Diplomática e História | Revista de Fontes | 2020

Em uma obra clássica sobre História Econômica, Carlo Cippola, ao afirmar que a seriedade do historiador está relacionada ao rigor que emprega no tratamento das fontes documentais, ressalta a importância da crítica a essas fontes, entendida como

principalmente a interpretação literal dos textos (decifração), interpretação substancial ou de conteúdo dos mesmos, a determinação da sua autenticidade e a especificação do seu grau de fidedignidade. Os quatro processos são inextricavelmente interdependentes1. Leia Mais

Fontes para a história ambiental / Revista de Fontes / 2019

A história ambiental busca documentar e compreender a relação sociedade-natureza ao longo do tempo, a partir da problemática ambiental contemporânea. Essa problemática, hoje, perpassa as discussões sobre o desenvolvimento econômico e social, as relações internacionais, a cultura e o cotidiano. Cuidar da vida do planeta Terra como um todo aparece como imperativo no século XXI, sem o que haverá, inexoravelmente, a degradação das condições de vida de bilhões de seres humanos.

Este dossiê, assim, encontra plena justificativa no que se refere a sua relevância social. No âmbito acadêmico também se justifica, pois a relação sociedade-natureza fez parte do repertório da reflexão histórica ao longo do tempo[1].Talvez o exemplo mais eloquente dessa situação, no Brasil, seja a produção relativa ao período colonial, que ao investigar a ocupação europeia do continente americano, abordou como recursos naturais eram utilizados e percebidos pelos povos nativos, pelos invasores e pela nova sociedade que surgia. Obras clássicas como A Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Jr. e Caminhos e Fronteiras de Sérgio Buarque de Holanda, para citar duas das mais conhecidas e importantes, demonstram como a História Ambiental encontra referências na história da historiografia brasileira.

Mas embora investigar sociedade e natureza não seja novidade na historiografia, a História Ambiental tem como especificidade problematizar essa relação a partir de um ponto de vista, que ganha força na segunda metade do século XX, de que a crise ambiental tem alcance mundial, afetando diretamente a vida da maior parte da população do planeta e que é uma ameaça não só ao futuro da Humanidade, mas ao seu presente. Essa compreensão ganhou forma a partir do diálogo e controvérsias estabelecidas entre diferentes ciências, mas também entre estas e as artes, a literatura e os saberes tradicionais, tudo isso impulsionado por movimentos sociais diversos, que apontavam tanto questões práticas e imediatas como preservar uma floresta, como ampliavam o escopo da sua crítica para a própria organização da sociedade industrial e seu modo de vida.

A medida que o século XX avançava houve questionamentos radicais à sociedade industrial, que tinha na noção de progresso elemento central. O próprio conceito de “desenvolvimento econômico” foi contestado, diante da crescente percepção de uma crise ambiental planetária, manifestada, dentre outros aspectos, pela poluição crescente do ar, água e solo; pela destruição dos ecossistemas e extinção de espécies; pelo esgotamento ou distribuição e uso desigual de recursos naturais [2]; e, no fim de século, pelas mudanças climáticas. Cabe notar que a crise ambiental aparecia com toda força na vida cotidiana e na economia dos próprios países ricos em meados do século XX, como nos casos da contaminação do ar em Londres e Nova York ou a intoxicação por mercúrio em Minamata e Niigata, no Japão. Em 1973, o primeiro “choque do petróleo”, embora decorrente de disputas geopolíticas e comerciais, demonstrou a dependência das sociedades industrializadas de um recurso natural finito.

A crise ambiental que em maior ou menor grau atingia a todos e era tida como ameaça ao futuro dava força aos movimentos ambientalistas mundo afora, e eles tinham ampla ressonância social em países democráticos da Europa e nos EUA. Os debates e estudos sobre essa problemática aumentavam. Em 1968 foi fundado o Clube de Roma, um grupo de pesquisadores que se reuniu para debater assuntos relacionados ao desenvolvimento e o meio ambiente, trabalhando ativamente para que as discussões alcançassem centralidade na agenda política mundial. Em 1972, em conjunto com a Associação Potomac e o Massachusets Institute of Technology, foi publicado o relatório Os limites do Crescimento, que influenciou os debates que ocorreram em torno da Conferência sobre o Meio Ambiente Humano, que ocorreu, no mesmo ano, em Estocolmo, na Suécia. Os estudiosos discutiam como seria o futuro se todos os países continuassem crescendo num ritmo acelerado. Apontavam, então, para os limites do crescimento, ou seja, a impossibilidade de se manter o padrão de desenvolvimento sem que isso resultasse em um colapso ambiental. Pensar novas formas de organização social que propiciassem um relacionamento mais harmonioso entre sociedade e natureza impunha-se como um dos grandes desafios do século [3].

Mas a Primeira Conferência Mundial sobre o Meio Ambiente também foi marcada por debates acirrados entre os representantes dos governos dos países desenvolvidos e dos países subdesenvolvidos. Nesse encontro, os temas da poluição e da pressão exercida pelo crescimento demográfico sobre os recursos naturais provocaram discussões acirradas. Surgiram propostas de controle de natalidade e do próprio crescimento econômico de países periféricos na economia mundial, resultando em um intenso debate entre os desenvolvimentistas e os “zeristas”, que defendiam um crescimento econômico zero, ressaltando que não haveria recursos naturais suficientes para garantir a universalização dos padrões de produção e consumo dos países desenvolvidos.

Mas diante disso, o que deveriam fazer os países mais pobres? Aceitar a pobreza e a desigualdade internacional ou destruir o planeta em busca de seu desenvolvimento? Colocado nesses termos o debate não avançava. A resposta mais complexa tentava superar o dilema do desenvolvimento como sinônimo de degradação ambiental. Não era fácil. Mas, do ponto de vista intelectual era a reflexão que tinha futuro. Os intelectuais mais criativos assumiam como premissa que era preciso conciliar desenvolvimento humano e natureza, inventar um novo rumo para o planeta, e ele somente poderia ser realizado a partir de uma abordagem socioambiental. As humanidades, assim, alcançavam o centro do debate ambiental, que, para muitos, parecia ser objeto das ciências naturais. A historiografia também se engajou nessa reflexão.

Nos Estados Unidos nascia a Environmental History, ou seja, a História Ambiental adquiria identidade com o início de um esforço consciente e sistemático de incorporação aos estudos históricos das questões e variáveis ambientais. Segundo Donald Worster, uma das principais referências do movimento nascente, o objetivo principal dos historiadores ambientais tornou-se “aprofundar o entendimento de como os seres humanos foram, através dos tempos, afetados pelo seu ambiente natural, e, inversamente, como eles afetaram esse ambiente e com que resultados” [4]. Em 1974, os Annales, a renomada revista francesa vinculada à escola historiográfica que leva o mesmo nome, publicou uma edição especial dedicada a temática ambiental: Historie et environnement. Em 1999 era fundada a European Society for Environmental History (ESEH). Em 2003 os historiadores ambientais da América Latina se reuniram na SOLCHA, a Sociedade Latino Americana e Caribenha de História Ambiental

O Brasil acompanhou toda essa movimentação social e acadêmica que acontecia no mundo na segunda metade do século XX, embora o ambiente repressivo implantado pela Ditadura de 1964 tenha dificultado a participação mais ampla da sociedade. Mas no contexto de redemocratização do país nos anos 1980, período marcado por grande efervescência cultural e política, as questões ambientais chegaram ao grande público. Foi a época em que Chico Mendes, liderança popular do Acre, ganhou destaque internacional ao encarnar a luta dos seringueiros e a defesa da Floresta Amazônica; quando as ONGs ambientalistas ganharam força e, inclusive, surgiu o Partido Verde, inspirado na experiência europeia. Em 1992, vinte anos depois de Estocolmo, o Brasil receberia a Segunda Conferência Internacional sobre Meio Ambiente, a Rio92, que teve grande repercussão no país.

Nos cursos de história a temática ambiental começou a ganhar espaço. Os livros de Keith Thomas [5] e Warren Dean eram inspiradores. Dean, tendo finalizado sua pesquisa sobre a Amazônia, publicou o livro “Brazil and the Struggle for Rubber: a study in environmental history”, em 1987, e a obra logo foi traduzida e publicada no Brasil em 1989 [6]. Autor bastante conhecido no mundo acadêmico brasileiro, Warren Dean deu visibilidade à nova agenda de pesquisa que surgia. Anos mais tarde escreveria um clássico: A Ferro e Fogo. A história da devastação da Mata-Atlântica Brasileira [7]. Em 1987 era defendida na Unesp de Assis a dissertação de mestrado de Jozimar Paes de Almeida, intitulada a “A Extinção do Arco-Iris. A agroindústria e o eco-histórico”, talvez a primeira pesquisa da área nascente em programas de pós-graduação em história8.

O ensino também participou desse movimento de incorporação do meio-ambiente à reflexão histórica. A importância da educação para o enfrentamento da crise ambiental foi ressaltada na Primeira Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano, em Estocolmo, em 1972. Discussões sobre o conceito de Educação Ambiental e as formas de implementá-la aconteceram em seminários e encontros ao longo dos anos seguintes. A Constituição Federal do Brasil de 1988, elaborada em um contexto de grande participação social indica em seu Capítulo VI – Do meio ambiente, no art. 225, que:

Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

Além disso, a mesma Constituição afirma que para assegurar a efetividade desse direito o Poder Público deve promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), elaborados em meados dos anos 1990, instituíram o meio-ambiente como tema transversal no ensino fundamental e médio9. Hoje, o ensino de história terá de pensar a questão ambiental a partir da Base Nacional Comum Curricular, uma novidade ainda pouco conhecida pela grande maioria dos historiadores.

Como se vê, a partir de fins do século XX o meio-ambiente floresceu na área de história e, desde então, se expandiu fortemente. No Brasil, vinte anos atrás, seria possível identificar facilmente os poucos historiadores dedicados à temática ambiental e os centros de pesquisa da área. Em 2020 essa lista seria longa demais para um texto introdutório. A história ambiental aumenta seu espaço no ensino, na pesquisa e nas publicações acadêmicas e alcança ressonância social.

Esperamos que os artigos deste dossiê auxiliem todos aqueles que pretendem pensar o meio-ambiente em perspectiva histórica.

Notas

1. Paulo Henrique Martinez. “Existe Uma Historiografia Ambiental Brasileira ?”. In: Anais do XVII Encontro Regional de História: O lugar da História. ANPUH / SP Unicamp. Campinas, 6 a 10 de setembro de 2004. Cd-rom. Seminário Temático XIII.

2. Arthur Soffiati. “Algumas palavras sobre uma teoria da eco-história”, Desenvolvimento e Meio Ambiente, 18, jul. / dez. 2008, p. 14.

3. Wagner Costa Ribeiro. A ordem ambiental internacional. São Paulo: Contexto, 2001, p. 77; Phillippe Le Preste. Ecopolítica Internacional. São Paulo: Editora Senac, 2001, p. 159ss.

4. Donald Worster. “Para fazer história ambiental”, Estudos Históricos, 4-8, 1991, pp. 198-215 (publicado, originalmente, em 1988 nos EUA).

5. Keith Thomas. O Homem e o Mundo Natural. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

6. Warren Dean. Brazil and the Struggle for Rubber: a study in environmental history. Cambridge: Cambridge University Press, 1987; A luta pela borracha no Brasil: um estudo de história ecológica. São Paulo: Nobel, 1989.

7. Warren Dean. A Ferro e Fogo. A História e a Devastação da Mata Atlântica Brasileira. São Paulo, Companhia das Letras, 1997.

8. Jozimar Paes de Almeida. A Extinção do Arco-íris: A Agro-Indústria e o Eco-histórico. Mestrado em História, UNESP, 1987.

9. Circe Maria Fernandes Bittencourt. “Meio ambiente e ensino de história”, História & Ensino, 9, 2003, p. 51.

Referências

ALMEIDA, Jozimar Paes de. A Extinção do Arco-íris: A Agro-Indústria e o Eco-histórico. Mestrado em História, UNESP, Brasil, 1987.

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. “Meio ambiente e ensino de história”, História & Ensino, 9, pp. 63-96, 2003.

DEAN, Warren. A Ferro e Fogo. A História e a Devastação da Mata Atlântica Brasileira. São Paulo, Companhia das Letras, 1997.

DEAN, Warren. A luta pela borracha no Brasil: um estudo de história ecológica. São Paulo: Nobel, 1989.

DEAN, Warren. Brazil and the Struggle for Rubber: a study in environmental history. Cambridge: Cambridge University Press, 1987.

LE PRESTE, Phillippe. Ecopolítica Internacional. São Paulo: Editora Senac, 2001.

MARTINEZ, Paulo Henrique “Existe Uma Historiografia Ambiental Brasileira?”. In: Anais do XVII Encontro Regional de História – O lugar da História. ANPUH / SP Unicamp. Campinas, 6 a 10 de setembro de 2004. Cd-rom.

RIBEIRO, Wagner Costa. A ordem ambiental internacional. São Paulo: Contexto, 2001. SOFFIATI, Arthur. “Algumas palavras sobre uma teoria da eco-história, Desenvolvimento e Meio Ambiente”, n. 18, pp. 13-26 , jul. / dez. 2008.

THOMAS, Keith. O Homem e o Mundo Natural. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

WORSTER, Donald. “Para fazer história ambiental”, Estudos Históricos, 4-8, pp. 198-215, 1991.

Janes Jorge – Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Departamento de História e Programa de Pós-Graduação em História, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Guarulhos, SP, Brasil. E-mail: janes.jorge@unifesp.br https: / / orcid.org / 0000-0003-1767-2148

Patricia Tavares Raffaini – Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Programa de Pós-Graduação em História, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Guarulhos, SP, Brasil. E-mail: raffaini@usp.br https: / / orcid.org / 0000-0003-1921-6269


JORGE, Janes; RAFFAINI, Patricia Tavares. Apresentação. Revista de Fontes. Guarulhos, v.6, n.11, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Os papéis da Inquisição. Conservação e dispersão na Europa, América e Ásia / Revista de Fontes / 2018

O legado documental das Inquisições: reflexões sobre a sobrevivência dos arquivos do Santo Ofício.

Falar do património documental legado pelos diferentes processos de abolição dos tribunais inquisitoriais ibéricos e romano significa algo de muito diverso dependendo das historiografias que dele se ocupam. Os cartórios dos Conselhos de Portugal e de Espanha tiveram maior fortuna que o arquivo da Congregação do Santo Ofício de Roma, o qual perdeu muito do seu acervo durante as suas deslocações. Não obstante, os cenários são contrastantes: os três tribunais peninsulares portugueses conservaram a sua documentação, enquanto que o de Goa foi destruído. Quanto aos tribunais que dependiam do Consejo de Madrid, quase todos viram os seus fundos desaparecer, com excepções notáveis como os de Cuenca, Toledo, Canárias e o tribunal do México, com jurisdição sobre parte da América espanhola e Filipinas.

O dissemelhante destino dos cartórios inquisitoriais não gerou o mesmo tipo de respostas nos vários países. Os estudos sobre as inquisições reflectiram, em larga medida, as prioridades das sociedades liberais nascentes, bem como, por seu turno, imperativos etiológicos das novas nações americanas. No entanto, as historiografias oitocentistas, apesar dos caminhos autónomos que trilharam, das fontes que os particularismos nacionais e intelectuais convocaram para apreciar o fenómeno histórico do Santo Ofício, não deixaram de convergir em topoi comuns. Temas como a censura, o atraso cultural ou a dissidência geraram inquietações reflexivas, cujas respostas procuraram os estudiosos encontrar em documentos que mais directamente ilustraram a manifestação persecutória / repressiva dos tribunais, como as listas de autos-da-fé ou, sobretudo, os processos inquisitoriais. Com efeito, esta tipologia de fonte adquiriu uma projecção transversal às diferentes historiografias, que fomentaram práticas de edições integrais de processos e contribuíram para uma tendencial centralidade dos mesmos no apreciar da fenomenologia inquisitorial. Uma das consequências da preponderância desta documentação foi, provavelmente, o relativo atraso que gerou quanto à dissociação da função persecutória / penal do tribunal e ao seu reconhecimento enquanto instituição, cujo funcionamento implicava uma variedade de tramitações burocráticas para além do auto judicial em si mesmo, as quais se manifestavam em outras tipologias documentais.

Ao invés, a necessidade de olhar para a documentação procedente dos cartórios inquisitoriais de forma ampla, promovendo um esforço de sistematização e de inventariação dos fundos remanescentes, teve um forte impulso em contextos historiográficos como o espanhol, onde as lacunas documentais afectavam vários dos tribunais peninsulares e americanos. Com efeito, a historiografia espanhola registou um aturado esforço de reflexão relativo a este legado patrimonial, mas também à constituição e organização dos cartórios inquisitoriais [1]. Não é, seguramente, uma coincidência que a consagração dos “estudos inquisitoriais [2] ” enquanto área disciplinar teorizada tenha ocorrido em Espanha, país em que um quadro documental profundamente lacunar obrigou os seus historiadores, num momento histórico particular [3], a diversificar o seu olhar para a Inquisição e as suas fontes de conhecimento. Foi a recusa de uma leitura particularista (atomizada), dividida em tribunais, dos editores da Historia de la Inquisición en España y América, e a opção de uma narrativa que revelasse a Inquisição no seu “sistema orgánico de sincronías” e “como proceso global” que permitiu que o Santo Ofício fosse encarado enquanto instituição, enquanto – diríamos hoje – realidade sistémica. É por demais significativo que a expressão institucional da consagração dessa área disciplinar – o Centro de Estudios Inquisitoriales, criado em 1980 e o Instituto de Historia de la Inquisición, fundado em 1985 [4] – não tenha nunca tido o seu paralelo em países como o México ou Portugal, onde os cartórios peninsulares se conservaram num estado de invejável integridade, mas não se verifica qualquer tradição historiográfica que reclame essa filiação intelectual.

Sintomaticamente, a evolução dos arquivos inquisitoriais, na sua organização interna, nos seus silêncios ou lacunas, são inquietações que permaneceram, em grande medida, à margem dos percursos historiográficos devedores de contextos de hiper-abundância documental [5]. Em Portugal, como no México, os vazios documentais não foram tidos como suficientemente significativos para gerar inquéritos sistemáticos à questão da ausência enquanto expressão de uma problemática, quer de evolução orgânica e de prioridades institucionais, quer custodial [6]. O quadro visível de abastança informativa contribuiu, desta forma, para emprestar à lacuna o valor de um natural desaparecimento ocasionado pela passagem do tempo, atrasando a possibilidade do seu estudo enquanto fruto de uma escolha, de uma perda ou de uma espoliação pela acção de agentes concretos e, portanto, da identificação desses mesmos momentos [7].

Este dossier pretende ser um contributo para o conhecimento das atitudes institucionais, sociais e culturais sobre o património documental inquisitorial que possibilite uma releitura dos “fundos inquisitoriais” à luz da sua constituição – isto é, da conservação dos antigos cartórios dos tribunais –, mas também dos canais de dispersão que promoveram a divisão do que seriam, no início, unidades sistemicamente integradas.

O estudo das lacunas documentais enquanto via para a reconstituição da organização dos cartórios inquisitoriais [8] faz com que o historiador deva conferir especial atenção, não só ao período que compreende o processo de encerramento dos tribunais entre os finais do século XVIII e primeira trintena de anos do século XIX, mas também às décadas que se seguiram à sua extinção, quando as inquisições passaram a ser objecto de curiosidade histórica. Devido aos sentimentos de animadversão que suscitou, mas também à fidelidade de quantos haviam participado do múnus inquisitorial, latu sensu, o ocaso do Santo Ofício fez-se acompanhar de uma dispersão dos papéis inquisitoriais, mais célere que o cumprimento das normativas régias em vista à sua conversão, primeiro, e acomodação, depois [9]. Entre o afã de quem invadia as instalações do Santo Ofício para destruir, pilhar ou observar e o zelo de quem procurava manter o segredo e por isso subtraía (preservava) ou destruía, a extinção dos tribunais converteu os seus antigos documentos, devido à ineficácia da sua própria conservação, em curiosidades históricas que alimentaram um comércio de papéis destinados a enriquecer bibliotecas públicas ou particulares. Paralelamente, mesmo onde a supressão dos tribunais decorreu sem tumultos ou sobressaltos, a lenta execução das normativas oficiais não impediu a divisão do património documental do Santo Ofício, que permaneceria repartido em diferentes depósitos, formando-se núcleos progressivamente olvidados à medida que os fundos primaciais dos tribunais se assumiam enquanto tais perante novas gerações de estudiosos [10]; ou, mesmo, quando uma visão patrimonialista da documentação por parte dos seus responsáveis motivou a abertura de canais “eruditos” de dispersão transnacionais [11].

A reconstituição destes canais de dispersão é, hoje, fundamental, para se atingir um conhecimento mais consolidado da estrutura dos cartórios inquisitoriais no momento da supressão dos tribunais e, por conseguinte, da sua progressão enquanto instituição. Sendo certo que os tribunais do Santo Ofício conheceram períodos de maior ou menor organização dos seus cartórios, o conhecimento das opções institucionais tomadas durante o seu período de vigência, das suas necessidades e prioridades é um desígnio que exige uma compreensão das vias de sofisticação do aparelho inquisitorial, nomeadamente, a partir das necessidades de criação de séries documentais específicas para cada função ou tarefa. A vida da instituição, plasmada através dos registos escritos dos procedimentos inquisitoriais, foi confrontada com exigências impostas pela mudança dos tempos e das mentalidades, o que obriga a que a evolução do arquivo, na sua inovação, mas sobretudo nas suas lacunas – para além das perdas ocasionadas por conflitos ou desastres naturais – seja forçosamente entendida como o resultado de uma vontade, seja esta institucional, ideológica ou de outra ordem [12]. É este mapa de maturação institucional que o estudo dos processos de conservação, em articulação com os canais de dispersão, permitirá ilustrar. Por este motivo, os organizadores deste dossier desafiaram estudiosos de diferentes tribunais a olhar para além dos núcleos documentais reunidos nos arquivos nacionais, onde tendencialmente foram acomodados os antigos cartórios dos tribunais, e analisar os processos de constituição de fundos inquisitoriais paralelos ou a circulação de documentação dispersa e a sua ulterior incorporação em bibliotecas ou arquivos. Este desafio, foi primeiramente concretizado no Workshop internacional “Os papéis da Inquisição: conservação e dispersão na Europa, América e Ásia”, realizado na Universidade Católica Portuguesa a 25 de Junho de 2018 em co-organização pelo Centro de Estudos de História Religiosa, pela Cátedra de Estudos Sefarditas Alberto Benveniste e por El Colégio de México. É agora acolhido pela Revista de Fontes na sua versão escrita.

O dossier consta de sete contributos, referentes aos fundos documentais das várias inquisições modernas na Europa e na América. O primeiro texto, da autoria de Bruno Lopes e Fernanda Olival, centra-se na documentação produzida pelo fisco da Inquisição e conservada na Biblioteca Pública e no Arquivo Distrital de Évora. Os autores procuram traçar a história custodial destes documentos e a sua relação com outros fundos documentais semelhantes, procurando aferir a importância desta documentação para o estudo do funcionamento do tribunal inquisitorial.

Bruno Feitler encetou, no seu artigo, uma difícil investigação sobre as peculiaridades e ritmos de um cartório desaparecido, pertencente ao único tribunal português que funcionou em território não europeu. Identificando os momentos fundamentais que afectaram a integridade do arquivo da Inquisição de Goa até à sua extinção definitiva, o autor proporciona uma panorâmica do que terá sido a estrutura do cartório nos momentos mais próximos à sua destruição, bem como, contexto dessa orgânica, o material remanescente, hoje custodiado pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

À semelhança do primeiro artigo, elaborado por Bruno Lopes e Fernanda Olival, o terceiro contributo centra-se também, essencialmente, na documentação de natureza fiscal produzida pela Inquisição. Trata-se do caso do tribunal de Valencia. Enrique e José María Cruselles Gómez, Irene Manclús Cuñat e María José Carbonell Boria analisam as dinâmicas de dispersão dos fundos inquisitoriais valencianos, apresentando os documentos que se encontram dispersos por vários arquivos da cidade.

Andrea Cicerchia centra-se na Congregação romana através da análise de um documento produzido num contexto muito particular. Elaborando uma minuciosa análise e transcrição de uma minuta de inventário elaborada no âmbito da república romana de 1849, o autor apresenta uma descrição do que seria o arquivo da Congregação naquela data, bem como as formas de organização dos papéis do Santo Ofício romano, num momento em que as inquisições ibéricas tinham já sido abolidas.

No seu artigo, Gabriel Torres Puga apresenta-nos uma questão presente nas realidades americanas e europeias da Inquisição espanhola: a escolha entre manter o segredo ou preservar o arquivo em momentos críticos. O estudo apresenta-nos um quadro geral e comparativo das atitudes dos ministros do Santo Ofício quanto à gestão dos papéis inquisitoriais, quer no que diz respeito à sua recuperação, quer quanto à preservação do segredo de que se esperava serem alvo. Numa incursão por vários arquivos inquisitoriais, o autor apresenta uma reflexão sobre um aspecto menos estudado da preservação dos cartórios inquisitoriais: a intervenção dos seus próprios responsáveis e a possibilidade de que eles mesmos tivessem tido alguma responsabilidade na destruição do seus respectivos arquivos.

Jaqueline Vassallo alerta para um outro nível de dispersão, decorrido a nível local, de acervos que não foram alvo da mesma atitude por parte dos poderes centrais no momento de extinção dos tribunais: os arquivos das comisarías das periferias dos distritos inquisitoriais, nomeadamente, o caso das regiões do Río de La Plata e do Tucumán. Numa aproximação ao interesse e atenção das elites letradas para com o passado inquisitorial da sua sociedade, a autora revela-nos rastos de papéis inquisitoriais em bibliotecas e arquivos da cidade de Córdoba.

Com Gerardo Lara Cisneros alarga-se a reflexão a uma outra instituição de controlo da fé e dos costumes presente no território da Nova Espanha, o chamado “Provisorato de Indios y Chinos”, integrado na estrutura de funcionamento do arcebispado do México e direccionado para a vigilância das práticas supersticiosas e idolátricas dos indígenas. O autor apresenta os traços gerais de funcionamento da instituição, procurando também dar-nos algumas pistas para a reconstituição do seu arquivo, apesar das perdas significativas que este sofreu.

Notas

1. Veja-se, a este respeito, os trabalhos de Jean Pierre Dedieu. “Les causes de la foi de l’Inquisition de Tolède (1483-1820): Essai statistique”. Mélanges de la Casa de Velázquez, 14 (1978), pp. 143-171; Jaime Contreras e Gustav Henningsen. “Forty-four thousand cases of the Spanish Inquisition (1540-1700): analysis of a historical data bank”. In: J. A. Tedeschi, G. Henningsen e C. Amiel (ed.). The Inquisition in early modern Europe: studies on sources and methods. Dekalb: Northern Illinois University Press, 1986, pp. 100-129; Virgilio Pinto Crespo, Dimas Pérez Ramírez e Manuel Ballesteros Gaibrois no capítulo “Fuentes y tecnicas del conocimiento historico del Santo Oficio”. In: J. Pérez Villanueva e B. Escandell Bonet (dir.). Historia de la Inquisición en España y América, vol. I. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos y Centro de Estudios Inquisitoriales, 1984, pp. 58 e 135.

2. Termo assumido, por exemplo, por José Antonio Escudero. “Instituto de Historia de la Inquisición”. In: J. A.. Escudero. Estudios sobre la Inquisición. Madrid: Marcial Pons / Colegio Universitario de Segovia, 2005 [1986], p. 61; também Joaquín Pérez Villanueva. “La historiografía de la Inquisición española”. In: J. Pérez Villanueva e B. Escandell Bonet (dir.). Historia de la Inquisición, op. cit., vol. I, p. 6.

3. Em J. Pérez Villanueva, a leitura sobre o fenómeno inquisitorial acompanha uma reflexão mais alargada acerca das atitudes transversais ao ser humano de relação com a dissidência e a diferença. Com esta perspectiva, o autor alude à “experiencia historica de gran intensidad” vivida pela sua geração, a qual deveria situar os historiadores “en terrreno de mayor penetración y tolerancia, de mejor entendimiento para juzgar, y de más moderado criterio para interpretar y comprender”. Pérez Villanueva, que escreveria adiante que as leituras históricas do Santo Ofício constituíam um óptimo barómetro do clima intelectual, ideológico e político de cada tempo, manifesta um claro compromisso ético com esta obra, amadurecida durante os primeiros anos da Espanha da transição democrática. Joaquín Pérez Villanueva. “La historiografía de la Inquisición española”, op. cit., pp. 3 e 23.

4. Joaquín Pérez Villanueva. “El Centro de Estudios Inquisitoriales”. Arbor, 484 (Abril 1986), pp. 173-182; José Antonio Escudero. “Instituto de Historia de la Inquisición”, op. cit., pp. 61-63.

5. Para o atraso sobre a história dos arquivos inquisitoriais em Portugal alertara já, na esteira de Fernanda Ribeiro, Nelson Vaquinhas. Os autores de História da Inquisição Portuguesa, por seu turno, apontaram a enganadora aparência de completude dos acervos documentais procedentes dos tribunais peninsulares, um contexto de abundância que consideravam ter sido prejudicial ao estudo do Santo Ofício no seu conjunto. Nelson Vaquinhas. Da comunicação ao sistema de informação. O Santo Ofício e o Algarve (1700-1750). Lisboa: Colibri / CIDEHUS-UÉ, 2010, p. 10; Giuseppe Marcocci e José Pedro Paiva. História da Inquisição Portuguesa (1536-1821). Lisboa: A Esfera dos Livros, 2013, p. 12.

6. Apenas o caso da Inquisição de Goa gerou várias aproximações ao problema da sua documentação, motivando a preparação de inventários de fundos de arquivo, bem como a de colectâneas documentais, mas também esforços destinados a suprir a ausência dos fundos inquisitoriais “clássicos” e estudos sobre a documentação proveniente do arquivo. Contudo, estamos a falar de respostas que reagem a um quadro de precariedade documental derivada da perda do cartório do tribunal de Goa após a sua extinção em 1812, à semelhança do que encontramos também na Colômbia, onde se procurou superar o vazio deixado pelo desaparecimento do seu cartório através da reunião de documentos localizados no Archivo Histórico Nacional de Madrid. Veja-se António Baião. A Inquisição de Goa. Correspondência dos Inquisidores da Índia (1569-1630), vol. II. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1930; Miguel Rodrigues Lourenço. Macau e a Inquisição nos Séculos XVI e XVII. Documentos. Lisboa / Macau: Centro Científico e Cultural de Macau / IP / Fundação Macau, 2012 (2 vols); Carmen Tereza Coelho Moreno (coord.). “Inquisição de Goa. Inventário Analítico”. Anais da Biblioteca Nacional, 120 (2000), pp. 7-272; José Alberto Rodrigues da Silva Tavim. “A Inquisição no Oriente (século XVI e primeira metade do século XVII): algumas perspectivas”. Mare Liberum, 15 (Junho de 1998), pp. 17-31; Bruno Feitler. “João Delgado Figueira e o Reportorio da Inquisição de Goa: Uma base de dados. Problemas metodológicos”. Anais de História de Além-Mar, 13 (2012), pp. 531-537, assim como o estudo integrado neste dossier. De referir, ainda, a base de dados sobre uma das principais fontes para o estudo do Santo Ofício de Goa, o Reportorio de João Delgado Figueira de 1623, executada sob a sua coordenação. Disponível em http: / / www.i-m.mx / reportorio / reportorio / home.html (acesso a 19 de Setembro de 2018). Anna María Splendiani, José Enrique Sánchez Bohórquez y Emma Cecilia Luque de Salazar. Cincuenta Años de Inquisición en Cartagena de Indias, Santa Fé de Bogotá: Centro Editorial Javeriano / Instituto Colombiano de Cultura Hispánica, 1997 (4 vols.).

7. Entre os estudos que, em Portugal, procuraram abordar o legado documental do Santo Ofício vejam-se Pedro A. d’Azevedo e António Baião. “Cartorios do Santo Officio”. In: O Archivo da Torre do Tombo. Sua Historia, Corpos que o compõem e organisação. Lisboa: Annaes da Academia de Estudos Livres, 1905, pp. 62-71; Maria Teresa Geraldes-Barbosa. “Les Archives de l’Inquisition Portugaise”. In: Mélanges offerts par ses confrères étrangers à Charles Braibant. Bruxelas: Comité des Mélanges Braibant, 1959, 163-173; Charles Amiel. “Les archives de l’Inquisition portugaise. Regards et réflexions”. Arquivos do Centro Cultural Português de Paris, 14 (1979), pp. 421-443; Maria do Carmo Jasmins Dias Farinha. Os Arquivos da Inquisição. Lisboa: Arquivo Nacional da Torre do Tombo, 1990; Francisco Bethencourt. “Les sources de l’Inquisition portugaise: évaluation critique et méthodes de recherche”. In: L’Inquisizione Romana in Italia nell’Età Moderna. Archivi, problemi di metodo e nuove ricerche. Atti del seminario internazionale. Trieste, 18-20 maggio 1988. Roma: Ministero per i Beni Culturali e Ambientali / Ufficio Centrale per i Beni Archivistici, 1991, pp. 357-367; Fernanda Olival. “Archivi e Serie Documentarie: Portogallo”. In: A. Prosperi (dir.). Dizionario Storico dell’Inquisizione, vol. I, Pisa: Edizioni della Normale, 2010, pp. 86-87.

8. Apesar de normativas de sentido uniformizador para a organização dos arquivos, estudos como o de Bruno Feitler a respeito do cartório da Inquisição de Goa mostram que a personalidade ou a praxis individual de cada oficial dos tribunais conduziram a resultados diferenciados. Cf. Bruno Feitler. “João Delgado Figueira e o Reportorio da Inquisição de Goa”, op. cit., p. 534. Sobre os esforços promovidos pelos inquisidores-gerais de Espanha para a uniformização dos arquivos dos diferentes tribunais veja-se Virgilio Pinto Crespo. “Archivos Nacionales Españoles”. In: J. Pérez Villanueva e B. Escandell Bonet (dir.). Historia de la Inquisición en España y América, op. cit., pp. 66-70.

9. Vejam-se, a este respeito, René Millar Carvacho. “El archivo del Santo Oficio de Lima y la documentación inquisitorial existente en Chile”. Revista de la Inquisición, 6 (1997), pp. 101-116; Gabriel Torres Puga. “Conservación y pérdida de los archivos de la Inquisición en la América española: México, Cartagena y Lima”. In: J. Vassallo, M. Rodrigues Lourenço e S. Bastos Mateus (coord.). Inquisiciones. Dimensiones comparadas (siglos XVI-XIX). Córdoba: Editorial Brujas, 2017, pp. 45-62.

10. Pedro Pinto. “Fora do Secreto”. Um contributo para o conhecimento da documentação do Tribunal do Santo Ofício em arquivos e bibliotecas de Portugal (no prelo pelo Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa).

11. No caso do México, alguns processos e volumes inquisitoriais dispersaram-se após o seu arresto pelo governo, em 1861.O general Vicente Riva Palacio, a quem se deve, em boa medida, a sobrevivência do arquivo durante a guerra da Reforma (1862-1867) conservou em seu poder meia centena de volumes que, afortunadamente, se foram reintegrados. No entanto, é muito provável que o próprio Riva Palacio tenha emprestado ou até mesmo oferecido alguns volumes ou processos a outros eruditos, incluindo o célebre historiador da Inquisição espanhola, Henry Charles Lea. José Ortiz Monasterio, “Avatares del archivo de la Inquisición de México”. Boletín del Archivo General de la Nación, 5 (2003), pp. 93-110.

12. Para uma problematização sobre os silêncios nos arquivos como condicionantes da memória histórica, veja-se Rodney G. S. Carter. “Of Things Said and Unsaid: Power, Archival Silences, and Power in Silence”. Archivaria. The Journal of the Association of Canadian Archivists, 61 (Spring 2006), pp. 215-233. https: / / archivaria.ca / archivar / index.php / archivaria / article / view / 12541 / 13687 (acesso a 30 de Setembro de 2018).

Miguel Rodrigues Lourenço – Universidade Nova de Lisboa, Faculade de Ciências Sociais e Humanas, CHAM – Centro de Humanidades, Lisboa, Portugal. Universidade Católica Portuguesa, Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR), Lisboa, Portugal. Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Cátedra de Estudos Sefarditas Alberto Benveniste, Lisboa, Portugal. E-mail: mjlour@gmail.com https: / / orcid.org / 0000-0002-0432-3240

Susana Bastos Mateus – Universidade de Évora, Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades (CIDEHUS), Évora, Portugal. Universidade Católica Portuguesa, Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR), Lisboa, Portugal. Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Cátedra de Estudos Sefarditas Alberto Benveniste, Lisboa, Portugal. E-mail: mateus.susana@gmail.com https: / / orcid.org / 0000-0001-5350-100X

Gabriel Torres Puga – El Colegio de México, Centro de Estudios Históricos (CEH), México, DF, México. E-mail: gtorres@colmex.mx https: / / orcid.org / 0000-0002-5616-777X


LOURENÇO, Miguel Rodrigues; MATEUS, Susana Bastos; PUGA, Gabriel Torres. Apresentação. Revista de Fontes. Guarulhos, v.5, n.9, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Fontes para a História do Trabalho / Revista de Fontes / 2017

Neste número da Revista de fontes foi dado espaço a historiadores do trabalho que utilizam, em suas pesquisas recentes, fontes até hoje pouco utilizadas, seja pelo ineditismo dado pela dispersão documental e dificuldade de acesso, seja porque começaram a ser exploradas na última década a partir de uma reorientação e diversificação interpretativa da história social do trabalho.

Os estudiosos de história do trabalho no Brasil, a par dos percursos analíticos trilhados pela historiografia internacional sobre o tema, têm privilegiado, sobretudo desde o fim dos anos de 1970 e a década de 1980, as fontes impressas oriundas do movimento operário. A chamada imprensa operária, melhor definível como imprensa produzida pelas organizações, grupos e partidos ligados à militância política e sindical no mundo do trabalho, ainda hoje se constitui como um conjunto documental fundamental para compreensão profunda deste tema, uma vez que, sobretudo para o período da Primeira República, quase não há outras fontes que se originam das comunidades de trabalhadores, apesar de expressar uma visão militante, sendo, portanto, explicitamente caracterizadas de um ponto de vista político.

A grande imprensa da época dava pouca atenção ao mundo do trabalho urbano, a não ser por algumas matérias com uma visão no mínimo paternalista, e na maioria das vezes preconceituosas em relação à classe trabalhadora, suas culturas, costumes, atitudes, vida cotidiana, ações e movimentos. Logo, era, e é necessário ainda hoje para o historiador do mundo do trabalho, tentar penetrar nesse meio através da imprensa anarquista, socialista e sindicalista, ainda sabendo que a classe representada pelos militantes não coincide, obviamente, com o conjunto social heterogêneo dos trabalhadores e trabalhadoras, mas que pode sim ser conhecida e estudada melhor através dos escritos e seções dessa imprensa, onde ao menos aparece seu mundo organizativo, suas críticas, seus anseios e protestos, e suas redes sociais.

Foi somente a partir dos meados década de 1920 e, sobretudo, desde a Era Vargas, que a grande imprensa alargou sua atenção para com o mundo do trabalho urbano na sua totalidade e complexidade de fatos e expressões, ainda que, na maioria das vezes, com um olhar crítico dos movimentos sociais e políticos egressos desse meio.

Outro vasto núcleo documental utilizado nessa área temática remete ao campo da memória, sobretudo considerando as testemunhas orais registradas através das metodologias de história oral, sejam histórias de vida ou entrevistas dialógicas. É um conjunto diversificado de fontes memoriais que foi explorado intensamente desde meados da década de 1970. Evidentemente, a história oral, fundamental na análise das experiências e vivências individuais sociais neste âmbito da história social, encontra claros limites cronológicos ad quem.

Fontes econômicas e estatísticas também foram utilizadas e ainda hoje são frequentadas pelos historiadores do trabalho, embora os recenseamentos e dados recolhidos no Brasil até meados da década de 1930 não ajudem muito para definições mais precisas do universo trabalhista. Baste pensar, por exemplo, nos dados sobre os fluxos migratórios internacionais internos no Estado de São Paulo durante a Primeira República, no período de formação do parque industrial paulistano. Quantos espanhóis e italianos saíram das fazendas e se transferiram na capital, para compor a heterogênea classe operária local, ou voltaram para seus países de origem? Ainda faltam trabalhos em equipe que levantem estes dados, a partir de uma profunda pesquisa nas fontes cartoriais paulistas.

Os documentos policiais e judiciais, as chamadas “fontes da repressão”, começaram a ser utilizadas no Brasil, para a história do trabalho, em tempos recentes, com mais afinco após a abertura dos fundos dos Departamentos de Ordem Política e Social – DOPS regionais e particularmente do de São Paulo, fundado em 1924. Esta documentação, geralmente dividida em prontuários individuais e associativos e em dossiês temáticos, permite o alcance de informações fundamentais, construídas a partir das investigações deste dispositivo de controle social, de outra forma incognoscíveis, sobre o movimento operário, suas organizações e militantes, mas também, não poucas vezes, sobre a vida e condições gerais nos locais de trabalho. Também nesse caso, a documentação se avoluma a partir de meados da década de 1930, com uma intensidade excepcional a partir da década de 1950 até o processo de abertura política dos anos 1979-1984.

Os documentos propriamente judiciais, egressos de fundos dos fóruns de justiça civil e penal (processos-crime) e trabalhista, também começaram a ser usados pelos historiadores deste campo temático, sobretudo a partir da década de 1990. É uma documentação ainda de difícil acesso, sendo em grande parte depositada nos fóruns. Projetos de pesquisa temáticos coletivos, ligados ao levantamento, sistematização e análise de processos judiciais foram bem mais exitosos com a documentação da Justiça do Trabalho, que, porém, só pode ser usada para o estudo da história das relações de trabalho a partir da Era Vargas. Trata-se de um conjunto documental vastíssimo, ainda pouco explorado em relação às suas dimensões, mas que nos últimos anos está no cerne dos estudos mais importantes dos historiadores do trabalho no Brasil, por permitir um mergulho histórico social nos mundos do trabalho para além do estudo das relações e da conflitualidade.

No âmbito das fontes institucionais, relatórios e documentos diversos das instâncias executivas e administrativas da União e dos Estados, quando acessíveis ou publicados (por exemplo, o Boletim do Departamento Estadual do Trabalho de São Paulo, a partir de 1911) foram importantes para as pesquisas de história social do trabalho desde os primórdios dos anos de 1970, ainda que tenham fornecido um olhar sintético e marcados pelos poderes políticos governamentais. Contudo, as fontes do Ministério e das Secretarias do Trabalho, ainda hoje menos exploradas do que deveriam ou poderiam, sobretudo desde a Era Vargas, proporcionaram uma visão ampla sobre as questões do trabalho, particularmente importante e regionalmente ramificada.

O universo documental que remete ao mundo empresarial, às suas organizações, como a FIESP, ou mais especificamente aos arquivos internos das empresas, ao contrário, é ainda hoje muito pouco explorado, sobretudo pelas implicações políticas que isso significa, mas em parte devido à escolha, por parte das próprias empresas, de não construir uma memória documental sistematizada, preferindo a formação de uma documentação extremamente seletiva, com o objetivo final de proporcionar trabalhos mais laudatórios do que analíticos.

As organizações sindicais e as associações de trabalhadores, por décadas cerceadas pelos aparatos repressivos ou pelo controle estatal, particularmente insidioso no Brasil a partir justamente da consolidação institucional do trabalho sindicalizado durante os anos de 1930, estão em um processo de sistematização de seus acervos, que se intensificou, sobretudo, a partir do começo do século XXI. A documentação mais antiga, desde a segunda metade do século XIX para as associações de socorro mútuo e do começo do século XX para as uniões e ligas sindicais, foi quase totalmente perdida, ou é de acesso difícil, não público, permanecendo nos fundos internos das próprias organizações. Já a documentação de entre os anos 1950 até o golpe de 64 é mais consistente, mas também tem buracos devidos à repressão pós 64, se tornando mais acessível e completa e em via progressiva de sistematização e inventário para os documentos sindicais produzidos desde o fim da década de 1970, com dificuldade de acesso por evidentes questões de privacidade política.

O principal dessas áreas foi abordado com profundidade nos quatro artigos que compõem este número da Revista de fontes.

O artigo de Marcelo Mac Cord remete ao estudo do mutualismo no Brasil, forma associativa de trabalhadores urbanos qualificados que só nos últimos vinte anos começou a ser estudada profundamente para uma história da formação da classe operária brasileira, alargando também o espetro periódico neste campo de estudos, anteriormente focado quase exclusivamente no período republicano. As sociedades de socorro mútuo brasileiras são herdeiras, assim como na Europa e no resto da América urbana, das antigas corporações ou irmandades de ofício e tiveram um desenvolvimento ainda hoje pouco conhecido ao longo do século XIX como as principais agremiações de trabalhadores, adentrando o século XX por várias décadas, algumas ainda hoje existentes como associações hospitalares de beneficência ou absorvidas em sindicatos de ofício ou categoria.

Mac Cord foi um dos primeiros historiadores no Brasil a utilizar os documentos produzidos pelas próprias associações mutualistas, sobretudo os Livros de Atas de Reuniões, se tratando, no caso específico do estudo aqui apresentado, das atas da Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais, fundada em 1841 “por um grupo de mestre de ofícios pretos e pardos, pernambucanos e livres do Recife”. O autor, além de mostrar as metodologias utilizadas para a análise das Atas desta sociedade durante o período imperial, explora também o uso de outras fontes externas à associação ou da irmandade que a precedeu no tempo, documentação complementar necessária ao entendimento das próprias fontes internas da sociedade e da história dessa sociedade mutualista. Um trabalho metodológico pioneiro que se espera frutifique mais ainda com outros estudos similares no resto do Brasil.

O artigo de Marcelo Chaves faz um histórico da utilização dos arquivos de empresas, uma importante produção documental de organizações privadas para estudos de história econômica e social, infelizmente utilizada de forma esparsa e pontual para a história dos trabalhadores, como já salientado. Chaves é um dos poucos historiadores que conseguiu explorar a fundo este tipo de documentação e, após ter evidenciado as possibilidades inerentes ao uso destas fontes, se concentra finalmente na metodologia por ele utilizada na análise de 1.500 fichas de trabalhadores da Fábrica de Cimento Perus (São Paulo) primeira fábrica de cimento instalada no Brasil, em 1925. Através deste estudo de caso, o autor possibilitou um conhecimento bem mais aprofundado da composição social, demográfica e étnica da classe trabalhadora, pelo menos em São Paulo e reorientou a definição histórica da formação da classe operária nacional a partir da última década da Primeira República até o período do governo Vargas.

A contribuição de Murilo Leal Pereira Neto volta a examinar a canônica documentação conhecida como imprensa operária, neste caso, porém, pertencente ao mesmo tempo à tipologia de fontes produzida pelas organizações sindicais. Assim, o autor, além de debater a própria construção tipológica das fontes impressas periódicas mais próximas da expressão social, cultural e política da classe trabalhadora, joga uma nova luz sobre o uso renovado destes documentos e os seus significados para uma história social “de baixo”. O artigo se concentra na coleção do jornal O Metalúrgico, (editado desde 1942 pelo Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Metalúrgicas de São Paulo), durante o período 1950-1954, quadriênio de intensa mobilização organizada no meio operário e de grandes transformações sociais e políticas no país. A metodologia do uso de fontes como essa, como via para tentar definir a relação entre o emissor e o receptor do discurso da classe e sua ação política, é analisada detalhadamente por Murilo Leal, e se torna também de importância fundamental ara inserir o uso e estudo da imprensa sindical na história do trabalho, o que é ainda hoje pouco comum, seja pela raridade deste tipo de fonte no Brasil nos períodos anteriores à segunda metade do século XX, seja pela dificuldade de acesso.

Finalmente, seguindo uma narrativa cronológica, chegamos na última contribuição presente neste número, elaborada por Richard de Oliveira Martins. O autor, na esteira do uso das fontes policiais para a história do trabalho inaugurado no Brasil no fim do século XX, percorre a formação do acervo do DOPS de São Paulo e sua utilização para a história do trabalho, sobretudo nos seus momentos de conflitualidade e luta, para adentrar, depois, a análise metodológica do acervo do Departamento de Comunicação Social da Polícia Civil (DCS), que funcionou entre 1983 e 1999, prolongando, na época democrática pós-golpe o armazenamento e construção de um aparato informativo com fins de controle e repressão, que pode ser utilizado hoje pelos historiadores para estudar os mundos dos trabalhadores, não somente em lutas.

Desejamos a todos uma boa e proveitosa leitura!

Luigi Biondi – Departamento de História, Unifesp, Guarulhos, SP. E-mail: luigi.biondi@uol.com.br https: / / orcid.org / 0000-0002-9723-6727


BIONDI, Luigi. Apresentação. Revista de Fontes. Guarulhos, v.4, n.7, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Fontes materiais e a pesquisa histórica / Revista de Fontes / 2016

Este número da Revista de fontes é produto indireto da Jornada de Fontes promovida pela Departamento de História da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Ferderal de São Paulo (EFLCH-UNIFESP) em 2015, cujo objetivo era discutir o uso de fontes materiais na pesquisa histórica. Para tanto, o conceito de “cultura material” foi destacado, e entre os palestrantes, havia profissionais de campos variados: historiadores, arqueólogos e museólogos. Dessa forma, os artigos que seguem estão conectados com o interesse daquele evento – o debate sobre fontes materiais, sobre o conceito de cultura material e a ação interdisciplinar (ou multidisciplinar) frequentemente relacionada a ele. Os três primeiro artigos apresentam propostas de abordagem de setores específicos de fontes materiais, um histórico do tratamento acadêmico do objeto e estudos de caso, nos quais as questões são mais aprofundadas. Mais que isso, a abordagem é explicitada, colocada à prova. O último, uma discussão teórica do conceito de documento histórico e sua relação com as fontes materiais.

O primeiro artigo, Linear B, uma introdução de Juliana Cladeira Monzani, apresenta um tipo de fonte escrita, cuja interpretação foi consistentemente feita a partir de dois campos principais: a Filologia e a Arqueologia. De um lado, as pesquisas sobre a decriptação da escrita (que revelou uma forma antiga da língua grega, chamada pelos especialistas de grego micêncio), e o contexto predominante de uso (o contexto administrativo), foi conectado aos dados arqueológicos sobre esse tipo de escrita, tais como a sua cronologia, os suportes e os espaços de imobilização. A observação articulada desses dados proporciona, assim, ao historiador interessado, além de um claro exemplo de abordagem inter- ou multidisciplinar, um exemplo de abordagem de escrita com suporte físico preservado, fundamentos para se pensar em dinâmicas sobre a cultura e a economia do chamado “período micênico”, um segmento da história da Idade do Bronze do Mediterrâneo Antigo; entretanto, sem a constituição de uma narrativa história factual.

Edifícios como fonte histórica: o caso do templo de Ares na Ágora de Atenas (século I a.C.) de Fábio Augusto Morales, destaca outro tipo de fonte: edifícios. De início, o autor denuncia a pouca atenção dos historiadores com esse tipo de fonte, que foi mais consistentemente tratada por outras disciplinas (como a História da Arte e a Arqueologia) e segmentos muito específicos da História ou da Arquitetura (a História da Arquitetura). Com isso, impõe-se a observação das estratégias de abordagem desse tipo de objeto, atenção às propostas já tratadas por esses domínios acadêmicos: novamente, uma observação integrada baseada em diálogos disciplinares. O estudo de caso apresentado é a movimentação do templo de Ares na Ágora de Atenas, especialmente no século I a.C., o que proporcionou um debate sobre a história do período, articulando elementos da política e da religião.

Em Aplicação da ferramenta de aprimoramento de imagens DStretch® em sítios rupestres: uma releitura do sítio Bom Nome IV (Pão de Açúcar, AL), Carolina Guedes apresenta a proposta de uso de uma ferramenta tecnológica para a reavaliação do registro de arte rupestre. O primeiro passo é a observação da viabilidade dessa nova ferramenta, comparando os resultados com outras tradicionalmente utilizadas. Para a observação mais aprofundada, é tratado o caso de alguns grafismos do sítio alagoano Bom Nome IV, no qual, com a ferramenta em questão, foi possível identificar novos elementos até então não registrados, além da reavaliação daqueles já conhecidos.

O último artigo, Fonte material, fonte textual e a noção de documento de Gilberto da S. Francisco, apresenta uma discussão do conceito de documento. Não uma discussão filosófica, mas a partir do uso que a bibliografia faz do termo. Nesse contexto, é possível observar que, na disciplina histórica, a noção de documento, ainda recentemente, é amplamente conectada à ideia de documento textual, sobretudo aquele de base escrita, e certo distanciamento da fonte material, normalmente identificada como “arqueológica”. Entre a noção de fonte textual, fonte escrita, fonte literária, fonte histórica, fonte material e fonte arqueológica, o texto propõe uma discussão do próprio conceito de documento e das consequências disso para a pesquisa histórica.

Desejamos a todos uma boa leitura!

Gilberto Francisco


FRANCISCO, Gilberto. [Fontes materiais e a pesquisa histórica]. Revista de Fontes. Guarulhos, v.3, n.5, 2016. Acessar publicação original [DR]

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Os Arquivos das Casas editoriais (documentos e livros) como fontes para a História / Revista de Fontes / 2015

Neste terceiro número da Revista de fontes apresentamos um dossiê que é fruto da “II Jornada de fontes: os arquivos das casas editoriais (documentos e livros) como fontes para a História” realizada em 18 de novembro de 2015, pelo Departamento de História da Unifesp. Nessa ocasião, pesquisadores convidados demonstraram diversas possibilidades de investigação da produção e circulação de impressos, bem como a riqueza da documentação presente nos fundos de coleções e arquivos de editoras, bibliotecas e outras instituições de produção e guarda. O dossiê convida todos a conhecerem algumas abordagens vinculadas à História do Livro, das Edições e da Leitura, que nos permitem compreender historicamente projetos editoriais, processos de seleção, edição e circulação de impressos, bem como formas de organização e preservação de acervos.

Editoras com grande projeção nacional, no século XX, foram alvo das pesquisas ora apresentadas: Fábio Franzini analisa a Coleção Documentos Brasileiros, da Livraria José Olympio Editora. Essa mesma editora foi objeto de investigação de Gustavo Sorá, que propõe uma etnografia histórica de seus arquivos. Paulo Teixeira Iumatti explora a materialidade do livro a partir de suas pesquisas sobre preservação e restauro do acervo da Editora Brasiliense. Também merecem destaque os artigos sobre a Companhia Editora Nacional, cujos arquivos estão sob a guarda do Centro de Memória da Unifesp. Os trabalhos de Maria Rita de Almeida Toledo, Jaime Rodrigues e Márcia Eckert Miranda revelam a importância histórica de seu acervo e as muitas possibilidades de pesquisa.

Para além das fronteiras nacionais, Gabriela Pellegrino Soares analisa a circulação da prestigiada publicação francesa Revue des Deux Mondes, distribuída na América Latina, no século XIX; e Richard Oram esmiúça o arquivo literário da editora norte-americana Knopf, Inc., um dos maiores do gênero em língua inglesa. Fechando esse número, já fora da temática da II Jornada de fontes, Denise Soares de Moura apresenta uma ferramenta de pesquisa produzida na Unesp, que disponibiliza em formato digital parte do patrimônio histórico-documental das câmaras do Brasil-colônia existente no acervo do Conselho Histórico Ultramarino.

Boa leitura!


[Os Arquivos das Casas editoriais (documentos e livros) como fontes para a História]. Revista de Fontes. Guarulhos, v.2, n.3, 2015. Acessar publicação original [DR]

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Processos judiciais como fonte para o historiador / Revista de Fontes / 2014

Os processos judiciais tem sido uma fonte praticamente inesgotável para os historiadores desde há muito tempo. Ao menos desde que a história passou a ser contada não apenas com grandes personagens e heróis, com a definitiva entrada em cena de novos agentes cuja abrangência social impôs a necessidade de buscar suas pistas, trajetórias e formas de ação e pensamento em uma maior multiplicidade de resquícios do passado. Não há dúvida que, com isso, ganhou a realidade histórica uma dimensão mais humana, marcada por conflitos, tensões e / ou acomodações nos seus vários níveis, e seu conhecimento com novos problemas e perspectivas de análise. O dossiê que ora se apresenta pretende revisitar, aqui, algumas dessas perspectivas tendo em vista dois pontos de discussão que consideramos de fundamental importância quando falamos hoje de processos: sua dimensão institucional e a necessidade de se pensar a justiça para além do espaço propriamente judicial.

Quanto ao primeiro ponto de discussão, não se pode negar o impacto profundo e positivo que houve na historiografia, ao menos no Brasil, com o estudo dos casos de litígios na justiça, sobretudo criminais, para se entender a vida social com a inclusão das categorias que outrora se classificava de “subalternas” – pobres, escravos, libertos, etc. – como sujeitos ativos de sua própria história.

Assim, convém destacar que a normatividade a que dá corpo este tipo de fonte não tem, recentemente, passado despercebida, como os textos aqui apresentados expressam. Ao contrário, a análise institucional de funcionamento dos órgãos, tribunais e seus agentes, que há poucos anos poderia cheirar a uma história de tipo tradicional, com uma dimensão administrativa identificada com um caráter oficioso, gerando certa ojeriza a muitos dos dedicados a nosso ofício, tem se revelado fundamental. Não como pastiche, como um arrazoado vazio de normas e regulamentos, mas sim enquanto uma cultura de práticas, ritos e formas que revelam não só o que punir, mas como fazê-lo, bem como o que deve ser perdoado e mesmo valorizado em uma verdadeira gramática social.

A contribuição de Alejandro Agüero caminha por essas sendas, ao mostrar como o pensamento social impactava nas práticas da cultura jurídica hispânica, a partir do exemplo da mais distante periferia da estrutura judicial do império espanhol, sem que essas práticas fossem exclusivas desse contexto periférico.

Em relação aos estudos sobre a justiça propriamente dita, além da percepção e análise de suas várias instâncias como extremamente importantes, impõe-se cada vez mais a ampliação de seu entendimento para espaços de resolução de conflitos além dos que mais tradicionalmente interessam à História do Direito moderno (os foros criminal e civil). O artigo de Pollyanna Gouveia Mendonça Muniz mostra, nesse sentido, a incrível potencialidade dos arquivos dos tribunais episcopais para uma visão mais ampla da realidade múltipla dos foros de uma sociedade estamental.

É verdade que, para o caso particular do que se convencionou chamar de Antigo Regime, a justiça estava na base da concepção social que se traduzia nas mais distintas formas de manutenção da ordem. Nessa sociedade, o rei seria o supremo provedor dos distintos corpos, concebidos como desiguais por natureza. Este papel do soberano se expressava na concepção de administração – profundamente manipulada por autoridades dotadas de jurisdição, ou seja, de poder de julgar -, na pluralidade de tribunais específicos que muitas vezes se sobrepunham em suas funções com outros; e também nos diferentes meios de ascensão social, que também se valiam de procedimentos processuais, ou seja, da justiça. Esse papel da justiça como meio de legitimação social e assim também de mobilidade, é perceptível na contribuição de Aldair Rodrigues que analisa as potencialidades para a História d os processos de habilitação ao sacerdócio e à familiatura do Santo Ofício no caso luso-brasileiro.

No entanto, a validade de se pensar a abrangência da justiça e dos processos para resolução de tensões políticas e sociais não se esgota até hoje, mesmo com a ruptura constitucional e a formação dos novos Estados liberais no século XIX, que pretenderam circunscrever o espaço da justiça como um dos seus poderes. O que fica especialmente evidente na concepção que a Constituição deveria ser a norma (o “código dos códigos”) que vincularia todas as outras, numa chave bem distinta do pluralismo jurídico predominante no paradigma anterior, em que as infrações à Carta passariam a ser delitos que deveriam ser processados. É assim que, num marco temporal bastante atual, Andrei Koerner analisa os processos de ação direta de inconstitucionalidade (ADI) após a Constituição de 1988, no contexto das decisões do Tribunal sobre o tema, detalhando os argumentos dos ministros e as implicações jurídicas e políticas da decisão.

Do ponto de vista metodológico, é evidente que, como toda fonte, os processos devem ser manejados como extremo cuidado e compreendidos dentro do quadro cultural e institucional em que foram produzidos. A contribuição de Bruno Feitler ao dossiê propõe-se a tratar dessa questão tendo como horizonte os debates existentes em torno dos processos-crime da Inquisição portuguesa.

Os artigos aqui reunidos – apresentados na “Primeira jornada de fontes do departamento de História da Unifesp”, realizada no dia 3 de dezembro de 2012 – não são mais do que alguns exemplos da grande potencialidade que os processos judiciais têm para as Ciências Sociais (em particular para a História), e procuram, assim, incentivar o estudo desse tipo de documento em suas mais variadas e múltiplas formas.

Andréa Slemian – Universidade Federal de São Paulo. E-mail: slemian@terra.com.br

Bruno Feitler – Universidade Federal de São Paulo / CNPq. E-mail: brunofeitler@gmail.com


SLEMIAN, Andréa; FEITLER, Bruno. Apresentação. Revista de Fontes. Guarulhos, v.1, n.1, 2014. Acessar publicação original [DR]

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Fontes | UNIFESP | 2014

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A Revista de Fontes (Guarulhos, 2014-) um periódico revisado por pares que divulga fontes documentais por meio da transcrição de documentos, da tradução de fontes para o português e da publicação de instrumentos de pesquisa, que desse modo ficarão disponíveis para todo o meio acadêmico, num suporte digital.

A Revista de fontes também tem como missão a publicação de textos autorais sobre tipos ou conjuntos documentais, proporcionando assim subsídios metodológicos para a exploração dessas fontes.

A transcrição e/ou tradução de documentação manuscrita ou mesmo impressa, paleográfica ou epigráfica, de todos os períodos históricos, ganha nessa troca de suporte um público amplo que poderá não só consultar esses textos, mas também fazer buscas por palavras ou expressões a partir das versões disponibilizadas on-line.

A transcrição, assim como a imagem numerizada, ou ainda a tradução nunca substituem completamente o material original. Mas o uso de normas estritas de transcrição permite que os documentos publicados na Revista de fontes realmente sirvam como instrumento de trabalho para historiadores e outros especialistas das ciências humanas e sociais.

A publicação de instrumentos de pesquisa inéditos visa divulgar, através de descrição sumária ou analítica, a composição de acervos, fundos, conjuntos, séries ou coleções documentais.

Esses instrumentos, sejam guias, catálogos, inventários ou índices, publicados na Revista de fontes, permitem que o historiador e o pesquisador de outras áreas das ciências humanas e sociais identifiquem e localizem os mais diversos tipos de documentos.

Revista de fontes é uma iniciativa do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH-Unifesp).

Periodicidade semestral.

Acesso livre.

ISSN 2359-2648

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