por pesquisadores que diferenciam as classes sociais pelas distâncias sociais econômicas entre elas.

O autor cita que dentro de camadas médias e letradas existe uma concepção de que ser moderno é estar mais atento às mudanças de comportamentos de sexualidade e relativos – controle de natalidade, mais especificamente. Aqui, mesmo que não tenha sido citado, é possível comparar ao clássico texto de Giddens sobre A transformação da intimidade.1

A contribuição de Duarte aqui é apontar de forma significativa as tensões sobre as disposições “liberais” e as “morais”, mas não fica claro como estas se constituem no universo social desses grupos sociais. Ele utiliza uma categoria que curiosamente chama de “desentranhamento” (p. 23) e que é uma das responsáveis por compreender as mudanças sociais na vida cotidiana.

O autor ao final revela que a sua proposta foi de, através do conceito de cismogênese (abordado de forma muito interessante em seu texto), encontrar elementos teóricos para compreender as “tensões contrastivas” que se apresentam para esses grupos, principalmente a partir da experiência religiosa.

No texto “Três gerações femininas em famílias de camadas médias”, Myriam Moraes Lins de Barros aborda as transformações sociais e de gênero advindas do envelhecimento da população. O estudo enfocou principalmente as mulheres, por meio de 24 entrevistas. Foram escolhidas mulheres nascidas nas décadas de 1940 e 1950, devido às transformações sociais que vão desde o casamento até o trabalho ocorridas para essas gerações.

A autora ressalta a importância dos movimentos sociais da década de 1960 para a “configuração dos valores individualistas” (p. 48). Ela deixa claro que seu interesse é descobrir formas psicológicas de introjeção dos valores individualistas. Uma leitura à primeira vista demonstra forte influência da psicologia, uma marca de todos os trabalhos desta obra. Myriam de Barros ainda aponta para a importância de se entenderem as relações de gênero nas dinâmicas interacionais.

Uma das principais mudanças, segundo a autora, é sobre a compreensão de conjugalidade para as mulheres entrevistadas, que se diferenciou a partir das gerações pesquisadas. A autora identificou tensões entre os grupos pesquisados, principalmente atreladas às diferenças geracionais. O processo de individualização foi fundamental para que as entrevistadas pudessem estabelecer novas relações com seus parceiros, assim como com suas famílias.

No texto intitulado “A sexologia na era dos direitos sexuais: aproximações possíveis”, de Jane Russo, a temática é a politização dos movimentos sociais sobre a sexualidade. Ela inicia falando do movimento gay e sua articulação para tirar a homossexualidade do rol das perversões.

A autora faz uma constatação: houve, simultaneamente, uma politização das sexualidades divergentes e uma medicalização da sexualidade heterossexual. Ela revela que a preocupação com a sexualidade surge na passagem do século XIX para o século XX com estudiosos, dentre eles talvez o mais conhecido seja Havelock Ellis. Essas considerações são claramente influenciadas por Foucault, citado pela autora em diversos momentos. Um apontamento trata da discussão de Russo sobre a despatologização dos chamados desvios sexuais, a partir do discurso sobre os direitos sexuais. O interessante é que, ao mesmo tempo que isso acontece, existe uma crescente disciplinarização da sexualidade dos casais heterossexuais.

A autora apresenta um quadro com datas e acontecimentos políticos significativos para a discussão sobre os movimentos sociais que lutaram contra a medicalização da sexualidade, como a Revolta de Stonewall, por exemplo, em 1969. Aqui vale lembrar o recente livro intitulado Preconceito contra homossexualidades: hierarquia da invisibilidade,2 que faz uma importante retrospectiva do movimento gay nos Estados Unidos e no Brasil.

O que a autora revela é que começa a haver um levantamento de novas condutas da sexualidade para os casais heterossexuais, principalmente as defendidas como ideal de saúde e bem-estar. Assim como Michel Bozon,3 ela cita o surgimento do Viagra como a inauguração da medicalização da sexualidade. O curioso é que, com o lançamento desse medicamento, aumenta o conceito de disfunção erétil como um problema de saúde pública nos Estados Unidos, atingindo 52% dos homens entre 40 e 74 anos, ou seja, existe uma orientação da sexualidade que passa por uma forma de medicalização dela.

No último texto, intitulado “Homossexualidade feminina em camadas médias no Rio de Janeiro sob a ótica das gerações”, Maria Luiza Heilborn aborda – em uma etnografia realizada em sua tese de doutoramento no Rio de Janeiro com mulheres homossexuais – fortes características de uma valorização da conjugalidade. A autora se propõe a investigar as gerações e a maneira como as suas entrevistadas apresentavam-se em relação à própria orientação sexual. Revela que sua preocupação não está relacionada com a identidade sexual, mas é inegável que essa discussão a tangencia em todo o seu texto. Ela elabora uma interessante definição de conjugalidade, centrando-a principalmente em um tipo de relação estabelecida entre os companheiros, independentemente de serem heterossexuais ou homossexuais. Ainda assim, talvez esse conceito pudesse ser mais bem descrito, pois, em caso de pesquisas, a ideia de “não conjugalidade” dificulta uma distinção, por exemplo, de uniões estáveis para namoros com casais que não coabitam e também se relacionam afetiva e sexualmente. Curiosamente, em sua atual pesquisa, a autora identificou que as mulheres recusaram o modelo de masculinidade lésbica.

A análise é relativa à sexualidade como uma biografia, citando John Gagnon, que tem sua primeira obra publicada no Brasil em 2006, intitulada Uma interpretação do desejo: ensaios sobre o estudo da sexualidade.4 Tal perspectiva tem encontrado forte amparo nos pesquisadores das ciências sociais, principalmente na Europa e no Brasil. O estudo parte do que Gagnon chama de scripts sexuais: uma relação entre perspectivas sociais, interpessoais e intrapsíquicas; uma teoria complexa, mas de grande contribuição para o campo de conhecimento da sexualidade. Heilborn ainda aponta que os scripts sexuais podem ser úteis para compreender as nuances cada vez mais significativas da orientação sexual, não como algo fixo, mas sim fluido. Aqui é clara uma influência do pensamento queer de Butler, mesmo sem ser citado.

A autora aborda ainda que existem poucas produções sobre homossexualidade feminina no mundo acadêmico nacional, mas que aparecem já algumas teses e dissertações relativas ao tema. Isso teria relação com a imbricação entre sexualidade e gênero. A visibilidade é muito maior entre homens gays do que entre mulheres. A autora revela que a conjugalidade acaba sendo uma preferência das lésbicas, devido à sua constituição caracteristicamente atribuída ao universo feminino.

A obra analisada apresenta contribuições interessantes em relação à temática, principalmente da sexualidade e do gênero, passando pela discussão sobre família e gerações. Mas o que chama realmente a atenção é a influência do processo de individualização sobre os sujeitos, que, na maior parte dos artigos, se faz presente. Essa discussão é um dos principais objetos da psicologia, especialmente da psicologia social. Mas o que podemos identificar é que existe aqui um claro diálogo interdisciplinar que está presente nos trabalhos dos autores e da antropologia que eles abordam.

Os artigos apresentam, na maior parte das vezes, uma contribuição importante para as discussões sobre as mudanças sociais e da família e sua interlocução sobre a sexualidade, ainda que por vezes pudessem aprofundar mais ou trazer outros textos, pois o livro apresenta apenas cinco artigos. Seria mais enriquecedor se outros autores participassem também com suas pesquisas sobre a temática. Ainda assim, como é de praxe, os autores trazem leituras instigadoras para novos pesquisadores que se aventuram no campo da sexualidade, do gênero e da família.

Notas

1 Anthony GIDDENS, 1993.

2 Marco Aurélio Máximo PRADO e Frederico Viana MACHADO, 2008.

3 Michel BOZON, 2004.

4 John GAGNON, 2006.

Referências

BOZON, Michel. Sociologia da sexualidade. Rio de Janeiro: FGV, 2004.         [ Links ]

GAGNON, John. Uma interpretação do desejo: ensaios sobre o estudo da sexualidade. Rio de Janeiro: Garamond, 2006.         [ Links ]

GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades. 2. ed. São Paulo: UNESP, 1993.         [ Links ]

PRADO, Marco Aurélio Máximo; MACHADO, Frederico Viana. Preconceito contra homossexualidades: hierarquia da invisibilidade. São Paulo: Cortez, 2008.         [ Links ]

Leandro Castro Oltramari – Universidade Federal de Santa Catarina e Universidade do Sul de Santa Catarina


VELHO, Gilberto; DUARTE, Luiz Fernando (Orgs.). Gerações, família, sexualidade. Rio de Janeiro: 7 letras, 2009. 96 p. Resenha de: OLTRAMARI, Leandro Castro. As transformações na família e na sexualidade. Revista Estudos Feministas, v.18, n.3, 2010.

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O vôo da guará vermelha – RESENDE (REF)

REZENDE, Maria Valéria. O vôo da guará vermelha. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. 184 p. Resenha de: BRINCHER, Sandro. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.18 no.1 Florianópolis Jan./Apr. 2010.

Eudocimus ruber é o nome da ave que intitula o livro sobre o qual me disponho a gastar pena. Tão rapidamente quanto me dispus a esclarecer o título desta resenha, algumas impressões foram aparecendo à medida que a leitura de O vôo da guará vermelha avançava. Quem eram, afinal, aquelas duas personagens de quem já sabíamos tudo o que estruturalmente se devia saber – culpa da contracapa -, cuja força está justamente naquilo que as une e, extrafisiologicamente, as mantém vivas, mas também metaforicamente as mata a cada dia? É de letras que se nutrem esses dois instrumentos da sonata; de uma homogênea massa feita do real e do ficcional. Vida e literatura em um casamento a la Blake, um matrimônio entre céu e inferno.

Pouco importa à leitura que pretendo relatar, mais que desenvolver, problematizar definições de sonata. Sirvo-me, basicamente, de um modelo conhecido: um instrumento harmônico, outro melódico. Um piano e um trompete, por exemplo. Interessa, sim, o dialogismo desse encontro. Importa, de fato, a maneira pela qual as teclas de Irene ressoam; inicialmente desafinadas, acordes dissonantes que clamam por outros acordes, mas que são respondidos pelo subir e descer das válvulas, pelo grosso dos lábios na embocadura, pelo sopro cortante e pela sonoridade nostálgica do homem dos muitos nãonomes – pequeno, Nem-Ninguém, Curumim, Caroço, Doutor. Ela, piano aos olhos dele. O porte, a beleza, a complexidade constitutiva, a enigmática alternância do preto e branco; e um poder ao qual ele visa, a grafia. O preto da tinta no branco do papel, naturais e bemóis, as linhas sendo preenchidas como a pauta, as mãos dela como as de um maestro. O desejo de se ir a outros mundos, os mesmos de onde as histórias de Rosálio haviam sido trazidas. Mundos de beleza e fome, de feiura e fartura, de contos de fadas; de fados. Lugares “com gosto de vida inteira, talvez curta, porém plena” (p. 147). O passeio na feira, o vestido bonina, o braço dele, ela guiando. E uma velha e um menino, seu, que até então movia sua vivência, antes sobre, agora super. Curumim-trompete é mais que parte do duo sonoro, é quem afina esse instrumento, que o seu pouco carece disso.

Sherazade, embalada em cada movimento da peça, despe-se do gênero: é fenda na boca de Irene, é falo na de Rosálio. Entretanto, até o falo se feminiliza, vira fala, cíclica, dialógica, alternada; harmonia e melodia entrecorta-das pela narração e sustentadas pela escuta um do outro, necessidade evidente das duas personagens. Nesse jogo de discurso e audição, o blefe é peçachave: mentira autorizada, verdade possível que permanece em suspensão até a definição da jogada, no fim do próximo dia. E volta a música. Mil e uma teclas, noite após noite, uma a cada uma; e o sibilo que as acompanha.

É preciso definir o último movimento. Esperava-se que nele alguns dos temas iniciais fossem retomados, em tonalidades já sentidas, na dominante, talvez. Instrumento pesado, no entanto, o piano. Pesado e doente. Por trás de sua imponência – exacerbada pela inocência de Rosálio – , um corpo frágil como se fosse de taipa, de barro, do feitio de uma escola abandonada, bela lembrança da efemeridade dos sonhos iletrados de outrora. E assim débil, sucumbe. Entrega-se a seu último voo, perde a cauda, de encarnado tinge todas as suas teclas. E Rosálio, de improviso, tocando notas que só pode conhecer quando tocar, “soltando […] palavras” que só pode “conhecer quando disser” (p. 181), transfigura a forma original desse concerto: de allegro andante, sob um azul sem fim, começa então a compor um bebop para um piano que jaz(z).

Sandro Brincher – Universidade Federal de Santa Catarina

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História e masculinidades: a prática escriturística dos literatos e as vivências no início do século XX – CASTELO BRANCO (REF)

CASTELO BRANCO, Pedro Vilarinho. História e masculinidades: a prática escriturística dos literatos e as vivências no início do século XX. Teresina: EDUFPI, 2008. 168 p. Resenha de: VIANA JÚNIOR, Mário Martins. Os machos nos papéis e os papéis dos machos: masculinidades através da escrita literária no Piauí do início do século XX. Revista Estudos Feministas v.18 n.1 Florianópolis Jan./Apr. 2010.

Pedro Vilarinho Castelo Branco se graduou em História no ano de 1992 pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), deslocando-se para Pernambuco onde concluiu o mestrado em 1995 e o doutorado em 2005, ambos em História. Ali desenvolveu sua pesquisa e escrita relacionando mulheres e cidade, e avançou em estudos ligados às relações familiares e às identidades de gênero e literatura, mediante uma abordagem sociocultural e sempre privilegiando o contexto da virada do século XIX para as primeiras décadas do XX no Piauí. Hoje, como professor adjunto da UFPI e tutor do PET de História, desenvolve atividades de ensino e extensão, além de pesquisas na área de gênero, como a coordenação do projeto de pesquisa História e masculinidades, do qual o presente livro parece ser tributário.

Tal obra mostra como o estudo das relações de gênero vem se desenvolvendo no Brasil. De acordo com Raquel Soihet e Joana Maria Pedro, em artigo publicado na Revista Brasileira de História, o momento atual é aquele de busca de legitimidade acadêmica para o campo, e não mais o de reparar as múltiplas exclusões expressas e denunciadas pela “história das mulheres”.1

No bojo desse movimento historiográfico, o trabalho de Pedro Vilarinho vem contribuir para alargar e diversificar as abordagens, ao enfatizar a importância dos estudos sobre masculinidades. Soma-se, portanto, a trabalhos como o de Durval Muniz de Albuquerque Júnior, anteriormente apontado pelas historiadoras acima como voz isolada na região nordestina, e possibilita dar novas tonalidades aos estudos de gênero e de subjetividades, além de apontar, na contemporaneidade, para uma circularidade de ideias e interesses acerca dessa temática no Nordeste brasileiro, onde profissionais de outras áreas se debruçam sobre as problemáticas de gênero.

Isso fica patente, por exemplo, no prefácio da obra elaborado pela professora Teresinha de Jesus Mesquita Queiroz. Ainda que sua carreira acadêmica seja marcada pela atenção direcionada à literatura, nesse momento ela convida o/a leitor/a a pensar a escrita dos literatos sob uma perspectiva de gênero, ao contextualizar a produção das obras piauienses, sinalizar o embate travado entre escritores/as e analisar os diferentes discursos literários que tentariam configurar comportamentos específicos conforme o sexo. Articula e instiga a observar, portanto, temáticas presentes e imbricadas em todo o livro de Pedro Vilarinho, tais como história, literatura e gênero.

Pedro Vilarinho escolhe como recorte temporal o momento de transição do século XIX para o XX, ou seja, o intenso período de modificações e transformações da sociedade brasileira e, em específico, da piauiense, marcado pela aceleração do urbanismo e do avanço do capitalismo, expressos no distanciamento do mundo rural, no aparelhamento da cidade e na busca pela concretização dos ideais de civilidade e modernidade. Nesse contexto, traça como principal objetivo a análise de como os modelos comportamentais foram atingidos pelos discursos proferidos, principalmente, pelos literatos, os quais, imersos em uma cultura bacharelesca, teriam atribuído ênfase às identidades femininas e, sobretudo, às masculinas.

No desenvolvimento da pesquisa e no tratamento das fontes, a vasta produção literária é escolhida entre obras na íntegra, romances, crônicas, contos, além de artigos, notícias e comentários em jornais e revistas que expressam vários discursos. Paralelamente, o autor busca informações nos relatos de vida, concedidos por meio de entrevistas, nos textos autobiográficos, submetidos à crítica, encarados e problematizados como fragmentos e vestígios de memória e elucidadores de práticas e vivências.

Seguindo uma forma de escrita dialética, nos três capítulos do livro ele constrói sua argumentação contrastando as práticas e as vivências de homens e mulheres com os discursos elaborados pelos literatos, dando foco especial aos conflitos inerentes às identidades masculinas e às suas formas de subjetivação.

Diante da modernização de Teresina e da adoção de novos costumes e outras sociabilidades, observa-se um conflito expresso na escrita literária pela negação do mundo rural e de seus aspectos diante do progresso do universo urbano. Nesse novo espaço, os discursos literários teriam uma função reformuladora, ao delinearem as formas de os sujeitos se comportarem no espaço citadino e prescreverem os modos de a sociedade vir a ser. Formariam uma espécie de teia discursiva com a função de controle dos indivíduos e de configuração de identidades de gênero.

Práticas e discursos representariam o jogo dialético (tese e antítese), enquanto as formas de recepção, tratamento e consumo dos discursos pelos indivíduos implicariam diferentes modos de subjetivação, isto é, as sínteses nesses jogos de gênero e, dessa forma, os objetivos maiores da análise de Pedro Vilarinho.

Para pensar essa dinâmica, o autor fundamenta seu trabalho em estudiosos de diferentes vertentes, como a de base hermenêutica e a de perspectiva pós-estruturalista, expressas, respectivamente, nos trabalhos de Michel De Certeau e Michel Foucault. Mediante as ideias e os conceitos trabalhados por esses filósofos, tais como consumo, prática escriturística e subjetivação, haveria a possibilidade de contrastar a produção e a recepção dos discursos, ideia essa que já havia sido sinalizada por De Certeau em crítica à ênfase dada por Foucault em relação à força e ao alcance das práticas discursivas.2

Ainda no tratamento dos escritos de Michel Foucault, é válida uma observação quanto à leitura e à atenção dispensada por Castelo Branco a esse filósofo. De forma interessante e intrigante, ele encontra no autor de Vigiar e punir subsídios para pensar não apenas o sujeito como produto, mas também os processos de subjetivação, dinâmicos, contínuos e ininterruptos, afastando, assim, a passividade do sujeito.

O autor aponta para uma abordagem intrigante na medida em que podemos observar, por exemplo, as antinomias levantadas por Stuart Hall. De acordo com esse sociólogo, Michel Foucault teria passado por três grandes momentos em sua rica produção intelectual e somente na década de 1980, com as duas obras incompletas sobre história da sexualidade, teria se inclinado a pensar o que se chama de “sujeito”:

Trata-se de um avanço importante, uma vez que, sem esquecer a existência da força objetivamente disciplinar, Foucault acena, pela primeira vez em sua grande obra, à existência de alguma paisagem interior do sujeito, de alguns mecanismos interiores de assentimento à regra, o que livra essa teorização do “behaviorismo” e do objetivismo que ameaçam certas partes do Vigiar e Punir.3

São os posicionamentos contrários que tornam ainda mais interessantes essas múltiplas possibilidades de apropriações do pensamento de Foucault, tão bem expressas na obra de Pedro Vilarinho e direcionadas para a análise das diferentes masculinidades piauienses.

De forma ampla, as masculinidades são percebidas escalonadas nas diversas fases da vida dos homens. Nesse sentido, a divisão do livro em capítulos, tal como as etapas e o desenvolvimento do corpo humano, é estruturada a partir da infância, juventude e fase adulta. Entretanto, longe de significar linearidade e homogeneidade, esses momentos apontam para a complexidade, na busca da definição das masculinidades dos indivíduos, expressa nos choques de perspectivas, temporalidades e anseios.

É assim, por exemplo, que a escola surge como espaço segregado e afastado do mundo familiar e contribui significativamente para se pensar a infância como uma fase específica, com cuidados e tratamentos específicos às crianças, antes percebidas como adultos pequenos. Mudam-se, portanto, os discursos e as sensibilidades em relação à vida dos infantes e às formas de os meninos se subjetivarem como jovens, à medida que eles percebem outros elementos valorativos da masculinidade através do processo de escolarização.

A escola agiria como pêndulos intermitentes que ligariam as crianças a novas percepções de juventude e, em seguida, os jovens à vida adulta por meio da faculdade e da cidade, preparando-os para as novas atividades do espaço urbano.

Os discursos que influenciariam a inserção dos infantes no mundo escolar seriam contíguos àqueles que incentivariam os rapazes a darem continuidade aos seus estudos, a se inserirem no universo das letras e, cada vez mais, a se distanciarem do mundo rural e de seus tradicionalismos, isto é, de características masculinas desvalorizadas na cidade. Em termos discursivos, o aprendizado obtido através da cultura escrita seria de suma importância para os novos modos de condução das famílias e para a ocupação dos empregos urbanos e dos inéditos espaços de lazer e sociabilidade materializados na moderna Teresina do início do século XX, tais como o footing, o futebol e o cinema, espaços e dinâmicas que ofereciam outras formas de subjetivação masculina aos jovens.

Feitos homens, na idade adulta, os discursos incidiriam principalmente sobre os novos sentidos atribuídos à paternidade e às relações afetivas, além das preocupações em torno da formação do homem produtivo ligado à ideia de trabalho, de comportamentos ordeiros e disciplinados, que deveriam compor a cena urbana, o espaço público, de caráter eminentemente masculino nessa nova configuração moderna.

Em suma, o que marca as diferentes fases da vida dos homens (a infância, inclusive, inventada nesse meio) é a tentativa de modelação discursiva de suas experiências a partir da atividade literária, que, a todo custo, buscava se distanciar dos elementos e do tradicionalismo rural, através da transformação dos aspectos que compunham a masculinidade. Esses discursos, ainda que tentassem alterar o que era tido como ser macho, guardavam em seu bojo uma essência indiscutível: a dominação masculina sobre a feminina. Nesse processo, o que se alterava era apenas o modo como isso era exercido: de forma mais branda e menos violenta, pelo menos em termos.

Os alcances desses discursos são apresentados pelo autor como paradoxais e contraditórios, sinalizando uma realidade dinâmica e plural na Teresina da virada do século. Os aspectos traduzidos pela permanência de hábitos tradicionais e rurais na cidade, principalmente, pela presença de características masculinas consideradas anacrônicas, a todo instante, entravam em conflito com os discursos dos literatos.

O estudo de Pedro Vilarinho vem contribuir, assim, com uma análise mais detida e localizada das mudanças na sociedade piauiense, que pareciam sinalizar uma crise das identidades de gênero e, mais especificamente, de masculinidades, aspecto que, anteriormente, foi apontado por Elizabeth Badinter como uma grande crise de masculinidade no Ocidente, entre fins do XIX e início do XX, na qual a figura do cowboy nos EUA e a construção do tipo nordestino macho no Brasil seriam formas de reação.4

Ainda que os movimentos de valorização de novas masculinidades sejam apontados de forma ampla e genérica, o estudo de Castelo Branco denota a importância das análises mais localizadas, do escrutinar da atividade do historiador. E é somente a partir dessa ação que é possível marcar a peculiaridade e a diferença do Piauí em termos de gênero na região nordestina.

Se tomarmos, por exemplo, os estudos comparativamente, poderemos observar que tanto em Durval Muniz como em Pedro Vilarinho há a argumentação de que houve um processo reacionário, expresso nos discursos dos literatos, contra a feminização da sociedade. Para Albuquerque Júnior, a tonalidade dos discursos literários era a de condenar as transformações sociais e valorizar o passado patriarcal. Houve um resgate dos elementos que compunham a masculinidade rural diante da frivolidade do mundo urbano.

No Piauí, todavia, essa configuração ocorreu de forma diferenciada. A proposta dos literatos era a de afastamento do mundo rural, de aproximação com o mundo das letras e de configuração de novos homens urbanos e intelectualizados. Enquanto o Movimento Regionalista em Pernambuco, do qual Gilberto Freyre fazia parte, via na figura do homem de letras a ameaça do patriarcalismo rural e a feminização da sociedade, os literatos do Piauí enxergavam nesse mesmo homem novas formas positivas de ser masculino. Enfim, delinearam-se expectativas de masculinidades distintas para uma mesma região, o Nordeste, que, assim apontadas, denotam a importância da continuidade de pesquisas sobre essa temática na atualidade.

Notas

1 Rachel SOIHET e Joana Maria PEDRO, 2007.

2 Michel DE CERTEAU, 2008.

3 Stuart HALL, 2000, p. 125.

4 ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2003.

Referências

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Nordestino: uma invenção do falo. Maceió: Edições Catavento, 2003.         [ Links ]

DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2008.         [ Links ]

HALL, Stuart. “Quem precisa de identidade?”. In: SILVA, Thomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. P. 103-133.         [ Links ]

SOIHET, Rachel; PEDRO, Joana Maria. “A emergência da pesquisa da história das mulheres e das relações de gênero”. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 27, p. 281-300, 2007.         [ Links ]

Mário Martins Viana Júnior – Universidade Federal de Santa Catarina.

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How Feminism Travels across Borders – The Making of Our Bodies, Ourselves – DAVIS (REF)

DAVIS, Kathy. How Feminism Travels across Borders – The Making of Our Bodies, Ourselves. Durham and London: Duke University Press, 2007. Resenha de: VEIGA, Ana Maria. Uma viagem transnacional do feminismo: outra lente para a história. Revista Estudos Feministas v.18 n.1 Florianópolis Jan./Apr. 2010.

A historiadora holandesa Kathy Davis compartilha no livro How Feminism Travels across Borders, de maneira autêntica e singular, os resultados de uma ampla pesquisa que buscou abordar a circulação das teorias feministas sobre a saúde da mulher, com a obra que se tornou best seller dentro e fora dos Estados Unidos na década de 1970 e manteve essa posição até o final dos anos 1980, Our Bodies, Ourselves.

Davis, que é pesquisadora sênior do Research Institute for History and Culture na Utrecht University, na Holanda, analisa essa obra estadunidense de maneira crítica e com um distanciamento necessário. Sua proposta foi observar o modo como o livro “viajou” por diversos países – foi traduzido para mais de 30 idiomas – e as implicações dessa viagem na maneira de se pensarem o conhecimento feminista e as políticas de saúde em um mundo “globalizado”. Ela percebe a produção e a recepção do livro como uma teoria que transita entre as especificidades de um contexto mundial e nos conta que Our Bodies, Ourselves surgiu da compilação das discussões sobre “as mulheres e seus corpos” em encontros pontuais que aconteceram em diversos países, no final dos anos 1960, promovidos pelo grupo Boston Women’s Health Book Records – BWHBC. O resultado foi um manual com relatos de experiências pessoais e informações úteis a respeito da saúde das mulheres.

Editado em 1970, Our Bodies, Ourselves passou por diversas traduções e reedições, a última em 2005. De acordo com a autora, nesse ano já havia vendido mais de quatro milhões de exemplares (quatro vezes mais do que O segundo sexo, de Simone de Beauvoir), tornando-se uma obra de popularidade única na história do feminismo. Sua função principal, além do esclarecimento, teria sido a de desafiar os dogmas médicos sobre os corpos das mulheres, sendo denominado a “bíblia da saúde das mulheres”.

A interpretação de Davis é apresentada em três partes, que dimensionam a elaboração da obra e suas viagens a outras localidades; as políticas feministas de conhecimento, com o empoderamento que elas trazem; e a política transnacional do corpo, com uma crítica aos padrões ditados por modelos médicos pretensamente hegemônicos, mas também a um modelo de feminismo considerado imperialista.

Por meio de entrevistas, com o apoio das ferramentas da história oral e no campo da teoria feminista transnacional, a pesquisa foi realizada principalmente nos Estados Unidos, contando com depoimentos da maioria das autoras do livro, que formavam na época (1969) o grupo de Boston. Além disso, Kathy Davis promoveu encontros de discussão com um grupo de tradutoras da obra para os mais diversos idiomas. Assim, pôde analisar de que maneira o livro foi adaptado às necessidades específicas de cada país ou de cada região aonde chegava. Certamente não era possível prever uma aceitação das ideias que circulavam entre as feministas estadunidenses naquele momento por mulheres situadas na Ásia ou no Oriente Médio, lugares aonde a obra também chegou, principalmente no que se referia às questões sobre aborto e direitos reprodutivos.

Davis informa que o Brasil é um dos países que aguarda a tradução e que a adaptação mais próxima é a versão feita na Espanha, Nuestros cuerpos, nuestras vidas, já que a versão latino-americana acabou ficando incompleta e não chegou a ser editada devido a conflitos regionais. As editoras e as tradutoras locais não achavam possível pensar uma unidade do contexto latino-americano, alegando que não seria o mesmo traduzir o livro para uma mulher nicaraguense da periferia ou para uma mulher da classe média argentina. As especificidades nas traduções que a autora aponta nos sugerem que a distância cultural faz toda diferença para a leitura e a compreensão da obra, moldada mas também subvertida em cada situação.

Um aspecto interessante da análise proposta pelo livro How Feminism Travels across Borders é a compreensão de como as políticas de localização puderam gerar diferentes visões sobre a história, o conhecimento e as práticas feministas, e as possibilidades e os limites de alianças políticas entre mulheres de dentro e de fora dos Estados Unidos, país tido como missionário das ideias imperialistas. Com isso, aparece a crítica a Robin Morgan, que idealizou e organizou o livro Sisterhood is Global1 em 1984, com a proposta de alcançar um “feminismo global”. Davis contrapõe a essa perspectiva a ênfase na localização, que faz um movimento para fora das histórias lineares do feminismo no intuito de explorar como ele emerge, muda, viaja e se traduz em diferentes contextos espaciais e temporais. Dessa forma, a autora busca tornar visível o significado histórico do livro, tomando como paradigma de sua crítica o que chamou uma “história transnacional”, situada no contexto de um mundo em processo veloz de globalização.

O historiador e sociólogo francês Roger Chartier é peça importante nessa discussão, trazendo a noção da leitura como apropriação da obra original e todas as possibilidades que essa troca direta pode proporcionar. Para ele, é necessário que se reconheça a pluralidade das leituras possíveis de um mesmo texto, em função das disposições individuais, culturais e sociais de cada um dos leitores.2

No caso de Our Bodies, Ourselves, o livro pôde fazer-se e refazer-se seguindo as indicações das próprias leitoras, que escreviam para as autoras permitindo a elas acrescentar ou reelaborar informações e narrativas de experiências. Portanto, mulheres lésbicas, idosas, portadoras de deficiência ou com outras necessidades específicas foram sendo incluídas nas novas edições. Kathy Davis aponta a obra como um elemento móvel, um “documento vivo” atuando na constituição de sujeitos feministas em diferentes localizações, não como um material de consumo.

Outras autoras têm construído reflexões sobre as circulações e as viagens das teorias, buscando compreender as dinâmicas do feminismo transnacional. No campo dos estudos pós-coloniais encontramos o trabalho de Cláudia de Lima Costa, com a proposta similar à de Davis de se olhar para o feminismo como uma teoria que viaja, dentro do que esta última chamou de “projeto epistemológico feminista”. Costa propõe pensarmos sobre a circulação de teorias dentro do campo feminista, levando em conta o trânsito entre o hemisfério norte, tradicionalmente visto como emanador, e o hemisfério sul das Américas, que seria o receptor das teorias.3

Como contraponto a esse argumento, Adriana Piscitelli fala sobre a hierarquização evidenciada por ele e mostra que é preciso ter atenção quanto à apropriação de concepções feministas fora do âmbito em que elas se desenvolvem, pois as referências externas podem obscurecer a compreensão de como operam as práticas locais.4

Cláudia de Lima Costa aponta a tradução cultural como um espaço privilegiado para se elaborarem análises críticas sobre a política de representação e as assimetrias entre linguagens no deslocamento das teorias feministas por espaços geopolíticos diferentes.5

María Luisa Femenías e Nelly Richard colaboram com esse debate, valorizando as reflexões produzidas pelas feministas em âmbito local e a não subordinação às ideias que chegam por meio dos materiais estrangeiros. Para Femenías, o “lugar de apropriação” que resulta do traslado das teorias fratura, de maneira decisiva, o discurso original, permitindo uma revalorização e uma ressignificação contextualizada.6

Nelly Richard também discute a questão da apropriação das teorias dos chamados países do “centro” por aqueles considerados de “periferia”. Para ela, as operações de códigos das práticas subalternas reinterpretam e criticam hibridamente, a partir do seu interior, os signos da cultura dominante. A autora ataca e desconstrói os argumentos das feministas dos países do norte, que apontam para a divisão entre a teoria produzida por elas e a experiência compartilhada pelas latino-americanas. De acordo com Richard, muitas teóricas escrevem a partir de elaborações formuladas por mulheres latino-americanas, consideradas incapazes para a produção teórica.7

Kathy Davis, com sua interpretação sobre o fazer-se do livro Our Bodies, Ourselves, situa-se em confluência com a crítica suscitada por esse debate e termina o livro com reflexões a respeito da postura das feministas estadunidenses, que veem o feminismo como um produto de seu país. A autora contrapõe o que chamou de declínio da “segunda onda branca” com a ascensão de um feminismo multirracial. Para ela, o livro mostra que o feminismo não está limitado aos Estados Unidos e ganha mais força fora de lá, enriquecido pela multiplicidade de contextos.

Davis apresenta uma pesquisa de fôlego e relevância para os campos dos estudos feministas, da teoria feminista transnacional, da história cultural e, também, dos estudos póscoloniais (que recebem da autora uma crítica importante por reforçar a ênfase nas sociedades do chamado Primeiro Mundo).

O título How Feminism Travels across Borders – The Naking of Our Bodies, Ourselves nos faz pensar sobre o tipo de fronteira (border) ao qual a autora se refere, uma vez que as fronteiras territoriais geográficas estão sendo cada vez mais apagadas pelos movimentos transnacionais, como é o feminismo, ele próprio situado num espaço “entre-fronteiras”, a princípio marginalizado, atualmente problematizado com interesse por diversos campos, dentro e fora da academia. De qualquer maneira, o livro de Kathy Davis abre outras perspectivas para pensarmos a história do feminismo de modo mais amplo e torna-se leitura indispensável para quem se interessa por quaisquer dos campos mencionados.

Notas

1 Robin MORGAN, 1996.
2 Roger CHARTIER, 2001.
3 Cláudia de Lima COSTA, 2004.
4 Adriana PISCITELLI, 2005.
5 COSTA, 2003.
6 María Luisa FEMENÍAS, 2006.
7 Nelly RICHARD, 2003.

Referências

CHARTIER, Roger. “Do livro à leitura”. In: ______ (Org.). Práticas da leitura. Tradução de Cristiane Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 2001. p. 77-105.         [ Links ]

COSTA, Cláudia de Lima. “As publicações feministas e a política transnacional da tradução: reflexões do campo”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis: CFH/CCE/UFSC, v. 11, n. 1, p. 254-264, 2003.         [ Links ]

______. “Feminismo, tradução, transnacionalismo”. In: COSTA, Cláudia de Lima; SCHMIDT, Simone Pereira (Org.). Poéticas e políticas feministas. Florianópolis: Editora Mulheres, 2004. p. 187-196.         [ Links ]

FEMENÍAS, María Luisa. “Afirmación identitaria, localización y feminismo mestizo”. In: ______ (Comp.). Feminismos de París a La Plata. Buenos Aires: Catálogos, 2006. p. 97-125.         [ Links ]

MORGAN, Robin (Ed.). Sisterhood is Global – The International Women’s Movement Anthology (1984). 2. ed. New York: The Feminist Press at The City University of New York, 1996.         [ Links ]

PISCITELLI, Adriana. “A viagem das teorias no em-bate entre práticas acadêmicas, feminismos globais e ativismos locais”. In: MORAES, Maria Lygia Quartim de (Org.). Gênero nas fronteiras do sul. Campinas: Pagu; UNICAMP, 2005. p. 143-163.         [ Links ]

RICHARD, Nelly. Intervenções críticas: arte, cultura, gênero e política. Belo Horizonte: UFMG, 2003.         [ Links ]

Ana Maria Veiga – Universidade Federal de Santa Catarina.

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La invisibilidad del cuidado a los enfermos crónicos: un estudio cualitativo en el barrio de Oblatos – ROBLES-SILVA (REF)

ROBLES-SILVA, Leticia. La invisibilidad del cuidado a los enfermos crónicos: un estudio cualitativo en el barrio de Oblatos. Guadalajara: Editorial Universitaria, 2007. 390 p. Resenha de: RAMÍREZ-CONTRERAS, Maria. Cuidar a enfermos crónicos en condiciones de pobreza: entre la dificultad y la invisibilidad. Revista Estudos Feministas v.18 n.1 Florianópolis Jan./Apr. 2010.

El libro La invisibilidad del cuidado a los enfermos crónicos: un estudio cualitativo en el barrio de Oblatos es el resultado de una investigación etnográfica, realizada en un sector popular en una ciudad mexicana. Su autora, Leticia Robles Silva, presenta una propuesta para analizar las prácticas y experiencias cotidianas de cuidadoras de enfermos crónicos, y analizar el fenómeno del cuidado desde la perspectiva de sus actores: las mujeres. Es decir, en este libro se recupera la experiencia de cuidar a un enfermo crónico desde la perspectiva de la cuidadora.

Coloquialmente decimos que desde que nacemos hasta que morimos somos cuidados por alguien y además, a lo largo de nuestra vida, en más de una ocasión, estaremos en contacto con el cuidado ya sea por familiares, amigos o conocidos, o más aún, nosotros mismos vamos a llevar a cabo el “arduo” trabajo de cuidar. El cuidado no sólo es una situación de la que nadie escapa a lo largo de la vida; sino también es un fenómeno social siempre presente a nuestro alrededor. El cuidado, afirma la autora, incluye todo aquello que se hace para ayudar al otro a satisfacer sus necesidades básicas, desarrollar o mantener sus capacidades y habilidades necesarias para su funcionamiento en la sociedad, y para evitar o aliviar el dolor y el sufrimiento de una manera atenta, respetuosa y sensible; en pocas palabras, cuidar es un trabajo inevitable y nada sencillo.

La autora argumenta dos circunstancias por las cuales es pertinente estudiar el cuidado: el aumento de las enfermedades crónicas y el creciente fenómeno del envejecimiento. En México, como en otros países latinoamericanos, el número de personas que padecen una o más enfermedades crónicas como diabetes, hipertensión o cáncer es cada vez mayor. Aunado a la enfermedad crónica, el fenómeno del envejecimiento es cada día más una realidad observable, cada vez hay menos niños y más ancianos en el mundo. Ambos fenómenos no sólo afectan al individuo que enferma o envejece, sino también a otro número igual o mayor de familiares que se ven obligados a cuidarlos. Varios millones de personas en el mundo han pasado a ser cuidadoras de algún familiar enfermo o viejo, sumándose a los millones de enfermos y ancianos afectados por ambos fenómenos. La importancia numérica de la enfermedad crónica y el envejecimiento no es un asunto exclusivo de enfermos y ancianos sino también de cuidadoras. Sin cuidadoras no podría sobrevivir enfermo alguno, argumenta la autora.

En su obra, la autora delimita su objeto de estudio al cuidado de enfermos crónicos, realizando un invaluable análisis en el espacio del hogar, al demostrar cómo el cuidado involucra trabajo y no únicamente sentimientos, y cómo es un campo de poder y dominio sobre la mujer ya que, a pesar de ser un trabajo que conlleva actividades arduas y complejas, es un trabajo femenino e invisible.

La invisibilidad del cuidado a los enfermos crónicos: un estudio cualitativo en el barrio de Oblatos es una obra que no puede dejar de ser leída, en la cual se buscan explicaciones sobre la enfermedad, los enfermos, su familia y sus cuidadoras, que van más allá de los acercamientos tradicionales en este campo con conceptos tales como “redes sociales” y “apoyo social”; es decir, es un esfuerzo por aproximarse a un fenómeno social invisible, situándose a nivel microsocial para analizar el cuidado desde una perspectiva cultural y de género en aras de ofrecer una explicación antropológica del cuidado como una vía analítica para entender la valoración del cuidado como una carga pesada y, al mismo tiempo, dilucidar el funcionamiento de un dispositivo de control social para retener a las mujeres en el cuidado, es decir, en su papel de cuidadoras.

¿Cómo funciona el cuidado? Es la pregunta de investigación que orienta el análisis a lo largo del libro. Pero también la autora se plantea el reto de entender por qué se convierte en una carga pesada a través de analizar el contenido y la organización del cuidado, y dilucidar posteriormente los mecanismos que garantizan la permanencia de esa mujer en el cuidado. Cabe señalar que la construcción empírica exigió cuatro años de trabajo de campo.

El objetivo principal de La invisibilidad del cuidado a los enfermos crónicos: un estudio cualitativo en el barrio de Oblatos y la razón por la que debe ser leído tanto por profesionales de la salud como por enfermos y por supuesto por cuidadoras, es para comprender ese mundo invisible del cuidado y descubrir la respuesta a las preguntas: ¿Cuáles son esas condiciones sociales que explican la valoración del cuidado como una carga pesada? Y ¿Por qué a pesar de “casi” todo, las mujeres que son cuidadoras no abandonan el cuidado?

El libro está dividido en tres partes de una manera didáctica, lo cual hace que cualquiera disfrute a cada momento de su lectura y se sienta llevado de la mano para entender cuestiones que van desde la complejidad de la problemática del cuidado, el contexto en el que se desarrolla dicha problemática, las particulares con que cada cuidadora y enfermo viven la enfermedad, los conceptos básicos sobre el cuidado y cómo se hizo el estudio, hasta los enriquecedores resultados de una investigación bien realizada.

En la primera parte de la obra se encuentran dos capítulos donde se presenta el problema teórico sobre el cuidado, así como su acercamiento metodológico, describiendo no sólo las entrevistas a profundidad, sino también su proceso de registro, la elaboración de notas de campo, la utilización de fuentes secundarias, la organización del material, la observación y los distintos análisis realizados. La segunda parte se compone de dos capítulos que describen el contexto social en el que vivían las cuidadoras y los enfermos; donde la autora nos hace viajar hasta la época de la Colonia al oriente de la ciudad de Guadalajara, México, para situarnos en los orígenes de Oblatos, el lugar donde se hizo el estudio, recreando a sus primeros habitantes, sus primeras construcciones y su economía, para después introducirnos en el contexto social actual de la vida de las cuidadoras de esta obra, y ofrecernos una descripción puntual de cómo es que vivían los enfermos con la diabetes a lo largo del tiempo. Finalmente la tercera parte está compuesta por cuatro capítulos que dan respuesta a las dos preguntas centrales de investigación planteadas por la autora.

En esta tercera parte, se dedica un capítulo a explicar el proceso de designación de la cuidadora. En el siguiente capítulo se analizan el contenido y la organización del cuidado, lo cual incluye una pormenorizada descripción de cuáles son las acciones de cuidado y cómo se organizan en líneas de cuidado en el contexto de la vida cotidiana, familiar y social de la cuidadora. En otro capítulo se desglosan las trayectorias del cuidado mostrando como el cuidado se transforma a lo largo del tiempo; y en el último capítulo se describen el contenido y el funcionamiento del panóptico, utilizando el concepto de Foucault, para explicar por qué no se abandona el cuidado a pesar de ser una carga pesada, y cómo existe un proceso de devaluación de la cuidadora. La autora nos ofrece evidencias de cómo ninguna de las cuidadores abandonó su rol a pesar de expresar deseos por “abandonarlo todo”, y su permanencia la explica a partir de la existencia de un panóptico en torno al cuidado, el cual funciona como un dispositivo disciplinario, para someter a la cuidadora a las normas morales del cuidado. Pero en las cuidadoras de Oblatos estuvo presente también la resistencia, encaminada a sobrevivir hoy y no a transformar el sistema de dominación del cuidado. Al final la obra cuenta con una sección interesante, donde la autora, de una manera integradora y precisa, resume los hallazgos más sobresalientes de su investigación y ofrece algunas reflexiones sobre el futuro del cuidado en Oblatos.

El libro cumple con su cometido, hacer visibles varios rasgos invisibles del cuidado, y ofrecer nuevos datos para abrir el rumbo a nuevas investigaciones. Asimismo nos convence y nos invita a la reflexión de qué es el cuidado y cómo se otorga, pero también de qué es ser pobre y vivir en la pobreza cuando se cuida a un enfermo crónico. Nos hace recapacitar de que, a pesar de los adelantos tecnológicos, la presencia de una cuidadora es indispensable si se quiere sobrevivir ante las crisis del padecimiento o ante las discapacidades sufridas por la vejez y la enfermedad crónica. Y finalmente, por esas ventajas tecnológicas, el libro puede ser adquirido en la editorial por compra en línea. Así que no tendrá pretexto para no leerlo.

La invisibilidad del cuidado a los enfermos crónicos: un estudio cualitativo en el barrio de Oblatos es una clara muestra de excelencia académica; la investigación que le dio origen fue reconocida en México con el Premio Fray Bernardino de Sahagún por el Instituto Nacional de Antropología e Historia en el año 2002.

María Guadalupe Ramírez-Contreras – Universidad de Guadalajara, México

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Identidade homossexual e normas sociais: histórias de vida – SELL (REF)

SELL, Teresa Adada. Identidade homossexual e normas sociais: histórias de vida. 2. ed. rev. e ampl. Florianópolis: EDUFSC, 2006. 255 p. Resenha de: BEZERRA, Fábio Alexandre. O indivíduo e o meio social na formação da identidade homossexual. Revista Estudos Feministas v.18 n.1 Florianópolis Jan./Apr. 2010.

Alinhada com pesquisas atuais que usam as teorias queer1 como base de investigação, Teresa Sell, ex-professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), desenvolve uma pesquisa histórica e marcante sobre a identidade homossexual a partir de entrevistas com homossexuais masculinos em Florianópolis, Santa Catarina, na década de 1980, quando pesquisas sobre (homo)sexualidade no Brasil ainda eram bastante incipientes. Tendo sido publicado primeiramente em 1987, fruto de sua pesquisa de mestrado em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), este livro, reapresentado em uma edição revisada e ampliada, interessa àqueles que desenvolvem pesquisas sobre identidades de gênero, bem como a todos que queiram compreender melhor a complexidade e as nuances presentes na formação do indivíduo como ser social.

Já na Introdução a autora destaca a heterogeneidade do rótulo ‘homossexual’, visto que toda sua obra baseia-se exatamente na noção de homossexualidades como experiências individuais, que podem compartilhar características comuns, mas que são formadas a partir de contextos sociais específicos, o que motiva a rejeição de qualquer essencialismo conceitual. Nessa seção, também são explicitados alguns elementos metodológicos, tais como a seleção dos entrevistados, a (não) identificação deles, bem como a forma de condução das entrevistas. Por ser uma reedição ampliada, Sell apresenta também colocações atuais a respeito do posicionamento do poder público com relação aos homossexuais, destacando investimentos em eventos destinados a esse público, mas também fazendo a ressalva de que boa parte da difícil realidade vivida no momento da condução das entrevistas ainda persiste na atualidade. Ademais, traz colocações acerca da AIDS, já que seu advento no Brasil se deu posteriormente à publicação da primeira edição deste livro. Sobre esse tema, a autora afirma que, apesar de não ser mais possível “associar AIDS com homossexualismo, o estigma, porque de fato é uma marca, permaneceu” (p. 22).

O livro é dividido em duas partes, que, por sua vez, são subdividas em três e cinco capítulos, respectivamente. Na primeira parte, em seu primeiro capítulo, alguns conceitos são discutidos, tais como a formação da identidade, que se dá no meio social,2 visto que esse é anterior ao próprio indivíduo, isto é, há elementos inerentes ao ser humano, mas “a natureza é modelada pelos valores e padrões da cultura” (p. 30). Dessa forma, vemos, no segundo capítulo, que é exatamente no confronto entre o indivíduo e os valores tradicionais de seu grupo social que as divergências e os conflitos surgem. Tendo em vista que vivemos em uma sociedade que, em grande parte, ainda tem a heterossexualidade como único modo legítimo de vivenciar a sexualidade, encontramos aí o cerne da rejeição à homossexualidade, pois é vista como desviante e, portanto, inaceitável. Essa problemática é revelada, no terceiro capítulo, em quinze entrevistas, que foram conduzidas com muito respeito, o que permitiu que os entrevistados falassem de forma aberta sobre suas experiências de vida. Essas entrevistas demonstraram que a homossexualidade é vivida de formas diversas, apesar de várias questões serem compartilhadas por entrevistados que tinham histórias de vida bem diferentes. Além disso, podemos observar a atualidade de várias das questões discutidas nas entrevistas, o que demonstra que muitas preocupações, dificuldades e valores daquela década ainda persistem em nossa sociedade.

Na segunda parte do livro, Sell discute pontos importantes dos relatos, entrelaçandoos com uma discussão teórica leve, porém consistente. No primeiro capítulo, a autora destaca algo que realmente é uma constante nas entrevistas: o fato de a identidade ser formada “na relação do Eu com o Outro” (p. 181), visto que muitos dos entrevistados falaram de suas experiências e opiniões a partir de uma contraposição com a heterossexualidade. Os comportamentos foram descritos como desviantes do esperado pela sociedade, o que causou muita angústia ao se perceberem ‘diferentes’, gerando, ainda, culpa e vergonha pela noção subsequente de anormalidade. Vários entrevistados reforçaram a importância de se aceitarem para que os outros também pudessem aceitá-los. Além disso, a autora levanta a possibilidade de grupos discriminados se unirem para formar uma força maior que suas atitudes individuais,3 já que “a diversidade da natureza humana é maior do que as regras que ela criou” (p. 194). No segundo capítulo, o ocultamento da orientação sexual é apresentado, através das entrevistas, como um elemento fundamental na dinâmica do homossexual com a família e o grupo social, visto que o homossexual, em geral, deixa, no máximo, que desconfiem de sua orientação sexual sem que precise confirmá-la. Nessa reedição, Sell acrescenta que esse ocultamento foi drasticamente reforçado com a disseminação do vírus HIV, que ainda não tinha surgido quando as entrevistas foram feitas. Além disso, atualizando sua publicação, comenta a maior visibilidade do homossexual na TV, mas destaca que nem sempre a maneira como foram representados anteriormente contribuiu para o esclarecimento e a educação da população, e que, apesar de terem sido criados vários grupos de defesa do homossexual, a violência ainda é uma triste realidade a ser combatida. Acrescenta, ainda, que a internet aumentou a possibilidade de encontros e informação, ao mesmo tempo que também criou novos perigos. Por fim, enfatiza que, atualmente, o público gay representa uma fatia do mercado muito valiosa e exigente, e que eles, a partir de uma atuação organizada, também têm exercido justas pressões junto ao poder público para terem seus direitos reconhecidos e defendidos, inclusive o direito referente à união civil, um tema com “forte implicação política na conquista de cidadania por uma parcela significativa da população brasileira, que se reconhece como homossexual”.4 Tal organização é demonstrada pelo fato de que “associações e grupos ativistas se multiplicam pelo País. Atualmente, há cerca de 140 grupos espalhados por todo o território nacional”.5 Contudo, mesmo não tendo sido o foco da autora, também acredito ser importante registrar que essa luta por políticas públicas, apesar de ser muito legítima e dar visibilidade a uma parcela da sociedade organizada, também revela uma incompetência do próprio Poder Legislativo em tratar da questão.

Ainda na segunda parte, em seu terceiro capítulo, há o foco na dinâmica das relações sexuais entre heterossexuais e homossexuais, bem como desses entre si, discutindo-se as diferentes nuances e configurações que tais contatos podem assumir, dentre as quais foi destacada a bissexualidade. Ademais, problematiza-se a divisão entre ativos e passivos como uma reprodução da conhecida separação entre dominador (mais masculino) e dominado (mais feminino). Dessa forma, vê-se que essa divisão de papéis demonstra “a interligação da vida sexual com o contexto cultural e toda a influência sociopolítica da relação entre duas pessoas” (p. 223). No quarto capítulo, Sell afirma que nas entrevistas, independentemente do tipo de relação que era estabelecida, o amor estava “presente como uma possibilidade de paz, de suporte, de satisfação pessoal” (p. 228), apesar dos frequentes desencontros causados, em especial, pela intolerância com essa forma de relacionar-se com o Outro. No último capítulo, em suas considerações finais, mesmo as experiências femininas não constando deste livro, pelo fato da pouca disponibilidade para serem entrevistadas, a autora tece comentários comparativos com a vivência homossexual masculina a partir de apenas três entrevistas com mulheres.

Concluindo, destaco a relevância pública desta obra, visto que “conhecer sobre homossexualidade é conhecer sobre o comportamento heterossexual, pois ambas as formas se encontram ao tentarem se distinguir” (p. 244) e apresentam-se em diversas gradações, evitando-se, assim, o dualismo ‘homossexual e heterossexual’. Contudo, também apresento ressalva à afirmação da autora de que nos grupos de ‘iguais’ não haveria a necessidade de “contínua defesa da identidade” (p. 38), porque há várias identidades homossexuais que precisam, sim, de reafirmação constante mesmo nesses ambientes, tais como a postura estereotipada do masculino (ativo) e do feminino (passivo). A autora encerra sua obra, revisada e ampliada depois de 20 anos de sua publicação, reafirmando a necessidade de um mundo mais justo, com oportunidades de livre expressão do amor e da sexualidade para todos, visto que, mesmo depois de conquistarem um espaço maior de visibilidade e respeito, os homossexuais ainda hoje enfrentam demonstrações de violência e intolerância. Por fim, cabe ressaltar, ainda, que essa mudança, muito mais do que através de leis, mesmo sendo elas essenciais, deve ser promovida por meio da educação e da reavaliação de nossos conceitos e atitudes diante do ser humano – independentemente da especificidade de sua conduta sexual.

Notas

1 Teresa DE LAURETIS, 1991.

2 Mara Coelho de Souza LAGO, 1999.

3 Luiz Fernando Neves CÓRDOVA, 2006.

4 Miriam Pillar GROSSI, 2003, p. 263.

5 CONSELHO NACIONAL DE COMBATE À DISCRIMINAÇÃO, 2004, p. 15.

Referências

CONSELHO NACIONAL DE COMBATE À DISCRIMINAÇÃO. Brasil sem homofobia: Programa de Combate à Violência e à Discriminação contra GLTB e Promoção da Cidadania Homossexual. Brasília: Ministério da Saúde, 2004.         [ Links ]

CÓRDOVA, Luiz Fernando Neves. Trajetórias de homossexuais na ilha de Santa Catarina: temporalidades e espaços. 2006. Tese (Doutorado em Ciências Humanas) – Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2006.         [ Links ]

DE LAURETIS, Teresa. “Queer Theory: Lesbian and Gay Sexualities.” Differences: A Journal of Feminist Cultural Studies, Durham: Duke University Press, v. 3, n. 2, p. iii-xviii, 1991.         [ Links ]

GROSSI, Miram Pillar. “Gênero e parentesco: famílias gays e lésbicas no Brasil”. Cadernos Pagu, Campinas: Unicamp, n. 21, p. 261-280, 2003.         [ Links ]

LAGO, Mara Coelho de Souza. “Identidade: a fragmentação do conceito”. In: SILVA, Alcione Leite da; LAGO, Mara Coelho de Souza; RAMOS, Tânia Regina Oliveira (Org.) Falas de gênero: teoria, análises e leituras. Florianópolis: Editora Mulheres, 1999. p. 119-129.         [ Links ]

Fábio Alexandre Silva Bezerra – Universidade Federal de Santa Catarina.

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Homossexualidade e adoção – UZIEL (REF)

UZIEL, Anna Paula. Homossexualidade e adoção. Rio de Janeiro: Garamond, 2007. 224 p. Resenha de: HERRERA, Florencia. Develando prejuicios: ¿Por qué los hombres homosexuales son padres de segunda categoría? Revista Estudos Feministas v.18 n.1 Florianópolis Jan./Apr. 2010.

Tener hijos, en nuestra cultura, es considerado como algo esencial para la realización personal y para la sobrevivencia de la sociedad. Se espera que las parejas, tarde o temprano, se conviertan en padres. Sin embargo, al desear hijos, las personas y parejas homosexuales no se acercan, sino que se alejan de las expectativas sociales. Homosexualidad y parentalidad son vistos como antagónicos e incompatibles por la sociedad. A pesar de ello, no es un hecho nuevo el que gays y lesbianas sean madres y padres, ya sea a raíz de relaciones heterosexuales y, más recientemente, mediante la adopción y las nuevas tecnologías reproductivas.

En su libro Homosexualidad y adopción Anna Paula Uziel, doctora en antropología social y psicóloga social del Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), da cuenta de las ideas preconcebidas, los mitos y los miedos que surgen cuando se habla de adopción por parte de homosexuales en el Brasil de hoy. Su análisis le permite interpelar los discursos clásicos sobre la familia para volver a preguntar ¿Qué significa ser padre? ¿Sobre qué base se puede decidir quién será un buen padre? ¿Qué y quiénes constituyen una familia?

Uziel combina dos temas que por sí solos plantean importantes desafíos a las formas tradicionales de hacer familia. Por un lado la adopción, que permite una filiación sin vínculo biológico, es decir, desafía el núcleo de nuestras ideas de lo que es el parentesco.1 Aquí el parentesco se construye mediante el lazo legal y se mantiene a través de los cuidados cotidianos. Históricamente la adopción ha pretendido mantener la ficción de la familia nuclear tradicional creando una representación de una pareja coherente con el modelo biológico básico.2 Por otro lado, la homosexualidad, que hace imposible mantener esta ficción, ya que cuestiona la centralidad del sexo procreativo y la diferencia de sexo como base de la familia.

El libro se divide en dos partes. En la primera, la autora presenta una discusión de los desafíos que plantean los nuevos arreglos familiares. Para esto revisa los elementos que pueden ser un aporte al análisis de los temas centrales del libro – Homosexualidad y adopción – presentes en las familias monoparentales, las familias pluriparentales y las familias recompuestas. Aquí Uziel concluye que sexualidad y parentalidad son esferas distintas de la vida y que las funciones parentales no implican el ejercicio de la sexualidad.

En la segunda parte del libro, Uziel se centra en los elementos que entran en juego en la adopción por parte de personas homosexuales. Para ello se basa en entrevistas realizadas a técnicos y operadores que trabajan en los procesos de adopción y en los documentos de 8 procesos de adopción donde el solicitante es homosexual. Notablemente 6 de estos procesos fueron favorables en su resultado final para los solicitantes. Esto da cuenta de un avance hacia el reconocimiento del derecho de las personas homosexuales a tener hijos.

Uziel realiza un análisis rico y profundo de los discursos y posiciones de psicólogos, asistentes sociales, promotores, defensores públicos y jueces. Creo que es un acierto dar cuenta de las narrativas de estos actores ya que en su actuar cotidiano y en las interpretaciones que hacen de la legislación, ellos están tomando decisiones respecto a quiénes pueden y quiénes no pueden convertirse en padres y por lo tanto, están definiendo qué significa ser un buen padre hoy en Brasil.

La autora analiza no sólo lo explícito en las palabras de sus entrevistados, sino que lee entrelíneas e interpreta también los silencios. De esta forma logra ir más allá del discurso políticamente correcto que le presentan los técnicos y operadores. En un primer nivel éstos son abiertos y tolerantes, pero al observar con más cuidado Uziel devela cómo en las narrativas de estos profesionales surgen los clásicos prejuicios, miedos y mitos asociados con la homosexualidad. Un ejemplo de ello es la recurrente asociación de homosexualidad con promiscuidad.

Resulta provocador el foco del libro en la homoparentalidad masculina. Ya por sí sola la paternidad de un hombre, sin una mujer a su lado, resulta controversial. La crianza de los hijos está tradicionalmente asociada a lo femenino. Es curioso como los técnicos resaltan características femeninas y maternales de los adoptantes homosexuales para argumentar su idoneidad como padres. De alguna manera, a sus ojos, la orientación sexual de estos candidatos a padres los acerca a la figura maternal y, por lo tanto, los hace más capaces de asumir la paternidad. Sería interesante poder comparar qué pasa con las solicitudes de mujeres lesbianas para adoptar. ¿Está el tema de su sexualidad igualmente presente en los procesos de adopción? ¿Son menos cuestionadas al ser mujeres?

Es revelador que técnicos y operadores tiendan a cuestionar más la homoparentalidad en pareja que la paternidad individual de hombres homosexuales. El sentido común indica que es menos difícil criar un hijo entre dos y que para el niño es mejor tener dos personas que lo quieran, lo guíen y lo protejan. Sin embargo, la sexualidad, que puede ser invisibilizada en el caso de adoptantes individuales, pasa a ocupar un lugar central cuando se trata de una pareja de personas del mismo sexo. Se desprende de los discursos de los entrevistados y del análisis de los procesos que la sexualidad homosexual sigue siendo considerada algo sucio, desviado y con un alto potencial de contaminar a las personas que están cerca de ella, especialmente a los niños.

A lo largo de las páginas del libro de Uziel hay una pregunta que persiste ¿Cuál es la pertinencia de hablar de sexualidad cuando se trata de parentalidad? De acuerdo con los resultados de su investigación el tema de la sexualidad surge sólo cuando el que solicita la adopción es homosexual. La autora se pregunta ¿influye la orientación sexual en la capacidad de criar niños? O ¿existe una manera de ser padre diferente si se es homosexual o heterosexual? ¿Está relacionado el ejercicio de la parentalidad con la sexualidad? ¿Tiene sentido hablar de homoparentalidad? Creo que la autora toca aquí un tema clave para los estudios de familia y homosexualidad.

Un argumento para esgrimir que la homosexualidad y la parentalidad están relacionadas es que es en la familia y son los padres los que transmiten modelos de género y también sexuales a sus hijos. Los principales referentes de género y de relaciones de pareja que los niños tienen son entregados por sus padres. Sin embargo, aún sosteniendo la pertinencia de hablar de homoparentalidad cabe preguntarse ¿por qué el modelo de pareja homosexual es un mal modelo para los niños? Lo que está detrás es la idea de que la homosexualidad es algo desviado, negativo y que debe ser evitado. Al parecer, pesar de los avances respecto a la tolerancia a la diversidad sexual en Brasil, no se ha logrado construir una imagen positiva del ser homosexual. Esto está claramente reflejado en el análisis de los procesos y las entrevistas realizadas por Uziel.

Los padres homosexuales pueden cumplir todas las funciones tradicionalmente atribuidas a la parentalidad (socialización, cuidados, entrega de una identidad, protección, afectividad, etc.) Y, como señala Uziel, en muchos sentidos una pareja homosexual que cría un hijo no se distancia demasiado de la familia nuclear tradicional. En ambos casos la pareja conyugal es la misma que la pareja parental (entendida esta última como los padres que crían al niño).3

Uziel aborda lúcidamente un tema trascendental tanto para los estudios de familia como para nuestras sociedades. El reconocimiento legal y judicial de los vínculos entre padres homosexuales y sus hijos es vital para alcanzar el reconocimiento social. Hequembourg y Farrell4 señalan que a los padres y madres de mujeres lesbianas que no han adoptado legalmente a sus hijos no biológicos les es más difícil sentirse abuelos ya que sienten que el vínculo con sus nietos es más precario. No se debe olvidar que las familias constituidas por personas homosexuales se inscriben en contextos más amplios de familia extensa (abuelos, tíos y primos), instituciones escolares, instituciones de salud, etc. La plena aceptación por parte de estos contextos es vital para el desarrollo sano y feliz de los niños adoptados por personas homosexuales.

Creo que Uziel acierta al comparar la homoparentalidad con el divorcio, un cambio ahora asimilado pero que en su momento causó mucho revuelo y sin duda es una transformación importante en las formas que puede tomar la familia. El libro Homosexualidad y adopción es un gran aporte que nos ayuda a comprender las resistencias que encuentran las nuevas formas de construir familia.

Notas

1 David SCHNEIDER, 1980.

2 Anne CADORET, 2003.

3 CADORET, 2003; y Florencia HERRERA, 2009.

4 Amy HEQUEMBOURG y Michael FARREL, 1999.

Referencias

CADORET, Anne. Padres como los demás: homosexualidad y parentesco. Barcelona: Gedisa, 2003.         [ Links ]

HEQUEMBOURG, Amy; FARRELL, Michael. “Lesbian Motherhood: Negotiating Marginal-mainstream Identities.” Gender and Society, v. 13, n. 4, p. 540-557, 1999.         [ Links ]

HERRERA, Florencia. “Tradition and Transgression: Lesbian Motherhood in Chile.” Sexuality Research & Social Policy: Journal of NSRC, University of California Press, v. 6, n. 2, p. 35-51, 2009. ISSN 1553-6610.         [ Links ]

SCHNEIDER, David. American Kinship: A Cultural Account Second Edition. London: The University of Chicago Press, 1980.         [ Links ]

WEEKS, Jeffrey; HEAPHY, Brian; CATHERINE, Donovan. Same Sex Intimacies: Families of Choice and Other Life Experiments. London: Routledge, 2001.         [ Links ]

WESTON, Kath. Families We Choose: Lesbians, Gays, Kinship. New York: Columbia University Press, 1991.         [ Links ]

Florencia Herrera – Universidad Diego Portales, Chile.

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Uma casa sem cor – MUZART (REF)

MUZART, Zahidé Lupinacci. Uma casa sem cor. Florianópolis: Editora Mulheres, 2009. 28p. Resenha de: PAIVA, Kelen Benfenatti. Uma história de solidão. Revista Estudos Feministas v.18 n.1 Florianópolis Jan./Apr. 2010.

Conhecida pelo importante trabalho de resgate da literatura de autoria feminina no século XIX e pelo empenho em trazer à luz nomes esquecidos de mulheres de nossa história literária, Zahidé Lupinacci Muzart trilha, em 2009, caminhos ainda não percorridos por ela – a chamada literatura infantil – e publica, pela Editora Mulheres, Uma casa sem cor, livro de intensa sensibilidade poética, com belíssimas ilustrações de Márcia Cardeal.

Longe de seguir a antiga linha dos primeiros livros ditos infantis no Brasil, em que o tom pedagógico e moralizante predominava, Zahidé trata em seu livro – com total liberdade – de questões que por décadas foram evitadas para esse público leitor. A dor da perda, da ausência, da solidão e da morte será abordada em primeiro plano, bem como o será a capacidade da criança de sentir o mundo e os acontecimentos à sua volta. A autora vai, além de abordar um tema complexo, retratar a tentativa de aprender a viver e a conviver com a ausência.

Zahidé apresenta-nos, através da protagonista-narradora, uma menina de oito anos, a imagem de criança não como ser inocente e angelical, em processo de “vir-a-ser” ou um “adulto em miniatura”, mas um sujeito dotado de inteligência e sensibilidade, capaz de lidar, à sua maneira, com sentimentos e situações impostas pelas circunstâncias da vida e pelo mundo. Retrata a infância não como lugar da felicidade em que não há espaço para a morte e a dor, mas como lugar povoado por alegrias, curiosidades, tristezas e, sobretudo, solidão.

Sem ter ouvido dos adultos o verdadeiro motivo da partida do pai, ou seja, sua morte, a protagonista observa a casa, os objetos e as pessoas que a cercam para compreender essa ausência. A personificação da casa cinza, triste, de porta fechada, de “alma fechada”; as mudanças sofridas pela mãe de “olhos sempre doentes”, “eternamente vermelhos”; “mais quieta e sombria”, “o tempo todo fechada dentro de si mesma”; e as mudanças na rotina da família, como o fato de todos na casa não ouvirem mais música e só receberem “gente triste” ou não terem mais bolo nem arroz-doce aos sábados intensificam ainda mais o sentimento de falta experimentado pela menina.

As ilustrações predominantemente em tons escuros, acinzentados, criam com a narrativa o efeito de profunda tristeza. A grande metáfora da ausência será a falta de cores ou a predominância do cinza: “Se eu tivesse que dizer qual é a cor da nossa vida, Dona Zefa, diria que é cinza”, afirma a menina ao descrever a vida da família sem o pai.

A morte, temática tão recorrente na literatura, se abre nas páginas deste livro para trazer à tona outros temas, como a velhice, na figura da avó sempre se queixando de não ser ouvida pelo médico; a falta de dinheiro, quando a família perde seu mantenedor; o desejo da mãe de proteger a filha e de poupar-lhe o sofrimento, além da difícil tarefa de vivenciar a ausência.

A memória também terá papel de destaque neste livro, peça fundamental na vivência e convivência com a dor. Somente por meio dela se dá a possibilidade do reencontro, e aquele que partiu ressurge, revive e se presentifica nas rememorações da protagonista, “o som do seu riso, da sua voz, a alegria de seus gestos” e tudo o que lhe ensinou, como na ocasião em que lhe dissera que “bruxas são apenas mulheres que sabem mais do que os homens e que têm poderes de cura, poderes que os outros não têm e por isso falam mal delas […]”.

A criação de uma personagem que carrega consigo saberes populares deixa implícita a desierarquização dos saberes promovida pela autora, bem como evidencia os fragmentos da história das mulheres, como a perseguição daquelas que de alguma forma representaram uma ameaça aos padrões instituídos pelo poder. Ao deixar indícios dessa parte de uma história pouco lembrada, a autora reafirma sua concepção de criança como um ser capaz de apreender os diferentes saberes, entre os quais se encontra também o histórico.

À medida que a protagonista se aproxima da possibilidade de “reencontrar” o pai, ou seja, de saber por meio de Dona Zefa o motivo de sua partida, as cores claras e diversificadas surgem nas páginas do livro e voltam à vida da menina, que finalmente entende a morte dentro da vida.

Ao ler Uma casa sem cor, de Zahidé Lupinacci Muzart, o leitor pode constatar que adultos e crianças compartilham um mesmo universo complexo, povoado de alegrias e tristezas, e talvez por isso se possa afirmar que a autora, ao trilhar os caminhos da literatura infantil, fez um livro sem destinatário. É possível que adulto e criança se reconheçam e vivenciem essa história de solidão das mais diversas maneiras e intensidades, afinal a morte e a dor da ausência fazem parte de cada um de nós, inevitavelmente, em algum momento de nossas vidas.

Kelen Benfenatti Paiva – Universidade Federal de Minas Gerais.

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Além do amor e das flores: primeiras escritoras cearenses – CUNHA (REF)

CUNHA, Cecília Maria. Além do amor e das flores: primeiras escritoras cearenses. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2008. 232 p. Resenha de: NOVAES, Mariana de Souza. Escritoras cearenses do século XIX. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.17 n.3 Sept./Dec. 2009.

O resgate da atuação e da ação de mulheres ao longo da história ainda se torna pertinente em pleno século XXI. Felizmente, hoje, muitas pesquisas têm sido feitas a fim de mostrar a importância exercida pela mulher tanto na história quanto na literatura, nas artes plásticas, na política, na educação e na imprensa, como esta, de Cecília Maria Cunha, que vem nos revelar o que há muito tempo ficou escondido ou esquecido: a produção feminina. Ainda assim, há muito a ser feito a despeito de esforços como o de Cunha. é preciso considerar que grande parte da produção literária feminina se encontra ausente nos estudos acadêmicos e, dessa maneira, esquecida dos leitores. Urge, pois, reapresentar as letras femininas, apontando sua importância na história da literatura.

A pesquisa de Cecília Cunha – mestre em Letras pela Universidade Federal da Paraíba – é pioneira. Através de uma investigação minuciosa e detalhada, a autora apresenta o estudo e o resgate dos primórdios das letras femininas cearenses. A ensaísta faz um recorte do final do século XIX até as duas primeiras décadas do século XX e expõe um panorama da imprensa, da literatura e da situação feminina tanto no Ceará quanto no restante do país.

Além do amor e das flores: primeiras escritoras cearenses organiza-se em duas partes. A primeira trata da situação da mulher naquela época: a educação que recebiam; a participação na história do Brasil – o momento da abolição e da chegada da corte ao país – ; e a influência europeia na cultura e na educação das mulheres.

Vale destacar, como um dos pontos mais relevantes de sua pesquisa, o estudo sobre a imprensa feminina cearense e da imprensa feminina brasileira, embora Cecília Cunha não se aprofunde nesta última. Para a pesquisadora, a imprensa se configura como o principal e o primeiro instrumento de inserção das mulheres nas letras e, portanto, como meio de divulgação dos seus trabalhos literários. Ela apresenta diversas autoras que escreveram e colaboraram em jornais, revistas e almanaques femininos (ou não necessariamente só femininos), além de fundarem muitos deles, durante os séculos XIX e XX. Dá-nos a conhecer nomes de importantes escritoras, como Francisca Clotilde – considerada uma das mais presentes na literatura cearense – , Emília de Freitas, Ana Facó, Alba Valdez e Maria da Câmara Bormann, que foram objeto de estudo de sua dissertação de mestrado, agora publicada.

Há que se ressaltar que, na pesquisa de Cecília Cunha, encontram-se informações valiosas a respeito de jornais da época, como O Lyrio, Orvalho e Sexo Feminino. Já na segunda parte, a autora investiga e decompõe a obra literária de quatro escritoras, a saber: Emília Freitas, autora do romance A rainha do ignoto; Francisca Clotilde, ousada, escreveu sobre o divórcio em A divorciada; Alba Valdez, memorialista na sua novela Dias de Luz; e Ana Faço, com Páginas íntimas. Além disso, há, também, a crítica recebida por suas produções.

Deve-se destacar, ainda, os dados preciosos contidos nos rodapés, em que estão as fontes de estudo e de pesquisa utilizadas pela autora, informações importantes sobre as escritoras e os jornais cearenses e, também, algumas observações de indispensável leitura. Merece lembrança a presença de ilustrações de jornais que circulavam na época e de excertos de publicações das escritoras cearenses.

Além do amor e das flores: primeiras escritoras cearenses é, pois, uma excelente contribuição no conhecimento da literatura dos séculos passados e, sobretudo, para aqueles que estudam e pesquisam a literatura brasileira de autoria feminina. Cecília Cunha reacende e resgata as letras produzidas por mulheres na literatura que nos antecedeu. O estudo trata-se, nas palavras da própria autora, de “uma verdadeira arqueologia literária”, de “escavações nos porões do silêncio”.

Mariana de Souza Novaes – Universidade Federal de Minas Gerais

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Mujeres en la sociedad argentina. Una historia de cinco siglos – BARRANCOS (REF)

BARRANCOS, Dora. Mujeres en la sociedad argentina. Una historia de cinco siglos. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 2007. 351 p. Resenha de: VÁZQUEZ, María Laura Osta. Uma síntese da história das mulheres na Argentina. Revista Estudos Feministas v.17 n.3 Florianópolis Sept./Dec. 2009.

Dora Barrancos viveu a experiência do exílio no Brasil, durante a ditadura militar argentina (entre os anos de 1976 e 1983), onde teve contato com o movimento feminista e com o campo da história pela primera vez. No ano de 1985 fez o mestrado em Educação na Universidade Federal de Minas Gerais. Desde 1986, Barrancos é investigadora do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas – CONICET. Em 1993 fez o doutorado em Ciências Humanas, na área de História, na Universidade Estadual de Campinas. é professora em várias universidades argentinas e diretora do Instituto Interdisciplinar de Estudos de Gênero – IIEG, da Faculdade de Filosofia e Letras, da Universidade de Buenos Aires. Como historiadora, Dora Barrancos dedica-se a estudar a agência feminina e o feminismo na Argentina.1

“Mujeres em la sociedad argentina” faz parte da coletânea História Argentina, dirigida pelo historiador José Carlos Chiaramonte. Essa coletânea busca chegar a um público que exceda ao universitário, mas que o compreenda. As obras são sínteses que “prescindirão da erudição comum dos trabalhos profissionais” (p. 351). é importante esclarecer isso, já que a obra utiliza informações oriundas de textos já publicados, sem dar as referências e sem problematizá-los. Além disso, ao final do livro há um guia bibliográfico para cada capítulo, realmente uma historiografia das mulheres argentinas. As fontes são constituídas de livros, capítulos de livros e artigos pertencentes aos anos 1980, 1990 e 2000.

A autora faz uma síntese substanciosa da história das mulheres argentinas durante cinco séculos. Historiograficamente, poderíamos localizá-la na linha da história das mulheres, já que toda a obra está destinada a visualizar o agir feminino. “Este libro es uma contribución para repensar los acontecimientos de nuestro pasado a la luz de los aportes, mas viejos y más nuevos, del trayecto ya efectuado por la historia de las mujeres” (p. 13). Seu propósito não é problematizar o caminho historiográfico feito pela história das mulheres, mas continuar os passos de visualização da mulher na história.

Durante toda a obra, vários tópicos vinculados às mulheres se vislumbram transversalmente: vida cotidiana (lugar das mulheres no núcleo familiar e na sociedade), legislação, trabalho, educação, direitos políticos e sexualidade. Em cada capítulo a autora tenta contextualizar temporalmente cada aspecto mencionado da vida das mulheres.

A obra, composta de sete capítulos, começa a partir da vida das mulheres indígenas nos séculos XVI e XVII, nas distintas comunidades pertencentes às atuais regiões argentinas. Comunidades incas, guaranis, mapuches e mocovíes deixam entrever timidamente alguns espaços de participação feminina, principalmente, no papel destinado a conectar o mundano com o sagrado. Muitas mulheres portadoras de papéis ritualistas ou fetichistas tiveram lugares destacados naquelas comunidades. Entretanto, a autora destaca que dificilmente poderiam influenciar nas decisões de poder. Ilustra, também, as vivências das primeiras espanholas que chegaram, algumas delas destacaram-se por sua valentia, capazes de estar à frente de batalha e dirigir expedições durante muitos meses.

No Capítulo 2 a obra fala sobre a vida das mulheres durante a época colonial e sua participação na vida política da revolução. Assinala a autora que foi nesse período que se começou a exaltar a maternidade como um valor primordial. As mulheres que não seguiram os valores esperados foram duramente julgadas pela sociedade e, muitas vezes, encarceradas em conventos de freiras para serem disciplinadas. São “mujeres movilizadas, convencidas de sus actos políticos mas alla de las influencias de padres y maridos” (p. 83), afirma Barrancos.

O Capítulo 3 está temporalmente localizado na segunda metade do século XIX, desenvolvendo também os mesmos tópicos: vida cotidiana, política, direitos, trabalho, educação e sexualidade. Apresenta o refinamento dos costumes das mulheres da classe alta argentina, influenciada pela imigração europeia e impregnada da experiência da industrialização, das revoltas dos proletários e das primeiras feministas. A autora dá destaque para o projeto educativo proposto por Sarmiento, no qual as mulheres teriam um lugar primordial como educadora e como beneficiária da educação. Com o impulso da educação para ambos os sexos, surgiram também as primeiras universitárias. No ano de 1885 foi formada a primeira farmacêutica.

O Capítulo 4 reproduz o despertar feminista, anarquista e socialista na Argentina da primeira metade do século XX. Socialismo e feminismo, anarquismo e feminismo, esses entrecruzamentos se produziram, muitas vezes, na hora de apresentar projetos de lei vinculados à proteção infantil e das mulheres no trabalho. São dessa época, também, os primeiros projetos de lei relativos ao voto das mulheres (1919, apresentado pelo deputado Radical Rogelio Araya) e ao divórcio (1902). No caso do anarquismo e do feminismo, sua vinculação se deu mais quanto aos princípios antipatriarcais e a favor da liberdade dos corpos das mulheres para controlar a gravidez. Nesse período surgiram os primeiros congressos de feministas a favor da igualdade dos direitos civis e políticos. Terão importante atuação na luta pelo voto feminino a uruguaia radicada na argentina Maria Abella de Ramirez e a italiana Julieta Lanteri.

O Capítulo 5 descreve os passos dados pelo peronismo em relação às mulheres, que tiveram pela primeira vez a participação política no governo e uma entrada massiva no mundo laboral. Entretanto, destaca a autora que os valores peronistas relacionados às mulheres eram muito conservadores e paradoxais. Barrancos assinala claramente a contradição de Eva Perón, que, por um lado, reivindicava que o lugar das mulheres era no lar, junto a seus filhos e marido, e, por outro, solicitava apoio político para difundir o peronismo, enviando-as pelo interior da Argentina e afastando-as de suas famílias. O peronismo foi muito contraditório em relação às mulheres, devido ao poder que a Igreja Católica exerceu. Assim, por um lado, pulularam as associações femininas: em 1947 aprovaram o voto para as mulheres e foi reformulado o Código Civil. Entretanto, o projeto de divórcio foi rejeitado. A imagem das mulheres refletida em Eva Perón era a de esposa submetida à autoridade do homem e a de mãe por excelência.

Nos últimos capítulos, Barrancos localiza o feminismo da segunda onda na Argentina, no meio das revoluções de esquerda e da posterior ditadura militar. A década de 1960 marcou o começo da feminização das universidades, principalmente nas faculdades de Filosofia, História, Letras, Sociologia, Educação, Psicologia, Odontologia, Química e Farmácia, mas mostra como essa feminização se deu somente nas matrículas, já que o corpo de professores seguiu sendo até a década dos 1990, em sua maioria, masculino. Os costumes e os valores tiveram certa liberalização, as jovens sentiram mais liberdade em seus relacionamentos e saídas noturnas. O corpo feminino encontrou maior mobilidade, foi mais exibido pelo surgimento da minissaia e das novas danças e protegido da gravidez pelas pílulas. Porém, tanto o governo militar quanto as facções de esquerda limitaram seu uso por meio de políticas populacionistas. Em 1968 foi aprovada uma reforma no Código Civil que estabeleceria que nenhum dos cônjuges poderia administrar os bens do outro, estabelecendo-se, assim, a administração separada de bens dentro do casamento. Outra reforma importante do Código foi o estabelecimento do divórcio por mútuo consentimento. O feminismo da segunda onda esteve refletido em numerosas agrupações, como o Movimento de Libertação das Mulheres – MLM, o Centro de Investigação e Conexões sobre a Comunicação Homem- Mulher – CIC, a União Feminista Argentina – UFA, o Movimento de Libertação Feminina – MLF, a Associação pela Libertação da Mulher Argentina – ALMA, o Movimento Feminista Popular – MOFEP, o Centro de Estudos Sociais da Mulher – CESMA, entre outras. Com respeito às mulheres na guerrilha, a autora descreve seu perfil: em sua maioria eram menores de 30 anos e pertencentes a setores urbanos. Os Montoneros tinham um código moral estrito que estabelecia sanções para aqueles que fossem infiéis a seu cônjuge.2

Barrancos expõe que as violações das mulheres produzidas durante a ditadura militar, as condições de parto que viveram na cadeia e os sequestros dos recém-nascidos aumentaram a vitimização das mulheres. Afirma que, para elas, foram “infligidos repertórios mais amplos de suplício” (p. 253) do que para os homens. As mulheres, segundo Barrancos, sofreram mais do que os homens. Baseia essas afirmações nas obras das autoras argentinas Pilar Calveiro – Política y violência. Una aproximación a la guerrilla de los años 70 (2005) – e Ana Longoni – La figura del traidor en los relatos acerca de los sobrevivientes de la represión (2007). No Colóquio Internacional Gênero, Feminismos e Ditaduras no Cone Sul, realizado em maio de 2009, em Florianópolis, foi questionada em várias oportunidades essa ideia de “vitimização” das mulheres na tortura militar. Ver as mulheres torturadas como frágeis, débeis e vítimas em contraposição com a visão do torturador, visto como viril, forte e homem, apenas aumenta a divisão polarizada entre o feminino e o masculino, em vez de contribuir para uma análise menos tendenciosa. Pressupor que as mulheres sofreram mais na tortura pode esconder a experiência masculina.

A autora se pergunta “que hubiera pasado si la sensibilidad de las mujeres – su aguzado auscultamiento de la realidad y su cuota de sensatez acerca de los caminos de la política – hubieran tenido mas voz y mas poder em las organizaciones armadas” e responde “Tal vez muchos errores y horrores hubieran podido haberse evitado” (p. 255). Nessa frase e durante toda a obra, a autora nos revela sua concepção, por vezes, essencialista com respeito às mulheres. Parte da ideia de que existe um ser feminino “sensível”, com maior capacidade de visualizar a realidade e mais paixão e que foi mais vítima das torturas.3 O termo “gênero” é utilizado pela autora muitas vezes, mas sempre em substituição ao termo “sexo”. Como o título da obra diz, Dora Barrancos fez uma grande síntese da história das mulheres, partindo de uma ideia de mulheres definida por seus genitais.

A autora descreve o surgimento das Mães da Praza de Maio e das Avós, reafirmando sua legitimidade como protagonistas na busca da memória dos familiares perdidos: “Só as mães, nenhum outro intermediário, podiam levar de modo conseqüente e infatigável o rito de pedir, reclamar, inquirir a forças incomensuravelmente potentes […]” (p. 268, tradução nossa). A respeito dessa legitimidade pelos vínculos de sangue, Elizabeth Jelin questiona se os familiares seriam os únicos agentes capazes de procurar a memória perdida, já que isso limita a sua construção: “Es como si en la esfera publica del debate, la participación no fuese igualitária sino estratificada de acuerdo a la exposición pública del lazo familiar”.4

Dora Barrancos, no correr de sua obra, critica a desigualdade com que a historiografia tem trabalhado os homens em relação às mulheres como objeto de estudo. Segundo ela, sua obra procurou reduzir essa desigualdade, tornando visíveis as mulheres. Porém, ao não problematizar a diferenciação sexual e conceber os homens e as mulheres como seres essencialmente diferentes, com caracteres diferenciados na forma de ser, o que faz é continuar a desigualdade e o contraste que critica. Torna visíveis as mulheres, mas de forma dicotômica com respeito aos homens.

Notas

1 MUJERES Y GéNERO EM AMéRICA LATINA, 2009.
2 Sobre as mulheres na guerrilha armada a partir de uma perspectiva de gênero, ver Cristina Scheibe WOLFF, 2007, p. 19-38.
3 Com respeito a essas caracterizações das mulheres, ver p. 254-255 e p. 329.
4 Elizabeth JELIN, 2007, p. 45.

Referências

JELIN, Elizabeth. “Víctimas, famliares y ciudadanos-as. Las luchas por la legitimidad de la palabra”. Cadernos Pagu, Campinas, n. 29, p. 37-60, jul./dez. 2007.         [ Links ]

MUJERES Y GÉNERO EM AMÉRICA LATINA. Dora Barrancos: biografía. Fragmentos de una biografia. Disponível em: http://www.lai.fuberlin.de/es/e-learning/projekte/frauen_konzepte/projektseiten/frauenbereich/barrancos/index.html. Acesso em: 23 jun. 2009.         [ Links ]

WOLFF, Cristina Scheibe. “Feminismo e configurações de gênero na guerrilha: perspectivas comparativas no Cone Sul, 1968-1985”. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 27, n. 54, p. 19-38, 2007.         [ Links ]

María Laura Osta Vázquez – Universidade Federal de Santa Catarina.

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Rebeldes ilustradas (La otra transición) – GARCÍA DE LEÓN (REF)

GARCÍA DE LEÓN, María Antonia. Rebeldes ilustradas (La otra transición). Barcelona: Editorial Anthropos, 2008. 220 p. Resenha de: SUBIRATS, Marina. Socializadas bajo el franquismo, rebeldes en la transicion, feministas siempre (Reflexiones sobre una obra de actualidad). Revista Estudos Feministas v.17 n.3 Florianópolis Sept./Dec. 2009.

He aquí una original contribución para una Memoria de Género en la sociedad española actual. Con estas Rebeldes ilustradas que nos ofrece ahora María Antonia García de León, la autora avanza un paso más en lo que aparece ya como un proyecto intelectual consolidado: la construcción de la memoria colectiva de unas generaciones de mujeres españolas que rompieron los moldes de género e introdujeron en España una nueva manera de ser mujer. Herederas y heridas fue una primera indagación sobre la posibilidad y condición de este cambio, especialmente para las mujeres que dedicaron su vida a la Universidad y la investigación; su muy reciente Antropólogas, politólogas y sociólogas, de autoría compartida con María Dolores F. Figares, se plantea la indagación sobre qué ha ocurrido con las mujeres profesionales de las ciencias sociales, qué han hecho y qué han dejado en los ámbitos de sus especialidades. Y formula ya claramente una pregunta relevante ¿qué quedará de nosotras cuando hayamos muerto? Un interrogante que inquieta a María Antonia y que, a través de ella, se transmite como un eco a unos colectivos de mujeres que están llegando al tiempo de los balances.

Una inquietud y una pregunta totalmente pertinentes. Los indudables logros de las mujeres españolas que vivieron la transición política, la necesidad de afirmar las victorias para dejar atrás los tonos plañideros y comenzar a ser por derecho propio, han enmascarado, probablemente, muchas de las debilidades de la situación. Ser investigadoras, catedráticas, autoras reconocidas, profesoras en universidades prestigiosas, ostentar cargos políticos, son condiciones sociales que, detentadas por hombres, aseguran algún lugar en la memoria colectiva. Tal vez no un nombre propio o una estantería en las grandes bibliotecas; pero sí, por lo menos, un renglón en los registros de la impronta generacional. Atareadas en ser, en hacer, en vivir, dimos por descontada la inscripción automática en esta memoria, como algo inherente a los puestos conseguidos. Y hoy empezamos a ver que no es así, que sigue sin ser lo mismo ser autor que autora, y que la voz de las mujeres, sean quienes sean, no se inscribe automáticamente en la historia común. Porque la escritura de esta historia no fue nunca automática, sino selección desde el poder.

Un poder que seguimos sin lograr.

Así que, nos dice la autora, no hay que esperar a que los futuros cronistas nos rescaten del olvido, sino que, como siempre para las mujeres, ponte tu misma a tejer tu traje y deja de esperar en vano al hada madrina. Y he aquí un nuevo fruto de este empeño: con Rebeldes ilustradas María Antonia nos ofrece una nueva reflexión polifónica y multidimensional, y sigue abriendo caminos para la construcción de una memoria generacional.

Una reflexión polifónica: como suele hacer en la mayoría de sus obras, también aquí María Antonia García de León se acompaña de otras voces. En este caso, voces directas, no ya cortadas temáticamente o como ilustraciones de determinadas tesis. El relato personal de la propia vida nada tiene que ver con la exhibición: es parte de la historia, siempre, y en determinados casos, parte de una historia tan especial y atípica que debe ser conservada para que en el futuro puedan entenderse las trayectorias comunes a partir de estas huellas. Mujeres muy conocidas, indispensables en la historia española de los sesenta, los setenta, los ochenta, los noventa, los dos mil, que han explorado territorios, han derribado barreras, han colonizado espacios antes inaccesibles. Que lo siguen haciendo: Celia Amorós, Paloma Gascón, Isabel Morán, Pilar Pérez Fuentes. Perfiles obligados para entender una etapa del cambio, porque además de construirlo con sus vidas, tienen el don de la palabra y la capacidad de la reflexión, de la comprensión de los cómos y los porqués.

Tienen elaborada una narrativa que describe un mundo, una época, un antes y un después. Y nos muestran, paso a paso, día a día, cómo avanzaron en el difícil aprendizaje de ser mujeres tradicionales primero, de dejar de serlo después, de asumir perfiles, responsabilidades, tareas, que en su niñez nunca pudieron figurar en su horizonte vital, y a las que, en cambio, hubo que lanzarse, gozosas y temblando, sin apenas modelos, asumiendo riesgos, muchos riesgos.

Y también una voz propia, la de María Antonia, en una interesante autoentrevista, con la que sienta un precedente curioso, en la línea de la emergencia del sujeto como centro de la reflexión. Un precedente no exento de riesgos, una vez más, porque ¿cómo establecer la dualidad, el diálogo, la distancia necesaria para esquivar la autocomplacencia, el narcisismo, la autojustificación? ¿Por qué no escribir directamente unas memorias personales, género de reglas conocidas que no pretende más verdad que la personal? Mi impresión es que María Antonia no está interesada en contarnos su vida, sino en extraer de ella, como material que tiene a mano, la narración de una experiencia común y al mismo tiempo irrepetible. Y para ello, se desdobla en un diálogo consigo misma, en un alarde de duplicidad que nos hace olvidar que quien pregunta y quien responde es una misma persona. Sólo desde un hábito de distanciamiento largamente adquirido en la práctica de las ciencias sociales pueden tenerse ciertas garantías de objetividad en este tipo de ejercicio. Sólo desde el rigor de una mirada habituada a triturar la vida en la batidora de una metodología implacable es posible extraer de la propia experiencia categorías más universales que las del testimonio o la melancolía.

Polifonía, pues, pero también multidimensionalidad. Y es aquí donde Rebeldes ilustradas adquiere, en mi opinión, una amplitud de objetivos que la convierten en el libro más ambicioso de la autora.

He mencionado ya una primera dimensión: la de la voluntad de construcción de una memoria generacional en una etapa especialmente intensa. Para quienes la vivimos, todo suena a conocido. Pero vendrán otras, ya están aquí, que apenas pueden creerlo. “Me casaba en enero y no me dejaron salir en nochevieja”, cuenta Celia. Un ejemplo entre tantos. Y cada una de nosotras podría contar decenas de anécdotas parecidas, que configuran un mundo que ya no existe. Cuando alguna española, en el futuro, tenga la tentación de la nostalgia, que relea estas páginas, para celebrar con euforia su presente, que tantas, antes de nosotras, murieron sin alcanzar.

Pero hay más, hay más. La dimensión política recorre el libro, que no por azar lleva como subtítulo “La otra transición”. Efectivamente, la transición política española se ha considerado modélica, ha sido analizada, divulgada, ensalzada y hasta se ha intentado exportarla y copiarla. Pero ¿qué transición? Hubo tantas transiciones… Y la que ha sobrevivido, como siempre, fue la transición masculina, aquella a través de la cual una generación de hombres relevó a otra en el poder. Y, al realizar el relevo, no sólo cambiaron los nombres y las caras, sino las reglas de juego colectivas. ¿Quién va a negar su importancia?

Aquella transición, leída a menudo como una epopeya, fue posible porque culminó diversas transiciones. Que casi nunca fueron contadas. La transición de la clase trabajadora, por ejemplo, que pasó de clase en sí a clase para sí, para decir lo que quería y lo que no quería, y obligar así a cambiar las reglas de juego, porque había aprendido a usar en su favor las del franquismo y bloquear las fábricas cuando hiciera falta. O bloquear las escuelas, en un recuerdo para mí imborrable de miles de maestras en acción, utilizando incluso los sindicatos verticales cuando hizo falta. La transición de los partidos clandestinos, la transición de los estudiantes, la transición de los militares, la transición de los vencidos y de los exiliados, capaces de aceptar un paréntesis cuando hizo falta para pactar una nueva Constitución.

Y la transición de las mujeres, tal vez la más poderosa, tal vez la más olvidada. Como nos recuerda Anna Caballé en un magnífico prólogo, no había ninguna mujer entre los siete padres de la Constitución, y a nadie se le ocurrió sin embargo discutir su legitimidad. De hecho, todavía se está escribiendo una Constitución de la que formemos parte: las recientes leyes contra la violencia de género, por la igualdad, el proyecto que ahora mismo (invierno 2009) está en debate sobre la modificación de la ley del aborto, no son sino incorporaciones tardías a lo que debía haber sido una Constitución que contemplara la igualdad entre los dos sexos, la incorporación de las exigencias de los géneros y la desaparición de las barreras entre ellos. Porque esta transición se hizo, pero sin el suficiente reflejo en las leyes, en las normas colectivas. Como siempre, ello no era importante, podía esperar. Como ha sucedido en tantas transiciones, recordadas en este libro por Pamela Radcliff, Breny Mendoza y Amalia Rubio, en preciosas aportaciones que nos dan toda la dimensión política del tema.

En las grandes batallas, los hombres requieren el esfuerzo de las mujeres, su sacrificio, su tiempo y su energía, para lo que se presenta como una batalla para el bien común. Y dicen: “Tu causa es importante, pero debe esperar a que triunfe la mía. Después, todo se os dará por añadidura”. Lo oímos entonces: su transición era inaplazable, la nuestra podía esperar. Por suerte, muchas no lo creyeron ya, y las transiciones se hicieron en paralelo, sin pedir permiso, sin esperarlo. Pero ahora todo ello debe consolidarse para que nunca pueda producirse una vuelta atrás.

Consolidar la presencia de las mujeres en el ámbito público, en la historia, en las decisiones que se toman respecto a la vida colectiva como una exigencia inaplazable. Para que, en adelante, quien quiera contar con las mujeres tenga que incluirlas, o atenerse a las consecuencias: por ejemplo, no recibir su voto. Quien quiera escribir la historia tenga que incluirlas, o atenerse a las consecuencias: ser desautorizado como autor androcéntrico y parcial. Porque la huella de las que fueron antes ya sea tan imborrable que los olvidos no tengan justificación ni disculpa alguna.

Gracias de nuevo, María Antonia García de León, por seguir en la brecha de una tarea necesaria, en la que, esperemos, muchas otras y muchos otros te sigan.

Marina Subirats – Universitat Autònoma de Barcelona.

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Demystifying the Female Body in Hispanic Male Authors, 1880-1920 – COHEN (REF)

COHEN, Daria. Demystifying the Female Body in Hispanic Male Authors, 1880-1920 – Overcoming the Virgin/Prostitute Dichotomy. Queenston, Ontario: The Edwin Mellen Press, 2008. 111 p. Resenha de: FÉLIX, Regina R. As mulheres que os homens deixam escapar – literatura de língua castelhana escrita por homens (1880-1920). Revista Estudos Feministas v.17 n.3 Florianópolis Sept./Dec. 2009.

O estudo de Daria Cohen oferece uma análise rara do tratamento do corpo da mulher na literatura como um campo de “batalha ideológica” em selecionados contos de língua castelhana escritos por Rubén Darío, Manuel Gutiérrez Nájera, Manuel Díaz Rodríguez, Azorín (José Martínez Ruiz), Miguel de Unamuno e Ramón del Valle-Inclán no período conhecido como fin-de-siècle. O trabalho apresenta uma introdução, quatro capítulos e conclusão.

Na introdução, Cohen explicita sua base teórica. Expõe o recorte do período modernista na América Latina e na Espanha, ao considerar escritores latino-americanos e espanhóis conjuntamente, optando com acerto por uma periodização que conflui o modernismo latino-americano à Geração de 1898 espanhola, assim propondo a modernidade como um tempo de inovações que perpassam o Ocidente e não se atêm a localidades, como sugerem os teóricos Richard Cardwell, Federico de Onís, Ivan Schulman, Evelyn Picon Garfield, entre outros. Também aponta as teóricas feministas que a informam em sua análise, como Susan Suleiman, Elaine Showalter, Gilbert and Gubar, Rita Felski, entre outras. Em seu estudo, Cohen perscruta “tipos diferentes de corpos de mulher” dentro das relações de poder em que são encaixados pelos escritores. Distingue seu estudo em relação ao de Consuelo Arias (Representations of the Feminine in Modernismo: The Figure of the Exotic Woman. Em português, Representações do feminino no modernismo: a figura da mulher exótica). Citando Elisabeth Grosz (Volatile Bodies. Em português, Corpos voláteis), Cohen oferece uma boa discussão sobre o que denomina “feminismo corporal”, segundo o qual o corpo é tomado como um “terreno de contestação” interpenetrado, nem como vítima nem como agressor, por instâncias várias da vida social. O corpo, assim compreendido, seria a base da subjetividade moderna, como um “local de contradições”, segundo conceitos de Anthony Casdardi (The Subject of Modernity. Em português, O sujeito da modernidade), Meile Steele (Theorizing Textual Subjects, em português Teorizando sujeitos textuais) e Catherine Belsey (Critical Theory. Em português, Teoria crítica). Cohen se utiliza também da contribuição de “The Body of the Condemned” (em português, O corpo do condenado”) em Vigiar e punir, de Michel Foucault, completando a noção do corpo como ponto a partir do qual “resistência e agência estratégicas” são possíveis, sendo este o local no qual “choques de gênero, poder e subjetividade” ocorrem. Os capítulos apresentam diferentes caracterizações das mulheres – as manobras retóricas dos escritores para dar vazão às suas ansiedades, segundo Cohen, diante dos anseios da nova mulher que surgia.

O corpo como “O artefato sensual” é tratado no Capítulo 1. Cohen mostra a erotização do corpo da mulher por Rubén Darío (Nicarágua, 1867-1916), segundo uma estética, de fato, parnasiana, em “El rubí” – como objeto para o desfrute do olhar masculino. Para a autora, Darío cria uma aura de mistério que cultiva a alteridade, ao mesmo tempo enaltecendo e desfigurando o corpo da mulher. Assinalando a linguagem marcada por indícios de gênero, através da qual o artífice é o masculino e o material a ser modelado, o feminino, Cohen demonstra o significado subjacente ao texto como a vitória da criatividade ativa do homem sobre a matéria feminina inerte, como material bruto – reconfirmando a antiga dicotomia segundo a qual o masculino, com sua capacidade de idealização, não apenas cria sobre o corpo da mulher, mas desse modo pode controlá-lo. Mas “El rubí”, ao mostrar o corpo da mulher com suas fruições próprias, tentando ademais libertar-se, demonstra uma agência não usual à época, confirmando a visão da autora de que um novo sujeito feminino moderno emerge.

No Capítulo 2, o corpo feminino é “A moldura artística” com que a literatura modernista objetificou esteticamente a presença da mulher como réplica retórica e metafórica da feitura do texto ele mesmo. Cohen sugere que, nesse sentido, o corpo da mulher como moldura reflete “os vários níveis das noções de limite e produção artística”. Seguindo as sugestões de Helena Michie (The Flesh Made Word. Em português, A carne feita palavra), Cohen mostra como o corpo das mulheres procura se desvencilhar dos enquadramentos nos quais os escritores querem prendê-las. Em “Rosa, lirio y clavel”, de Azorín (Espanha, 1873-1967), um jogo da relação entre os gêneros emoldura a mulher para o olhar masculino, num texto modernista por excelência, dada a preocupação expressa (de l’art pour l’art) do escritor com o fazer literário. Na cena descrita por um velho viajante, de ambientação à la prérafaelitas, três mulheres se movimentam e seus corpos são detalhadamente descritos por sua sensualidade. Segundo a autora, ao descrevê-las e emoldurá-las, o escritor as “enquadra” também no sentido jurídico de que as detém para averiguação, ou seja, critica-as e julga-as. Ao transformá-las em flores que acompanham outros personagens mórbidos da história, o enquadramento seguinte mostra que a sensualidade e a vitalidade das mulheres são tornadas inanimadas, segundo a autora, como uma forma de sublimar o estranhamento do próprio escritor diante de um mundo que se transformava (e o assombrava) radicalmente. No conto, “La venganza de Milord”, de Manuel Gutiérrez Nájera (México, 1859-1895), mistério e intriga são mapeados nos corpos femininos. O narrador descreve a história de várias mulheres: Clara, a mulher que não amava; a segunda, a mulher boneca, sem vitalidade; a terceira, uma surreal mulher sem corpo cuja função obscura é aprisionar esposas; e, finalmente, Alícia, a mulher compelida a trair o marido para enfim terminar petrificada como a protagonista de A bela adormecida. No entanto, sem o beijo final que lhe restaurasse a vida, como sugere Cohen, Alícia termina como um simples cadáver. Segundo a autora, esses enquadramentos das persona-gens demonstram o temor da sociedade expressa pelo escritor quanto à possibilidade da autonomia da mulher que se insinuava. No último conto analisado no capítulo, “La muerte de la emperatriz de la China”, de Darío, Cohen mostra que a propensão do escritor para descrever como joia a mulher Suzette e como um estojo a sala em que se encontra evidencia o que Elaine Showalter denomina “The Case of Women”. Em português, “O caso da mulher” (em inglês, o vocábulo “case” significa tanto “caso” como “estojo”, “caixa”). Com isso, Showalter atenta para o fato de que a mulher se tornou, na época, um caso a ser analisado, como se fosse a caixa de Pandora, cheia de mistérios e perigos. Cohen nota, contudo, que Darío neste texto rompe com o padrão do texto anterior quando permite que sua protagonista destrua a imagem da imperatriz chinesa que o marido idolatrava em seu estúdio, dizendo, ao fazêlo, estar vingada. Para a autora, desse modo, Suzette “destrói o ícone exótico” que a espelha e, assim, demonstra “o sujeito feminino que astutamente resiste à opressão da sociedade”.

Os enquadramentos estéticos assinalados anteriormente, segundo Cohen, levam ao que analisa no Capítulo 3, ou seja, ao desvanecimento da mulher, como sugere o título “A presença apagada”, “em resposta à nascente subjetividade da mulher moderna”, já que os escritores com frequência se referem à morte da sensualidade feminina, exibindo um temor em relação à sua expressão. Consequentemente, Cohen detecta uma associação insistente entre o “corpo da mulher e a morte” como forma de aniquilação de seu poder. Cohen observa, no entanto, que há uma duplicidade nos textos, ou seja, uma tentativa de apagamento da mulher tão renitente como a emergência da agência feminina, mesmo que momentânea, em “cambiantes posições subjetivas” – ainda que a subjugação da mulher prevaleça, enfim. Em “Rosarito” e “Mi hermana Antonia”, Ramón del Valle-Inclán (Galícia, 1866-1936) exemplifica o apagamento da mulher “nas mãos do homem moderno”. A história da tímida e sexualmente inocente Antonia, que, seduzida por um estudante “de olhos de tigre”, fenece, traz novamente uma atmosfera tétrica que trata da morte do corpo da mulher de modo a restituir a moralidade social. Também Rosarito, descrita com uma sensualidade ambivalente de anjo e prostituta (“trágica e madalênica”) será seduzida e, enfim, morta pelo sedutor. Cohen compreende que ao matá-la, como já foi dito, o escritor procura extinguir o erotismo que aos poucos faz emergir a subjetividade da mulher moderna. Em “Cuento Rojo”, de Manuel Díaz Rodríguez (Venezuela, 1871-1927), a autora apresenta uma luta entre o masculino e o feminino no contexto cultural moderno. Aqui o misógino protagonista Renzi, como ocorre com o mito de Don Juan, torna suas conquistas em “bonecas inanimadas” até encontrar Irma, uma mulher que não sucumbe aos seus ardis. Com um tapa no rosto de Irma, Renzi responde à indiferença da mulher, que, logo em seguida, como uma “selvagem voluptuosa”, beija-o com os lábios ensanguentados. O narrador, nota Cohen, assinala a reação da mulher como algo novo a complicar o relacionamento entre amantes naquele tempo. Até aqui, Cohen conclui que a batalha entre os sexos ainda relega a mulher ao enquadramento do homem – seu temor da incipiente agência da mulher provoca a violência e o consequente apagamento dela.

Com o conto “Soledad”, de Miguel de Unamuno (Espanha, 1864-1936), Cohen inicia o Capítulo 4 no qual seu estudo culmina, enfim, com “A desmistificação do corpo da mulher”. Aqui se sobressai a mulher cujo modo de vida é satisfatório para si mesma. Amparo, uma mulher cujo marido é omisso e ausente, antes de morrer logo após ter uma filha, exige do marido que a nomeie Soledad, nome que definirá seu caráter, já que não pode contar com nenhum dos homens com quem se relaciona – pai, irmão ou amante. Ao aceitar essa decepção fundamental, para Cohen, dedicando-se à leitura de livros, Soledad viabiliza uma vida independente para si mesma. A sugestão de que lia também livros eróticos suscita a ideia de que sua autonomia se estende à sua própria sexualidade. Cohen aponta que, desse modo, Soledad transcende o estereótipo da solteirona solitária, sem par (the odd woman), um dos tipos sociais que suscitaram a questão da mulher à época. Os contos “La caperucita color de rosa” e “La ultima hada”, de Manuel Gutiérrez Nájera, que Cohen nos mostra, desconstroem tanto os mitos da ingenuidade da Chapeuzinho vermelho como o da magia das fadas. No primeiro caso, encontramos uma Chapeuzinho que ludibria a todos e planeja passo a passo um casamento vantajoso. A fada, por seu turno, é posta de lado pela personagem Pensamento, que, dispensando os encantamentos da outra, faz suas próprias escolhas. Em “La venganza de Milady”, do mesmo autor, não só Milady retribui Milord com infidelidades, mas, em última instância, o trai com a própria amante do marido. Para Cohen, como é evidente, não apenas a mulher toma a frente em defesa própria, mas o faz demonstrando tamanha audácia através da transgressão sexual de um relacionamento lésbico.

Em sua conclusão, Daria Cohen nota que os escritores que estuda apresentam o corpo da mulher, por um lado, subjugado pelo olhar e pela atuação masculinos, mas, por outro, também imbuído de resistência aos constrangimentos das normas patriarcais da época. Cohen faz uma recapitulação retomando o “processo de formação da identidade” que os Capítulos de 1 a 3 mostram, ou seja, a tentativa de emergência da moderna subjetividade da mulher que resulta numa atuação mais resoluta no Capítulo 4. Cohen ressalta que procurou mostrar a “transformação e o progresso” da força da nova subjetividade da mulher na modernidade entre escritores nos quais raramente se espera encontrar tal preocupação.

Como se vê, este estudo traz uma contribuição valiosa, pois ressalta um novo prisma em textos de grandes escritores do modernismo, qual seja, sua sensibilidade com as mudanças socioculturais que tiveram as relações de gênero como um de seus aspectos cruciais. Cohen salienta com cuidado o caráter ambivalente e contraditório da retórica que deixa entrever a formação da subjetividade feminina e como textualidade imbricada ao contexto social. Ainda que em alguns pontos repetitivo, dada a reiteração exaustiva da frase “emergência da subjetividade moderna da mulher”, bem como um pouco carente do desenvolvimento das teorias que cita entre as páginas 2 e 4, o livro tem seus méritos. Por salientar com destreza, além dos estratagemas com que os escritores expressaram seus temores quanto ao feminino, também seu próprio reconhecimento do potencial impetuoso das mulheres, a partir do conceito de desejo como cerne da subjetividade moderna, o trabalho de Daria Cohen merece a atenção dos estudiosos do assunto.

Regina R. Félix – University of North Carolina Wilmington.

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História das mulheres e as representações do feminino – TEDESCHI (REF)

TEDESCHI, Losandro Antonio. História das mulheres e as representações do feminino. Campinas: Curt Nimuendajú, 2008. 144 p. Resenha de FARIAS, Marcilene Nascimento de. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.17 n.3 Florianópolis Sept./Dec. 2009.

Nas últimas décadas do século XX, a história sofreu grandes transformações teóricas e metodológicas que direcionaram os olhares dos historiadores a temas e grupos sociais que, até então, estavam à margem dos estudos históricos, como as mulheres, os velhos, os operários, os camponeses e os escravos. Daí a história das mulheres emerge como um campo de estudo, influenciada pelos novos interesses da disciplina histórica e pelas campanhas feministas. Os reflexos dessas renovações não demoraram a alcançar o Brasil, e o aumento dos estudos sobre as mulheres nos programas de graduação e pós-graduação fez com que a história das mulheres se consolidasse rapidamente em nosso país.

Dentro desse contexto, o livro História das mulheres e as representações do feminino, de Losandro Antonio Tedeschi, publicado em 2008 pela editora Curt Nimuendajú, é mais uma contribuição aos que se ocupam em entender as mulheres na história. O autor, atualmente professor da Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD, onde atua no curso de graduação e pós-graduação em História, tem ampla experiência nesse tema, fruto de seus estudos de mestrado e doutorado, bem como de sua atuação junto a organizações como o Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais – MMTR e a Red de Educación Popular entre Mujeres de America Latina – REPEM.

O livro, dividido em três capítulos, busca, pela análise dos discursos filosófico-religiosos, compreender como em diferentes momentos históricos a sociedade enxergava o comportamento feminino e criava representações para as mulheres. Eram discursos legitimadores da inferioridade “natural” das mulheres. Nas palavras do próprio autor,

Esses discursos recorrentes exerceram influência decisiva na elaboração de códigos, leis e normas de conduta, justificando a situação de inferioridade em que o sexo feminino foi colocado […] Assim, a desigualdade de gênero passa a ter um caráter universal, construído e reconstruído numa teia de significados produzidos por vários discursos, como a filosofia, a religião, e educação, o direito, etc. perpetuando-se através da história, e legitimando-se sob seu tempo (p. 123).

Nessa perspectiva, Tedeschi utiliza-se das articulações entre história e gênero para demonstrar as inter-relações socialmente construídas entre os sexos. Sobre os estudos de gênero, o autor adverte serem importantes, na medida em que possibilitam a análise “das relações entre os sexos, buscando principalmente contribuir para os estudos sobre a condição feminina e a vida familiar na sociedade” (p. 10). Nesse sentido, o autor apresenta importantes considerações sobre os estudos de gênero na atualidade, mostrando os ganhos obtidos com essa nova abordagem histórica, que trouxe consigo “uma diversidade de documentações, uma teia de novos sentidos e significados, e requerem uma paciente busca de indícios, sinais e sintomas, uma leitura detalhada para descortinar a história das mulheres” (p. 11).

No primeiro capítulo – “História das mulheres: abordagens” -, como o próprio título evoca, o autor faz um breve apanhado sobre a história das mulheres, bem como sobre as diferentes abordagens da moderna historiografia, que perpassam essa área do conhecimento histórico, tais como imaginário, sexualidade, corpo, trabalho, relações de poder, relações de gênero, dominação simbólica, práticas discursivas, religiosidade, relações sociais, vida econômica e representações. Nesse sentido, a história cultural da maneira como é trabalhada por Roger Chartier mereceu especial destaque por parte do autor, que analisou formulações discutidas por esse historiador sobre a importância da representação para o entendimento do universo cultural, destacando os benefícios de se estudar a história das mulheres pelas representações: “Ao abordar a história das mulheres pelas representações, busca-se trazer para o cenário os discursos de construção das identidades e da interpretação masculina do mundo. Cabe então a nós, homens e mulheres, contribuir para desnaturalizar essa história” (p. 40).

O segundo capítulo, intitulado “Representações do feminino”, busca analisar, segundo o autor, “a construção históricofilosófica dos vários discursos que em certa época conferiram um caráter científico e natural aos papéis da mulher, do que significa ser mulher” (p. 12). Para tanto, Tedeschi elegeu dois discursos fundamentais para a compreensão das primeiras representações construídas na história sobre o feminino: o discurso de matriz filosófica grega e o discurso da moral cristã no mundo medieval.

No discurso de matriz filosófica grega, o autor destaca o olhar masculino da teoria filosófica, que pensava a mulher como um objeto, ou seja, “criaturas irracionais, sem pensar próprio”, que deveriam viver sob o controle dos homens. Representações estas que, segundo o autor, é possível perceber no pensamento filósofo de Platão, Aristóteles e Hipócrates, que, por meio de um discurso masculino sobre o corpo feminino, construíram mitos que justificavam a inferioridade e a fragilidade feminina.

Quanto às representações femininas presentes no discurso da moral católica, o autor ressalta que o modelo judaico-cristão exerceu influência significativa na definição do lugar ocupado pela mulher na Igreja, na sociedade e na cultura ocidental, não restando dúvidas de que esse discurso foi fundamental para reforçar as desigualdades de gênero. Ao buscar os modelos do feminino veiculados e defendidos pela Igreja Católica, Tedeschi identifica dois “paradigmas do feminino” que procuram enquadrar a percepção social das mulheres para a criação de seus modelos de autorrepresentação. Tais paradigmas são representados por duas mulheres centrais na tradição cristã, “Eva pecadora” e “Maria virtuosa”, que, devido às suas características antagônicas, são utilizadas pelo cristianismo para representar todo o universo feminino.

No terceiro e último capítulo – “A confluência dos saberes: as representações e os espaços sociais das mulheres” -, o autor se propõe a “pensar e aprofundar a questão dos lugares e funções, que se constroem pelo casamento e reforçam o ideal de lar e de maternidade – como papéis historicamente construídos e legitimados pela moral cristã” (p. 101). O autor ressalta que os papéis atribuídos à mulher, de mãe e esposa, foram representações que contribuíram para a definição de alteridade e identidade feminina, resultando em práticas culturais que a limitaram ao espaço privado. Tedeschi também trata das representações sociais das mulheres na modernidade, destacando que nesse período o poder patriarcal e a delimitação dos papéis das mulheres no espaço privado não diferiram das representações do feminino observadas na Antiguidade e no Medievo.

Nesse sentido, a leitura da obra História das mulheres e as representações do feminino, de Losandro Antonio Tedeschi, permite ao leitor conhecer e analisar os discursos responsáveis por construir a desigualdade de gênero como “natural”, bem como as representações sociais que esses discursos constroem sobre a mulher. Sintético, porém temporalmente abrangente, o livro permite uma visão panorâmica sobre o tema tratado, sendo, dessa maneira, extremamente útil aos estudantes dos cursos de graduação e pós-graduação e aos demais pesquisadores que têm em comum o interesse pela história das mulheres.

Marcilene Nascimento de Farias – Universidade Federal da Grande Dourados

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Becos da memória – EVARISTO (REF)

EVARISTO, Conceição. Becos da memória. Belo Horizonte: Mazza, 2006. Resenha de: OLIVEIRA, Luiz Henrique Silva de. “Escrevivência” em Becos da memória, de Conceição Evaristo. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.17 n.2 May/Aug. 2009.

“Homens, mulheres, crianças que se amontoaram dentro de mim, como amontoados eram os barracos de minha favela” (p. 21).

Evaristo, 2006, p. 21.

Maria da Conceição Evaristo de Brito nasceu em Belo Horizonte, em 1946. De origem humilde, migrou para o Rio de Janeiro na década de 1970. Graduou-se em Letras pela UFRJ, trabalhou como professora da rede pública de ensino da capital fluminense e da rede privada de ensino superior. É mestre em Literatura Brasileira pela PUC-Rio. No momento, está concluindo doutorado em Literatura Comparada na Universidade Federal Fluminense. Em sua pesquisa, estuda as relações entre a literatura afro-brasileira e as literaturas africanas de língua portuguesa. Participante ativa dos movimentos de valorização da cultura negra em nosso país, estreou na arte da palavra em 1990, quando passou a publicar seus contos e poemas na série Cadernos Negros, suporte de que se utiliza até hoje.

Em 2003, veio a público o romance Ponciá Vicêncio, pela editora Mazza, de Belo Horizonte. Seu segundo livro, outro romance, Becos da memória, foi escrito em fins dos anos 1970 e início dos 1980. Ficou engavetado por cerca de 20 anos até sua publicação, em 2006. Desde então, os textos de Evaristo vêm angariando cada vez mais leitores, sobretudo após a indicação de seu primeiro livro como leitura obrigatória do Vestibular da UFMG, em 2007. A escritora participou ainda de publicações coletivas na Alemanha, na Inglaterra e nos Estados Unidos. Sua obra de estreia foi traduzida para o inglês e está em processo de tradução para o espanhol.

A obra em prosa de Conceição Evaristo é habitada, sobretudo, por excluídos sociais, dentre eles favelados, meninos e meninas de rua, mendigos, desempregados, beberrões, prostitutas, “vadios” etc., o que ajuda a compor um quadro de determinada parcela social que se relaciona de modo ora tenso, ora ameno, com o outro lado da esfera, composta de empresários, senhoras de posses, policiais, funcionários do governo, dentre outros. Personagens como Di Lixão, Duzu-Querença, Ana Davenga e Natalina, presentes no universo dos contos publicados nos Cadernos Negros; Ponciá Vicêncio, Vô Vicêncio, Luandi, Nêngua Kainda, Zé Moreira, Bilisa e Negro Glimério, listados em Ponciá Vicêncio; Maria-Nova (desdobramento ficcional da autora?), Maria Velha, Vó Rita, Negro Alírio, Bondade, Ditinha, Balbina, Filó Gazogênia, Cidinha-Cidoca, Tio Totó e Negra Tuína, de Becos da memória, exemplificam, no plano da ficção, o universo marginal que a sociedade tenta ocultar.

Becos da memória é marcado por uma intensa dramaticidade, o que desvela o intuito de transpor para a literatura toda a tensão inerente ao cotidiano dos que estão permanentemente submetidos à violência em suas diversas modalidades. Barracos e calçadas, bordéis e delegacias compõem o cenário urbano com que se defrontam os excluídos de todos os matizes e gradações, o que insinua ao leitor qual a cor da pobreza brasileira. No entanto, a autora escapa das soluções fáceis: não faz do morro território de glamour e fetiche; tampouco, investe no traço simples do realismo brutal, o qual acaba transformando a violência em produto comercial para a sedenta sociedade de consumo.

Os fragmentos que compõem Becos da memória procuram aliar a denúncia social a um lirismo de tom trágico, o que remonta ao mundo íntimo dos humilhados e ofendidos, tomados no livro como pessoas sensíveis, marcadas, portanto, não apenas pelos traumas da exclusão, mas também por desejos, sonhos e lembranças. Violência e intimismo, realismo e ternura, além de impactarem o leitor, revelam o compromisso e a identificação da intelectualidade afrodescendente com aqueles colocados à margem do que o discurso neoliberal chama de progresso.

Sabendo que é possível à obra (re)construir a vida, através de “pontes metafóricas”, pelo projeto literário de Conceição Evaristo vislumbram-se pistas de possíveis percursos e leituras de cunho biográfico. Na configuração do romance em questão pululam aqui e ali, ora na ficção, ora em entrevistas, ora em textos acadêmicos, peças para a montagem de seu quebracabeça literário e biográfico. Uma das peças desse jogo parece ser a natureza da relação contratual estabelecida entre o leitor e o espaço autoficcional em que se insere Becos da memória. Aqui, a figura autoral ajuda a criar imagens de outra(s) Evaristo(s), projetada(s) em seus personagens, como Maria-Nova, por exemplo. Em outras palavras, processa-se uma espécie de exercício de elasticidade de um eu-central. Desliza-se com facilidade na prosa de Evaristo entre o romance e a escrita de si. Se, tradicionalmente, aquele se preocupa com o universal humano e esta, com o particular ou com o indivíduo, a autora propõe a junção dos dois gêneros, pois, para ela, pensar a si é também pensar seu coletivo. Do ponto de vista formal não é diferente: não se utilizam capítulos, mas fragmentos, bem a gosto do narrador popular benjaminiano. Nessa perspectiva, vê-se o mundo através da ótica dos fragmentos e dos indivíduos anônimos que compõem boa parte da teia social.

Neste livro de corte tanto biográfico quanto memorialístico, nota-se o que a autora chama de escrevivência, ou seja, a escrita de um corpo, de uma condição, de uma experiência negra no Brasil. Tanto na vida da autora quanto em Becos da memória, a leitura antecede e nutre as escritas de Evaristo e de Maria-Nova, razão pela qual lutam contra a existência em condições desfavoráveis. Ler é também arquivar a si, pois se selecionam momentos e estratégias de elaboração do passado, o qual compõe as cenas vividas, escritas e recriadas em muitos de seus personagens. Finalmente, decodificar o universo das palavras, para a autora e para Maria-Nova, torna-se uma maneira de suportar o mundo, o que proporciona um duplo movimento de fuga e inserção no espaço. Não menos importante, a escrita também abarca estas duas possibilidades: evadir para sonhar e inserir-se para modificar.

O lugar de enunciação mostra-se solidário e identificado com os menos favorecidos, vale dizer, sobretudo, com o universo das mulheres negras. E o universo do sujeito autoral parece ser recriado através das caracterizações físicas, psicológicas, sociais e econômicas de suas personagens do gênero feminino. Maria-Nova, presente em Becos da memória, aos nossos olhos, compõe-se, mais do que todas as personagens, de rastros do sujeito autoral: menina, negra, habitante durante a infância de uma favela e que vê na escrita uma forma de expressão e resistência à sorte de seu existir. Uma ponte metafórica que arriscamos instalar permite ver em comum, ainda, o fato de serem provenientes de famílias sustentadas por matriarcas lavadeiras, transitantes entre os mundos da prosperidade e da miséria, ou seja, Conceição e Maria-Nova cumpriram, no espaço familiar em que estiveram, o papel de mediação cultural que aperfeiçoou o processo de bildung (confirma palavra em inglês?) de uma e de outra.

A obra se constrói, então, a partir de “rastros” fornecidos por aqueles três elementos formadores da escrevivência: corpo, condição e experiência. O primeiro elemento reporta à dimensão subjetiva do existir negro, arquivado na pele e na luta constante por afirmação e reversão de estereótipos. A representação do corpo funciona como ato sintomático de resistência e arquivo de impressões que a vida confere. O segundo elemento, a condição, aponta para um processo enunciativo fraterno e compreensivo com as várias personagens que povoam a obra. A experiência, por sua vez, funciona tanto como recurso estético quanto de construção retórica, a fim de atribuir credibilidade e poder de persuasão à narrativa. No livro em questão, a voz enunciativa, num tom de oralidade e reminiscência, desfia situações, senão verdadeiras, verossimilhantes, ocorridas no “morro do Pindura Saia”, espaço que bem se assemelha ao da infância da autora. Arriscamos dizer que há “jogo especular”, portanto, entre a experiência do sujeito empírico e de Maria-Nova, para além da simetria do espaço da narrativa (favela) e do espaço da infância e da juventude da autora (idem).

Outro bom exemplo de jogo especular consiste em uma situação por que realmente passou Evaristo e que se repete com Maria-Nova. Aliás, tem sido realmente um verdadeiro trauma para crianças negras estudar na escola tópicos relativos à escravidão e seus desdobramentos. Enquanto a professora se limitava à leitura de um conteúdo abstrato e com visão eurocêntrica acerca do passado escravocrata, Maria-Nova não conseguia enxergar naquele ato – e na escola – sentido para a concretude daquele assunto. Afinal, ela e a autora viviam e sentiam na pele as consequências da exploração do homem pelo homem na terra brasilis. Sujeito-mulher-negra, abandonada à própria sorte a partir do dia 14 de maio de 1888,

Maria-Nova olhou novamente a professora e a turma. Era uma história muito grande! Uma história viva que nascia das pessoas, do hoje, do agora. Era diferente de ler aquele texto. Assentou-se e, pela primeira vez, veio-lhe um pensamento: quem sabe escreveria esta história um dia? Quem sabe passaria para o papel o que estava escrito, cravado e gravado no seu corpo, na sua alma, na sua mente (p. 138).

A garota, ciente de que a história das lutas dos negros no Brasil começava já com as primeiras levas diaspóricas, parece repetir o célebre questionamento de Gayatri Spivac: “pode o subalterno falar?”. Mais que isso: falar, ser ouvido, redigir outra história, outra versão, outra epistemologia, que leve em conta não o arquivamento das versões dos vencidos, mas que valorize o sujeito comum, anônimo, do dia a dia. Talvez Maria-Nova nem tenha se dado conta de que o que ela havia pensado era exatamente a fundamentação de boa parte dos Estudos Pós-Coloniais e da História Nova. Nesse sentido, os corpos-textos de Maria-Nova e Conceição Evaristo possuem em comum a missão política de inventar outro futuro para si e para seu coletivo, o que lhes imbui de uma espécie de dever de memória e dever de escrita. Vejamos: “agora ela [Maria-Nova] já sabia qual seria a sua ferramenta, a escrita. Um dia, ela haveria de narrar, de fazer soar, de soltar as vozes, os murmúrios, os silêncios, o grito abafado que existia, que era de cada um e de todos. Maria-Nova, um dia, escreveria a fala de seu povo (p. 161).

E a escrita acompanhará a pequena até a última página do livro, o que nos permite pensar que a missão ainda está em processo: “não, ela [Maria-Nova] jamais deixaria a vida passar daquela forma tão disforme. […] Era preciso viver. ‘Viver do viver’. […] O pensamento veio rápido e claro como um raio. Um dia ela iria tudo escrever” (p. 147).

E escreveu em seu mundo de papel. Coube a Evaristo registrar o desejo de Maria-Nova e, logo, seu próprio desejo. O desdobramento de uma em outra e as pontes metafóricas que pretendemos instaurar não esgotam as possibilidades de leituras, mas permitem a possibilidade de muitas outras, que despertem o afã de também escrever.

Luiz Henrique Silva de Oliveira – Universidade Federal de Minas Gerais

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Vozes femininas do Império e da República – LÔBO; FARIA (REF)

LÔBO, Yolanda; FARIA, Lia (orgs.). Vozes femininas do Império e da República. Rio de Janeiro: Quartet : FAPERJ, 2008. Resenha de: PAIVA, Kelen Benfenatti. Contar, é preciso. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.17 n.2 May/Aug. 2009.

É fato que a história das mulheres e sua inserção no espaço público foram marcadas por uma longa trajetória de preconceitos e de dificuldades, por isso faz-se, ainda hoje, necessário contar essa história tantas vezes silenciada ao longo dos séculos. E com certeza foi essa a intenção de Yolanda Lôbo e Lia Faria quando reuniram, em Vozes femininas do Império e da República, uma coletânea de artigos com a intenção de “descortinar ideologias e utopias presentes no imaginário feminino, apontando assim para a construção histórica do gênero feminino em Portugal e no Brasil” (p. 16).

Com 368 páginas, o livro publicado pela Editora Quartet e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), em 2008, está a serviço de contar a história das mulheres por meio de experiências pessoais que ultrapassam a esfera do individual. Pode-se afirmar que a diversidade de assuntos abordados e os diferentes enfoques são perpassados e conduzidos por dois eixos centrais: educação e gênero.

Estruturalmente, o livro apresenta-se dividido em três partes: “Falas Imperiais”, “Falas Literárias” e “Falas Apaixonadas”. Na primeira constam dois artigos cuja temática é a educação no Oitocentos. Na segunda aparecem cinco textos que tratam de nomes importantes de mulheres na imprensa, na educação e na literatura. E em “Falas Apaixonadas” concentram-se quatro artigos que enfocam a atuação política e as intervenções de mulheres na educação e na cultura.

Sobre educação, é possível uma “volta” ao passado com Maria Celi Chaves Vasconcelos em “Vozes femininas do Oitocentos: o papel das preceptoras nas casas brasileiras”, em que a autora recupera parte da história das mulheres que encontraram nessa prática educativa um meio de subsistência. Como destaca a autora, as preceptoras foram, no século XIX, as primeiras educadoras “oficialmente instituídas que tornaram o seu ‘fazer’ uma ‘atividade profissional’ remunerada, representando a abertura do mercado de trabalho intelectual à condição feminina” (p. 38).

Sobre a educação feminina, cabe destacar o enfoque dado por Suely Gomes Costa em “Diário de uma e outras meninas: práticas domésticas e educação”, em que o olhar da pesquisadora se volta ao Diário de Helena Morley, publicado em 1942. A partir das experiências pessoais vividas na infância em Diamantina, narradas no diário, registra-se “um painel de trabalho de muitas mulheres a sua volta, das mais às menos instruídas, entrelaçadas em rede, nessa luta comum por sobrevivência” (p. 67). As confissões relatam a participação de meninas nos afazeres domésticos diários e a dificuldade de conciliar a casa e a escola. Destacam, ainda, como aponta Suely, a participação feminina na captação de moedas por meio do trabalho restrito ao âmbito do lar, as chamadas “prendas femininas”. Por fim, o artigo ressalta que a luta pela sobrevivência, nesses casos, criou “reiteradas restrições de acessos à educação” (p. 70).

Será a educação, ainda, pano de fundo em “Vozes católicas: um estudo sobre a presença feminina no periódico A Ordem (anos 1930-40)”. No artigo, Ana Maria Bandeira de Mello Magaldi resgata a participação de algumas mulheres na revista e destaca o caráter de “apostolado doutrinário e espiritual” da publicação. Atenta para a participação, dentre outras, de Lúcia Miguel Pereira na seção “Crônica feminina”, criada em 1932. Nas crônicas assinadas pela autora, há uma reflexão sobre os novos rumos da vida social que impactariam na condição feminina. Sobre o assunto, a cronista deixa explícita sua preocupação com risco de a mulher deixar-se seduzir por um ritmo, uma “trepidação”, própria dos tempos modernos, que a conduziria ao trabalho remunerado na esfera pública, quase sempre marcado pelo individualismo. É o foco no social a maior defesa da autora, que enfatiza a importância da educação feminina para um projeto segundo o qual a mulher deveria “pôr a serviço do bem comum as riquezas de sua psicologia materna “(p. 98), como bem destaca a autora do artigo.

É ainda pelo viés da educação e da literatura que Constância Lima Duarte nos apresenta Nísia Floresta, nome importante no avanço da educação feminina no Brasil, que traz em quase todos os seus livros “o propósito de formar e modificar consciências” e o projeto de “alterar o quadro ideológico-social” (p. 106). Em “Nísia Floresta e a educação feminina no séc. XIX”, a pesquisadora destaca o caráter inovador das ideias e práticas educativas de Nísia, como sua defesa por uma educação feminina pautada menos na educação da agulha e mais em uma formação multifacetada. Lembra ainda que, na produção da escritora, há textos que se inscrevem na tradição de uma “prosa moralista de intenção nitidamente doutrinária”, com o objetivo principal de “transformar a mulher indiferente em mãe amorosa e responsável”, contribuindo – sem o saber – para a cristalização de uma “mística feminina” (p. 140). A pesquisadora afirma que, a posteriori, “é fácil de perceber a manipulação ideológica desse discurso e as conseqüências na vida das mulheres” e destaca como o elogio da maternidade tornou-se uma “nova forma de enclausuramento” (p. 140).

Em “Carmen Dolores: as contradições de uma literata da virada do século”, Rachel Soihet e Flávia Copio Esteves se unem para apresentar ao leitor outra mulher à frente de seu tempo. Ciente das aptidões e dos papéis de cada gênero como construções sociais, Carmen Dolores usou a escrita para tratar de assuntos de interesse das mulheres, como a desmistificação da maternidade como seu único destino e a defesa do divórcio em nome da integridade familiar, da política, da educação e do trabalho feminino. Convivem nas crônicas assinadas pela autora a busca da libertação feminina pela educação e pelo trabalho e a manutenção de alguns comportamentos femininos. Tal paradoxo, claramente apontado pelas autoras, deve-se ao fato de que a escritora é, como tantas outras, uma “expressão da cultura de seu tempo e de sua classe”, sendo preciso considerar “a flexibilidade da ‘jaula’ representada pela cultura” (p. 165-166).

Pelo viés memorialístico e pelo cunho autobiográfico dos diários, dos cadernos de anotações e dos álbuns de memórias da professora Maria Luiza Schmidt Rehder, textos analisados por Marilena A. Jorge Guedes de Camargo, em “Ecos de um passado feminino: entre escritos e sentimentos”, chegam a nós relatando a trajetória de uma mulher movida pelos sentimentos que se propõe a “fazer história com sua experiência”. Assim, ao narrar sua vida, em Rio Claro, registra também acontecimentos importantes da década de 1930. Relata, por exemplo, a formação de um exército de voluntários unidos sob ideais patrióticos em defesa de São Paulo e registra a participação das mulheres paulistas na Revolução de 1932, costurando fardas e cobertores, angariando donativos para a manutenção dos batalhões, além da atuação das enfermeiras em hospitais de campanha.

Ao falar da condição feminina impressa no romance A doce canção de Caetana, de Nélida Piñon, Tânia Navarro Swain propõe uma “leitura ativa” que em nada se pretende imparcial ou distanciada, “apropriando-se” da narrativa para criar e atribuir-lhe sentidos múltiplos. Assim, em “A doce canção de Caetana: meu olhar” busca investigar as imagens e representações sociais do feminino e do masculino que habitam o romance. Discute, entre outros assuntos, a instituição do casamento como valor social na manutenção do poder masculino; a “ilusória força masculina” pautada no “fantasma da potência sexual” e na “posse de corpos alheios”; e a prostituição como “criação social”, na qual, como destaca a autora, há “violência de corpos desprovidos de subjetividade” (p. 216).

Atravessando o Atlântico, Áurea Adão e Maria José Remédios detêm-se na participação política das mulheres em Portugal de 1946 a 1961. Em “Os discursos do poder e as políticas educativas na governação de Oliveira Salazar: as intervenções das mulheres na Assembléia Nacional”, as autoras atentam para a atuação das deputadas na Assembleia Nacional bem como para a imagem do feminino que subjaz, explícita ou implicitamente, nas suas intervenções. Para tanto, analisam os discursos de seis mulheres parlamentares e observam que algumas áreas estavam restritas à intervenção pública feminina: a educação, a família, a assistência social e a saúde. Toda tentativa de ir além de tais assuntos era marcada por justificativas das parlamentares diante de seus pares. Ainda nos discursos dessas mulheres pode-se perceber, como destacam as autoras, a defesa da permanência da mulher no âmbito do lar, numa “valorização da função de mãe de família” e de “guardiã vigilante da harmonia e da felicidade do lar”, numa “verdadeira vocação de mulher” (p. 272), contribuindo para a manutenção de um questionável modelo social.

Seguindo ainda a trilha de mulheres que fizeram história, Lia Ciomar Macedo de Faria, Edna Maria dos Santos e Rosemaria J. Vieira da Silva seguem os passos da professora e historiadora Maria Yeda Linhares. De perfil “questionador e combativo” e de trajetória marcada “pela irreverência e coragem intelectual”, Maria Yeda se colocou em defesa do direito à educação e à garantia de uma escola pública efetivamente republicana, pois, para ela, segundo destacam as autoras em “Os múltiplos olhares de Maria Yeda Linhares: educação, história e política no feminino”, o sucesso da escola pública significa uma “questão de sobrevivência se quisermos existir como povo e nação” (p. 297).

A trajetória de outra professora, Myrthes de Luca Wenzel, também é abordada em “Alcachofras-dos-telhados: lições de pedagogia de uma educadora”, por Yolanda Lôbo. À frente da Secretaria Estadual de Educação e Cultura do Rio de Janeiro, a educadora reuniu em torno de si um seleto grupo de intelectuais e foi, como destaca a autora do artigo, idealizadora de uma “pedagogia libertadora”, uma proposta educacional inovadora, que buscava a felicidade dos alunos, “com liberdade de criar, de viver em sociedade e ao mesmo tempo preparados de modo completo e científico” (p. 316).

Voltando-se ao espaço sociocultural português, Zília Osório de Castro, em “Na senda do feminismo intelectual”, discute a condição feminina a partir da reflexão do papel do intelectual. Destaca a criação das revistas Pensamento, O Diabo e O Sol Nascente, na década de 1930, que “apostavam na reforma cultural” e traziam em suas páginas o tema do feminismo em meio ao “confronto de valores culturais presente na sociedade portuguesa de então” (p. 340). A participação das mulheres nessas revistas representou, segundo a autora, uma evolução, seja por sua inserção em um espaço majoritariamente masculino, seja pelo reconhecimento de suas potencialidades e sua “comparticipação na criação da nova sociedade” ou pela “conscientização de uma outra idéia de mulher” (p. 340), ser humano dotado de direitos e deveres. Por meio dessas mulheres se deu um “feminismo interventivo e não apenas participativo, um feminismo cívico e não apenas político” (p. 341). Zília lembra o nome de Ana de Castro Osório no feminismo cultural dos anos 1930, que defendia o trabalho como “carta de alforria” da mulher com o objetivo de responsabilizá-la por seu próprio destino. Observa ainda, nos periódicos analisados, dois tipos de feminismo: um “feminismo feminino”, pelo qual a mulher reivindicava uma função social, além da revisão da sua situação familiar, profissional e política; e um “feminismo masculino”, pelo qual os homens escreviam em “defesa” das mulheres.

É interessante notar, pela leitura dos artigos reunidos em Vozes femininas do Império e da República, como o lento processo de “libertação” da mulher está ligado à promoção de sua educação, de seu desenvolvimento intelectual e de seu trabalho, reafirmando o que Virgínia Woolf teorizou tão bem em Um teto todo seu. O leitor que se aventurar nas instigantes trilhas propostas pelas autoras deste livro chegará ao final de sua leitura com a visão panorâmica das principais lutas e obstáculos vivenciados pelas mulheres ao longo dos séculos, em diferentes contextos, dos quais o reconhecimento da diferença e o direito à educação foram fundamentais ao que se convencionou chamar de feminismo.

Pode-se dizer que, nas páginas deste livro, configura-se um feminismo crítico através das vozes de 13 mulheres que se unem para contar histórias de outras mulheres, que, por sua vez, superam os relatos pessoais e fazem coro com as autoras dos artigos para narrarem juntas uma história bem mais ampla: a história das mulheres.

Kelen Benfenatti Paiva – Universidade Federal de Minas Gerais

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Questões de gênero: literatura e gênero, coletânea de estudos de literatura brasileira – DALCASTAGNÈ (REF)

DALCASTAGNÈ, Regina. Questões de gênero: literatura e gênero, coletânea de estudos de literatura brasileira. Brasília: Gráfica Qualidade, 2008. 219 p. Resenha de: MARRECO, Maria Inês de Moraes. Questões de gênero: incontáveis caminhos no universo da literatura. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.17 n.2  May/Aug. 2009.

Trata-se de uma publicação semestral do Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília, com o apoio do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da UnB. O foco principal da revista é fomentar debates críticos sobre a literatura contemporânea produzida no Brasil, em suas variadas manifestações teóricas e metodológicas, estendendo-se a outras literaturas, em especial da América Latina. A revista, além de sua área temática, aceita artigos sobre perspectiva comparada, sem restrição ou vertente teórico-metodológica. Possui três seções fixas distintas: uma de dossiês a respeito de um tema relevante da área, uma de artigos e ensaios diversos e uma de resenhas.

O presente número traz um dossiê a respeito de Literatura e Gênero, com dez ensaios, seguido de quatro artigos e duas resenhas. A maioria dos autores é formada de professores doutores de diversas universidades do Brasil e do exterior. Os demais são doutorandos e mestres.

Em “Narrativas cosmopolitas: a escritora contemporânea na aldeia global”, Sandra Regina Goulart Almeida discute como os pressupostos teóricos da contemporaneidade podem ser pensados em termos de estudos de gênero. A autora divide seu texto em duas partes: “Narrativas cosmopolitas” e “Uma escritora contemporânea na aldeia global”. A primeira parte do estudo aborda questões problemáticas em relação à mulher no novo contexto socio-cultural. Na segunda parte a autora discute as visões de uma escritora contemporânea, tomando como base o conto da pernambucana Marilene Felinto, “Muslim: Woman”, cuja narrativa explora o encontro de duas mulheres, simbolicamente, em um aeroporto africano.

Simone Pereira Schmidt, em “De volta para casa ou o caminho sem volta em duas narrativas do Brasil”, discute a representação do corpo feminino subalterno em dois romances brasileiros: As mulheres de Tjucopapo (1982), de Marilene Felinto, e Ponciá Vicêncio (2003), de Conceição Evaristo. A narrativa enfoca o corpo como lócus em que se desdobram as tensões resultantes das relações desiguais de gênero, raça e classe no Brasil; corpo colonizado e verdadeiro campo de batalha. Aborda, também, os deslocamentos efetuados pelas personagens femininas nos dois romances como percursos formadores de sua personalidade. O marco inicial da formação das duas protagonistas, Rísia e Ponciá, é a estrada: “As personagens das narrativas em questão desejam falar de sua experiência, […] tomam a estrada, não se fixam, vão, voltam, buscam. A questão identitária que está posta nesta busca é vital para cada uma delas” (p. 26).

Em “Deslocar-se para recolocar-se: os amores entre mulheres nas recentes narrativas brasileiras de autoria feminina”, Virgínia Maria Vasconcelos Leal discute a representação, na literatura brasileira contemporânea, de um grupo social em que se cruzam duas categorias identitárias consideradas marginalizadas: o gênero e a homossexualidade.

No caso de “Gêneros indefinidos e corpos inadequados revelam ideal feminino inatingível, em Deixei ele lá e vim, de Elvira Vigna”, Adelaide Calhman de Miranda analisa a representação dos corpos na construção da identidade feminina no romance policial citado. O fracasso, a exclusão social e até a morte são vistos como consequência da falta de adequação física das personagens ao modelo ideal de corpo. A imposição do padrão ideal é revelada como violência simbólica, que resulta em doenças, disfunções e outros tipos de sofrimento físico e psicológico. A autora divide este dossiê em três partes: “O corpo é submetido a vários tipos de violência”, “O sexo indefinido aponta a arbitrariedade da construção social dos gêneros” e “A história falsa de Shirley Marlone ilustra a arbitrariedade do padrão cultural da mulher”.

Maria da Glória de Castro, ao analisar “O interdito no ideal de nação: a lesbiana existe para a literatura brasileira?”, pensa no porquê do silenciamento e da marginalização de produções literárias que transitam pela temática da homoafetividade feminina, a partir da produção de Cassandra Rios, autora pioneira na construção de uma literatura gendrada à sexualidade lesbiana. O texto de Maria da Glória questiona essa temática em relação ao desprestígio e ao silenciamento sofridos pela escrita de autoria feminina.

No texto “Nas tramas da memória: a cronista e militante Eneida de Moraes”, Eunice Ferreira dos Santos mostra, através da articulação de sua obra, a militância político-partidária. Examinou textos extraídos dos livros que compõem a trilogia memorialística de Eneida: Cão da madrugada (1954), Aruanda (1957) e Banho de cheiro (1962). Para o enfoque crítico, respaldou-se em bibliografias documentais localizadas nos arquivos da Delegacia da Ordem Política e Social de São Paulo e do Superior Tribunal Militar (STM). A autora dividiu seu texto em “A escrita de Eneida em algum lugar da história políticoliterária brasileira” e “A cronista e a militante: o ideário comunista revisitado pela memória”, este último subdividido em “Cão da madrugada” e “Aruanda e Banho de cheiro”.

Em “A escrita de autoria feminina no Paraná: Greta Benitez e a alquimia das letras”, Níncia Cecília Ribas Borges Teixeira tem como meta contribuir para a discussão sobre a representação do papel da mulher na sociedade contemporânea, a partir do viés literário, além de proporcionar visibilidade acadêmica à escritora paranaense Greta Benitez. Examina a relação entre literatura e a presença das mulheres nas práticas sociais, numa sociedade que cria a imagem negativa do feminino e a projeta como outro. Níncia constrói seu texto dividindo-o em subtítulos: “Retratos da escrita de autoria feminina: cenas paranaenses”, “Greta Benitez: o exercício da liberdade total” e “Conclusão”.

Em “Gênero e ‘raça’ na literatura brasileira”, Florentina Souza discute as relações entre gêneros e raça baseadas em estudos realizados sobre representações de mulheres negras, revendo tópicos dos estudos contemporâneos focalizados na literatura brasileira. Aponta diferentes opiniões de escritores que trabalharam a forte relação entre raça, gênero e sexualidade.

“Fios comuns”, estudo baseado em oposições binárias, relativismos ou universalismos, noções outras do eu e do outro, do humano e do não humano, do meio ambiente e das técnicas do corpo, no qual Norma Telles enfoca, também, divergentes leituras sem se misturarem por serem afirmadas na diferença e na diversidade, na fluidez e na flexibilidade do fio de Ariadne. A autora destaca a interligação do humano e do literário e faz considerações sobre a literatura escrita por mulheres.

No texto “Centro e margens: notas sobre a historiografia literária”, Rita Terezinha Schmidt tece considerações sobre teoria e seus efeitos no campo literário e o ressurgimento do interesse sobre a história da literatura, problematizando a narrativa das histórias de literatura brasileira com base em pesquisas sobre o século XIX. Enfoca, também, a recuperação de dois romances de autoria feminina: Memórias de Marta (1888), de Júlia Lopes de Almeida, e Úrsula (1859), de Maria Firmina dos Reis, segundo Schmidt, “para ilustrar questões de representação e relações diferenciais em relação a obras canônicas de seu tempo” (p. 134).

Na segunda seção – artigos e ensaios diversos -, a Revista de Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea apresenta quatro ensaios.

“Poema e bala perdida”, de Iumna Maria Simon, que analisa o poema “Sítio”, de Claudia Roquette-Pinto, registrando a conversão da opacidade, do lacunar e da indeterminação da experiência da violência urbana e da miséria emocional dos protegidos, isto é, da contaminação do mundo privado pelo fato externo.

“Quando Helena Kolody cruzou a fronteira”, de Luisa Cristina dos Santos Fontes, que analisa, através de relatos de Helena, como a percepção do sentimento de exílio acompanha a personagem, que se assume como portadora de vozes construídas deste “entrelugar”. O poema, como operador de memória, trabalha na tentativa de entrecruzar memória coletiva e histórica.

“Longe do paraíso: Jazz, de Toni Morrison, e Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo”, de Ângela Maria Dias, que propõe a interpretação das obras das escritoras citadas, explorando as correspondências entre memória e criação de ambas. Sua investigação pretende interrogar o papel do cânone na busca da reconstrução de uma identidade histórica e ficcional, enfocando especificidades características dos cânones afro-americano e afro-brasileiro, delineando a ética do engajamento político de Morrison e Evaristo, seja ele de raça e/ou de classe e/ou de gênero.

E “De Pequod a Satolep: identidades em jogo na obra de Vitor Ramil”, de Luciana Wrege Rassier, que visa à análise dos romances do escritor gaúcho Vitor Ramil Pequod (1995) e Satolep (2008), no intuito de identificar de que modo o autor trata questões como identidade, alteridade, criação artística e intertextualidade, que refletem as principais ideias desenvolvidas em seu ensaio “A estética do frio” (1992 e 2004). Luciana divide esse trabalho em quatro subtítulos: “Identidade em construção: a estética do frio”, “Pequod: (des)construção através da linguagem”, “(Re)construção a partir das ruínas: Satolep” e “De Pequod a Satolep, diário de viagem”.

Na terceira seção – resenhas -, a revista apresenta dois cuidadosos trabalhos: “Elódia Xavier – Que corpo é esse? O corpo no imaginário feminino” (2007), de Maria do Rosário Alves Pereira, e “T.V. Dijk (Org.) – Racismo e discurso na América Latina” (2008), de João Vianney Cavalcanti Nuto.

No primeiro, Maria do Rosário brinda seu leitor com detalhado comentário da obra de Elódia Xavier, abordando desde referências à autora, prefácio da obra, de Antonio Carlos Secchin, às dez categorias que a escritora estabelece sobre o corpo, fio condutor de seu livro. Maria do Rosário fala de cada uma das categorias, não se esquecendo de citar as autoras e obras consultadas, de forma clara e objetiva, incitando o leitor à procura imediata do livro.

No segundo trabalho, Nuto privilegia a Linguística contemporânea e os estudos do discurso como reveladores de possibilidades para outros tipos de estudo, inclusive sobre o racismo. Ressalta que o livro apresenta reflexões e conclusões sobre o discurso em oito países, revelando o caráter mais insidioso da ideologia racista em cada um deles e a contribuição interdisciplinar de linguistas, sociólogos, antropólogos e outros cientistas sociais para se pensar a transformação do mundo num espaço menos preconceituoso.

Os colaboradores desta conceituada revista recorreram à diversificada bibliografia. Além de utilizarem as obras estudadas nos diversos trabalhos, buscaram embasamento teórico em escritores do mais alto gabarito, como Mikhail Bakhtin, Stuart Hall, Gilberto Freyre, Marilena Chauí, Pierre Bourdieu, Michel Foucault, Simone de Beauvoir, Jacques Derrida, Elaine Showalter, Virginia Woolf, Constância Lima Duarte, Graciliano Ramos, Hélène Cixous, Umberto Eco, Teresa de Lauretis, Levi-Strauss, Peggy Sharpe, Roland Barthes, Walter Benjamin, Gilles Deleuze e muitos outros.

Em síntese, os autores cumpriram com brilhantismo seu papel incentivador, objetivando a ampliação dos conhecimentos dos seus leitores através de novos estudos.

Maria Inês de Moraes Marreco – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

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Eu vivi por um sonho – CUTRUFELLI (REF)

CUTRUFELLI, Maria Rosa. Eu vivi por um sonho. Tradução de Maurício Santana Dias. Rio de Janeiro: Record, 2009. Resenha de: PETERLE, Patricia. Reinventando a história de Olympe de Gouges. Revista Estudos Feministas v.17 n.2 Florianópolis May/Aug. 2009.

Eu vivi por um sonho, cujo título original é La donna che visse per un sogno (A mulher que viveu por um sonho), é um dos romances da escritora italiana Maria Rosa Cutrufelli, publicado em 2004, na Itália, e o primeiro dela a chegar ao mercado editorial brasileiro. A tradução fica a cargo de Maurício Santana Dias, que vem cada vez mais se destacando como um influente elo entre Brasil e Itália.

Maria Rosa Cutrufelli nasceu em Messina, na Sicília, uma região que já deu grandes autores, uns mais, outros menos canônicos, para a literatura italiana. Só para lembrar alguns nomes, Giovanni Verga, Luigi Pirandello, Vitaliano Brancati e, mais recentemente, Leonardo Sciascia, Vincenzo Consolo, Andrea Camilleri. Sem se esquecer de que a literatura italiana teve sua origem com a escola poética siciliana, que será recuperada depois por Dante Alighieri e pelos poetas toscanos.

Formada em Letras pela Universidade de Bolonha, Cutrufelli hoje mora na capital romana e, além da atividade de escritora, colabora com a RAI (Radiotelevisão Italiana) e com várias revistas literárias. É uma das fundadoras da revista Tuttestorie, que dirigiu por 12 anos. A temática da narrativa feminina e os estudos de gênero, presentes em vários números dessa publicação, são aspectos constantes que acompanham a sua escritura, como pode ser identificado nos vários ensaios sobre a condição da mulher na sociedade, por exemplo, “Il cliente – inchiesta sulla domanda di prostituzione”, de 1981 (“O cliente – a pesquisa sobre a procura de prostituição”). Esses aspectos também estão marcantes nas suas aventuras ficcionais. Podem ser lembrados aqui Mamma Africa (1989), um livro de memórias autobiográficas, e La Briganta (1990), cuja protagonista é uma mulher que deve enfrentar todas as dificuldades por ser diferente e não seguir as “normas impostas”. Outra obra, Complice il dubbio (1992), foi adaptada para o cinema com o título Le complici, em 1998, pela cineasta Emanuela Piovano.

Em Eu vivi por um sonho, Cutrufelli recupera a “fórmula” do romance histórico, tão em voga na segunda metade do século XX e no início do século XXI. O convite da autora ao leitor é voltar ao século XVIII, na França, mais precisamente na Paris de Robespierre, um país devastado pela revolução e desgovernado pelas rebeliões. Nesse quadro, a guilhotina é o símbolo máximo da ordem, que intimida e desencoraja por meio do terror e da morte aqueles que tentam lutar por uma sociedade de indivíduos livres e iguais. Dentre esses se sobressaem a figura e a voz de Olympe de Gouges, a autora da “Declaração dos direitos da mulher e da cidadã” (1791), um título que retoma o da declaração feita pelos homens. No texto de Olympe, são reivindicados a igualdade de direitos para as mulheres, sua representação no parlamento, o direito ao trabalho e à igualdade de salário, o direito à propriedade para as mulheres casadas e a reforma das leis matrimoniais; e são também assinaladas obrigações como a igualdade penal para os sexos. Vale lembrar que esses ideais foram ainda motivados pelo lema da Revolução Francesa, anterior de dois anos, de 1789: igualdade, liberdade, fraternidade.

A de Olympe é a principal voz narrativa do coro polifônico feminino que compõe a tessitura do romance. Cutrufelli, partindo de dados e fatos históricos, recupera e reinventa o passado para falar de um assunto ainda atual: o papel da mulher na sociedade.

O coro de vozes femininas, ainda, é composto da esposa do filho Pierre, Hyacinthe, da serva, Justine, da jovem republicana que denuncia Olympe, Françoise-Modeste, das crianças como Thérèse e de uma série de personagens que testemunham e ajudam a delinear o clima vivenciado naquela “Paris do terror”. Os títulos dos capítulos são dados a partir dos nomes das vozes que narram. Assim, “Hyacinthe”, “Olympe”, “Hyacinthe”, “Françoise-Modeste” e “Justine” são os primeiros e se repetem ao longo da leitura. Tal configuração já apresenta ao leitor a coralidade presente na obra e ajuda-o a manter o fio condutor da(s) narrativa(s). Todas essas mulheres dão, por meio de suas falas, traços diferentes da personagem principal Olympe, a partir de pontos de vista variados, contribuindo, assim, para construir o retrato da heroína.

Em Eu vivi por um sonho, há, portanto, um leque de personagens que, a partir do contexto no qual estão circunscritos, percebem e descrevem os acontecimentos que confluem na figura de Olympe. É seguindo essa linha, portanto, que são perfilados para o leitor os vários quadros que remetem àquele período, à vida cotidiana, à vida política, à vida na prisão, com diálogos e discussões de pessoas comuns que se encontram e falam de política, da revolução, da família e dos problemas caseiros. É interessante chamar a atenção para a caracterização feita da realidade dos cárceres, definidos como lugares escuros, sujos e lotados.

Esse resgate do passado é feito não só a partir dos nomes de personagens históricos, como Robespierre, mas também a partir de alguns fatos presenciados ou contemporâneos às vicissitudes de Olympe. Logo no início do romance há o funeral de Jean-Paul Marat, conhecido como “amigo do povo”, que é assassinado por Charlotte Corday, presa em 17 de julho de 1793 e condenada à guilhotina:

Para abreviar, ouço bater as 6h e nós ainda estamos em casa. Não agüento mais de tanta impaciência, da janela entra um rumor surdo, contínuo, é a multidão que vai se juntando e se demorarmos mais um pouco tenho medo de não ver nada. Isso já me aconteceu na Igreja dos Franciscanos, onde o corpo estava exposto. A multidão se aglomerara a tal ponto que não consegui achar espaço. De longe, de muito longe entrevi jovenzinhas que lançavam flores sobre o leito fúnebre, todas vestidas de branco – como queria ser uma delas! -, enquanto o presidente de uma seção pronunciava um discurso […] cidadãs, espalhem flores sobre o corpo pálido de Marat! Marat foi nosso amigo, foi amigo do povo, viveu para o povo, pelo povo morreu. Cidadãs espalhem flores sobre o corpo pálido do amigo do povo […] (p. 36).

O romance de Cutrufelli retrata os últimos quatro meses de vida de Olympe, de julho até 3 novembro de 1793, quando ela é guilhotinada. O que se tem desse percurso é o retrato de uma mulher decidida, uma idealista decepcionada com a Revolução. Olympe sente-se traída e é motivada por um sentimento de justiça que a faz escrever e lutar por aquilo que acredita. Nessa perspectiva, a escrita será a sua maior força: “E aqui estou, manca no corpo e na alma. Porém ainda tenho momentos de firmeza, em que a realidade recobra peso e retoma seu lugar. Os momentos de escrita” (p. 47). Toda força, coragem e vigor que representam essa personagem, em alguns momentos, dividem o espaço com as fragilidades femininas:

– A condenada chorava. Sim, são lágrimas que abrem caminho em meio a frios riachos de chuva, minhas faces as reconhecem pela morna docilidade, pelo modo como correm e deslizam consoladoras até o pescoço, por dentro da camisa, até o esterno. Choro. Por que não deveria? Sou uma mulher, Henri Sanson. Uma mulher que quis ser alguém. É pela beleza deste sonho que eu choro. E porque teria preferido morrer num dia de sol, com os braços soltos e meu pequeno chapéu azul posto maciamente sobre a fronte (p. 302).

Essas também são as últimas palavras de Olympe que “encerram” o livro.

Para a escritora, a multiplicidade de vozes narrantes tem um motivo – a vontade de evitar a estrutura dos romances históricos “tradicionais” -, como afirmou em entrevista dada a Marilia Piccone, por ocasião da publicação em 2008 do romance D’amore e d’odio, no qual é possível identificar uma estratégia e uma situação muito parecida. Porém, nesta última obra, o conjunto polifônico não tem como objetivo perfilar uma personagem, mas sim delinear a pluralidade de histórias e vozes do século XX. Todavia, mesmo tentando evitar os romances históricos mais “tradicionais”, esse tipo de narrativa pode ser considerado uma escolha e, sobretudo, um elemento marcante dentro de toda a obra e do projeto literário de Cutrufelli – a esse respeito é interessante a entrevista da autora publicada no livro Gendering Italian Fiction: Feminist Revisions of Italian History (1999), de Maria Ornella Marotti e Gabriella Brooke.

Há ainda, nas últimas páginas, um “Posfácio (ou quase)”, de poucas páginas, no qual Maria Rosa Cutrufelli afirma ter-se tornado uma “pescadora de vidas perdidas”, refazendo-se a Don Delillo. Agora, em vez de resgatar uma parte da história francesa, a autora recupera uma parte das suas lembranças pessoais, durante a década de 1960, quando lia um pequeno livro, Storia dell’emancipazione femminile (História da emancipação feminina). É nessa leitura que ela se depara com o texto da Declaração de Olympe de Gouges, uma descoberta juvenil que traz alguns questionamentos: “[…] mas então existe uma falsa igualdade? E quem era aquela mulher que soubera discernir o verdadeiro do falso?” (p. 308). São talvez essas mesmas indagações que povoam e nutrem a ficção de Cutrufelli. É com este livro, que chegou a ser finalista na Itália do famoso Prêmio Strega, em 2004, que a escritora italiana é apresentada ao público brasileiro.

Patricia Peterle – Universidade Federal de Santa Catarina.

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Gender, Discourse, and Desire in Twentieth-Century Brazilian Women’s Literature – FERREIRA-PINTO (REF)

FERREIRA-PINTO, Cristina. Gender, Discourse, and Desire in Twentieth-Century Brazilian Women’s Literature. West Lafayette: Purdue University Press, 2004. 208 p. Resenha de: FÉLIX, Regina R. Sexo-política na literatura brasileira por mulheres. Revista Estudos Feministas v.17 n.2 Florianópolis May/Aug. 2009.

É de fôlego o estudo sobre narrativas escritas por mulheres de Cristina Ferreira-Pinto, seu mais recente trabalho depois do marcante O “Bildungsroman” feminino: quatro exemplos brasileiros (1990). No estudo, a autora enfoca a resposta contraideológica de escritoras. Enfatiza sua contestação em relação aos mitos femininos do cânone literário brasileiro através dos quais o discurso e o desejo masculinista terminaram por desfigurar e silenciar as mulheres. Precedido por uma abrangente crolonogia da atuação da mulher na sociedade brasileira e situação da produção literária de escritoras de 1752 a 2000, o livro é composto de uma introdução, seis capítulos e conclusão. Com trabalhos selecionados de escritoras várias, como Gilka Machado (1893-1980), Lygia Fagundes Telles (1923- ), Helena Parente Cunha (1930- ), Marina Colasanti (1937- ), Lya Luft (1938- ), Sônia Coutinho (1939- ), Myriam Campello (1948- ), Márcia Denser (1949- ) e Marilene Felinto (1957- ), sem deixar de passar pelo crivo de um pertinente elenco de teóricas feministas, o livro trata de questões de gênero no âmbito da individualidade. O âmago do estudo localiza nos discursos da sexualidade e do desejo das mulheres o delinear de sua identidade, que se plasma como literatura.

Na introdução, “A literatura das mulheres como discurso contra-ideológico”, Ferreira-Pinto afirma que há de fato uma tradição de literatura escrita por mulheres, ainda que em maior volume a partir do século XIX e como profissão estabelecida apenas no século XX, embora escritoras que fizeram nome e carreira na linhagem literária brasileira a partir do século XX apareçam como “exceções isoladas e esporádicas”. Ferreira-Pinto credita a Zahidé Lupinacci Muzart e seu imprescíndivel projeto de recuperação da obra de escritoras dos séculos XIX e anteriores a recuperação de tal tradição.

Anterior aos anos 1960, quando a produção literária da mulher se torna contundente na oposição ao patriarcalismo cultural brasileiro, ou “discurso dominate”, a autora assinala, portanto, que já existiam obras que procuravam interferir na hegemonia dos mitos que aprisionaram as mulheres em papéis sociais, papéis estes que limitaram seu desejo em identidades e experiências enfatizadoras apenas da beleza, da juventude e da delicadeza como os atributos definidores da feminilidade. A autora propõe expor como a linguagem poética dos textos que analisa mostra-se expressão tanto de uma realidade que se altera como do discurso sobre esta.

Em “Corpo de mulher, desejo de homem”, do Capítulo 1, a autora ilustra, com a produção literária escrita por homens, aspectos do “discurso dominante” ao qual se refere e o qual parece nortear a resposta das escritoras que analisa. Munida de conhecimento crítico nacional, com Antonio Candido, Dante Moreira Leite e Affonso Romano de Sant’Anna, e internacional, com Doris Sommer, Terry Eagleton, Michel Foucault e David Foster, para citar uns poucos, Ferreira-Pinto expõe celebrados mitos da literatura romântica e realista através de análises aptas. Mostra, por exemplo, como Iracema reúne em si a carga de papéis femininos como Eva, Maria e Pietá, com suas conotações de sensualidade e submissão, porém etnicamente marcada por sua origem indígena. Nas tramas de Memórias de um sargento de milícias, a autora apresenta a ideologia heterossexual voltada ao casamento e à reprodução como normas e o comportamento desviante da personagem Vidinha – mulata sensual – como a baliza que sugere a ordem social como tal. Dialogando com a celebrada análise de Antonio Candido, que nos deu a “Dialética da malandragem” entre a ordem e a desordem, Ferreira-Pinto sugere a dialética que, de um lado, coloca a mulher doméstica e, de outro, a mulher pública, dicotomia esta formada por uma dialética conceitual entre raça e sexualidade que, enfim, nos legou aquilo que a autora ironicamente denomina como o mito da “mulata cordial”. Rita Baiana d’O cortiço, claro, é mencionada como outro exemplo desse tipo, ao lado de outros estereótipos que servem de contraponto entre si: a lésbica Pombinha, a prostituta Leónie, as ninfomaníacas Estela e Leocádia, as reprodutoras Augusta e Piedade. Finalmente, considera as personagens de Machado de Assis aparentes ideais de feminilidade, mas de uma complexidade ímpar na literatura da época. As personagens, ainda assim, em seu julgamento, seguem os ditames das normas da vida doméstica, dentro do casamento e da vida urbana burguesa cujo alvo é a ascensão social.

No Capítulo 2, Ferreira-Pinto inicia o contra-discurso das mulheres, como propõe o título “Escritoras brasileiras: a busca de um discurso erótico”. Após uma introdução que discute os trabalhos de escritoras do século XIX como pano de fundo, a autora mostra que Gilka Machado supera o comportamento “subserviente ao desejo masculino”, pois expressa, em seu texto, os anseios do corpo da mulher. Ferreira-Pinto comenta que grande parte da crítica que se debruça sobre os estudos de gênero na literatura considera a obra de Gilka Machado como aquela que inaugura a Erótica que a autora focaliza entre as escritoras selecionadas para seu estudo. Usando elementos teóricos de críticas como Hélène Cixous, Luce Irigaray e Teresa de Lauretis, a autora dá vivacidade à temática da escritora carioca e nos revela uma criadora forte e contemporânea. Uma discussão que procura situar o discurso erótico feminino – distinguindo-o do texto pornográfico e do eroticismo pronunciado por personagens mulheres em textos escritos por homens, que terminam por endossar a “ideologia dominante masculinista” – é seguida da análise do erotismo como uma forma de reestruturar a identidade das protagonistas em A mulher no espelho, de Helena Parente Cunha, e em As mulheres de Tijucopapo, de Marilene Felinto. A autora procede a uma análise minuciosa desses textos, tendo como ponto de vista fundamental o fato de que os trabalhos opõem a pulsão do desejo do macho adulto branco, que por muito tempo embasou as relações sociais no Brasil, ao menos no âmbito das elites.

As obras Quarto fechado, de Lya Luft, e As horas nuas, de Lygia Fagundes Telles, são enfocadas no Capítulo 3, “A representação do corpo feminino e o desejo: o gótico, o fantástico e o grotesco”. Nesse capítulo, Ferreira-Pinto envereda por uma visão inovadora das obras, quando considera os gêneros gótico, fantástico e grotesco como uma estratégia através da qual as escritoras comunicam o constrangimento e o deslocamento das protagonistas diante do ambiente patriarcal que as cerca e ainda cerceia. Outro tema crescentemente relevante, mas explorado há apenas poucas décadas, especialmente como atributo crucial da feminilidade, compõe o Capítulo 4, “O conto de Sônia Coutinho: o envelhecimento e o corpo da mulher”. A autora do estudo mostra como Coutinho expressa a decepção da protagonista quando esta verifica, surpresa, sua inabilidade de seduzir homens, quando percebe que os cosméticos não trarão de volta a beleza perdida com os anos e o fato consequente de que, para a mulher, o tornar-se idosa significa um progressivo descrédito como pessoa por causa da perda gradual de seu apelo sexual, também por não mais possuir a capacidade reprodutora. Ao mesmo tempo, o texto de Coutinho sugere que a fruição plena da sexualidade da mulher é possível apenas se ela transcender os mitos de feminilidade apresentados a ela como o curso natural das coisas pelo “discurso dominante”. Só assim pode a mulher se desvencilhar dos parâmetros de adequação, segundo os quais teria que “agir de acordo com sua idade”, e então ser livre para viver, sem as imposições que limitam sua existência a papéis prescritos por outrem.

No Capítulo 5, “O conto brasileiro contemporâneo escrito por mulheres: o desejo lésbico”, após oferecer um histórico que mostra o modo como a homossexualidade masculina e a feminina foram constituídas pelo discurso das instituições normativas, estando entre estas principalmente a Igreja, a autora mostra como diferentes teóricos (David Foster, Gloria Anzaldúa, Ronaldo Vainfas, Luís Mott, entre outros) trataram o assunto e como os temas queer foram expressos na literatura brasileira do século XX. Trabalhos de Edla Van Steen, Sônia Coutinho, Lygia Fagundes Telles, Myriam Campello e Márcia Denser são analisados tendo-se em conta a diversidade com que tratam do desejo lésbico, um espaço de transgressão e agência da mulher que desse modo se afirma livre como sujeito.

“Os trabalhos de Márcia Denser e Marina Colasanti: a agência feminina e a heterossexualidade” mostra que, mesmo apresentando protagonistas heterossexuais, as escritoras que o Capítulo 6 analisa assumem, muita vez, uma posição de confronto visà-vis ao patriarcalismo, o que as alinha politicamente com as escritoras que se expressam através do desejo lésbico. Com sua “ficção sexual”, para além da dicotomia entre erótico e pornográfico, Denser, segundo a autora, desestabiliza as convenções de gênero, assim promovendo a afirmação da sexualidade da protagonista, que demonstra um grande apetite sexual, o que não é comumente caracterizado como atributo de mulher “de bem” na literatura. Colasanti, por seu turno, se expressa através de um “erotismo do corpo” que afirma a mulher como tal – sem o costumeiro pejo com que somos ensinadas a disfarçar funções orgânicas. Ferreira-Pinto observa que, não se atendo ao lirismo e usando termos considerados de baixo calão, Colasanti se apodera das palavras usualmente pronunciadas pelos homens e, paradoxalmente, afirma a agência da mulher.

Na Conclusão, “Escritoras brasileiras no novo milênio”, Ferreira-Pinto reitera sua observação de que, sendo a sexualidade aquilo que define a identidade da pessoa, o desejo (erótico, homossexual, heterossexual etc.), que necessariamente expressa tal sexualidade, aborda de frente o princípio criativo das escritoras. Desse modo, o desejo que se faz texto expressa a identidade ou posição da escritora – poderíamos denominar tal posicionamento sua sexopolítica -, seguindo a vereda aberta pelo importante estudo de Kate Millett, o clássico Sexual Politics?

Como fica claro, este é um estudo que, embora panorâmico, utiliza um bom arsenal teórico para examinar algumas de nossas melhores escritoras. Em inglês, é ao mesmo tempo uma imprescindível apresentação das escritoras no âmbito de Women’s Studies na literatura brasileira e um estudo bastante útil nas salas de aula no campo Brazilian Studies dos Estados Unidos, onde tais análises são escassas, mas muito necessárias. No sentido de instigar Brazilianistas ainda mais em relação ao assunto, no entanto, teria sido interessante ver esmiuçadas algumas generalizações no decorrer do texto (“o discurso dominante masculinista”, “a mulher”, “a sociedade brasileira patriarcal e eurocêntrica”, “algumas mudanças sociais e políticas importantes [a partir de 1970]” etc.) e ter obtido um tratamento mais complexo à relação, central no estudo, entre sexualidade, desejo, identidade e formação discursiva, pontos que, embora sejam apresentados como subentendidos a estudiosos do assunto, por isso mesmo detêm, na chance única que a publicação do livro apresenta, a consideração de novos prismas na revisitação de velhos problemas.

Regina R. Félix – University of North Carolina Wilmington.

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Becos da memória – EVARISTO (REF)

EVARISTO, Conceição. Becos da memória. Belo Horizonte: Mazza, 2006. Resenha de: OLIVEIRA, Luiz Henrique Silva de. “Escrevivência” em Becos da memória, de Conceição Evaristo. Revista Estudos Feministas v.17 n.2 Florianópolis May/Aug. 2009.

“Homens, mulheres, crianças que se amontoaram dentro de mim, como amontoados eram os barracos de minha favela” (p. 21).

Evaristo, 2006, p. 21.

Maria da Conceição Evaristo de Brito nasceu em Belo Horizonte, em 1946. De origem humilde, migrou para o Rio de Janeiro na década de 1970. Graduou-se em Letras pela UFRJ, trabalhou como professora da rede pública de ensino da capital fluminense e da rede privada de ensino superior. É mestre em Literatura Brasileira pela PUC-Rio. No momento, está concluindo doutorado em Literatura Comparada na Universidade Federal Fluminense. Em sua pesquisa, estuda as relações entre a literatura afro-brasileira e as literaturas africanas de língua portuguesa. Participante ativa dos movimentos de valorização da cultura negra em nosso país, estreou na arte da palavra em 1990, quando passou a publicar seus contos e poemas na série Cadernos Negros, suporte de que se utiliza até hoje.

Em 2003, veio a público o romance Ponciá Vicêncio, pela editora Mazza, de Belo Horizonte. Seu segundo livro, outro romance, Becos da memória, foi escrito em fins dos anos 1970 e início dos 1980. Ficou engavetado por cerca de 20 anos até sua publicação, em 2006. Desde então, os textos de Evaristo vêm angariando cada vez mais leitores, sobretudo após a indicação de seu primeiro livro como leitura obrigatória do Vestibular da UFMG, em 2007. A escritora participou ainda de publicações coletivas na Alemanha, na Inglaterra e nos Estados Unidos. Sua obra de estreia foi traduzida para o inglês e está em processo de tradução para o espanhol.

A obra em prosa de Conceição Evaristo é habitada, sobretudo, por excluídos sociais, dentre eles favelados, meninos e meninas de rua, mendigos, desempregados, beberrões, prostitutas, “vadios” etc., o que ajuda a compor um quadro de determinada parcela social que se relaciona de modo ora tenso, ora ameno, com o outro lado da esfera, composta de empresários, senhoras de posses, policiais, funcionários do governo, dentre outros. Personagens como Di Lixão, Duzu-Querença, Ana Davenga e Natalina, presentes no universo dos contos publicados nos Cadernos Negros; Ponciá Vicêncio, Vô Vicêncio, Luandi, Nêngua Kainda, Zé Moreira, Bilisa e Negro Glimério, listados em Ponciá Vicêncio; Maria-Nova (desdobramento ficcional da autora?), Maria Velha, Vó Rita, Negro Alírio, Bondade, Ditinha, Balbina, Filó Gazogênia, Cidinha-Cidoca, Tio Totó e Negra Tuína, de Becos da memória, exemplificam, no plano da ficção, o universo marginal que a sociedade tenta ocultar.

Becos da memória é marcado por uma intensa dramaticidade, o que desvela o intuito de transpor para a literatura toda a tensão inerente ao cotidiano dos que estão permanentemente submetidos à violência em suas diversas modalidades. Barracos e calçadas, bordéis e delegacias compõem o cenário urbano com que se defrontam os excluídos de todos os matizes e gradações, o que insinua ao leitor qual a cor da pobreza brasileira. No entanto, a autora escapa das soluções fáceis: não faz do morro território de glamour e fetiche; tampouco, investe no traço simples do realismo brutal, o qual acaba transformando a violência em produto comercial para a sedenta sociedade de consumo.

Os fragmentos que compõem Becos da memória procuram aliar a denúncia social a um lirismo de tom trágico, o que remonta ao mundo íntimo dos humilhados e ofendidos, tomados no livro como pessoas sensíveis, marcadas, portanto, não apenas pelos traumas da exclusão, mas também por desejos, sonhos e lembranças. Violência e intimismo, realismo e ternura, além de impactarem o leitor, revelam o compromisso e a identificação da intelectualidade afrodescendente com aqueles colocados à margem do que o discurso neoliberal chama de progresso.

Sabendo que é possível à obra (re)construir a vida, através de “pontes metafóricas”, pelo projeto literário de Conceição Evaristo vislumbram-se pistas de possíveis percursos e leituras de cunho biográfico. Na configuração do romance em questão pululam aqui e ali, ora na ficção, ora em entrevistas, ora em textos acadêmicos, peças para a montagem de seu quebracabeça literário e biográfico. Uma das peças desse jogo parece ser a natureza da relação contratual estabelecida entre o leitor e o espaço autoficcional em que se insere Becos da memória. Aqui, a figura autoral ajuda a criar imagens de outra(s) Evaristo(s), projetada(s) em seus personagens, como Maria-Nova, por exemplo. Em outras palavras, processa-se uma espécie de exercício de elasticidade de um eu-central. Desliza-se com facilidade na prosa de Evaristo entre o romance e a escrita de si. Se, tradicionalmente, aquele se preocupa com o universal humano e esta, com o particular ou com o indivíduo, a autora propõe a junção dos dois gêneros, pois, para ela, pensar a si é também pensar seu coletivo. Do ponto de vista formal não é diferente: não se utilizam capítulos, mas fragmentos, bem a gosto do narrador popular benjaminiano. Nessa perspectiva, vê-se o mundo através da ótica dos fragmentos e dos indivíduos anônimos que compõem boa parte da teia social.

Neste livro de corte tanto biográfico quanto memorialístico, nota-se o que a autora chama de escrevivência, ou seja, a escrita de um corpo, de uma condição, de uma experiência negra no Brasil. Tanto na vida da autora quanto em Becos da memória, a leitura antecede e nutre as escritas de Evaristo e de Maria-Nova, razão pela qual lutam contra a existência em condições desfavoráveis. Ler é também arquivar a si, pois se selecionam momentos e estratégias de elaboração do passado, o qual compõe as cenas vividas, escritas e recriadas em muitos de seus personagens. Finalmente, decodificar o universo das palavras, para a autora e para Maria-Nova, torna-se uma maneira de suportar o mundo, o que proporciona um duplo movimento de fuga e inserção no espaço. Não menos importante, a escrita também abarca estas duas possibilidades: evadir para sonhar e inserir-se para modificar.

O lugar de enunciação mostra-se solidário e identificado com os menos favorecidos, vale dizer, sobretudo, com o universo das mulheres negras. E o universo do sujeito autoral parece ser recriado através das caracterizações físicas, psicológicas, sociais e econômicas de suas personagens do gênero feminino. Maria-Nova, presente em Becos da memória, aos nossos olhos, compõe-se, mais do que todas as personagens, de rastros do sujeito autoral: menina, negra, habitante durante a infância de uma favela e que vê na escrita uma forma de expressão e resistência à sorte de seu existir. Uma ponte metafórica que arriscamos instalar permite ver em comum, ainda, o fato de serem provenientes de famílias sustentadas por matriarcas lavadeiras, transitantes entre os mundos da prosperidade e da miséria, ou seja, Conceição e Maria-Nova cumpriram, no espaço familiar em que estiveram, o papel de mediação cultural que aperfeiçoou o processo de bildung (confirma palavra em inglês?) de uma e de outra.

A obra se constrói, então, a partir de “rastros” fornecidos por aqueles três elementos formadores da escrevivência: corpo, condição e experiência. O primeiro elemento reporta à dimensão subjetiva do existir negro, arquivado na pele e na luta constante por afirmação e reversão de estereótipos. A representação do corpo funciona como ato sintomático de resistência e arquivo de impressões que a vida confere. O segundo elemento, a condição, aponta para um processo enunciativo fraterno e compreensivo com as várias personagens que povoam a obra. A experiência, por sua vez, funciona tanto como recurso estético quanto de construção retórica, a fim de atribuir credibilidade e poder de persuasão à narrativa. No livro em questão, a voz enunciativa, num tom de oralidade e reminiscência, desfia situações, senão verdadeiras, verossimilhantes, ocorridas no “morro do Pindura Saia”, espaço que bem se assemelha ao da infância da autora. Arriscamos dizer que há “jogo especular”, portanto, entre a experiência do sujeito empírico e de Maria-Nova, para além da simetria do espaço da narrativa (favela) e do espaço da infância e da juventude da autora (idem).

Outro bom exemplo de jogo especular consiste em uma situação por que realmente passou Evaristo e que se repete com Maria-Nova. Aliás, tem sido realmente um verdadeiro trauma para crianças negras estudar na escola tópicos relativos à escravidão e seus desdobramentos. Enquanto a professora se limitava à leitura de um conteúdo abstrato e com visão eurocêntrica acerca do passado escravocrata, Maria-Nova não conseguia enxergar naquele ato – e na escola – sentido para a concretude daquele assunto. Afinal, ela e a autora viviam e sentiam na pele as consequências da exploração do homem pelo homem na terra brasilis. Sujeito-mulher-negra, abandonada à própria sorte a partir do dia 14 de maio de 1888,

Maria-Nova olhou novamente a professora e a turma. Era uma história muito grande! Uma história viva que nascia das pessoas, do hoje, do agora. Era diferente de ler aquele texto. Assentou-se e, pela primeira vez, veio-lhe um pensamento: quem sabe escreveria esta história um dia? Quem sabe passaria para o papel o que estava escrito, cravado e gravado no seu corpo, na sua alma, na sua mente (p. 138).

A garota, ciente de que a história das lutas dos negros no Brasil começava já com as primeiras levas diaspóricas, parece repetir o célebre questionamento de Gayatri Spivac: “pode o subalterno falar?”. Mais que isso: falar, ser ouvido, redigir outra história, outra versão, outra epistemologia, que leve em conta não o arquivamento das versões dos vencidos, mas que valorize o sujeito comum, anônimo, do dia a dia. Talvez Maria-Nova nem tenha se dado conta de que o que ela havia pensado era exatamente a fundamentação de boa parte dos Estudos Pós-Coloniais e da História Nova. Nesse sentido, os corpos-textos de Maria-Nova e Conceição Evaristo possuem em comum a missão política de inventar outro futuro para si e para seu coletivo, o que lhes imbui de uma espécie de dever de memória e dever de escrita. Vejamos: “agora ela [Maria-Nova] já sabia qual seria a sua ferramenta, a escrita. Um dia, ela haveria de narrar, de fazer soar, de soltar as vozes, os murmúrios, os silêncios, o grito abafado que existia, que era de cada um e de todos. Maria-Nova, um dia, escreveria a fala de seu povo (p. 161).

E a escrita acompanhará a pequena até a última página do livro, o que nos permite pensar que a missão ainda está em processo: “não, ela [Maria-Nova] jamais deixaria a vida passar daquela forma tão disforme. […] Era preciso viver. ‘Viver do viver’. […] O pensamento veio rápido e claro como um raio. Um dia ela iria tudo escrever” (p. 147).

E escreveu em seu mundo de papel. Coube a Evaristo registrar o desejo de Maria-Nova e, logo, seu próprio desejo. O desdobramento de uma em outra e as pontes metafóricas que pretendemos instaurar não esgotam as possibilidades de leituras, mas permitem a possibilidade de muitas outras, que despertem o afã de também escrever.

Luiz Henrique Silva de Oliveira – Universidade Federal de Minas Gerais.

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Uma mulher – ALERAMO (REF)

ALERAMO, Sibilla. Uma mulher. Tradução de Marcella Mortara Rio de Janeiro: Marco Zero, 1984. Resenha de: GUERINI, Adriana Ikawa da Silveira Andrade. Sibilla Aleramo: consciência e escrita. Revista Estudos Feministas v.17 n.2 Florianópolis May/Aug. 2009.

Considerada pelo historiador Natalino Sapegno1 uma escritora que consegue, com habilidade, unir arte e autobiografia, Sibilla Aleramo (1876-1960) é uma autora italiana ainda hoje pouco conhecida no Brasil, devido principalmente à falta de traduções de suas obras. Seu único livro que chegou até nós, objeto desta resenha, é Una donna (Uma mulher), de 1906, publicado em 1984 pela editora Marco Zero, com tradução de Marcella Mortara. Embora seja um livro do início do século XX, Una donna permanece atual e mereceria uma nova tradução, como mostraremos a seguir.

Além de Una donna, seu livro mais famoso e mais comentado ainda hoje pela crítica, Sibilla tem uma vasta obra, composta de romances, poemas, ensaios, textos teatrais, cartas, anotações, diários, artigos jornalísticos e traduções. O material textual deixado por ela é imenso, a atestar uma produção incessante, em que a escrita é uma necessidade vital. Um dos principais temas de sua obra é exatamente o modo peculiar de sentir e de expressar da mulher, que na escrita sibilliana vincula-se a um movimento de tomada de consciência.

Não por acaso, Sibilla Aleramo tornou-se conhecida, sobretudo, por seu romance de estreia, Una donna,2 que começou a escrever em 1902, após abandonar marido e filho, e cuja repercussão foi imediata na Itália e nos países europeus nos quais foi traduzido.3 Tal repercussão fez-se sentir na televisão – nos anos 1970 Una donna é transformado em minissérie televisiva na RAI – e posteriormente no cinema – em 2002, o filme Un viaggio chiamato amore, baseado na correspondência entre Sibilla Aleramo e Dino Campana, é premiado no Festival de Veneza.

Alguns críticos, como Alfredo Gargiulo, consideram Una donna a bíblia do feminismo na Itália, afirmando que através dele Sibilla teria feito mais “em proveito do sexo do que tinham feito e andavam fazendo todas as feministas do mundo em conjunto”.4 Além disso, podemos dizer que Sibilla antecipa um pensamento relativo à mudança de paradigma que irá transformar a sociedade italiana na segunda metade do século XX.

Una donna é dividido em três partes, com 22 capítulos breves, e narra as vicissitudes da protagonista em ordem cronológica, da infância até o momento em que redige o livro. Na primeira parte, iniciada com uma infância feliz e livre, a protagonista narra o abalar desse mundo “perfeito”, a começar pela quebra da imagem que tinha do pai, pela revelação de uma mãe depressiva e suicida, pela experiência da violência sexual, que dá origem ao casamento arranjado para encobrir a situação, pela relação infeliz, pelo nascimento do filho e pela sua própria tentativa de suicídio. A segunda parte narra a abertura da protagonista para o mundo: o encantamento por leituras (Nietzsche, Ibsen, Whitman), o início da escrita, os primeiros contatos com as lutas sociais, com o mundo político e cultural das mulheres. A terceira parte, por sua vez, concretiza o processo de “renascimento” da protagonista iniciado na segunda parte, que, ao fim de um percurso de tomada de consciência da própria vida, transforma a sua história num “libro-verità”.

Una donna, de fato, é o relato do despertar da consciência de uma mulher através da expressão literária. É fundamental na compreensão das bases da poética da autora e marco do nascimento da identidade literária de Sibilla Aleramo, pseudônimo de Rina Faccio. Há no livro, segundo Marina Zancan, um predomínio absoluto do ‘eu narrante’: os personagens não têm nome, só são inseridos na trama da narrativa à medida que são projetados pela consciência da protagonista.5 Essa narração, em tom confessional, transforma a experiência própria em ‘obra de verdade’, revelando aquele que será um lema constante, quase obsessivo, de toda a produção artístico-existencial sibilliana: sua exigência absoluta, sua total e irredutível fidelidade à verdade, que será sempre a verdade da escritora, consequência direta do conceito de obra literária, e de literatura como um todo, de Aleramo.6

A protagonista de Una donna narra a necessidade que sentia de escrever o livro que transformaria a própria história numa história exemplar de mulher:

Un libro, il libro […] Ah, non vagheggiavo di scriverlo, no! Ma mi struggevo, certe volte, contemplando nel mio spirito la visione di quel libro che sentivo necessario, di un libro d’amore e di dolore, che fosse straziante e insieme fecondo, inesorabile e pietoso, che mostrasse al mondo intero l’anima femminile moderna, per la prima volta, e per la prima volta facesse palpitare di rimorso e di desiderio l’anima dell’uomo, del triste fratello […] Un libro che recasse tradotte tutte le idee che si agitavano in me caoticamente da due anni, e portasse l’impronta della passione.7

Para Maria Antonietta Macchiocchi, em seu prefácio político de 1973, reproduzido na edição brasileira, Uma mulher é um livro que dá “um impulso à batalha da emancipação feminina como batalha revolucionária”. Ela ainda afirma que o livro “não pertence ao passado, mas ao presente e ainda quem sabe até onde ao futuro” (p. 5). Embora essas considerações de Macchiocchi sejam feitas a partir de sua observação em relação à mulher italiana dos anos 1970, podemos dizer que Una donna é universal, pois discute a situação da emancipação da mulher dominada por aquilo que Macchiocchi chama de “moralismo pequeno-burguês e burguês, onde a moral oficial […] está, ainda hoje, na fórmula ambígua de mulher + família + educação dos filhos + paridade no trabalho e na família” (p. 5).

Sibilla desperta como escritora justamente quando os movimentos de emancipação da mulher começam a ganhar força no país8 e se distingue por não ser apenas mais uma autora, uma artista como Matilde Serao, Grazia Deledda, Vittoria Aganoor, mas também uma “reivindicadora da paridade feminina, uma rebelde”.9

Certamente Casa de bonecas, de Ibsen,10 impulsiona a escrita de Una donna. A Nora de Ibsen é uma mulher supostamente feliz, que se anula e mente para manter a segurança do status quo conquistado na vida familiar. Mas alguns acontecimentos fazem com que ela se enxergue diferente, e Nora então resolve desmascarar o escondido e seguir sua estrada, abandonando tudo, como na história de Sibilla. Ambas as protagonistas rompem a alienação familiar nesse movimento de tomada de consciência e busca da verdade, mas em Una donna se destaca a relação entre consciência e escrita – marca registrada de Sibilla, como já observado.

Outra aproximação possível em tempos distantes é a de Una donna, de Sibilla Aleramo, com os escritos de outra italiana, Natalia Ginzburg (1916-1991), principalmente os da produção teatral dos anos 60 do século passado. Natalia utiliza-se de personagens femininas submetidas à autoridade de seus maridos ou pais. De modo geral, são mulheres que veem os seus casamentos se arruinarem, ou personagens que não realizam os seus desejos de amor e de relações sentimentais. A relação entre essas personagens está ligada ao acaso e à chiacchiera, como as únicas razões de vidas cinzentas, alienantes, repetitivas, sem esperança. Além disso, Ginzburg, em suas peças, mostra a falência da família e a crise existencial da personagem feminina, tal como Sibilla.

Cecilia Casini fala da produção literária sibilliana como um “percurso de formação em ato”, aproximando-o da experiência inglesa de “Bildungsroman” (Jane Austen, George Eliot, irmãs Brontë). Nesse sentido, ela diz que Sibilla “representa bem – principalmente em Una donna e Il passaggio – uma modalidade de constituição da cultura humana, isto é, uma ‘forma simbólica’ da modernidade, permanecendo ainda hoje central na reflexão sobre a identidade literária feminina”.11

Sibilla Aleramo foi, de fato, uma das primeiras escritoras italianas a apresentar uma reflexão sobre a autonomia da expressão da mulher na escrita. A modernidade das ideias de Sibilla é, segundo Casini,12 um dos motivos principais pelos quais sua obra, ainda hoje, comove e atrai. Apesar de ser uma autora “em parte superada, irremediavelmente ‘donna dell’Ottocento'”, Aleramo difunde em seus escritos intuições sobre a condição da mulher e trata de temas universais como o amor, a escrita, a vida, que revelam um olhar moderno de uma mulher à frente de seu tempo.

Segundo Marina Zancan, Una donna é um livro difícil, que pode ser lido pelo viés das teorias feministas, psicanalíticas etc., cujo tom confessional e lírico do relato não facilita a versão do texto para outras línguas. Mas, se entendemos o traduzir mantendo a sua ordem, sem acréscimo nem omissão, sem cortes, desenvolvimento, alteração das personagens, a tradução brasileira peca por algumas omissões e cortes, talvez por falta de uma revisão mais acurada, embora isso não comprometa a compreensão do texto original.

Pela atualidade do livro, pelo fato de a autora ser desconhecida no Brasil, fruto da quase ausência de traduções de suas obras em português, e porque momentos históricos diferentes requerem uma nova tradução, seria interessante retraduzir Una donna, que não pode ser considerado um livro datado. Aliás, a modernidade de Sibilla Aleramo, e, particularmente, de Una donna, reside em abordar questões que estão além da batalha pelos direitos igualitários de sua época, antecipando um pensamento sobre a singularidade da subjetividade feminina proposto pelas feministas dos anos 1970.

Notas

1 Natalino SAPEGNO, 1975.

2 Embora a menção a Sibilla Aleramo nas histórias literárias seja bastante breve, na história literária organizada e publicada por Asor Rosa em 1995, há uma seção dedicada inteiramente a analisar os diferentes aspectos de Una donna, através do minucioso estudo de Marina Zancan.

3 Entre 1907 e 1909 o romance foi traduzido para seis línguas: francês, inglês, espanhol, alemão, russo e sueco. De acordo com as fontes consultadas (Adriana Aikawa da Silveira ANDRADE, 2009), há publicações de traduções das obras de Aleramo em francês, inglês, alemão, espanhol, grego, holandês, sueco, húngaro, dinamarquês, russo, croata, eslovaco, catalão e português. Una donna é a obra mais traduzida de Sibilla Aleramo: à parte as traduções europeias feitas nos anos imediatamente sucessivos à sua primeira edição na Itália, o livro ganhará traduções que acompanham o movimento de ‘redescoberta’ da autora nos anos 1970 e 1980 para o holandês, grego, esloveno, português, dinamarquês, além de novas traduções para o inglês, francês, espanhol e alemão. Vale lembrar que a França foi o país que traduziu praticamente toda a obra de Sibilla.

4 GARGIULO apud Emilio CECCHI, 1984, p. 194.

5 Marina ZANCAN, 2000.

6 Maria Cecilia CASINI, 2005, p. 24.

7 Sibilla ALERAMO, 2005, p. 92.

8 Vale lembrar que, embora Sibilla Aleramo já se torne conhecida ao publicar Una donna, há um movimento de redescoberta da autora quando a luta feminista está em fase mais avançada, ou seja, reivindicando o divórcio e os direitos sobre o próprio corpo. É um período de grandes mudanças na Itália: o divórcio foi legalizado no país em 1970; os métodos contraceptivos, em 1971; e em 1978, um referendum legalizou o aborto. Aqui a raiz da luta não é exatamente a emancipação feminina, mas o reconhecimento da especificidade da identidade feminina, a afirmação dos direitos singulares da mulher. Nos tempos de Una donna a luta era por direitos mais básicos, como o direito ao voto (conquistado só em 1946), à instrução (acessível a poucas) e contra a exploração da mão de obra feminina nas fábricas (no processo de modernização da sociedade italiana as mulheres inserem-se no mercado de trabalho, mas ocupam cargos desqualificados ou ganham salários inferiores, como as crianças. Ainda não estavam organizadas em sindicatos, como os homens, por exemplo).

9 CECCHI, 1984, p. 195.

10 Sibilla lê Casa de bonecas nos anos anteriores à publicação de seu romance e assiste à encenação dessa peça anos depois, nos tempos de seu ensaio “Apologia dello Spirito Femminile”, de 1911.

11 CASINI, 2005, p. 17.

12 CASINI, 2005, p. 203.

Referências

ALERAMO, Sibilla. Una donna. Milão: Feltrinelli, 2005.         [ Links ]

ANDRADE, Adriana Aikawa da Silveira. Ensaios de Sibilla Aleramo: uma tradução comentada. 2009. Dissertação (Mestrado em Estudos da Tradução) – Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2009.         [ Links ]

CASINI, Maria Cecilia. Sibilla Aleramouma mulher escrevendo na aurora do século XX. 2005. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2005.         [ Links ]

CECCHI, Emilio. “Posfácio”. In: ALERAMO, Sibilla. Uma mulher. Tradução de Marcella Mortara. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1984. p. 194.         [ Links ]

SAPEGNO, Natalino. Disegno storico della letteratura italiana. Firenze: La Nuova Italia, 1975.         [ Links ]

ZANCAN, Marina. “Una donna di Sibilla Aleramo”. In: ASOR ROSA, Alberto (Org.). Letteratura italianaLe Opere. Il Novecento. Turim: Einaudi, 2000.         [ Links ]

Andréia Guerini; Adriana Aikawa da Silveira Andrade – Universidade Federal de Santa Catarina.

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Vozes femininas do Império e da República – LÔBO; FARIA (REF)

LÔBO, Yolanda; FARIA, Lia (orgs.). Vozes femininas do Império e da República. Rio de Janeiro: Quartet : FAPERJ, 2008. Resenha de: PAIVA, Kelen Benfenatti. Contar, é preciso. Revista Estudos Feministas v.17 n.2 Florianópolis May/Aug. 2009.

É fato que a história das mulheres e sua inserção no espaço público foram marcadas por uma longa trajetória de preconceitos e de dificuldades, por isso faz-se, ainda hoje, necessário contar essa história tantas vezes silenciada ao longo dos séculos. E com certeza foi essa a intenção de Yolanda Lôbo e Lia Faria quando reuniram, em Vozes femininas do Império e da República, uma coletânea de artigos com a intenção de “descortinar ideologias e utopias presentes no imaginário feminino, apontando assim para a construção histórica do gênero feminino em Portugal e no Brasil” (p. 16).

Com 368 páginas, o livro publicado pela Editora Quartet e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), em 2008, está a serviço de contar a história das mulheres por meio de experiências pessoais que ultrapassam a esfera do individual. Pode-se afirmar que a diversidade de assuntos abordados e os diferentes enfoques são perpassados e conduzidos por dois eixos centrais: educação e gênero.

Estruturalmente, o livro apresenta-se dividido em três partes: “Falas Imperiais”, “Falas Literárias” e “Falas Apaixonadas”. Na primeira constam dois artigos cuja temática é a educação no Oitocentos. Na segunda aparecem cinco textos que tratam de nomes importantes de mulheres na imprensa, na educação e na literatura. E em “Falas Apaixonadas” concentram-se quatro artigos que enfocam a atuação política e as intervenções de mulheres na educação e na cultura.

Sobre educação, é possível uma “volta” ao passado com Maria Celi Chaves Vasconcelos em “Vozes femininas do Oitocentos: o papel das preceptoras nas casas brasileiras”, em que a autora recupera parte da história das mulheres que encontraram nessa prática educativa um meio de subsistência. Como destaca a autora, as preceptoras foram, no século XIX, as primeiras educadoras “oficialmente instituídas que tornaram o seu ‘fazer’ uma ‘atividade profissional’ remunerada, representando a abertura do mercado de trabalho intelectual à condição feminina” (p. 38).

Sobre a educação feminina, cabe destacar o enfoque dado por Suely Gomes Costa em “Diário de uma e outras meninas: práticas domésticas e educação”, em que o olhar da pesquisadora se volta ao Diário de Helena Morley, publicado em 1942. A partir das experiências pessoais vividas na infância em Diamantina, narradas no diário, registra-se “um painel de trabalho de muitas mulheres a sua volta, das mais às menos instruídas, entrelaçadas em rede, nessa luta comum por sobrevivência” (p. 67). As confissões relatam a participação de meninas nos afazeres domésticos diários e a dificuldade de conciliar a casa e a escola. Destacam, ainda, como aponta Suely, a participação feminina na captação de moedas por meio do trabalho restrito ao âmbito do lar, as chamadas “prendas femininas”. Por fim, o artigo ressalta que a luta pela sobrevivência, nesses casos, criou “reiteradas restrições de acessos à educação” (p. 70).

Será a educação, ainda, pano de fundo em “Vozes católicas: um estudo sobre a presença feminina no periódico A Ordem (anos 1930-40)”. No artigo, Ana Maria Bandeira de Mello Magaldi resgata a participação de algumas mulheres na revista e destaca o caráter de “apostolado doutrinário e espiritual” da publicação. Atenta para a participação, dentre outras, de Lúcia Miguel Pereira na seção “Crônica feminina”, criada em 1932. Nas crônicas assinadas pela autora, há uma reflexão sobre os novos rumos da vida social que impactariam na condição feminina. Sobre o assunto, a cronista deixa explícita sua preocupação com risco de a mulher deixar-se seduzir por um ritmo, uma “trepidação”, própria dos tempos modernos, que a conduziria ao trabalho remunerado na esfera pública, quase sempre marcado pelo individualismo. É o foco no social a maior defesa da autora, que enfatiza a importância da educação feminina para um projeto segundo o qual a mulher deveria “pôr a serviço do bem comum as riquezas de sua psicologia materna “(p. 98), como bem destaca a autora do artigo.

É ainda pelo viés da educação e da literatura que Constância Lima Duarte nos apresenta Nísia Floresta, nome importante no avanço da educação feminina no Brasil, que traz em quase todos os seus livros “o propósito de formar e modificar consciências” e o projeto de “alterar o quadro ideológico-social” (p. 106). Em “Nísia Floresta e a educação feminina no séc. XIX”, a pesquisadora destaca o caráter inovador das ideias e práticas educativas de Nísia, como sua defesa por uma educação feminina pautada menos na educação da agulha e mais em uma formação multifacetada. Lembra ainda que, na produção da escritora, há textos que se inscrevem na tradição de uma “prosa moralista de intenção nitidamente doutrinária”, com o objetivo principal de “transformar a mulher indiferente em mãe amorosa e responsável”, contribuindo – sem o saber – para a cristalização de uma “mística feminina” (p. 140). A pesquisadora afirma que, a posteriori, “é fácil de perceber a manipulação ideológica desse discurso e as conseqüências na vida das mulheres” e destaca como o elogio da maternidade tornou-se uma “nova forma de enclausuramento” (p. 140).

Em “Carmen Dolores: as contradições de uma literata da virada do século”, Rachel Soihet e Flávia Copio Esteves se unem para apresentar ao leitor outra mulher à frente de seu tempo. Ciente das aptidões e dos papéis de cada gênero como construções sociais, Carmen Dolores usou a escrita para tratar de assuntos de interesse das mulheres, como a desmistificação da maternidade como seu único destino e a defesa do divórcio em nome da integridade familiar, da política, da educação e do trabalho feminino. Convivem nas crônicas assinadas pela autora a busca da libertação feminina pela educação e pelo trabalho e a manutenção de alguns comportamentos femininos. Tal paradoxo, claramente apontado pelas autoras, deve-se ao fato de que a escritora é, como tantas outras, uma “expressão da cultura de seu tempo e de sua classe”, sendo preciso considerar “a flexibilidade da ‘jaula’ representada pela cultura” (p. 165-166).

Pelo viés memorialístico e pelo cunho autobiográfico dos diários, dos cadernos de anotações e dos álbuns de memórias da professora Maria Luiza Schmidt Rehder, textos analisados por Marilena A. Jorge Guedes de Camargo, em “Ecos de um passado feminino: entre escritos e sentimentos”, chegam a nós relatando a trajetória de uma mulher movida pelos sentimentos que se propõe a “fazer história com sua experiência”. Assim, ao narrar sua vida, em Rio Claro, registra também acontecimentos importantes da década de 1930. Relata, por exemplo, a formação de um exército de voluntários unidos sob ideais patrióticos em defesa de São Paulo e registra a participação das mulheres paulistas na Revolução de 1932, costurando fardas e cobertores, angariando donativos para a manutenção dos batalhões, além da atuação das enfermeiras em hospitais de campanha.

Ao falar da condição feminina impressa no romance A doce canção de Caetana, de Nélida Piñon, Tânia Navarro Swain propõe uma “leitura ativa” que em nada se pretende imparcial ou distanciada, “apropriando-se” da narrativa para criar e atribuir-lhe sentidos múltiplos. Assim, em “A doce canção de Caetana: meu olhar” busca investigar as imagens e representações sociais do feminino e do masculino que habitam o romance. Discute, entre outros assuntos, a instituição do casamento como valor social na manutenção do poder masculino; a “ilusória força masculina” pautada no “fantasma da potência sexual” e na “posse de corpos alheios”; e a prostituição como “criação social”, na qual, como destaca a autora, há “violência de corpos desprovidos de subjetividade” (p. 216).

Atravessando o Atlântico, Áurea Adão e Maria José Remédios detêm-se na participação política das mulheres em Portugal de 1946 a 1961. Em “Os discursos do poder e as políticas educativas na governação de Oliveira Salazar: as intervenções das mulheres na Assembléia Nacional”, as autoras atentam para a atuação das deputadas na Assembleia Nacional bem como para a imagem do feminino que subjaz, explícita ou implicitamente, nas suas intervenções. Para tanto, analisam os discursos de seis mulheres parlamentares e observam que algumas áreas estavam restritas à intervenção pública feminina: a educação, a família, a assistência social e a saúde. Toda tentativa de ir além de tais assuntos era marcada por justificativas das parlamentares diante de seus pares. Ainda nos discursos dessas mulheres pode-se perceber, como destacam as autoras, a defesa da permanência da mulher no âmbito do lar, numa “valorização da função de mãe de família” e de “guardiã vigilante da harmonia e da felicidade do lar”, numa “verdadeira vocação de mulher” (p. 272), contribuindo para a manutenção de um questionável modelo social.

Seguindo ainda a trilha de mulheres que fizeram história, Lia Ciomar Macedo de Faria, Edna Maria dos Santos e Rosemaria J. Vieira da Silva seguem os passos da professora e historiadora Maria Yeda Linhares. De perfil “questionador e combativo” e de trajetória marcada “pela irreverência e coragem intelectual”, Maria Yeda se colocou em defesa do direito à educação e à garantia de uma escola pública efetivamente republicana, pois, para ela, segundo destacam as autoras em “Os múltiplos olhares de Maria Yeda Linhares: educação, história e política no feminino”, o sucesso da escola pública significa uma “questão de sobrevivência se quisermos existir como povo e nação” (p. 297).

A trajetória de outra professora, Myrthes de Luca Wenzel, também é abordada em “Alcachofras-dos-telhados: lições de pedagogia de uma educadora”, por Yolanda Lôbo. À frente da Secretaria Estadual de Educação e Cultura do Rio de Janeiro, a educadora reuniu em torno de si um seleto grupo de intelectuais e foi, como destaca a autora do artigo, idealizadora de uma “pedagogia libertadora”, uma proposta educacional inovadora, que buscava a felicidade dos alunos, “com liberdade de criar, de viver em sociedade e ao mesmo tempo preparados de modo completo e científico” (p. 316).

Voltando-se ao espaço sociocultural português, Zília Osório de Castro, em “Na senda do feminismo intelectual”, discute a condição feminina a partir da reflexão do papel do intelectual. Destaca a criação das revistas Pensamento, O Diabo e O Sol Nascente, na década de 1930, que “apostavam na reforma cultural” e traziam em suas páginas o tema do feminismo em meio ao “confronto de valores culturais presente na sociedade portuguesa de então” (p. 340). A participação das mulheres nessas revistas representou, segundo a autora, uma evolução, seja por sua inserção em um espaço majoritariamente masculino, seja pelo reconhecimento de suas potencialidades e sua “comparticipação na criação da nova sociedade” ou pela “conscientização de uma outra idéia de mulher” (p. 340), ser humano dotado de direitos e deveres. Por meio dessas mulheres se deu um “feminismo interventivo e não apenas participativo, um feminismo cívico e não apenas político” (p. 341). Zília lembra o nome de Ana de Castro Osório no feminismo cultural dos anos 1930, que defendia o trabalho como “carta de alforria” da mulher com o objetivo de responsabilizá-la por seu próprio destino. Observa ainda, nos periódicos analisados, dois tipos de feminismo: um “feminismo feminino”, pelo qual a mulher reivindicava uma função social, além da revisão da sua situação familiar, profissional e política; e um “feminismo masculino”, pelo qual os homens escreviam em “defesa” das mulheres.

É interessante notar, pela leitura dos artigos reunidos em Vozes femininas do Império e da República, como o lento processo de “libertação” da mulher está ligado à promoção de sua educação, de seu desenvolvimento intelectual e de seu trabalho, reafirmando o que Virgínia Woolf teorizou tão bem em Um teto todo seu. O leitor que se aventurar nas instigantes trilhas propostas pelas autoras deste livro chegará ao final de sua leitura com a visão panorâmica das principais lutas e obstáculos vivenciados pelas mulheres ao longo dos séculos, em diferentes contextos, dos quais o reconhecimento da diferença e o direito à educação foram fundamentais ao que se convencionou chamar de feminismo.

Pode-se dizer que, nas páginas deste livro, configura-se um feminismo crítico através das vozes de 13 mulheres que se unem para contar histórias de outras mulheres, que, por sua vez, superam os relatos pessoais e fazem coro com as autoras dos artigos para narrarem juntas uma história bem mais ampla: a história das mulheres.

Kelen Benfenatti Paiva – Universidade Federal de Minas Gerais.

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O filho eterno – TEZZA (REF)

TEZZA, Cristovão. O filho eterno. Rio de Janeiro: Record, 2007. Resenha de: CRISTOVÃO, Tezza. O filho eterno: uma leitura desejante. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.17, n.1  Jan./Apr. 2009.

O romance O filho eterno, de Cristovão Tezza, conta a história do amadurecimento de um homem com o nascimento de seu primeiro filho, uma criança com Síndrome de Down. A crítica literária de língua inglesa, sempre preocupada em ‘fichar’ um romance, chama esse gênero literário de coming-of-age novel ou bildungsroman. No entanto, na orelha do livro somos informados de que o escritor, Cristovão Tezza, baseia a história em sua própria vida, logo, um romance autobiográfico: “Num livro corajoso, Cristovão Tezza expõe as dificuldades, inúmeras, e as saborosas pequenas vitórias de criar um filho com síndrome de Down”. Folheando as primeiras páginas encontramos as epígrafes:

Queremos dizer a verdade e, no entanto, não dizemos a verdade. Descrevemos algo buscando fidelidade à verdade e, no entanto, o descrito é outra coisa que não a verdade.1

Um filho é como um espelho no qual o pai se vê, e, para o filho, o pai é por sua vez um espelho no qual ele se vê no futuro.2

A primeira fala sobre ‘verdade’ e a impossibilidade de a verdade ser apreendida mesmo quando a intenção é revelar a verdade. A segunda fala sobre ser pai e ser filho. Antes mesmo de iniciar a leitura, somos informados de que o romance tem como ponto de partida as memórias do escritor Cristovão Tezza, e, ele mesmo, na epígrafe, deixa claro que memórias são essas. Uma história baseada em fatos reais que não tem pretensão de ser a verdade. É a história do relacionamento de pai e filho – e, pela orelha do livro, somos informados de que se trata de um relacionamento com “dificuldades, inúmeras, e as saborosas pequenas vitórias”. Além disso, trata-se de um “livro corajoso” – o escritor é considerado corajoso ao relatar parte de sua vida, ao expor sua família e sua intimidade. Porém, confesso que me incomoda adjetivar o livro (e o escritor) de “corajoso”, pois “ser corajoso” me remete a livros com relatos (dramáticos) de histórias pessoais – “histórias de coragem e conquistas” – bem nos moldes do mote (ou mantra?) da propaganda política do governo: “sou brasileiro e não desisto nunca”. Talvez só eu tenha feito essa relação mental (que foi automática e com uma pitada de arrogância, admito), mas, de qualquer maneira, ler “livro corajoso” na orelha não me impediu, nem me desanimou, de ler o livro – a epígrafe me deu a impressão de que não se tratava de mais um “relato de coragem e determinação”. Claro que essa orelha foi escrita com propósitos comerciais, afinal, toda história e todo filme “baseados em fatos reais” encontram um certo apelo público. A ideia de alguém que viveu momentos difíceis e superou, ou que não superou, mas o final infeliz nos ensina a valorizar a vida e os momentos felizes. Coincidentemente, enquanto eu lia o livro e comentava, durante um almoço com uma amiga, a resposta dela foi: “Ah sei! Vi uma entrevista do autor e esse é o livro que ele escreveu sobre o filho com Down né? Anotei pra comprar. É uma história bonita?”. Respondi: “Bonita? Hmm… define ‘bonita'” (ela não quis ou não soube ou não vinha ao caso naquele almoço). Na hora, eu me lembrei do texto “O valor“, de Antoine Compagnon,3 e, automaticamente, vários outros textos foram pipocando na minha cabeça, textos sobre belo, estilo, estética, conceito de literário etc., como o do Ítalo Moriconi, “Circuitos contemporâneos do literário (indicações de pesquisa)”.4

Essa conversa apresenta parte da reflexão de Moriconi sobre o conceito de literário na atualidade. Para Moriconi, o processo material de criação da obra literária (ou obra de ficção), bem como a personalidade e a vida do autor desempenham papel determinante na divulgação, recepção de obras literárias (e artísticas) contemporâneas. Poderíamos aqui citar a presença do website do escritor Cristovão Tezza na orelha da contracapa do livro, após a breve informação biográfica. O culto à personalidade do autor e como esta aparece na obra estão implícitos nesse novo detalhe de algumas edições recentes. Como se, sob o aval da editora Record, o leitor obtivesse o endereço eletrônico de “um website oficial” – aos moldes de personalidades tornadas celebridades no mundo virtual, com inúmeros websites de fãs e com o respeitado website oficial.

Se na esfera pública clássica, pré-midiática, o autor era um “ser de papel” (como dele disse Barthes), ser virtual no sentido original da palavra virtual e não no sentido de virtual on line, hoje esse autor está disponível para apresentar seus materiais de trabalho, de tal maneira que a esfera do específico estético incorporou o making of como elemento de consideração. […] Considero que textos de depoimentos de artistas e de entrevistas sobre suas trajetórias biomateriais constituem corpus que fazem parte do conceito de literário atualmente. É que faz parte da definição de arte e literatura o objeto que se coloca em cena como representação do processo material de criação, como simulacro de uma situação de enunciação.5

Dispersa parcialmente da conversa, comecei a pensar sobre o meu adjetivo para aquela narrativa, aquele texto de ficção, texto literário, romance, romance autobiográfico. Sentei na frente do computador e comecei a escrever minha resenha. Meu adjetivo: sincero. Um livro sincero, um narrador sincero, uma história sincera. Sem pieguice, sem conquistas descritas em tom meloso, sem lágrimas fáceis de “histórias bonitas” – mas lágrimas sinceras de confissões que podem ser recebidas como um soco no estômago. A subversão de expectativas sociais em relação à paternidade: logo no início temos um pai que deseja secretamente a morte do filho assim que ele nasce. Durante todo o livro o leitor é confrontado com desejos e pensamentos ‘egoístas’ de um personagem, e esses fazem o leitor, a todo momento, pensar em seus desejos íntimos e secretos. A coragem aqui aparece nas revelações secas e cruéis dos desejos mais secretos de um personagem que não procura se redimir. E isso, para mim como leitora, é a força do romance. A preocupação do personagem em não se conformar, em não fazer parte de um sistema e em não ser mais um “idiota” é refletida na narrativa, que em nenhum momento se conforma aos moldes das narrativas “corajosas”.

O filho eterno é uma narrativa seca de desencantamento, em terceira pessoa, onde os personagens não têm nome, com exceção do filho, Felipe, e são chamados de “ele”, “o pai”, “a mulher”, “a mãe”, “a filha”, “a irmã”. Mesmo Felipe frequentemente aparece como “o filho” em contraposição ao “pai”. Não encontramos o lugar-comum, o apelo ao sentimento de pena e empatia, e, acredito, ser isso uma das qualidades de uma história que prende o leitor por não fornecer respostas e soluções óbvias, pelo contrário, a surpresa é uma constante durante a leitura. Percorremos a trajetória do personagem pai e, dentro de sua história, acompanhamos a trajetória do personagem filho, Felipe. O treinamento neurológico nos primeiros anos de vida do filho é contrastado com o ‘treinamento’ do pai em relação às tentativas de publicar seus livros e as recusas das editoras:

Eu também estou em treinamento, ele pensa, lembrando mais uma recusa de editora. A vida real começa a puxá-lo com violência para o chão, e ele ri imaginando-se no lugar do filho, coordenando braços e pernas para ficar em pé no mundo com um pouco mais de segurança (p. 130).

O crescimento e o desenvolvimento do filho são percebidos pelo pai nas representações de papéis sociais que o filho se esforça em cumprir (p. 211). Ao mesmo tempo, o pai descobre a alegria que a rotina traz e a tranquilidade conquistada com papéis sociais como “o professor universitário”, “o escritor”.

“O pai começa a descobrir sinais de maturidade no seu Peter Pan e eles existem, mas sempre como representação” (p. 218). O espelho no qual ambos, pai e filho, se veem é o espelho que reflete a representação dos papéis sociais. A percepção de mimetismo social no filho não está muito distante dos papéis que o pai é solicitado a cumprir socialmente na universidade, na família, na escola do filho, no campeonato de natação e na apresentação de teatro do filho. A dificuldade do pai é tão grande quanto a dificuldade do filho. A criança que vive eternamente no presente aprende a responder ao que é solicitado dela socialmente. O pai provisório, que só pensava em viver o presente, também aprende. E aqui é revelado o escritor por trás da narrativa. A sutileza ao contar os episódios na vida do pai e do filho é alcançda no contar da história, pois não há momentos de avaliação e reflexão em que paralelos são explicitamente estabelecidos. Esse trabalho é reservado ao leitor. E nesse momento me veio à cabeça um texto do qual eu gosto muito: “Freud’s Masterplot”, de Peter Brooks.6

Nesse texto, Brooks cria uma “teoria da narrativa” baseada no que ele chama de “teoria da vida”, criada por Freud em Além do princípio do prazer e baseada na leitura de Lacan dos conceitos freudianos de condensação e deslocamento, com seus análogos na linguagem, metáfora e metonímia, respectivamente. Se viver é a separação entre o nascimento e a morte, o meio da narrativa é o que separa o início do fim (sendo ambos, a morte e o fim, já presentes no nascimento e no início do texto). Sendo assim, resta ao indivíduo e ao leitor percorrer esse caminho árduo e prazeroso, evitando atalhos. Para Brooks, o meio do texto (o texto em si) é o local onde alguma forma de energia textual é ativada pelo leitor na interação entre leitor e texto. Na ficção, o perigo dos atalhos e da “morte repentina” é tarefa do escritor criador da narrativa e do leitor, que precisa ligar as redes metonímicas para alcançar a metáfora. Acredito que há no romance de Tezza essa preocupação em não deixar o leitor “morrer de repente”, ou, como indaga Roland Barthes sobre o prazer de ler, não abandonar o texto. E chego ao Barthes.

Em “Da leitura”, Barthes questiona a existência de um prazer de leitura, um prazer de ler, e conclui que existem, pelo menos, “três vias pelas quais a Imagem de leitura pode capturar o sujeito-leitor”: a) o estabelecimento de uma relação fetichista entre o leitor e o texto; b) “o prazer metonímico de toda narração”; e c) a leitura como condutora do desejo de escrever, desejo de Escritura.7 A leitura de O filho eterno foi, para mim, uma leitura permeada pelos três desejos destacados por Barthes. Como sujeito-leitor, passei de um “dever de leitura” para as vias assinaladas por Barthes, e, pessoalmente, foi o “prazer metonímico” da narrativa de Cristovão Tezza que tornou a leitura especial, uma “leitura desejante”.

Notas

1 Thomas BERNHARD apud Cristovão TEZZA.

2 Søren KIERKEGAARD apud TEZZA.

3 Antoine Compagnon, 2001.

4 Ítalo MORICONI, 2006.

5 Ítalo MORICONI, 2006, p. 161-162.

6 Peter BROOKS, 2007.

7 Roland BARTHES, 1988, p. 49.

Referências

BARTHES, Roland. “Da leitura”. In: ______. O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 43-52.         [ Links ]

BROOKS, Peter. “Freud’s Masterplot”. In: RICHTER, David H. (Ed.). The Critical Tradition. Boston: Bedford; St. Martin’s, 2007. p. 1161-1171.         [ Links ]

COMPAGNON, Antoine. “O valor”. In: ______. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte: UFMG, 2001. p. 225-255.         [ Links ]

MORICONI, Ítalo. “Circuitos contemporâneos do literário (indicações de pesquisa)”. Revista Gragoatá, Niterói, n. 20, p. 147-163, 1. sem. 2006.        [ Links ]

Marina Barbosa de Almeida – Universidade Federal de Santa Catarina

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Gênero e artefato: o sistema doméstico na perspectiva da cultura material – São Paulo, 1870-1920 – CARVALHO (REF)

CARVALHO, Vânia Carneiro de. Gênero e artefato: o sistema doméstico na perspectiva da cultura material – São Paulo, 1870-1920. São Paulo: Edusp; Fapesp, 2008. 368 p. Resenha de: MELLO, Soraia Carolina. Gênero, artefato e a constituição do lar: o caso paulistano. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.17 n.1  Jan./Apr. 2009.

Não é novidade, nos estudos historiográficos, a utilização da cultura material como ferramenta para se acessar, observar, analisar e inferir o passado. Também não é novidade a preocupação das ciências humanas com o ambiente doméstico quando seu foco de análise é o cotidiano, e, com o boom dos estudos sobre mulheres e gênero, fica complicado ignorar a feminização dessas esferas, sugerida como natural.

Dialogando com esses aspectos, o trabalho de Vânia Carneiro de Carvalho nos traz, por meio de uma escrita leve e delicada – ainda que densa , o que aparentemente seria uma história da formação e do estabelecimento do gosto por decoração e consumo da incipiente burguesia paulistana. De fato seu livro faz essa história, associando fortemente hábitos de consumo com esforços de distinção de uma classe que, ainda que possa ser enquadrada no que se entende como classe dominante, não é filha de fortes tradições de demonstrações públicas de status.1 Entretanto, durante a leitura percebemos que a escolha das fontes, da teoria e da metodologia no trabalho levar-nos-á por outros caminhos.

Adaptação de tese de doutorado defendida em 2001 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), a obra faz uso da cultura material para além de análises clássicas dos artefatos: seja em seu aspecto puramente funcional, como reflexo de questões maiores alheias aos objetos, ou mesmo com relação à pura e simples representação de status. Acompanhando preocupações atuais no campo, a autora trabalha com o que pode ser chamada de “agência dos artefatos”, sua capacidade de produzir efeitos; de não apenas moldar as pessoas, mas ser parte integrante e necessária de sua constituição. E logo no prefácio se apresenta de forma clara o foco dessa análise: “o relacionamento simbiótico entre objetos domésticos e formação de identidades sociais diferenciadas pelo gênero”,2 lembrando que “tão-só existe objeto para um sujeito”.3

Ao mesmo tempo que a análise dialoga com teorias pós-estruturalistas ou pós-modernas, que podem ser observadas de forma mais marcada não apenas nas análises de gênero (sempre destacando seu aspecto relacional), mas também em preocupações com a corporalidade e a constituição do sujeito de forma mais ampla, a história social, tão forte no Departamento de História da USP, também mostra seu lugar na obra, que parece ser um resultado interessante de uma espécie de “meio-caminho” entre história cultural e social. Sua ampla gama de fontes assim como a interdisciplinaridade – fazendo uso principalmente do urbanismo – vêm nos lembrar disso em vários momentos da leitura, assim como a análise que muitas vezes parece oscilar entre um extremo e outro dessas vertentes.

Dividindo a obra em cinco capítulos, a autora lança um dos aportes de sua análise em “Ações centrípetas e centrífugas: individualidades sexuadas”. Nesse primeiro capítulo, ela diferencia as ações centrípetas masculinas das ações centrífugas femininas. As primeiras definiriam

objetos que “buscam” o centro, no qual se encontra a figura substantiva do homem. Há, portanto, uma hierarquia centralizadora entre pessoas e objetos, na qual os atributos dos objetos nunca sobrepujam o homem, ao contrário, eles servem para desenhar a personalidade de gênero de maneira individualizadora […] (p. 43).

Assim, a masculinidade estaria voltada para a máxima individualização, enquanto a feminilidade estaria no seu oposto, em um fenômeno de despersonalização feminina no qual a mulher estaria em harmonia, de alguma forma fundida, camuflada no ambiente – doméstico – que a rodeia. Nesse sentido, a ação centrífuga feminina significaria “uma forma abrangente e difusa de produção de representações femininas no espaço doméstico, [que] inclui ativamente o corpo na constituição de sua identidade. O resultado disso é uma continuidade entre corpo, objeto e espaço da casa […]” (p. 224).4 Dessa forma, a individualidade da mulher estaria limitada à individualidade da família que ela representa.

No segundo capítulo, “Espaços e representações de gênero: um campo operatório”, descrevem-se os diferentes cômodos de um sobrado ou palacete paulistano da virada do século XIX para o XX, de forma a mostrar, a partir de objetos, fotografias e recomendações de decoração em publicidade e artigos de revistas femininas, a generificação dos ambientes. Sóbrios e confortáveis, de tradição inglesa, os ambientes masculinos como a sala de jantar, o hall e em última instância o escritório se opõem aos ambientes femininos, que copiam a exuberância da decoração francesa, como a sala de visitas e o quarto feminino. A autora ressalta que essa espécie de divisão por gênero da casa não significava necessariamente a limitação de circulação das pessoas pelos espaços, estando muito mais ligada aos valores que se intentava associar a um ou outro ambiente.

Nesse momento da leitura nos surpreendemos com nosso olhar do presente, tão acostumado a buscar pela cozinha quando se fala em ambientes femininos. Diferentemente do que se podia observar nos lares norte-americanos, onde o emprego doméstico não era tão acessível, a cozinha era, no Brasil, um espaço da criadagem no qual não havia interesse em se investir. Isso inclusive devido à herança colonial de desvalorização do trabalho manual, a qual fazia com que as mulheres brasileiras abastadas se dedicassem a bordados e pinturas (além de filantropia, visitas a lojas e cafés, teatros; consumo de uma forma mais ampla), trabalhos considerados artísticos que não as associariam com ex-escravas ou mestiças empobrecidas. Assim, enquanto as mulheres burguesas norte-americanas já consumiam de forma ampla eletrodomésticos variados a fim de amenizar sua difícil função de cuidar de todo o trabalho doméstico sozinhas, a dita modernização da cozinha paulistana se deu muito mais por pressões médico-higienistas e, no caso específico do fogão a gás, por interesses econômicos de uma multinacional distribuidora de energia, como a autora vem tratar nos últimos capítulos.

A corporalidade e sua constituição voltada, reciprocamente, à cultura material são o foco expresso do Capítulo 3: “Representações e ações corporais: a ubiqüidade do gênero”. Por meio de vestígios de formas de descrever, olhar, comer ou sentar-se, a autora busca a construção de subjetividades e a concepção do sujeito dentro de uma visão de mundo muito embasada no romantismo. É o momento do livro em que a literatura como fonte histórica aparece com mais força, a partir de José de Alencar e Machado de Assis. É um momento interessante também para reparar como, na busca por representações e modos de vida fortemente calcados na simbologia, o cotidiano possa ser encontrado na formalidade, quer dizer, observando-se pessoas educadas segundo modos europeus, treinadas desde muito cedo pela etiqueta e envolvidas de forma profunda na autorreflexão, a pose para um retrato, por exemplo, não é uma representação absolutamente ímpar ao cotidiano, digamos assim, real, ainda que o acontecimento de se posar para o retrato não seja regular. Os modos de se mover, de agir, a postura, o olhar, treinados e educados, fortemente generificados, são parte constituinte do sujeito. O olhar da autora sobre o disciplinamento dos corpos no mundo urbano parece ser guiado por Richard Sennett5 e, principalmente, por Michel Foucault.6

Apesar de a pesquisa se concentrar em um grupo social específico, a burguesia paulistana em um recorte temporal também específico, de 1870 a 1920, os documentos mostram que as recomendações sobre moral e costumes, mesmo dentro dessa espécie de micro-cosmo, não eram unívocas. Em oposição à vida de vitrine das conquistas do provedor, fosse ele marido ou pai, levantam-se vozes que clamam pela necessidade de permanência da mulher na casa, onde seria seu lugar natural. Somente em casa ela seria capaz de desempenhar seu verdadeiro papel, muito mais importante que os compromissos sociais com filantropia, nos cafés ou jogos de tênis: zelar pela felicidade familiar. No Capítulo 4, “Casa VERSUS rua: a conspicuidade feminina e o trabalho doméstico”, a autora nos traz descrições da rotina doméstica das mulheres burguesas, percebendo variações no que seria um padrão de comportamento aceitável para essas mulheres.

Já no século XX parece que a racionalização da rotina doméstica ganha muita força em São Paulo, e a figura da esposa burguesa asseada em oposição à esposa colonial preguiçosa é marcante. A tradição colonial é desprezada como barbárie, e a higiene vira ponto forte de preocupação dentro dos lares. Seguindo toda a onda higienista, que tenta resolver os problemas de saúde dos grandes aglomerados urbanos, a decoração das casas começa a sofrer grandes modificações, uma vez que as cortinas pesadas, que não permitiam que o ar circulasse, e a grande quantidade de objetos de decoração dos mais variados, que facilitavam em muito o acúmulo de pó, não eram condizentes com as recomendações médicas. Nessa época, também a cozinha começa a ganhar alguma atenção, em comparação com consultórios médicos. Seu piso de terra batida é substituído por azulejos, assim como todas as superfícies que devem ser de fácil desinfecção; os panos agora são pendurados em ganchos; os alimentos são acondicionados segundo rígidas regras de higiene etc. A cozinha passa a ser entendida como o “laboratório da família”, e cuidados nesse ambiente são então indispensáveis para que a saúde e a felicidade possam estar presentes nos lares. Claro que as mudanças não ocorrem simultaneamente em todas as casas, que eram também diferentes entre si. Como todos os padrões de conduta, essas mudanças fazem parte de um padrão. Porém, é interessante observar como em revistas femininas encontram-se recomendações inclusive para as classes ditas remediadas e desfavorecidas, lembrando que o conforto de quem não tem luxo seriam a ordem e a limpeza.

No Capítulo 5, que finaliza o livro, “A felicidade como conforto: bem-estar, domesticidade e gênero”, a autora se volta para os lares não abastados com maior ênfase, e também insiste no que pode ser considerada uma das hipóteses centrais de sua pesquisa: a decoração, a criação de ambientes no lar que transmitam efeitos opostos à vida dura e competitiva na rua, existe para o homem, não para a mulher(!). Questionando o privado como reino da mulher, Vânia Carneiro de Carvalho nos lembra de que o homem não somente se socializa no lar, como a própria constituição do lar como espaço de conforto e paz, de santuário alheio ao competitivo e bruto “mundo lá fora”, existe para servir ao homem. Todo o esforço dessas mulheres abastadas para decorar suas casas, a fim de que nos mínimos detalhes o espaço transmita o que a autora chama de conforto visual, faz parte do papel social e culturalmente designado a essas mulheres como mediadoras.

Dessa forma, levanta-se outra questão de suma importância que é o fato de que a decoração, que faz parte de todo o empenho mediador das mulheres na busca pela produção de felicidade familiar, é parte do trabalho doméstico. E no caso das mulheres observadas nas fontes, é a principal parte. É importante ressaltar esse fator porque as análises muitas vezes não consideram as mulheres abastadas como responsáveis pelo trabalho doméstico, uma vez que são empregadas e empregados que executam esse trabalho em suas casas. Porém, a responsabilidade7 pelo bom andamento do trabalho, pelo perfeito funcionamento do lar, assim como a preparação de eventos importantes para seu meio social (como no caso dos jantares) recaem sobre essas mulheres, que ocupam todo o seu dia com a administração do trabalho dos outros, o consumo e o que hoje chamaríamos de decoração e artesanato.

Falando sobre como as classes médias consumiram mais rapidamente os modelos de decoração mais “limpos” importados dos EUA, por esses serem reproduzidos mais facilmente por seus preços reduzidos, a autora termina o livro nos lembrando do dilema da dona de casa moderna, que precisa se dividir entre os pesados afazeres exigidos pela casa e a boa aparência e delicadeza “necessárias e naturais ao seu sexo”. Apesar de descrições muito interessantes e minuciosas sobre o cotidiano dentro dos lares, alguns pontos de conflito ou dissonâncias como esse poderiam aparecer mais na análise. Não se comenta – ou talvez as referências escolhidas não levantem o tema – sobre mulheres endinheiradas que não se enquadravam muito bem nem como boas donas de casa, nem como consumidoras crônicas. Não se fala em mulheres mais envolvidas com a intelectualidade, ou preocupadas com os direitos civis femininos. Ainda que se comente um pouco sobre as mulheres que trabalhavam como criadas, e um pouco também sobre os lares empobrecidos, em nenhum momento as mulheres de classes ao menos remediadas que trabalhavam, como as que escreviam nas revistas femininas, são citadas (daí talvez o uso comum do termo “mulher” na obra, em vez de “mulheres”). Sua presença e sua relação com os artefatos poderiam enriquecer esse trabalho.

Ainda assim, à sua maneira o livro pode instigar discussões, inclusive atuais, sobre a questão do trabalho doméstico feminino e a associação das mulheres ao espaço privado. Ele também é importante pois nos chama a atenção para a associação das mulheres abastadas com o lar, que muitas vezes é negligenciada por elas não serem “as grandes vítimas dessa situação”, lugar dedicado às mulheres trabalhadoras de dupla ou tripla jornada.

As ricas e numerosas – são 157 – ilustrações do livro nos lembram do cargo ocupado pela autora no Museu Paulista da USP, remetendo-nos à sensação de visita ao museu. A leitura associada às fontes iconográficas parece nos imergir num mundo que, ainda que com referências próximas ao nosso e com preocupações contemporâneas – como é o caso da análise de gênero –, é outro mundo. É como se o livro oferecesse ao/à leitor/a um pouco dos prazeres do ofício de historiador/a, quando encontramos nas fontes uma espécie de pequena janela para espiar do nosso tempo, nunca permitindo anacronismos, mas de maneira apaixonante, esse mundo que deixou vestígios mas não existe mais. Característica comum aos bons livros de história.

Notas

1 Ainda que a questão da ‘falta de tradição’ da burguesia em oposição à aristocracia, nos momentos em que a primeira vem se estabelecendo como classe dominante hegemônica no mundo Ocidental, tenha aspectos profundamente diferenciados no que se refere ao Brasil em comparação à Europa industrializada ou à América do Norte, o fenômeno é de alguma forma comum (p. 220).

2 Ulpiano Toledo Bezerra de MENEZES, 2008, p. 13.

3 MENEZES, 2008, p. 13.

4 Ainda que apresentado no começo do livro, o termo é retomado durante a análise, e essa definição foi retirada do quarto capítulo.

5 Richard SENNETT, 1997.

6 Michel FOUCAULT, 1977.

7 Suely Gomes Costa comenta as responsabilidades das mulheres mais abastadas ao observar como parte dessas responsabilidades pode ser transferida a mulheres contratadas, o que ela chama de “maternidade transferida” (COSTA, 2002).

Referências

COSTA, Suely Gomes. “Proteção social, maternidade transferida e lutas pela saúde reprodutiva”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 2, p. 301-309, 2002.         [ Links ]

FOUCAULT, Michel. “Os corpos dóceis”. In: ______. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Rio de Janeiro: Vozes, 1977. p. 125-152.         [ Links ]

MENEZES, Ulpiano Toledo Bezerra de. “Prefácio”. In: CARVALHO, Vânia Carneiro de. Gênero e artefato: o sistema doméstico na perspectiva da cultura material – São Paulo, 1870-1920. São Paulo: Edusp; Fapesp, 2008. p. 11-14.         [ Links ]

SENNETT, Richard. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro: Record, 1997.        [ Links ]

Soraia Carolina de Mello – Universidade Federal de Santa Catarina

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“Que tenhas teu corpo”: uma história social da prostituição no Rio de Janeiro das primeiras décadas republicanas – SCHETTINI (REF)

SCHETTINI, Cristiana. “Que tenhas teu corpo”: uma história social da prostituição no Rio de Janeiro das primeiras décadas republicanas. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2006. Resenha de: GUIMARÃES, Janete Eloi. O enfrentamento pela via legal: a utilização do aparato jurídico por mulheres pobres nas primeiras décadas republicanas. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.17 no.1 Jan./Apr. 2009.

Tradução literal da expressão latina habeas corpus, “Que tenhas teu corpo” é resultado da tese de doutoramento em história social de Cristiana Schettini, defendida na Unicamp em 2002. O sugestivo título faz alusão a um dos caminhos escolhidos pela autora em sua pesquisa, os meandros do espaço legal e a utilização de seus recursos por populares no Rio de Janeiro no período de estabelecimento do regime republicano no país. Tal recorte temporal já foi objeto de várias frentes de pesquisa, o que poderia sugerir um questionamento quanto à escolha da autora em revisitar aqueles conturbados anos de estruturação política e de reforma espacial pelos quais passava a Capital Federal.

Tais receios se dissipam à medida que Schettini apresenta-nos seu argumento. Extremamente bem articulada, sua narrativa insere o objeto em uma perspectiva não explorada por seus antecessores. É sob um olhar arguto que a autora nos leva a caminhar novamente por ruas e becos, bares, botecos e hospedarias, frequentados pela população pobre, e perceber, nas mulheres que exerciam a prostituição e em seu inquebrantável esforço em resistir às constantes interferências sobre seus modos de vida, uma nova leitura do Rio de Janeiro de então.

Estruturado em três capítulos, a autora perpassa o período de vigência do Código Penal de 1890 e analisa três olhares distintos sobre a prostituição que se entrecruzam: o das mulheres que a viviam como uma possibilidade de renda ou forma de sobrevivência, ou ainda mulheres, trabalhadoras pobres, enquadradas como tal à sua revelia, e dos homens que se relacionavam com essas mulheres; a perspectiva das autoridades policiais e seus procedimentos de fiscalização e controle sui generis (ainda que frequentemente encontremos estes “homens da lei” inseridos no primeiro grupo); e, por fim, o aparato jurídico e seus embates para classificar, avaliar e penalizar, conforme valores legais em constante discussão, uma “profissão” não regulamentada, mas tolerada e, nesse sentido, aceita.

“Os descaminhos da localização”, primeiro capítulo, é construído a partir dos habeas corpus que começam a ser impetrados em favor de prostitutas que vinham sendo “convidadas”, com excesso de firmeza, a mudar seus endereços, em 1896. A autora observa perspicazmente de que maneira tal ação jurídica adquiriu conotações de situação limítrofe naquele momento. A localização a que caberia a prostituição na cidade estaria na ordem do dia por um longo período e seria uma questão enfrentada constantemente pelas autoridades policiais. A reforma espacial que sofreria a Capital nas primeiras décadas republicanas impunha a necessidade de se suprimirem possíveis empecilhos para a concretização dos projetos quistos para a cidade; a zona de prostituição, atividade tacitamente consentida, era um enclave a ser removido. É nesse sentido que tais habeas corpus irão fomentar um amplo debate, situando-se em meio ao enfrentamento de dois projetos da República para o país, que determinariam as bases sobre as quais o regime estabelecer-se-ia, em que um tomava por base a valoração do interesse coletivo em detrimento de outro, que visava proteger as prerrogativas individuais dos cidadãos.

Seguindo, a autora aborda diversos conflitos advindos das tentativas, nem sempre lícitas, de deslocar as prostitutas para regiões mais afastadas e identifica as formas elaboradas por essas mulheres para “sobreviver às picaretas”. Estabelece-se nesse capítulo o paralelo entre as ações policiais, com grande frequência discricionária, e as estratégias das mulheres, descortinando suas redes de solidariedade e auxílio mútuo, passando pelas fissuras no policiamento, entendendo aqui a suscetibilidade de seus componentes verem-se enredados pelo cotidiano daquelas mulheres, até o uso do recurso legal para sua defesa.

“Histórias do tráfico” irá perscrutar as narrativas sobre o tráfico de mulheres brancas aliciadas para a prostituição, sua construção e seus usos. Segundo a autora, tomando ares de verdade absoluta, tais histórias coordenaram debates no âmbito internacional e orientaram decisões jurídicas e procedimentos policiais no Brasil. Sob um caráter de “defesa de mulheres ludibriadas submetidas a uma situação de degradação alheia a sua vontade”, a veracidade com que foram recebidas tornou tais histórias legitimadoras a toda sorte de arbitrariedades de procedimentos policiais, desde atos diretos, como a expulsão sumária, até a manipulação de depoimentos no intuito de embasar processos de lenocínio.

A análise desmistifica tais histórias, apontando que, ao rejeitar uma aceitação de pronto, tem-se a desconstrução da imagem da prostituição como um mal originado no estrangeiro; em seguida, observa-se o uso do “tráfico” como fomentador de estereótipos, ao caracterizar a figura do cáften também como estrangeiro, principalmente de origem judaica. O foco na figura do estrangeiro é lido pela autora como uma permanência da estratégia florianista de estabelecer um inimigo comum para depositar as origens dos problemas nacionais. Nesse sentido, o judeu elege-se como principal alvo, em virtude da sua dissemelhança cultural e religiosa e, até mesmo por conta disso, do seu estabelecimento através de comunidades restritas orientadas por essas relações internas, que surgiam aos olhos alheios como uma rede fechada e inacessível, logo suspeita.

Isentando a sociedade brasileira de promover ou gerar tal mal, e tendo encontrado a quem direcionar sua procedência, promovia-se um clima de suspeição generalizada direcionado a estrangeiros que estabeleciam relações nos ambientes onde a prostituição estava presente. O que nos mostra a autora é que a lógica policial se construía sobre um solo fértil em criminosos, pois os espaços da prostituição, além de concentrarem o que restava de moradia de preço acessível, eram também locais de lazer e relações entre a população pobre e trabalhadora do Rio de Janeiro. Suas vidas eram indissociáveis daqueles locais, logo, viam-se constantemente sujeitos a serem implicados em tal categoria de crime. Além disso, as redes de relações estruturadas sob a etnia, um dos mecanismos de proteção e apoio mútuo, eram lidas como a própria estrutura da súcia envolvida no tráfico. Os mecanismos de sobrevivência desses grupos revertiam-se em “agravante acusatório”.

Em “Usos do lenocínio”, último capítulo, a autora irá centrar sua análise no debate em âmbito judiciário e a sua dificuldade em uniformizar o entendimento, entre os juízes, dos significados da letra da lei, suscitando um debate que percorreria todo o período da vigência do Código Penal de 1890. A prostituição em si não caracterizava um crime, criminoso seria um terceiro que prestasse assistência e/ou fornecesse auxílio a uma prostituta visando lucrar com sua exploração. Durante certo tempo, a imputação do crime de lenocínio estaria subordinada a essa comprovação de que o acusado lucrava com a prostituição de outrem, o que dificultava, mas não impedia, a ação policial. Em 1915, a reformulação desse artigo dispensa a obrigatoriedade da relação de exploração com vistas a lucro, gerando uma indefinição e consequente ampliação do campo possível de aplicação da lei. Bastava agora caracterizar o auxílio ou a assistência para incorrer em delito. Na falta de uma qualificação categórica e sem um consenso por parte do Judiciário, tal reformulação encontra nas autoridades policiais os beneficiários de tal amplitude, na medida em que a gama de vinculáveis à prostituição abria-se enormemente. Nesse movimento, a autora encontra novamente as classes trabalhadoras, seus lazeres e divertimentos, passíveis de fiscalização e criminalização.

A autora articula esse último capítulo por meio de processos de lenocínio quase que exclusivamente, mas esses estão presentes nos capítulos anteriores, em diálogo constante com outras fontes, como a imprensa, a literatura jurídica, os romances, a documentação policial, entre outras. A análise empreendida é acompanhada, no decorrer do texto, com uma discussão aberta sobre a necessária postura criteriosa a que deve engajar-se o historiador ao entabular o tratamento com as fontes, principalmente das provenientes do aparato jurídico-policial. Sem eximir-se do debate sobre a “qualidade” de tal documentação, a autora, ao contrário, propõe-se a tê-la à frente de sua análise, empreendimento no qual obtém êxito.

Em um movimento cadenciado, acompanhamos essas mulheres lançando mão de toda sorte de estratégias para seguir suas vidas a despeito da intensa pressão policial. Vemos esses policiais, em contrapartida, articulando e refinando seus métodos e procedimentos, e nos imergimos no debate jurídico, que buscava estabelecer as significações possíveis para a lei, em uma pendular postura, ora se alinhando ao discurso policial, ora servindo de limite na atuação deste, como nos casos de habeas corpus concedidos.

O livro de Cristiana Schettini nos apresenta assim o vagaroso deslocamento das mulheres de janela, das ruas centrais que se desejava embelezar, para localidades mais distantes, como a região do Mangue, que ficou conhecida posteriormente como uma afamada “zona de meretrício”. Mais do que isso, mostra-nos que a conjugação de ingerência policial e exclusão social não acarreta necessariamente aceitação passiva, ao contrário, as formas de resistência podem ser articuladas dentro do próprio espaço legalizado, no qual todos, independente da condição social a que pertençam, possuiriam princípio de igualdade.

Janete Eloi Guimarães – Universidade Federal de Santa Catarina

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A construção dos corpos: perspectivas feministas – STEVENS; SWAIN (REF)

STEVENS, Cristina Maria Teixeira; SWAIN, Tânia Navarro (Orgs.). A construção dos corpos: perspectivas feministas. Florianópolis: Editora Mulheres, 2008. Resenha de: BENTO, Berenice. Corpo-projeto. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.17 no.1 Jan./Apr. 2009.

O que é um corpo? Hormônios, sangue, órgãos, aparelho reprodutor? A construção dos corpos, organizado por Cristina Maria Teixeira Stevens e Tânia Navarro Swain, reúne artigos que revelam muitos corpos sob o significado corpo. O livro é composto de 12 artigos escritos por sociólogas, historiadoras, psicólogas, educadoras e críticas literárias espalhadas entre Brasília, São Paulo e Rio Grande do Sul. Essa diversidade de áreas do conhecimento produz uma riqueza singular nas abordagens sobre o corpo, o desejo, a reprodução e a subversão das normas. Corpo dócil, inútil, domesticado, abjeto, celibatário, puro, lugar de produção de invisibilidade; corpos que resistem, subversivos. A urdidura dos artigos nos expõe a um léxico singular que marca um campo de estudos caracterizado por uma disputa com concepções naturalizantes e essencialistas sobre as identidades. O livro é resultado de trabalhos apresentados no Seminário Internacional Fazendo Gênero, em 2006.

O artigo “A construção de corpos sexuados e a resistência das mulheres: o caso emblemático de Juana Inés de la Cruz”, de Ana Liési Thurler, é uma contribuição lapidar na luta pela visibilização de personagens femininas que afirmaram a importância da participação da mulher na vida política e pública. Juana Inés de la Cruz, mexicana, viveu entre 1651 e 1695, ingressou no Convento das Carmelitas Descalças aos 16 anos. Ana Liési aponta que a entrada para a vida religiosa pode ser entendida como uma estratégia de resistência, afinal, ali poderia ler, escutar música, escrever e conviver em um ambiente exclusivamente feminino. Nesse ambiente, Juana escreveu defesas do direito à educação da mulher e à interpretação das Escrituras.

Mediante a história de Juana Inés, Ana Liési nos revela a disputa que circulava nas sociedades ocidentais em pleno processo de reorganização do contrato social. Ela viveu em um contexto histórico marcado por redefinições das posições que os gêneros deveriam ocupar na redistribuição dos poderes. Essa releitura caminhava de mãos dadas com a mudança que também estava em curso para a interpretação dos corpos do isomorfismo para o dimorfismo. Será a suposta diferença natural entre os sexos que sustentará as teses de contratualistas para justificar a exclusão da mulher da vida pública. Juana Inés seria a prova de que teses fundamentadas na estrutura biológica eram determinadas não por descobertas revolucionárias das ciências, mas por interesses de gêneros.

Ana Liési, ao mesmo tempo que nos apresenta a obra e a vida de Juana Inés, discorre sobre o pensamento de John Locke, um dos fundadores do contrato social moderno. O projeto de estruturação dos estados modernos esteve atrelado a novas configurações dos gêneros e, simultaneamente, à produção da matriz heterossexual. Para Locke, o consentimento livre da esposa à subordinação ao marido, por meio do contrato do casamento, não seria uma imposição, mas algo natural, consentido. Os contratualistas são intelectuais responsáveis pela tessitura de um dos dispositivos discursivos que formarão a matriz heterossexual e que encontrarão inteligibilidade nas complementaridades sexual e de gênero.

Ao pôr em diálogo Juana Inés e John Locke, Ana Liési termina por nos revelar as disputas e resistências em torno das verdades para os gêneros que estavam em processo de mudança. Juana Inés fez de sua vida um contraponto às normas então produzidas para presidir a vida das mulheres. A polaridade Locke e Juana é uma síntese dos acontecimentos mais amplos que ocorriam nessa época.

O artigo “Corpos que escapam: as celibatárias”, de Cláudia Maia, dialoga com o de Ana Liési visto estabelecer genealogias que desnaturalizam a distribuição desigual de poder entre o masculino e o feminino. A autora analisa as estratégias discursivas articuladas pelas enunciações médico-científicas, nas primeiras décadas do século XX no Brasil, as quais tinham o corpo celibatário feminino como a negação da natureza feminina. A referência de normalidade é o corpo feminino procriativo, no âmbito de uma relação regulada pelo Estado. A autora analisa a crônica A tragédia das solteironas, escrita em 1937 por Berilo Neves, na qual as mulheres não procriativas são interpretadas como seres portadores de corpos defeituosos, doentes e inúteis. A matriz heterossexual atrelada à biopolítica do Estado, que teve nos contratualistas alguns dos seus idealizadores, estava em pleno funcionamento. Um dos pontos fortes do artigo de Cláudia Maia está em apontar as fissuras e resistências que o dispositivo da sexualidade, nesse momento histórico, encontrava. A autora resgata os trabalhos de Maria Lacerda de Moura e Ercília Nogueira, feministas que criticam os discursos hegemônicos que destinavam e aprisionavam a mulher ao papel exclusivo de donas de casa. Cláudia Maia observa que há um alcance limitado dessas críticas à medida que a maternidade, instituição fundante da heterossexualidade compulsória, não é objeto de desconstrução na obra das feministas.

Os artigos da coletânea têm movimentos internos similares. Ao apontar o corpo como um lugar saturado de discurso, de poder, destacam as possibilidades de resistências, de fissuras. Além dessa questão, pode-se notar que há um núcleo de autores que se repetem nas referências bibliográficas, com destaque para as obras de Michel Foucault e Judith Butler. Possíveis pontos de unidade não retiram a singularidade de cada artigo, tampouco se pode esperar leituras uníssonas sobre conceitos e experiências, a exemplo da discussão sobre a maternidade desenvolvida por Cláudia Maia e Cristina Stevens. A maternidade para Cláudia Maia é uma instituição política, daí a leitura que médicos fazem do corpo celibatário, doente, varonil ou frígido. Assim, não é consequente criticar a heteronormatividade, para a autora, sem considerar a maternidade como uma das formas privilegiadas de controle dos corpos femininos.

A maternidade, para Cristina Stevens, no artigo “O corpo da mãe na literatura: uma ausência presente”, tem uma potência subversiva que deveria ser recuperada como prioritária pelos discursos e estudos feministas. A experiência da maternidade é analisada mediante a leitura da escritora Michelle Roberts, que destacará as fantasias inconscientes sobre a maternidade presentes em sua obra. Os romances da autora são analisados por Cristina Stevens como uma tentativa de pensar a maternidade para além da dualidade natureza/cultura, o que possibilita repensá-la a partir de uma perspectiva que desconstrói a mística da maternidade como identidade institucional imposta, para afirmá-la, conforme Cristina Stevens, como admirável experiência inovadora. Outra obra interpretada por Cristina Stevens é a do autor D. M. Thomas. Nessa obra, a autora destacará o caráter performático dado à questão do corpo da mãe e da maternidade.

Afirmar a maternidade como uma experiência singular do corpo-fêmea não significa que a autora não esteja atenta às armadilhas criadas pelas idealizações para a realização feminina pela reprodução. Cristina Stevens recupera a discussão tensa entre natureza e cultura, e, ao apontar a positividade dessa experiência, não resvala nos essencialismos que apontam uma suposta condição feminina ancorada na diferença sexual.

Da mesma forma que as outras autoras privilegiam pontos de tensão para pensar as rupturas e a reprodução da ordem de gênero, Cristina Stevens destacará os significados contraditórios da maternidade, entendendo-a como um lócus de poder e opressão, autorrealização e sacrifício, reverência e desvalorização.

Outra riqueza dessa coletânea está na pluralidade das pesquisas e do material utilizado. Ana Liési faz um estudo histórico do impacto da obra de Juana de la Cruz; Cláudia Maia debruça-se sobre textos de literatura e de escritoras feministas brasileiras de década de 1940; Cristina Stevens lê obras literárias para pensar a representação da maternidade. No artigo de Diva Muniz, há um resgate da dimensão desnaturalizante e desencializadora que a introdução do conceito de gênero representou nos estudos feministas. É municiada com esse arcabouço teórico, previamente analisado, que Diva Muniz nos apresenta sua interpretação do filme “O segredo de Brokeback mountain”.

Nos artigos, “Sobre gênero, sexualidade” e “O segredo de Brokeback mountain: uma história de aprisionamentos”, Diva Muniz fará uma importante e competente defesa da categoria gênero. Para ela, a introdução dessa categoria possibilitou pensar mulheres e homens não como essências biológicas predeterminadas, anteriores à história, mas uma identidade construída social e culturalmente no jogo das relações sociais e sexuais pelas práticas disciplinadoras e pelos discursos/saberes instituintes. A autora afirmará que os estudos orientados pela categoria analítica gênero recusam os limites empobrecedores de uma abordagem descritiva e disciplinar. Dessa nova perspectiva advêm as possibilidades subversivas. Sua força desestabilizadora estaria na capacidade de desnaturalização e desencialização do binarismo que caracterizara os estudos sobre as mulheres.

Para Diva Muniz, a recepção ao gênero pelos estudos históricos processou-se sem a necessária problematização. Nessa adoção descritiva e despolitizada, gênero tornou-se sinônimo de mulheres, de estudos das mulheres. A autora estabelece uma aliança teórica com um campo que pensa gênero como produto e processo de diferentes tecnologias sociais, aparatos biomédicos, epistemologias, práticas críticas institucionalizadas e práticas da vida cotidiana. Nesse sentido, o gênero, assim como o sexo/sexualidade, não é algo existente a priori nas pessoas, mas um conjunto de efeitos que fazem corpos.

A segunda parte do seu artigo é dedicada à leitura do filme “O segredo de Brokeback mountain”. A autora nos oferece uma leitura dos mecanismos de produção/reprodução do sistema de gênero na história de amor, silenciamento, aprisionamento, homofobia internalizada e violência que marca as biografias do casal Ennis e Jack.

Se no artigo de Diva Muniz há uma defesa da força do conceito de gênero, Heleieth Saffioti, em “A ontogênese do gênero”, discutirá os limites desse conceito. A autora proporá a revitalização da noção de diferença sexual, assim como da importância de seguir adiante com os estudos sobre mulher. Isso se justifica à medida que a situação das mulheres não mudou substancialmente nas últimas décadas, segundo a autora. A ênfase do seu artigo está nas formas de reprodução das estruturas assimétricas de gênero. Em sua crítica à utilização do conceito de gênero, afirmará que há um esquecimento do caráter biológico que constitui o ser social. A leitura dos artigos de Heleieth Saffioti e de Diva Muniz nos revela que o gênero está em disputa no âmbito das relações sociais e entre as/os pesquisadoras/os. Não há consenso.

A diversidade dos gêneros, os conflitos e as violências que fundam as identidades de gênero revelam que gênero e biologia se comunicam na exata medida em que a própria biologia já nasce generificada. O que entendemos quando falamos de mulheres oprimidas? De estrutura biológica? Nessa taxionomia orientada pela biologia para dividir as espécies, onde caberiam as mulheres transexuais? E mais: onde estariam as mulheres lésbicas transexuais que trazem em suas biografias camadas sobrepostas de exclusão e violência?

Além disso, conforme apontou Diva Muniz, resgatando Judith Butler,1 ainda que os sexos pareçam não problematicamente binários em sua morfologia e constituição, não há razão para supor que os gêneros também devam permanecer em número de dois.

Heleieth Saffioti afirma que ” […] é exatamente este fundamento biológico o elemento não problematizado no conceito de gênero” (p. 175). A dimensão biológica aparece no conceito de gênero não como um dado, estático, mas permanentemente desconstruído, desnaturalizado, em suspeição.

O que significou os estudos sobre as mulheres em termos de naturalização foi discutido pelo artigo de Diva Muniz. Há pesquisadores/as que continuam operando o olhar sobre as relações sociais de gênero com o olhar binário dos estudos sobre as mulheres. A invisibilidade das mulheres com cromossomas XX, das mulheres transexuais, das travestis e das lésbicas é um fato, no entanto, ao se propor visibilizar as mulheres XX, mediante a recuperação da centralidade dos estudos sobre mulheres; seria importante dizer de que mulheres Heleieth está reivindicando visibilidade. Seria das mulheres heterossexuais brancas? Das mulheres negras lésbicas? Das mulheres transexuais lésbicas? Ainda que se saiba que as hierarquias de gênero produzem uma profunda exclusão do feminino, é limitador e produtor de novas invisibilidades equacionar mulheres XX como o feminino e homens XY como o masculino.

Quando a autora afirma “seja no sentido de ter muitos filhos ou de ter apenas um, o fato é que as mulheres são manipuladas, estando o controle do exercício de sua sexualidade sempre em mãos masculinas” (p. 156), termina por produzir a invisibilidade de mulheres que fazem a opção por ter seus/suas filhos/as sozinhas e de casais lésbicos que lutam na justiça pelo direito à adoção e que decidem ter seus/suas filhos/as em novos arranjos familiares. Essas novas configurações tornam temerário afirmar que “a natureza do patriarcado continua a mesma” (p. 157).

O conceito de gênero, para Heleieth Saffioti, pode representar uma categoria meramente descritiva, embora prefira a utilização de “categorias de sexo”. Concordo com Diva, quando afirma que “uma das razões, porém, do recurso ao termo gênero foi, sem dúvida, a recusa do essencialismo biológico, a repulsa pela imutabilidade implícita em ‘anatomia é o destino'” (p. 120). O conceito de gênero não é palatável ou confortável, principalmente no âmbito dos estudos queer, marco teórico que me orienta na leitura dos artigos desta coletânea. Nas últimas décadas, nota-se uma considerável produção de pesquisas sobre o caráter performático das identidades de gênero, com isso, a tese de que há identidades de gênero normais e outras transtornadas foi posta em xeque e abriu um tenso e intenso debate com o poder médico.

Para os estudos queer, gênero pressupõe luta, não há espaço para neutralidade, mas para disputas, inclusive com a visão heterocentrada, que orientou e segue orientando parte dos estudos feministas. Gênero não é a dimensão da cultura por meio da qual o sexo se expressa, conforme afirma Heleieth, pois não existe “sexo” como um dado pré-discursivo. O sexo, conforme Butler, sempre foi gênero.2 O artigo de Heleieth Saffioti é importante à medida que nos revela que “gênero” está em disputa.

A autora nos apresenta uma leitura pouco otimista das mudanças nas relações entre os gêneros, posição contrastante com outros artigos da coletânea, a exemplo do artigo de Margareth Rago e Luana Saturnino Tvardovskas.

Norma Telles, em “Bestiários”, leva-nos ao mundo mágico da obra das artistas Leonora Carrington e Remédio Varo. Os livros das bestas, populares durante a Idade Média, são recuperados pelo surrealismo, movimento artístico que as influenciou consideravelmente. As taxonomias das espécies cedem lugar aos hibridismos, aos devaneios na obra das artistas. Norma Telles analisa como o pensamento vai sendo deslocado para a vida animalizada. Todo o esforço da ciência moderna em separar o mundo humano do mundo animal é posto em xeque pelos surrealistas e, particularmente, pelas artistas. Ao analisar contos e quadros das artistas, a autora aponta para a interação de animais e humanos, o que resulta em um mundo fantástico, onírico, onde imperam a indeterminação e a incerteza. A irreverência está presente na criação de corpos femininos, marcados pela liberdade animalesca. O hibridismo das personagens e figuras, segundo a autora, supera as limitações definidoras, aproximando realidades distantes e desconstruindo os gêneros.

Para Norma Telles, o binarismo arraigado e disseminado por todas as esferas da sociedade é posto em suspeição quando a confusão e a perturbação são resgatadas como matéria-prima para a produção das artistas. A abjeção de corpos sem definição, meio animal, meio gente, cria um campo de reflexão sobre normalidade e patologias. As artistas, seus quadros e contos, não exigem provas nem verdades únicas. Apresentam novos arranjos, anedotas, para apresentar a maleabilidade do corpo, dos seres, das metamorfoses.

O horror à indeterminação e à confusão no processo de classificação dos gêneros resulta na ideia de que a normalidade dos gêneros está baseada na diferença sexual. A verdade do sexo não permite ambiguidades. Homem e mulher não se confundem nunca, afirma o saber médico. A confusão e o hibridismo, se existem, são expressões de corpos enfermos. Caberia à ciência corrigir os erros da natureza. Dessa forma, as transexuais e travestis seriam casos de hibridismo que encontram o único lugar possível de existência nos compêndios médicos. São experiências identitárias carimbadas como transtornos. Quando Leonora Carrington e Remédio Varo representam um mundo sem a suposta coerência linear e binária que estrutura o pensamento moderno, dizem-nos que há muitos mundos. O hibridismo não é algo externo ao humano, mas está presente em nossos sonhos, em nossos desejos e nas subjetividades.

Os artigos de Silvana Vilodre Goellner e Tânia Fontenele-Mourão apresentam resultados de pesquisas que analisam processos de construção de corpos femininos pautados pelas idealizações do gênero feminino. O artigo “Cultura fitness e a estética do comedimento: as mulheres, seus corpos e aparências”, de Silvana Vilodre Goellner, discute a cultura fitness como mecanismos que funcionam em torno da construção de uma representação de corpo como sinônimo de saúde e beleza. O corpo trabalhado é associado a termos plenos de positividades, dentre eles, “bem-estar”, “qualidade de vida” e “vida saudável”. Para Silvana Vilodre, a cultura fitness desdobra-se de diferentes maneiras e, de forma persuasiva, captura as mulheres com a promessa de felicidade.

Um dos pontos que podem ser destacados, a partir das reflexões da autora, é o caráter incluso da construção dos corpos generificados. A ideia de corpo-projeto materializa-se nas práticas que constituem a cultura fitness. O corpo apresenta-se como uma substância precária que precisa da confirmação e do reconhecimento da feminilidade e masculinidade, e que, nesse caso, encontra nas práticas de remodelação, fabricação e consertos dos “defeitos naturais” os dispositivos para tornar-se real. As idealizações de gênero nos levam para lugares inabitáveis, um não-lugar, mas que operam ações, opções e desejos. Já nascemos com débitos e teremos a vida inteira para consertar os erros originais. Esse me parece ser o eixo principal do artigo de Silvana Vilodre. Fazer dietas, aumentar ou diminuir partes dos corpos, injetar produtos, suar e suar, são práticas que revelam o caráter ficcional de um corpo feminino original que nasce pronto.

As múltiplas tecnologias de gênero estão em pleno funcionamento, determinando lugares específicos para se fazer o trabalho de reconstrução dos corpos: academias, clínicas, centros de estética, enfim, fábricas de produção de corpos inteligíveis. A experiência corpórea, materializada em determinadas performances, constitui as subjetividades de gênero, ou seja, a ideia ou promessa de felicidade está diretamente vinculada às formas corpóreas que se têm. Eis uma promessa que já nasce fadada ao fracasso.

No artigo “Mutilações e normatizações do corpo feminino – entre a bela e a fera”, Tânia Fontele-Mourão apontará outras tecnologias que produzem feminilidade, calcadas em sacrifício, dor, riscos. Escovas progressivas, dietas rigorosas, depilação, próteses, são práticas de reconstrução corporal, a exemplo da análise do culto fitness, que nos expõem com dureza o caráter ficcional de se pensarem identidades de gênero como uma substância, desvinculado das práticas, conforme discutirá Tânia Navarro em seu artigo. A proliferação de novas tecnologias de gênero e o crescente consumo pelos femininos e masculinos produzem uma inversão: práticas antes vinculadas exclusivamente a travestis e transexuais passam a ser rotinizadas em amplas esferas sociais. A proliferação do uso múltiplo do silicone seria uma marca das identidades protéticas que se caracteriza pela promessa de felicidade mediante reconstrução dos corpos.

Esses processos mais radicais e incisivos de intervenção/fabricação produzem novas formas, porém não originais, de refazer o feminino. São mulheres cromossomaticamente XX que parodiam práticas e performances vinculadas ao mundo trans. Nesse sentido, as pesquisas de Tânia Fontele-Mourão e Silvana Vilodre são fundamentais para pensar os canais de comunicação entre os muitos femininos, sem perder de perspectiva os aprisionamentos e as potencialidades de resistência que derivam da biopolítica contemporânea aliada às novas tecnologias de gênero que circulam pela sociedade.

Para Tânia Fontele-Mourão, o desejo de intervenções é interpretado como uma patologia feminina que potencialmente poderia gerar resistência e rebelião, mas que é manipulada para servir à manutenção da ordem estabelecida. Sintoma desse nível de patologia coletiva seria o fato de que nove em dez mulheres entre 15 e 64 anos querem mudar algum aspecto de corpo, principalmente peso e forma de corpo, conforme pesquisa realizada pela Dove.

A histeria, a agorafobia e a anorexia, para a autora, não são patologias individuais, mas expressões de um nível de sofrimento resultado dos aprisionamentos e controles do corpo feminino. Os corpos esqueléticos das anoréxicas, o desespero das histéricas, a ansiedade das agorafóbicas, são protestos inconscientes, incipientes e contraproducentes, pois são experiências corpóreas e existenciais que não se constituem em voz política, mas estão ali revelando os aprisionamentos de um sistema de gênero que prega, como se mantra fosse, que a felicidade está em ter um corpo adequado aos padrões estéticos. A doença como sintoma de um sistema de gênero que desvaloriza o feminino e captura seus corpos também é analisada por Tânia Navarro Swain, em seu artigo nessa coletânea, quando observa que a TPM seria uma fórmula de interiorização e controle das mulheres, agrilhoando-as a um corpo que dita seu comportamento e sua ação no mundo.

Os artigos de Guacira Lopes Louro, “O ‘estranhamento’ queer”, e de Margareth Rago e Luana Tvardovskas, “O corpo sensual em Márcia X”, esboçam reflexões queer sobre identidades, corpo e desejo. Guacira Lopes Louro apontará a proposta dos estudos queer como uma bússola teórica que oferece fundamentos radicais para a desconstrução da heronormatividade e do binarismo de toda ordem. A autora reconhece a força do binarismo que opera em todas as esferas sociais, inclusive no interior dos grupos chamados minoritários. A política de identidade fixa uma identidade gay, uma identidade lésbica, uma identidade feminina. No campo da luta das minorias, também se produzem exclusão e invisibilidades. As margens produzem seus centros e periferias, hierarquizando performances, tornando uma expressão, ou jeito de estar no mundo, mais legítima.

A autora destacará a força das normas sociais regulatórias que pretendem que um corpo, ao ser identificado como macho ou fêmea, determine, necessariamente, um gênero (masculino ou feminino) e conduza a uma única forma de desejo (que deve se dirigir ao sexo/gênero oposto). O processo de heteronormatividade, ou seja, a produção e reiteração compulsória da norma heterossexual, inscreve-se nessa lógica, supondo a manutenção da continuidade e da coerência entre sexo/gênero/sexualidade.

A discussão teórica apresentada por Guacira Lopes Louro dialoga com a leitura queer que Margareth Rago e Luana Tvardovskas fazem da obra de Márcia X. As autoras destacam a força desestabilizadora da artista plástica, que, em suas instalações, brincava com objetos sagrados, a exemplo do terço, produzindo deslocamento de olhares, corpos, sexualidade e desejo. A sua crítica ao falocentrismo tem um forte componente queer, à medida que inverte polos, desloca olhares, cria instabilidades. Para as autoras, a obra da artista revela a capacidade de autonomia das mulheres e seu desejo de transformar sua economia desejante, desconstruindo os discursos misóginos masculinos, que visam impor-lhes uma identidade construída do exterior. Márcia X desenvolveu performances e instalações, questionando o estatuto da arte e do artista na sociedade, do corpo e da sexualidade, da normalidade e da perversão.

Em uma de suas performances, apresentou-se vestida com uma camisa e uma cueca, onde abrigava um volume que simulava o órgão sexual masculino. A imagem da mulher sensual era, em seguida, quebrada pela visão ambígua da genitália. Em outro momento, a artista apresenta uma instalação com muitos terços formando um pênis enorme. Embaralhamento das fronteiras instituídas, diluição das oposições binárias, são marcas na obra dessa artista, segundo Margareth Rago e Luana Tvardovskas, que destacarão que as mulheres, que já não são ingênuas nem castas, ousam brincar com o desejo, afirmar o prazer, insinuar e expor o corpo, borrando ou desfazendo insistentemente as fronteiras do normal e do perverso. A obra de Márcia X seria uma referência para essas mudanças.

Em “Reações hiperbólicas da violência da linguagem patriarcal”, Marie-France Dépéche realiza uma importante reflexão sobre a linguagem como criadora de realidades, principalmente os atos linguísticos violentos. Os atos da fala produzem invisibilidades e posições de poder. A força da linguagem com modalidade constitutiva das normas de gênero é um dos pontos fortes na análise e posição política dos estudos queer. A negatividade do insulto é invertida, transformando em parte estruturante das identidades. Portanto, recuperar a linguagem como um campo de disputa na luta pela transformação radical das relações assimétricas de gênero é uma estratégia fundamental. É dessa luta que nos fala Marie-France Dépéche. Conforme discorre, o conceito de linguagem não se restringe a um sistema de signos, fixos, a-histórico. A linguagem é uma instituição instável, um lugar de exercício do poder, de confronto entre forças adversas e, portanto, potencialmente violenta, principalmente quando define, a partir dos corpos, os lugares de fala e de inserção sociopolítica.

No debate sobre as formas de violências físicas e simbólicas contra a mulher, a autora destacará que a prostituição é a expressão maior dessas múltiplas violências contra as mulheres. No entanto, sua posição carece de uma escuta mais atenta das mulheres trabalhadoras sexuais, sujeitas que vivem, produzem, reproduzem e interagem no mundo do comércio sexual. Uma concepção que não lida com as muitas variáveis e imponderáveis que constituem esse campo social acaba por produzir uma reificação das relações que acontecem no seu interior. Parece-me simplismo transferir a responsabilidade exclusiva para os homens de práticas e relações continuamente negociadas. Se a realidade é multifacetada, escorregadia, quando se trata de trabalho sexual e trabalhadoras sexuais, esse nível de incertezas é potencializado.

As mulheres trabalhadoras sexuais não são desprovidas de agência. Uma das lutas dessas trabalhadoras é pelo reconhecimento profissional e acesso aos direitos e às obrigações previdenciárias. Diante dessa demanda, o que fazer? Dizer-lhes: não, a luta é pela extinção do trabalho sexual, pois esse trabalho é uma degradação da mulher? Esse argumento é o mesmo utilizado pelos defensores da família heterocentrada. Valeria perguntar qual a fonte explicativa para trabalho sexual masculino. Seria, então, apenas uma inversão dos polos, ou seja, os homens veem seus corpos “apropriados” pelo conjunto de mulheres?

Tânia Navarro Swain, em “Entre a vida e a morte, o sexo”, faz uma crítica radical à centralidade do sexo na vida contemporânea, alertando-nos sobre a força do dispositivo da sexualidade. Para a autora, diante do massacre a que somos submetidos/as diariamente com mensagens de que só é possível ser feliz com muito sexo, de que não existe vida fora da sexualidade compulsória, devemos denunciar que esses enunciados são estratégias a serviço da heterossexualidade compulsória e da heteronormatividade, ou seja, esses enunciados criam aquilo que dizem descrever.

Uma vigilância permanente, não aceitar o hegemônico, fazer do corpo um manifesto de recusa às idealizações, ao dispositivo da sexualidade e ao dispositivo amoroso, revelar os aprisionamentos e promover resistências capilares, reconstruindo o corpo como espaço de resistência e negação dos padrões hegemônicos, são questões que atravessam o artigo de Tânia Navarro. Seu texto tem cheiro, vida, suor, posicionamento. É prazerosa sua leitura porque produz reverberações na subjetividade da leitora. Os bons textos são aqueles que ao lê-los ficamos com a agradável sensação de que estamos sendo lidos, plagiando Mário Quintana. Eis a sensação que Tânia Navarro despertou-me ao analisar a necessidade de um mundo que funcione a partir de uma nova estética da existência que não produza dor, exclusão e violência contra os corpos construídos na condição de abjetos.

A autora articula seu desejo com uma discussão teórica que nos fala de deslocamento, nomadismo, inconformismo. A estética da existência leva a autora a pensar sobre a produção crítica de si, sujeito político e histórico, quebrando os grilhões do natural, da sexualidade compulsória e das novas servidões que se anunciam ao criar nossos corpos.

A radicalidade do seu texto está em relacionar sexualidade à posse, à traição, à honra, à autoestima, à emoção, valores que se confundem em torno de corpos definidos pelo poder de nomeação, pela performatividade dos comportamentos codificados pelo social, pelas condições de imaginação que esculpem modelos.

***

Uma ausência do livro refere-se às reflexões sobre os processos de construção dos corpos masculinos. Essa ausência pode gerar certo incômodo, pois pode sugerir que exclusivamente o corpo feminino foi objeto de reiteradas inversões discursivas para a construção da heteronormatividade e que os homens, os que formulavam essas estratégias, estivessem fora dessa matriz, como se fossem portadores de uma natureza que os predispõe à virilidade e à competição e tenham um desejo intrínseco pelo controle do feminino. Seria a produção da ideia de que o feminino está para a cultura e o masculino, para a natureza?

Essa ausência, no entanto, não retira do livro sua força e originalidade. Navegamos por um léxico que marca o campo de estudos sobre o corpo, desejo, poder, biopoder, e que está em disputa com o poder/saber médico e com as ciências psi. Muitos corpos nos são apresentados ao longo dos 12 artigos, o que faz cair por terra a ideia de que nascemos e vivemos com um único corpo. Mudamos, nossos corpos mudam. A imagem de uma humanidade com dois corpos, pautados na diferença sexual, evapora-se.

Vivemos em uma época pós-humana. O corpo é refeito, retocado, manipulado, seja para adequar-se às normas ou para subvertê-las. Um humano ciborgue, protético, revela-nos que a busca do masculino e do feminino, fundamentada em uma origem biológica, é um conto de fadas ou um conto de terror. Conforme apontou Norma Telles, vivemos em uma época dos corpos fragmentados, que desfazem e refazem a forma humana, sem uma fixação, mutável.

Os ciborgues sociais precisam de reconhecimento para ter vida. Não se reconstroem corpos para si mesmo. O desejo de reconhecimento, de felicidade, faz-nos seres para os/as outros/as. Estamos sempre em relação e em disputa. Nenhuma identidade sexual e de gênero é absolutamente autônoma, autêntica, original, facilmente assumida, isolada. Toda a maquinaria posta em movimento para fazer corpos dóceis ou corpos rebeldes só encontra sua eficácia se produz algum nível de reconhecimento. A identidade é um construto instável e mutável, uma relação social contraditória e não finalizada.

Notas

1 Judith BUTLER, 2003.

2 BUTLER, 2003.

Referências

BENTO, Berenice. A (re)invenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006.         [ Links ]

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.         [ Links ]

FONSECA, Claudia Lee Williams. “A dupla carreira da mulher prostituta”. Revista Estudos Feministas, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 7-34, 1996.         [ Links ]

HARAWAY, Donna. Simians, Cyborgs and Women: The Reinvention of Nature. New York: Routledge, 1991.         [ Links ]

PISCITELLI, Adriana Garcia. “Entre as ‘máfias’ e a ‘ajuda’: a construção de conhecimento no tráfico de pessoas”. Cadernos Pagu, São Paulo: Unicamp, v. 31, p. 29-65, 2008.        [ Links ]

Berenice Bento – Universidade Federal do Rio Grande do Norte

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Homofobia & educação: um desafio ao silêncio – LONÇO; DINIZ (REF)

LIONÇO, Tatiana; DINIZ, Débora (Orgs.). Homofobia & educação: um desafio ao silêncio. Brasília: Letras Livres: EdUnB, 2009. 196 p. Resenha de: SILVEIRA, Viviane Teixeira; RAIAL, Carmen. Um contributo para uma psicologia feminista crítica em Portugal. Revista Etudos Feministas, Florianópolis, v.16 n.2, may/aug. 2008.

Homofobia & educação reúne oito artigos escritos por professoras e professores de diversas universidades brasileiras, membros de organizações não governamentais (Nuances e Corsa) e pesquisadoras e pesquisadores da Anis: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Organizado por Tatiana Lionço e Débora Diniz, este livro trata da política educacional de materiais didáticos no Brasil e busca ser uma oportunidade de diálogo entre academia, sociedade civil e governo, possibilitando reflexões de educadores, militantes em defesa dos direitos humanos e gestores de políticas públicas. O livro resulta de um extenso projeto de pesquisa denominado “Qual a diversidade sexual dos livros didáticos brasileiros?”, executado pela Anis, em parceria com a Universidade de Brasília (UnB), a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a Universidade Federal da Bahia (UFBA) e a Universidade de São Paulo (USP). A pesquisa foi financiada pelo Programa Nacional de DST e Aids, pelo Ministério da Saúde e pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC).

No artigo “Qual a diversidade sexual dos livros didáticos brasileiros?”, Tatiana Lionço e Débora Diniz abrem o debate para a questão do silêncio sobre a diversidade nos livros didáticos quando se trata de sexualidade. As autoras argumentam que a escola é um espaço de socialização para a diversidade, entretanto a invisibilização da diversidade ocorre nos materiais didáticos. Mesmo que abordagens étnico-raciais, de gênero e/ou econômicas já estejam contempladas e sendo alvo de investimentos do Ministério da Educação, as dimensões social e política da sexualidade permanecem à margem. Lionço e Diniz aprofundam essa temática no artigo “Homofobia, silêncio e naturalização: por uma narrativa da diversidade sexual”, analisando como o tema da diversidade sexual foi incorporado pelos livros didáticos no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e no Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio (PNLEM). A amostra contemplou 67 dos 98 livros didáticos mais distribuídos pelo PNLD e pelo PNLEM (nos anos de 2007 e 2008 em livros de disciplinas que pudessem contemplar a temática da sexualidade no conteúdo programático) e 25 dicionários distribuídos pelo PNLD em 2006 e pelo Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) em 1998. As características analisadas foram: apresentação de gênero, família e conjugalidade; sexismo; diversidade social e sexual; e relação sexual e DST/Aids. As autoras concluem retomando que o silêncio é a estratégia dominante e que não há discussão sobre homofobia nos livros dos dois últimos anos. Não há enunciados que inferiorizem a diversidade sexual, mas há uma heteronormatividade assentada na heterossexualidade compulsória.

Daniel Borrillo, em seu artigo “A homofobia”, faz uma leitura epistemológica e política desse conceito, não para compreender a origem e o funcionamento da homossexualidade, mas para “analisar a hostilidade provocada por essa forma específica de orientação sexual” (p. 16). Para tanto, Borrillo investe na discussão dos conceitos de homofobia geral e específica, sexismo e homofobia cognitiva e social. Segundo o autor, quando a homossexualidade requer publicamente sua expressão é que se torna insuportável, pois rompe com a hierarquia da ordem sexual, por isso a tarefa pedagógica deve ser questionar a heterossexualidade compulsória e mostrar que a hierarquia de sexualidades é tão insustentável quanto a de sexos, bem como incluir a ideia de diversidade sexual em livros e apostilas escolares.

Uma análise da ausência de conteúdos e imagens relacionados à diversidade sexual nas concepções de família presentes nos livros didáticos e também do papel exercido pelos discursos e pelas imagens de famílias nesses livros é o foco do artigo “A eloquência do silêncio: gênero e diversidade sexual nos conceitos de família veiculados por livros didáticos”, de Claudia Vianna e Lula Ramires. Muitos são os exemplos encontrados nos livros didáticos enfatizando a importância da família (bem como da escola) no processo de socialização. No entanto, existe uma tensão entre as concepções apresentadas: a permanência de imagens e discursos relativos à família nuclear, branca e de classe média (patriarcalismo, história, cotidiano, divisão sexual do trabalho, cuidado infantil) e algumas mudanças no modo de configuração dessas famílias (famílias monoparentais, chefiadas pela mãe, lares adotivos, intergeracionais, multirraciais). Entretanto, não há imagens ou textos que mostrem famílias homoparentais. Ao encontro da problemática levantada por Vianna e Ramires, o artigo “Ilustrações do silêncio e da negação”, escrito por Malu Fontes, mostra que 70% dos livros didáticos analisados não apresentavam imagens de homoparentalidades, homoafetividade, representações de homossexuais e de sua presença na sociedade e na diversidade sexual. Aponta que o silenciamento contribui para a manutenção do preconceito, fato acordado em todos os artigos presentes no livro Homofobia & educação. A autora também faz uma reflexão sobre os conteúdos dos livros didáticos, que ignoram a diversidade sexual e que contribuem para a manutenção dos comportamentos sociais homofóbicos, em contraste com as telenovelas brasileiras, que já incluíram a temática gay e o debate em favor da diversidade sexual.

Fernando Pocahy, Rosana de Oliveira e Thaís Imperatori iniciam seu artigo retomando a invisibilidade da diversidade sexual e a naturalização da heterossexualidade nos livros didáticos brasileiros. “Cores e dores do preconceito: entre o boxe e o balé” tem como eixo teórico as problematizações feitas por Judith Butler a respeito da heteronormatividade e da abjeção dos corpos. Butler problematiza se haveria a possibilidade do pertencimento, do reconhecimento, àqueles que escapam à heteronormatividade: “serão capazes de viver socialmente?” (p. 117). A partir de um exercício sobre os filmes “Billy Eliot” e “Menina de Ouro” extraído de um livro didático, os autores do artigo problematizam os estereótipos de gênero e os preconceitos em relação a escolhas profissionais que desestabilizam a ordem heteronormativa e caricata do masculino e do feminino na sociedade, propondo esse tipo de análise como uma boa sugestão para o trabalho com a homossexualidade em sala de aula.

Com o objetivo de analisar o PNLD, salientando a importância da visibilidade e das discussões sobre a diversidade sexual nas políticas de educação, o artigo “Diversidade sexual, educação e sociedade: reflexões a partir do Programa Nacional do Livro Didático”, de Roger Raupp Rios e Wederson Rufino dos Santos, traz uma reflexão sobre as concepções, as características, os limites e os avanços presentes na elaboração e na concretização do programa. Os autores apontam o Brasil sem Homofobia: programa de combate à violência e à discriminação contra GLBT e de promoção da cidadania homossexual como marco político das discussões sobre orientação sexual e identidade de gênero nas políticas públicas brasileiras, pois se apresentou com o objetivo de eliminar a discriminação por orientação sexual nos livros didáticos. Percorrem um caminho de análise das legislações para mostrar “que o silêncio que aparece nos livros didáticos sobre a diversidade sexual é antes percebido no próprio arcabouço legal que sustenta a política pública” (p. 135). Concluem sugerindo que os princípios do regime democrático devem permear as políticas públicas para a superação do silêncio acerca das múltiplas expressões da diversidade sexual. São eles: liberdade individual, autonomia, igualdade, respeito à dignidade humana, pluralismo e diversidade.

O artigo que finaliza esta coletânea denomina-se “Políticas de educação para a diversidade sexual: escola como lugar de direitos”. Rogério Diniz Junqueira foca sua análise nos sujeitos e nas subjetividades fabricadas na escola, argumentando que o campo da educação é historicamente constituído como disciplinador, reprodutor de desigualdades e normalizador – lançando um olhar foucaultiano sobre o tema. Dessa forma, na escola a homofobia adentra e se instala, sendo (re)produzida e, além disso, consentida, o que transforma a escola num espaço institucional de opressão. Para falar de diversidade e diferença, Junqueira trava um diálogo pertinente com Zygmunt Bauman e Homi Bhabha entendendo diversidade, diferença e identidade à luz da ideia de multiplicidade.

Este artigo encerra brilhantemente o livro, pois propõe maneiras práticas de trabalho na escola com o tema da diversidade sexual. Propõe uma educação na, para e pela diversidade que deverá levar em conta o pertencimento do outro (experiências de vida daquele tido como diferente) a todos os lugares sociais e o reconhecimento da legitimidade da diferença, refletindo acerca da sua produção e das relações de poder que presidem esses espaços. Propõe também aproveitar as potencialidades pedagógicas oferecidas pela própria diversidade, reconhecendo nisso um processo construído coletivamente. Isso pode ser trabalhado a partir de uma perspectiva queer de educação que promove possibilidades instigadoras em relação à diversidade.

Este livro nos mostra que a união de condições sociais, econômicas, políticas, educacionais e culturais é que poderá tornar possível uma promoção de educação pautada no reconhecimento da diversidade e da pluralidade dos corpos, das sexualidades e das subjetividades. Um ótimo livro para investirmos num processo de reconfiguração educacional e política pautada na diversidade.

Viviane Teixeira Silveira – Universidade Federal de Santa Catarina

Carmen Rial – Universidade Federal de Santa Catarina

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