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O pêndulo de Epicuro: Ensaio sobre o sujeito e a lógica de uma história sem finalidade – Kant, Freud e Darwin – BOCCA; PEREZ (RFMC)
BOCCA, Francisco Verardi; PEREZ, Daniel Omar. O pêndulo de Epicuro: Ensaio sobre o sujeito e a lógica de uma história sem finalidade – Kant, Freud e Darwin. Curitiba: CRV,2019. Resenha de: ARMILIATO, Vinícius. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, p. 449-455, n.1, abr, 2020.
Nos confins da história da noção de história
O Pêndulo de Epicuro trata-se de mais uma publicação da parceria entre Francisco Verardi Bocca e Daniel Omar Perez. Se em publicação anterior, Ontologia sem espelhos (PEREZ;BOCCA;BOCCHI, 2014), que contou também com a parceria de Josiane Bocchi e no último ano ganhou uma tradução para o francês1, os autores fazem uma história da noção de realidade desde Descartes até Freud, na obra presente fazem a história da ideia de história que figura de modo subjacente às elaborações de Kant, FreudeDarwin. E analisando detalhadamente cada autor, apresentam como visualizam na história um rumo, um percurso ou mesmo uma tendência, de modo que ora se aproxima do legado de Epicuro, ora se afasta desta. Perguntam-se: Seria curso da história ascendente, regressivo, assintótico, cíclico ou mesmo, sem qualquer rumo? Caso não houvessem rumos possíveis, se os acontecimentos ao longo na história nada mais fossem do que o resultado da pura aleatoriedade dos acontecimentos humanos, poderíamos dizer que seu curso nada mais seria do que o efeito da seleção de acontecimentos dada pelo viés teórico do autor que diz algo sobre a história? Ainda, é possível conceber um modelo de análise da história que ofereça visualidade para a contingência e aleatoriedade dos acontecimentos da vida? São essas as questões que figuram como objeto central de O pêndulo de Epicuro. Trata-se de um trabalho minucioso e necessário. Minucioso, pela precisão e verticalidade com que abordam os autores. Nesse caso, textos marginais são evocados em paralelo aos mais célebres, além de revelarem movimentos internos e pendulares a cada autor (por exemplo, os diferentes pesos que Darwin confere à variação e à seleção ao longo de suas publicações). Necessário, enquanto trabalho que permite encarar os modos como a história é concebida e, consequentemente, observar os efeitos de tais visadas. Assim, seja uma história que marcha para um futuro promissor, seja uma história que declina ou mesmo uma história que não tem rumo, em cada uma dessas posições tem-se o fundamento ou a justificativa para a forma como a sociedade se relaciona com seu presente: devemos voltar ao passado? é no futuro que encontramos tempos melhores? O presente é o passado corrompido, degenerado? O presente é um futuro inacabado que deve ver no porvir um modelo a se alcançar? Tais questões, também abordadas na obra, não deixam de ser importantes para o mais contemporâneo dos debates sobre os rumos da civilização, da governança e da ética.
O livro conta com uma apresentação assinada por Eládio C. P. Craia, a qual leva às últimas consequências os argumentos da obra. O pêndulo de Epicuro propõe três principais capítulos, ou ensaios, dedicados a Kant, Freud e Darwin. Além disso, em sua Introdução, apresenta uma revisão objetiva e cuidadosa das leituras que visualizaram tendências na história das civilizações, como o fez Herbert Butterfield, Michel Meyer, Arnold Toynbee e Oswald Spengler, e também autores contemporâneos, tais como François Hartog.
Já nas primeiras linhas da apresentação do livro, intitulada A irrupção dos acontecimentos, encontramos o anúncio da falência na busca por uma ordem finalista da história: “Todos reconhecem que a natureza, assim como as sociedades humanas, nos seus devires, manifestam a cada instante emergências que julgávamos impossível. Sempre nos desconcertam, contudo, não desistimos de buscar suas lógicas, seu sentido histórico” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 23). Nesse sentido, a reflexão filosófica encontrou entendimentos da organização do tempo que só com Darwin é que se pôde enfraquecer “uma perspectiva de história universal e finalista, indissociável do futuro e do progresso” (BOCCA; PEREZ,2019,p. 23). Darwin teria retomado o modelo epicurista onde o presente, a aleatoriedade e a contingência seriam justamente os fatores que organizam a vida e seu percurso. O interesse por esse fato, da ausência de finalidade presente em Epicuro resgatada pela biologia evolutiva da segunda metade do século XIX” permite compreender os fatos naturais e históricos prescindindo, entre outras coisas, do futurismo assim como do passadismo, mas sobretudo, das ilusões da modernidade” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 24). Por conta disso é que no primeiro capítulo Kant é explorado, dado que tal autor procurou, conforme a o trabalho de Bocca e Perez mostra, desqualificar a perspectiva epicurista. Toda a ocorrência, todo o acontecimento, sedaria enquanto efeito de uma tendência mecânica causal. Em Kant “os elementos não são determinados contingentemente, mas recebem, por uma mecânica cega, determinação segundo leis gerais concebidas por uma sabedoria suprema” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 58). Kant viria então a substituir a contingência e o acaso por um programa de leis e tendências que orientaria o desenvolvimento da natureza. As predisposições para o progresso aparecem em vários trabalhos de Kant, como por exemplo em Ideia de uma história de um ponto de vista cosmopolita (1784), quando o autor apresenta o fio condutor da história humana que “ordena o desenvolvimento das disposições naturais do ser humano para o que chamou de cosmopolitismo” (BOCCA;PEREZ,2019,p. 62). Os autores mostram tais acepções em trabalhos posteriores, até em 1798 em O conflito das faculdades onde, novamente, a partir da Revolução Francesa, Kant apresenta “um tipo de acontecimento exemplar na experiência da humanidade que indica a aptidão humana para o progresso” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 86). Nesse sentido, articulando o passado, o presente e o futuro a partir dos acontecimentos em solo francês, vê-se o filósofo autorizar-se a “um tipo de predição acerca do futuro das sociedades humanas, de modo a fazer da ideia de República algo mais que uma quimera” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 87). Trata-se então, de uma tendência de aprimoramento da espécie reconhecida nos seres humanos, mesmo que seja, como ressaltam os autores, em uma curva assintótica em relação aos seus objetivos.
A ideia de uma curva assintótica que tende a alcançar o progresso de uma sociedade é bastante importante na comparação com o que seria uma filosofia da história em Freud, apresentada no segundo capítulo. Enquanto a tendência ao progresso é visualizada por Kant, a tendência à regressão é patente nas construções freudianas. Freud tratar-se-ia de um autor “declinista”. Tal leitura se ampara na análise de que Freud visualizou nas leis da termodinâmica que a tendência crescente de entropia nos fenômenos da matéria leva a seu desgaste total, à sua morte. Ao afirmar esta tendência ao aniquilamento como nodal na psicanálise freudiana de modo bastante original, os autores, evitando um contra-argumento de um Freud não-declinista, indicam que em sua obra há sim dois movimentos: um emancipatório e ascendente – visto na clínica – e um propriamente declinista – notado na metapsicologia. E é esta última que irão explorar no segundo ensaio, ambicionando entender qual seria a filosofia da história que através desta se decalca da psicanálise. Para eles, a metapsicologia “apresenta um determinismo naturalista composto de um certo ponto de vista evolucionista da Biologia a um ponto de vista entrópico da Física” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 89). Assim, se a clínica porta um papel emancipatório às amarrações psíquicas do paciente, o “jogo” entre o Princípio de Prazer e o Instinto de Morte leva à vitória deste último e, apesar do trabalho clínico e de desenvolvimento psíquico poder postergá-lo, jamais aniquilará seu próprio fim. Nesse âmbito, a especulação metapsicológica freudiana com o material empírico obtido em sua clínica “põe em jogo, o otimismo do esclarecimento e da autonomia do paciente ao finalismo declinista das forças entrópicas que o habitam”(BOCCA; PEREZ, 2019, p. 90). É essa aparente contradição que é investigada ao longo do capítulo e que permite notar a particularidade da ideia de história desde a perspectiva freudiana, cuja vida, a civilização e sua história, se situariam “Entre a abertura para o futuro e o declínio inexorável” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 90). Como lembra Freud em Além do princípio do prazer (1920), a finalidade da vida é atingir a morte. Aqui é preciso ressaltar que os autores resgatam em textos de Freud anteriores a este que acabamos de citar, a mesma perspectiva, declinista, embora ainda não tão explícita. Desse modo, evitam ler as tendências à regressão indicadas na década de 1920 por Freud como uma ruptura com o corpus anterior de sua obra.
Antes disso, estaria coerentemente em continuidade com trabalhos anteriores. Por exemplo, em Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna (1908), Freud já havia ressaltado que o processo civilizatório atenta contra si mesmo: a doença nervosa é o dano da civilização. Fazendo analogias com máquinas a vapor, Freud considerou que a sublimação não é capaz de redirecionar toda a força instintual “da mesma forma que em nossas máquinas não é possível todo o calor em energia mecânica” (FREUD, 1908, apud BOCCA; PEREZ, 2019, p. 103). Nas palavras dos autores, nesta obra “Freud articulou o ponto de vista biológico evolucionista a um ponto de vista físico entrópico, atribuindo à natureza, ao homem e à civilização, uma evolução cuja finalidade seria a exaustão e o declínio”(BOCCA;PEREZ,2019, p. 104).
Ora, se uma curva é assintótica em relação ao progresso (Kant) e a outra em algum momento após certa ascensão regride para o estado anterior de repouso (Freud), haveria ainda uma terceira via (Darwin), que não comportaria nenhum direcionamento. No último capítulo, Darwin é aborda do como alternativa que mais se aproxima de Epicuro, ou seja, com o pêndulo retornando a uma perspectiva que permite visualizar uma história sem finalidade.
É então no último capítulo que irão indicar uma leitura alternativa a qual subscrevem na conclusão do livro, como veremos adiante, para um entendimento próprio da história. Para tanto, exploram como a ideia de variação ressaltada por Darwin torna-se fundamental para a compreensão de um curso da história sem finalidade, haja vista o reconhecimento pelo evolucionismo darwiniano de que é a produção aleatória de pequenas variações a cada descendência que, em interação com o meio (o qual também não é estável), conduz modificações à história da espécie (trata-se nada mais que o mecanismo da seleção natural). Quanto à descendência das espécies “Darwin retoma e reafirma o ponto de vista de Epicuro, ao concebê-la como não teleológica, como imprevisível” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 130). As objeções possíveis a tal asserção são debatidas através de comentadores mais recentes (tais como Thierry Hoquet, André Pichot, Vittorio Hosle e Dieter Wandschneider), especialmente quando se viu teleologia em concepções darwinianas, como nas ideias de struggle for life, complexificação e progresso. Quanto a este último, os autores afirmam: “[…] o que quer que tenhamos em mente quanto ao progresso e ao aperfeiçoamento, só pode ser referido, não a uma meta, mas contingencialmente a partir da relação que cada criatura de uma espécie mantém com as condições de sua existência” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 137). Algo que se reforça em trabalhos posteriores a Darwin, como na genética mendeliana redescoberta em 1900 por Hugo de Vries e na síntese moderna (Ernst Mayr e Julian Huxley). Trata-se de um conjunto de trabalhos que trouxeram para o debate “temas e conceitos como mecanismo, evolução cega, acaso, contingência, aleatoriedade, probabilidade, entre outros” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 138). Ainda, o papel da variação para a diversidade da vida segue sendo considerado no cenário pós-Darwin, notadamente a partir da biologia molecular. Os autores utilizam sobretudo os trabalhos de vulgarização dos biólogos ganhadores do Nobel de Medicina de 1965, Jacques Monod, François Jacob e André Lwoff. Tais autores consideram que “a variação por mutação, que impulsiona a evolução, não seria de modo algum um fenômeno de exceção, mas ao contrário, quem sabe, a regra. Residiria no seio da natureza. Monod reafirma o ponto de vista de que a própria conservação da vida seria dependente da novidade” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 150).
Ao final da leitura dos três ensaios principais do livro, torna-se evidente como os autores se posicionam favoravelmente ao entendimento da história enquanto algo que porta um fluxo descontínuo e aberto à singularidade. Mas quando chegamos às considerações finais, vemos o que poderíamos chamar de “quarto ensaio” cujo autor seria Georges Canguilhem.
A conclusão de O pêndulo de Epicuro parece prenunciar o que seria a continuidade do trabalho ora desenvolvido. Isso porque em seu capítulo conclusivo exploram, ainda que sumariamente, mas com bastante precisão, a mirada de Canguilhem sobre o tema, especialmente quanto ao modo como este se apropria da leitura darwinista junto aos desdobramentos da biologia evolutiva da primeira metade do século XX. Referimo-nos à ideia de progresso e de finalidade, atreladas às noções de cópia e de erro utilizadas nos estudos de genética analisados em diferentes textos de Canguilhem. Para tanto, situam a crítica que este faz a leituras da biologia da década de 1960 quanto ao uso que fazem da ideia de erro (erro na cópia, na transcrição gênica), notadamente nos trabalhos dos ganhadores do PrêmioNobelde1965. Canguilhem entende que tais usos são “consequências da ilusão moderna de progresso e finalidade” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 164). Isso porque a variação, elemento fundamental para a produção de novas formas vivas, acaba se tornando um equívoco da natureza quando são entendidas enquanto “erros”: “munido da noção de erro, o geneticista alimenta a expectativa de que a natureza reproduz o padrão que ele próprio julga ter reconhecido nela” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 169). No entanto, a vida pode ser entendida como produção incessante de variação, de diferença e singularidade, e assim, não passível de ser reduzida a um tipo ideal, não havendo possibilidade de entender a diferença enquanto equívoco ou malogro. Tudo dependerá de suas relações com o meio. Tais leituras da biologia “não consideram suficientemente que o que chamam erro seria a própria condição da evolução” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 169). Anunciam então nas últimas páginas do livro que, ao se manter essas categorias não só se abre para o retorno do pêndulo a noções de progresso e de finalidade, mas também para a eugenia, para a “expectativa de correção de seu erro”. Em suma, a sobrevivência de noções como cópia e erro dificulta o abandono da ideia de progresso e finalidade ontológica da natureza e, segundo Bocca e Perez, só o abandono destas “abriria em definitivo as portas para a emergência do possível, onde ser vivo e ambiente seriam partes de um meio biológico sempre a se constituir” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 171). Em suas últimas palavras, são bastante precisos ao lembrar que a crítica de Canguilhem, a qual apresentam na sequência aos três ensaios de história da noção de história propostos ao longo de O pêndulo de Epicuro, sabe a que veio, pois “denuncia a fragilidade da iniciativa histórica de classificação dos seres vivos, especialmente a que sugere e sustenta a presença de um fio condutor de continuidade evolutiva, um poderoso instrumento de apoio para teses e ações racistas e eugênicas que merecem combate por toda parte” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 177). Lembram, por exemplo, a reintrodução do criacionismo via design inteligente, movimento presente na biologia contemporânea. Trata-se, portanto, de se estabelecer um combate contratais leituras cuja estratégia é sugerida nas últimas palavras do livro: “Que não se perca Epicuro de vista” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 177).
Entendemos que O pêndulo de Epicuro é uma ferramenta teórica densa para amparar a defesa da diversidade e singularidade das formas vivas, dado que a leitura do trabalho de Francisco Bocca e Daniel Perez subjaz um ideal, o de que os indivíduos não sejam lidos como mais ou menos próximos a uma finalidade arbitraria, artificial e historicamente constituída.
Em um momento no qual os apelos à finalidade, à refutação da diferença e à religião penetram a ciência e a filosofia, temos, nesta obra, uma reflexão filosófica condizente com nossas demandas atuais.
Nota
1 PEREZ, Daniel; BOCCA, Francisco Verardi; BOCCHI, Josiane Cristina. Ontologie sans mirroirs, essai sur la réalité – Borges, Descartes, Locke, Berkeley, Kant, Freud. Tradução de Isabelle Alcaraz. Paris: L’Harmatan, 2019.
Vinícius Armiliato – Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). Atualmente realiza pesquisa de pós-doutorado na mesma instituição, como bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: vinicius.arm@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2288-3820
Filosofar: Da Curiosidade Comum ao Raciocínio Lógico – WILLIAMSON (RFMC)
WILLIAMSON, Timothy. Filosofar: Da Curiosidade Comum ao Raciocínio Lógico. Lisboa: Gradiva, 2019. Resenha de: PACHECO, Gionatan Carlos. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.7, p. 339-341, n.3, dez. 2019.
Uma Nova Introdução à Filosofia
Em Filosofar: Da Curiosidade Comum ao Raciocínio Lógico, Timothy Williamson oferece uma introdução à filosofia acadêmica. É um livro com notável potencial didático. Por exemplo, Williamson começa com um exemplo de como Jean-Pierre Rives, uma lenda do rugby, aplicava em seu arsenal tático as Regras para Direção do Espírito: “ter uma ideia clara e distinta daquilo que se procura alcançar. Então há que decompor cada jogada complexa nos seus componentes mais simples, torná-los intuitivos, e reconstituir tudo a partir daí” (p. 11). O livro se inicia então apontando que a filosofia pode apresentar as aplicações mais inesperadas.
Na introdução o autor aborda rapidamente uma grande gama de assuntos, passa do exemplo citado acima, que evoca Descartes, para a dúvida hiperbólica, da dúvida hiperbólica para a ciência natural, desta para a política internacional. Mas a ideia principal desta introdução, que fará eco no restante da obra, é a relação entre os primórdios da filosofia e os primórdios da ciência. O autor nos lembra que Newton e Galileu reclamavam o título de filósofos naturais, de modo que a ciência é como que uma filha da filosofia. No entanto, alguns desdobramentos no pensamento contemporâneo tendem a mostrar a ciência como uma matricida em potencial.
O segundo capítulo é sobre o senso comum. O senso comum é um ponto de partida. Uma anedota contada por Williamson é muito ilustrativa acerca deste ponto. Digamos que estamos tentando chegar em algum lugar, estamos em uma praça, perguntamos a um sujeito onde fica o tal lugar que queremos ir, e ele nos responde: daqui desta praça é difícil chegar lá. O senso comum é a nossa praça, não importa o quão deslocado ele é, é dele que partimos, não temos opção. Essa “metafísica dos selvagens” – Williamson nos lembra dessas palavras de Russel – obteve notáveis defensores entre os filósofos e possui inclusive um potencial refutatório. Como exemplo, o autor afirma que o senso comum refutou teses como, por exemplo, a da irrealidade do tempo de McTaggart (p. 21). O senso comum, em um certo aspecto, funcionaria como um “freio” da filosofia.
É em grande parte sobre refutações e debates que gira em torno o capítulo três. Willianson nos dá um panorama de um clima potencialmente beligerante nos eventos acadêmico da área de filosofia, seus prós e seus contras. Os apresentadores se “defendem” das ofensivas dos arguidores e o júri seria encarnado na comunidade dos filósofos em geral. Como sói acontecer, o autor aponta que muitas disputas acabam por concordarem em conteúdo e divergir em nas palavras. Com efeito, este fenômeno é o tema do quarto capítulo. Aquim Williamson apresenta uma espécie de paradoxo da clareza, pois, de certa forma, ela não pode aspirar “um padrão mítico de indubitabilidade” , visto que para esclarecermos uma palavra, lançamos mão de outras palavras e, além disso, estariam os presos em questões como a possibilidade de se conceitualizar o conceito de “conceito”.
Este Filosofar também pode ser considerado uma introdução à metodologia filosófica. Assim, os capítulos seguintes apresentam uma série de ferramentas filosóficas. O capítulo cinco discorre acerca de experiência mentais. Aqui ele nos apresenta uma experiência mental do autor budista do século VII, Dharmottara (740-800), onde este antecipou os epistemologicamente revolucionários exemplos de Gettier, e, entre outros exemplos, como do experimento mental acerca do aborto de Judith Jarvis Thomson, o experimento mental dos zumbis de Chalmers e, além disso, nas ciências naturais, os experimentos mentais das esferas de Galileu e a hipotética “cavalgada” sob um raio de luz de Einstein. O livro de Williamson é extremamente imagético, repleto de exemplos e tabelas. Os exemplos exemplos citados, por si só, constituem ferramentas metodológicas do pensar filosófico e reforçam o caráter pedagógico do livro. Além disso, ao passo que apresenta esta série de experimentos mentais, alguns conceitos, mesmo sem ser nomeados são apresentados, como a modalidade e os contrafactuais.
A filosofia é colocada lado a lado com a ciência natural durante toda obra. Assim, muitos tópicos são compartilhados, como as questões dos vieses cognitivos, do sobreajuste em teorias, da dedução e dos princípios lógicos. Williamson discorre sobre a história da filosofia, de uma forma quase amarga, com aqueles acadêmicos que estudam “um filósofo”, claramente defendendo seu “estilo Oxford de filosofar”, isto é, tratar de problemas filosóficos e não de filósofos. “A questão controversa é saber se os filósofos precisam ou não de muito mais conhecimento da história menos recente do seu assunto do que precisam os matemáticos e cientistas naturais nas suas áreas” (p. 114). Williamson irá conceder importância, sim, mas uma importância do que ele chamade“genealogiaintelectual” (p. 115). Assim, para ele há teorias filosóficas que mesmo sendo falsas, possuem sua importância. Em termos gerais, segundo o autor, a história da filosofia estaria para a filosofia atual, como a história da arquitetura está para quem está atualmente visitando uma obra arquitetônica.
Enfim, Filosofar: Da Curiosidade Comum ao Raciocínio Lógico é certamente um fruto do pensamento filosófico contemporâneo de nossa época que poderá ter muita influência na geração futura de pesquisadores. Isto pois, ele se destina a um público amplo, em especial estudantes de graduação em filosofia, mas, ainda assim, por possuir um caráter de divulgação filosófica, pode destinar-se a comunidade em geral. É um livro com viés oxfordiano, o que pode causar desconforto para certos leitores, no entanto, é um livro com uma visão tanto ampla, quanto coerente sobre a atividade filosófica.
Gionatan Carlos Pacheco – Mestre e Bacharel em filosofia pela Universidade Federal de Maria (UFSM). Atualmente realiza doutorado em filosofia na UFSM. E-mail: gionatan23@gmail.com
Nietzsche: filosofo della libertà – LANGONE (RFMC)
LANGONE, Laura. Nietzsche: filosofo della libertà. Pisa: Edizioni ETS,2019. Resenha de: PAULA, Marcio Gimenes de. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.7, p. 335-338, n.3, dez. 2019.
Laura Langone, jovem pesquisadora italiana, nos apresenta em seu trabalho Nietzsche: filosofo della libertà os desafios de nos debruçarmos sobre a filosofia do pensador alemão como uma filosofia da liberdade. Para tanto, ela começa por caminhos já bastante explorados, a saber, o seu primeiro capítulo trata exatamente da famosa passagem de Zaratustra anunciando o segredo da liberdade na obra Assim falou Zaratustra. Contudo, parece errar quem aposta aqui que a filosofia é algo que se faz apenas com abordagens supostamente inovadoras ou, ainda pior, que pensa que visitar passagens já conhecidas (ou supostamente conhecidas) é algo reprovável ou de menor significado. Assim, revisitando a popular- ao menos em tese- passagem em que Zaratustra anuncia a morte de Deus, a pesquisadora nos apresenta sua leitura e interpretação, fruto não apenas de uma exegese de Nietzsche, mas também dos interpretes com os quais escolhe dialogar.
Nota-se aqui claramente a crítica nietzschiana aos aspectos metafísicos e morais construídos pela filosofia e pela religião no decorrer dos séculos. Tal caminho é bastante explorado e até mesmo exaustivamente explanado pela autora, o que nos prepara para compreender Nietzsche como um grande crítico da metafísica e da moral, fato que já atraiu a atenção de inúmeros pesquisadores da mais alta qualidade como, por exemplo. Heidegger e o compatriota de Langone, Gianni Vattimo, o que parece provar, desde os dias da edição de Giorgio Colli e Mazzino Montinari, o quanto os estudos nietzschianos devem ao pensamento italiano do século XX. Aqui, entretanto, penso que a autora nos apresenta outro importante pensador: o norte-americano Ralph Waldo Emerson, filósofo e poeta que viveu, tal como Nietzsche, no século XIX e, segundo relatos que se pode observar, teria exercido alguma influência também no pensamento nietzschiano. Como se trata de um autor pouco conhecido entre nós, e talvez até mesmo na academia italiana, penso que Laura Langone possui o grande mérito de apresenta-lo e de discutir suas teses lado a lado com as teses de Nietzsche, a saber, suas implicações para a metafísica e para a moral. Seria significativo também se, de algum modo, o nome do pensador norte-americano viesse agregado ao título principal da obra ou, talvez, num subtítulo, pois tal coisa ajudaria na localização do leitor que, a rigor, só percebe a presença de Emerson ao ler efetivamente a totalidade do texto.
O capítulo segundo segue discutindo o problema metafísico em Nietzsche e agora aprofunda a discussão ao tomar a metafísica como uma espécie de erro de linguagem, o que parece inserir Nietzsche dentro de outra fronteira, isto é, o pensador pode ser tomado também como um filósofo da linguagem. A autora trabalha de modo exegético, mas selecionando aspectos, passagens importantes das obras A Gaia Ciência e Assim falou Zaratustra. Aqui o texto é bastante apropriado para quem deseja aprofundar em Nietzsche (e em Emerson) a discussão sobre verdade e linguagem e também para a realização efetiva de uma crítica da ciência, notadamente nos seus aspectos metafísicos.
A moral escrava será o tema do capítulo terceiro. Especialmente por uma leitura de Humano, demasiado humano, a autora faz interlocução com as teses de Nietzsche e de Emerson. Desse modo, aprofundando a crítica da metafísica e da moral, Langone explicita de modo mais categórico que a moral escrava é, na verdade, consequência do equívoco metafísico. Assim, o capítulo quarto possui intrínseca relação com o capítulo que lhe antecede e, por isso, a cisão metafísica entre alma e corpo será tão importante para a exploração intelectual da temática de Laura Langone, mas também se poderá percebê-la não apenas na obra de Nietzsche, mas nos aspectos naturais discutidos por Emerson, o que totaliza um quadro significativo e cheio de profundidade.
Outro tema nietzschiano bastante conhecido – ou ao menos citado – é retomado pela pesquisadora em seu capítulo quinto, isto é, o tema do espírito livre e a compressão da liberdade como consciência de si. Aqui novamente, com uma seleção especialmente feita de passagens de Aurora e A Gaia Ciência, a autora não apenas aproxima Nietzsche de temas tão significativos para a filosofia da vida (Lebensphilosophie), igualmente explorada por autores como Simmel e Arendt, como é capaz de perceber a relação do pensador alemão com Darwin, o que o aproxima de uma significativa discussão muito atualizada sobre a natureza. Desse modo, há aqui um vasto campo para os que se desejam aprofundar em tal investigação.
Já o capitulo sexto visitará outro tema bastante mencionado nos estudos nietzschianos: a vontade de potência. Aqui Langone é novamente exegética, no melhor sentido da palavra, e o aborda enfrentando diretamente A Gaia Ciência e Assim falou Zaratustra, além, é claro, dedialogar com ótima bibliografia de comentadores da obra nietzschiana. O mesmo ocorrerá no capítulo sétimo sobre a morte de Deus. A rigor, trata-se de um tema imenso para todo o pensamento moderno. Contudo, a autora sabiamente percebe que poderá explorá-lo melhor a partir da pista do niilismo ocidental e assim o desenvolve de maneira clara, sóbria, o que abre o campo para futuras investigações e indagações de toda a sorte, o que é profundamente filosófico.
Por fim, o capítulo oitavo dissertará sobre o eterno retorno do igual e aqui, ainda que se trate também de um tema bastante discutido por especialistas de Nietzsche, Langone consegue uma qualificação ao aprofundá-lo em consonância com as teses de Emerson. O mesmo sucederá no nono capítulo, quando o tema da liberdade como consciência poderá ser compreendido em modo ampliado e, assim, a afirmação da vida, a potência, o tema do além do homem e a transvaloração de todos os valores, passa a ter uma nova possibilidade de leitura e interpretação, o que fica ainda mais claro na conclusão de Laura Langone entre Nietzsche e Emerson.
Destaque-se ainda o fato da autora ser a primeira intérprete de Nietzsche a afirmar que o eterno retorno é uma teoria da consciência da filosofia pós-metafísica, tal como é argumentado por ela no último capítulo. Até então, pelo que se pode constatar, inúmeros outros estúdios os nietzschianos tenderam a tomar o eterno retorno como uma ontologia ou uma ética. A título apenas de sugestão, os capítulos, talvez, pudessem ter sido agregados e, desse modo, o texto se mostraria ainda mais claro e compacto. De todo modo, o trabalho da autora é apenas o início de um percurso. Elogiável início visto que nos ajuda a pensar.
Marcio Gimenes de Paula – Professor do Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília (UnB). E-mail: marciogimenes@unb.br ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5991-5710
O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo – SAFATLE (RFMC)
SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. São Paulo: CosacNaify,2015. Resenha de: PINTO, Thiago Ferrare. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.5, p. 381-387, n.2, dez, 2017.
Em seu Circuito dos afetos, Vladimir Safatle se propõe a elaborar uma teoria política que pense os “caminhos da afirmação do desemparo” (SAFATLE, 2015, p. 72) e a “insegurança ontológica” que ele produz (SAFATLE, 2015, p. 73). A referência ao caminho implica a relação do desamparo com a história enquanto espaço de conflito em torno de pretensões opostas de validade moral. Mas há mais: a referência ao caminho de afirmação do desamparo envolve também a compreensão da história enquanto espaço de disputa em torno dos padrões a partir dos quais discursamos quando da tentativa de tornar produtivos os conflitos entre pretensões opostas de validade. Aqui está o sentido da insegurança ontológica que o desamparo produz: sua afirmação implica um desafio à suposição das teorias críticas hegemônicas segundo a qual a estrutura deliberativa do Estado democrático de direito espelharia a formadas demandas históricas por realização da liberdade. A insegurança, portanto, vem do reconhecimento da possibilidade de que a realidade histórica e sua materialidade surpreendam as formas hegemônicas de mediação da liberdade.
Segundo o autor, a teoria crítica contemporânea tende a reconhecer a produtividade dos conflitos entre pretensões materiais opostas que convivem no interior de uma comunidade política. Assim, demandas por reconhecimento ganham espaço na arena pública enquanto conflitos materiais voltados à efetivação dos princípios constitucionais que seriam objeto de consenso sobre o modo de resolução desses conflitos. A política caminharia sem pôr em xeque a forma de resolução dos conflitos, uma vez que se definiria pelo desdobramento daqueles conflitos passíveis de tematização nos marcos pré-estabelecidos para a vivência da liberdade. De modo geral, as abordagens críticas reconhecem a produtividade dos antagonismos materiais, embora ao preço da ocultação da possibilidade dos antagonismos formais (SAFATLE, 2015, p. 27).
Desenvolvendo esse ponto, Safatle define política a partir de uma crítica à teoria discursiva do Estado democrático de direito de Jürgen Habermas e à idealidade da razão como horizonte formal do discurso sobre a realização da liberdade. Nos marcos da teoria habermasiana – que nesse ponto influenciou personalidades como Axel Honneth e Nancy Fraser -, pode-se dizer que há devir, há história a ser ressignificada: a dor dos ofendidos nos impele à revisão das estruturas de nossa forma de vida (HABERMAS, 2007, p. 66). O problema é que a história só é revelada naquelas dimensões que podem ser expressas nos marcos racionais – marcos da razoabilidade, diria John Rawls (2006, p. 32-33) – do horizonte consensual que define o corpo político:
[…] argumentar a partir da razão significa introduzir a política em um campo tendencial de concórdia, afastar-se da instabilidade das paixões para aproximar-se da perenidade de determinações normativas encarnadas na estabilidade de instituições capazes de garantir a procura comum pelo melhor argumento a partir de ideias claras e distintas (SAFATLE, 2015, p. 149)
O que daí se segue é uma tentativa de ressignificar o conceito de política. Nos marcos da teoria discursiva do Estado democrático de Direito, política é a efetivação de demandas por liberdade no interior das estruturas normativas do projeto constitucional. Política é, portanto, a atividade de constante revisão dos nossos padrões de coordenação de ação a partir das estruturas que delimitam o que pode vir à luz enquanto demanda por reconhecimento. A abordagem de Safatle se sustenta na tese segundo a qual a teoria discursiva do Estado democrático de direito anula a política à medida que retira dela sua espontaneidade e sua possibilidade de fazer da contingência o impulso para a reinvenção das estruturas fundantes de uma comunidade.
A compreensão da função do direito na constituição do espaço público é fundamental no caminho argumentativo do autor. O direito não só reproduz determinada percepção daquilo que a crítica social pode ser, mas também a constitui, à medida que estrutura os espaços sociais de crítica e delimita formalmente o politicamente possível. O ponto do autor se comunica com a abordagem de Butler naquilo que diz respeito à estruturação jurídica do regime de gênero nas democracias ocidentais contemporâneas (BUTLER, 2017, p. 23). A orientar o autor e a autora, encontra-se a ideia segundo a qual a estrutura jurídica de uma sociedade institui um regime de validade que tem a pretensão de sustentar juízos sobre o real. Nesses termos, a vida política que caminha sem a tematização de antagonismos formais produz a já referida segurança ontológica, no sentido de que as possibilidades de recuperação histórica de narrativas sobre a liberdade – narrativas silenciadas pelo teor universalizante da forma de vida hegemônica – se encontram pré-determinadas e, portanto, delimitadas em seu potencial transformador. O diagnóstico de Safatle tem o seguinte teor: “[…] a estrutura do direito determina as formas possíveis que a vida pode assumir, os arranjos que as singularidades podem criar. Elas fazem das formas de vida aquilo que previamente tem o molde da previsão legal” (SAFATLE, 2015, p. 360).
A estrutura jurídica constitui, portanto, o padrão hegemônico de realização da liberdade. A gramática constitucional estabelece critérios de dizibilidade, formas que são condições de possibilidade para o falar sobre política e emancipação. É assim que a pretensão de reconstruir a história de determinada comunidade política se perde na delimitação prévia daquilo que pode ser uma pauta a ser debatida no espaço público estruturado constitucionalmente.
A ideia central aqui é a desincronização. A partir dela se percebe a anulação da materialidade da vida política como um desdobramento da suposição da existência de um modelo único de realização da liberdade: a liberdade realizada no espaço institucional do Estado democrático de direito. Nos marcos da teoria discursiva de Habermas, a materialidade que dá ensejo aos processos de aprendizado social é demarcada e limitada em seu potencial produtivo: a contradição que o sofrimento instaura não põe em xeque os pressupostos do discurso prático, as bases do Estado constitucional. Nesse sentido, a descentralização das perspectivas hegemônicas é sempre parcial, no sentido de que nunca dará conta daquelas vivências cuja concretude não se deixa traduzir nos pressupostos comunicativos embutidos nos processos constitucionais de crítica social.
A teoria crítica hegemônica – a teoria discursiva do Estado democrático de direito, em especial–naturaliza os marcos da crítica, determinando abstratamente os sentidos possíveis da liberdade. Safatle assim resume o argumento em torno dos desdobramentos deletérios da sincronização da história enquanto dimensão necessária dessas perspectivas teóricas:
Através da história, ser e tempo se reconciliariam no interior de uma memória social que deveria ser assumida reflexivamente por todo sujeito em suas ações. Memória que seria a essência orgânica do corpo político, condição para que ele existisse nas ações de cada indivíduo, como se tal corpo fosse sobretudo um modo de apropriação do tempo, de construção de relações de remissão no interior de um campo temporal contínuo, capaz de colocar momentos dispersos em sincronia a partir das pressões do presente (SAFATLE, 2015, p. 137)
Ainda a respeito da dimensão jurídica da sincronização, o autor se debruça sobre a ideia de cidadania. A defesa da cidadania nos marcos de uma democracia deliberativa envolveria a pressuposição do caráter jurídico das condições de formação da subjetividade, o que implica uma limitação do sentido da política a partir de sua submissão aos princípios constitucionais que fazem a mediação da crítica social. A potência transformadora da política– sua capacidade para produzir antagonismos formais a partir da experiência do desamparo – é domesticada pela obrigatoriedade de uma forma para o exercício da autoconsciência. Ainda que não se resuma ao voto – como parece ser o caso nos modelos liberais de democracia -, a cidadania advogada pela teoria discursiva do Estado democrático de direito compreende a formação da memória e da identidade de uma comunidade como um exercício discursivo que se realiza nos limites da gramática constitucional. A dimensão política da vida social, portanto, está colonizada pela rigidez de princípios jurídicos, de onde se segue que o desamparo não encontra rotas de fuga por meio das quais possa afirmar-se.
Resumiremos o argumento. A teoria discursiva do Estado democrático de Direito encontra sua materialidade no fato de que “a objetividade da exigência de um novo espírito vem da dor dos ofendidos” (HABERMAS, 2007, p. 52). O problema, porém, é que a pressão do presente impele a construção da memória social a partir da sincronização da história. Ou seja, a tematização da dor só se dá à medida do possível, sendo o possível o espaço pré-determinado pelas estruturas do Estado constitucional(SAFATLE, 2015, p. 137). Toda dor é concebida como indício de antagonismo material, nunca como a materialidade fundante de um antagonismo formal. Em última instância, não se põe em xeque “o horizonte formal consensual de legitimidade dos enunciados” (SAFATLE, 2015, p. 149), de modo que a vida política se resumiria ao debate sobre as discordâncias que se travam num espaço delimitado de antemão.
Seria o caso de dizer, portanto, que Habermas ainda opera nos quadros naturalizantes do liberalismo político de Rawls. Embora tenha afastado a ideia do fato do pluralismo razoável através da historicização da formação das diferenças, Habermas supõe o caráter universal do projeto constitucional enquanto instância mediadora da liberdade. Nesses moldes, o universal não é mediado pelos momentos particulares de sua crítica; o universal, portanto, permanece intocável. Precisamente neste ponto a teoria discursiva do Estado democrático de Direito não sustenta a sua pretensão de materialidade: o atrito produtor de antagonismos formais – na terminologia de Safatle, a capacidade do desamparo de pôr em xeque a universalidade das estruturas que medeiam a liberdade jurídica – é ocultado pelo não reconhecimento da legitimidade de demandas que não se deixem traduzir na gramática uniformizante do direito constitucional.
A gramática constitucional ampara as demandas por justiça, uma vez que demarca os limites daquilo que é antecipado como politicamente possível. Pensar a política a partir do desamparo envolve a centralização daquelas demandas que colocam em xeque os limites do possível, ou seja, demandas que questionam a rigidez das estruturas que, à medida que delimitam o espaço formal da crítica social, acabam por dizer o que a crítica pode ser: “[…] estar desamparado é estar sem ajuda, sem recursos diante de um acontecimento que não é a atualização de meus possíveis”(SAFATLE, 2015, p. 71). A produção política de antagonismos formais é o caminho de afirmação do desamparo no sentido de tornar politicamente possível aquilo que até então não o era.
A força política do desamparo reside no desejo de transformação da base supostamente consensual por meio da qual uma comunidade dialoga racionalmente sobre a sua história. A abstração do consenso racional é revelada pela materialidade do desamparo, pela asseveração da necessidade de se dar voz àqueles e àquelas que não encontram voz nos marcos pré-estabelecidos pelo Estado democrático de direito para a crítica social:
[…] a política pode ser pensada enquanto prática que permite ao desamparo aparecer como fundamento de produtividade de novas formais sociais, na medida em que impede sua conversão em medo social e que nos abre para acontecimentos que não sabemos ainda como experimentar (SAFATLE, 2015, p. 67)
A teoria crítica do autor tem como objetivo, portanto, a desconstrução do modelo de realização da liberdade pressuposto pela teoria discursiva. A pretensão de materialidade é levada aqui às últimas consequências, o que implica dizer que os antagonismos políticos transcendem a divergências entre orientações axiológicas, as divergências entre concepções de bem igualmente razoáveis. Os antagonismos políticos põem em xeque, portanto, o próprio consenso constitucional. A materialidade da história vivida de modo não sincrônico produz atrito com as estruturas formais do Estado constitucional – os procedimentos constitucionais formalmente instituídos são insuficientes enquanto meio de trazer à luz experiências contra- hegemônicas de liberdade. Daí se segue o desafio em torno da revisão das pretensões de universalidade da gramática moral da comunidade e o reconhecimento da impossibilidade de antecipação das estruturas a partir das quais a crítica será exercida, a história será reconstruída e a memória/identidade de uma comunidade será ressignificada.
Referências
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. São Paulo: Civilização Brasileira, 2017.
HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Trad. George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002.
RAWLS, John. O liberalismo político. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000.
Thiago Ferrare Pinto – Professor substituto do Departamento de Teoria do Direito da Faculdade Nacional de Direito – UFRJ.
Espaço e tempo na física contemporânea: uma introdução à teoria da relatividade e da gravitação – SCHLICK (RFMC)
SCHLICK, Moritz. Espaço e tempo na física contemporânea: uma introdução à teoria da relatividade e da gravitação. São Paulo: Mundaréu,2016. Resenha de: TOSSATO, Claudemir Roque. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.5, p.201-212, n.1, jul., 2017.
O Círculo de Viena surgiu no início da década de 1920. Sua origem ocorreu a partir de encontros informais principalmente entre, principalmente, físicos, filósofos e matemáticos que desejavam discutir fundamentalmente questões científicas e interpretações filosóficas sobre as ciências. As reuniões, que antes eram descompromissadas, conduziram com o tempo à formação de um núcleo de concepções e teses sobre o conhecimento científico e posturas filosóficas acerca do mesmo. Em 1929, três de seus membros, Carnap, Neurath Hans, publicam um pequeno manifesto cujo título é sugestivo, A concepção científica de mundo. Neste pequeno livreto são destacadas as principais orientações e teses do movimento. Digno de nota é o objetivo do Círculo: elaborar uma concepção de conhecimento na qual só é considerado como conhecimento legítimo aquele que for orientado aos moldes da física, de maneira que qualquer área de conhecimento, seja natural, seja social ou humana, deverá ser reduzida aos enunciados básicos da física. Este objetivo, extremamente ambicioso, alicerça-se na concepção científica de mundo defendida pelo Círculo de Viena.
A concepção científica de mundo tem alguns pontos básicos. Em primeiro lugar, os seus representantes não quiseram que o Círculo fosse visto como uma escola filosófica, mas, em vez de algo tão nobre, simplesmente objetivavam que suas proposições expressas sem uma atitude perante o mundo; uma atitude voltada fundamentalmente para encontrar não as coisas Profundas subjacentes aos fenômenos científicos, mas para tatear a superfície: aquilo que é possível para os indivíduos dotados de sensibilidade e racionalidade encontrar. Para tanto, é preciso se afastar de concepções que nada auxiliam na investigação científica e deve-se, sobretudo, restringir-se ao que se pode conhecer, como é dito no manifesto “Pureza e clareza são almejadas, de maneira que as distâncias e profundezas não acessíveis e insondáveis são rejeitadas. Em ciência, não há ‘profundezas’; há superfície por toda parte” (NEURATH, O., CARNAP, R. HAHN, 2016). Ou seja, não se procura na ciência as verdades últimas, mas há uma postura mais humilde, mais acessível ao ser humano: restringir-se ao que está na superfície, que são as experiências e seu trabalho teórico.
Desta maneira, o Círculo de Viena, também conhecido como positivismo lógico, entende que muitos dos problemas tradicionais da filosofia não são legítimos, pois“esclarecimentos dos problemas filosóficos tradicionais conduz-nos, por um lado, a desmascará-los como pseudoproblemas2 e, por outo, a transformá-los em problemas empíricos” (NEURATH, O., CARNAP, R. HAHN, 2016). Em suma, para o positivismo lógico a ciência restringe-se aos seus conteúdos empíricos.
Em milhas gerais, os adeptos do positivismo lógicos almejam, por um lado, apenas falar daquilo que nossas faculdades sensíveis informam: os dados dos sentidos, como os da visão, do tato etc.; e, por outro lado, elaborar teorias sobre os fenômenos científicos. É um casamento simples entre dados sensíveis e elaboração teórica desses dados. Em segundo lugar, os positivistas lógicos negam que seja visto como conhecimento legitimo qualquer tipo de especulação que não possa ser avaliada empiricamente, ou seja, abole-se do âmbito do conhecimento a metafísica, pois as proposições metafísicas são destituídas de significação empírica – pois elas não podem ser testadas.
Moritz Schilick (1882-1936) talvez tenha sido o principal representante do positivismo lógico. Seu trabalho filosófico teve como meta a crítica radial à metafísica e a defesa do critério de aplicação empírica para a determinação do que é um conhecimento legitimamente científico.
A obra de Schlick, Espaço e tempo na física contemporânea – Uma introdução à teoria da relatividade e da gravitação, (…) tem uma dupla intenção: ela quer inicialmente apresentar a teoria da relatividade de Einstein (seja na versão restrita, publicada por Einstein em 1905, seja na geral, de 1915) para o público culto, mas não propriamente conhecedor da difícil matemática que ela envolve; mas a tarefa não para apenas nisto, a intenção de Schlick é mais ambiciosa, pois ele quer tratar filosoficamente a teoria da relatividade de Einstein; e tal tratamento é a defesa das concepções básicas do positivismo lógico: conhecimento alicerçado na experiência e recusa de especulações metafísicas no conhecimento.
O ponto filosófico central da abordagem de Schlick sobre a relatividade centra-se na negação das noções de espaço, tempo e movimentos absolutos de Newton e na de conhecimento a priori de Kant.
Se a teoria da relatividade não necessita de especulações que extrapolam o que é fisicamente detectado, não há necessidade, pois, de tratar o conhecimento a partir de categorias apriorísticas. Isto fica registrado com as palavras de schlick quando inicia sua apresentação da teoria da relatividade de Einstein, diz ele:
A generalidade que o conhecimento físico alcançou no que diz respeitoaseusprincípiosúltimos e a elevação verdadeiramente filosófica que conquistou em nossosdiasfazemcomqueelesupere de longe, em audácia, todos os feitos anteriores do pensamento científico (SCHLICK, 2016: 9)
Dois pontos devem ser destacados pela citação acima: o primeiro, é sobre o papel altamente positivo do conhecimento físico que, por si só, já é algo relevante; mas é o segundo ponto o mais importante, “a elevação verdadeiramente filosófica”;estas palavras de vem ser lidas em seu sentido literal; pode-se entender o conteúdo da frase como a estipulação de que o conhecimento físico ensinou a filosofia como esta deve agir. E é nesta linha que a apresentação da teoria da relatividade vai seguir; em todo o livro, vê-se que a teoria de Einstein expressa, ou ensina, o caminho que a filosofia deve trilhar, um caminho que deve ser idêntico ao feito pela ciência física do início do século XX.
Alguns anos mais tarde, Schlick redige o texto “Positivismo e realismo”, no qual é tratada mais pormenorizadamente a questão da função da filosofia para o conhecimento. Nesse texto é dito que “Ora, pela análise filosófica não logramos decidir se uma coisa é real, mas somente descobrir o que se quer dizer ao afirmar que a coisa é real. Se é este o caso ou não, só podemos descobri-lo através dos métodos habituais da vida diária e da ciência, pela experiência” (SCHLICK, 1988: 43). É uma exigência forte: dizer o que se entende quando é afirmado que algo é “real” e, mais importante, justificá-lo empiricamente.
Schlick trata nos capítulos 1 e 2 da relatividade estrita de Einstein. Ele inicia com uma espécie de tratamento ao leitor contra a resistência que este tem para entender a relatividade, diz Schlick que “Os conceitos de espaço e tempo não são originalmente produtos de complicadas operações do pensamento científico; pelo contrário, nós já temos que lidar incessantemente com eles na vida cotidiana” (SCHLICK, 2016: 13). Extraindo a linguagem matemática subjacente aos fenômenos, qualquer um pode compreender o que é mais importante: os conceitos. Tempo e espaço pertencem à vida comum, diária, de todos nós. Não são entidades desligadas de nossas vivências; se não entendemos a relatividade einsteiniana, é porque estamos acostumados a pensar tempo e espaço como “coisas” separadas e tal prejuízo é dado pela ciência que se guia por especulações desprovidas de conteúdo empírico. Por exemplo, acerca do éter, escreve Schlick que:
Vê-se que, segundo o ponto de vista retratado, realmente há um movimento absoluto no sentido da física (a saber, em relação a um éter substancial). Uma vez, porém, que não há nenhuma maneira de observar esse éter, são criadas hipóteses especiais a fim de explicar porque ele sempre escapa à detecção (SHLICK, 2016: 20-1)
A suposição do éter somente tem sentido se admitirmos o movimento absoluto; mas a experiência nega a detecção do éter. Isto implica que não há movimento absoluto? Não há resposta conclusiva para esta pergunta, pois não sabemos se existe ou não o movimento absoluto (ou espaço e tempo absolutos), é somente uma especulação sem respaldo na experiência. Portanto, segundo o critério de aplicação com a experiência, não sabemos se é verdadeiro ou falso o movimento absoluto. Mas, e é isto o ponto mais importante, podemos saber que:
(…) eis o que a física moderna nos diz, desde Einstein: uma vez que, na experiência, o princípio de relatividade restrito e o princípio de invariância da velocidade da luz valem de fato, ambos devem ser concebidos como leis reais da natureza. Além disso, uma vez que o éter, seja enquanto substância, seja enquanto corpo de referência, insistentemente escapa a todas as nossas investigações, e todos os fenômenos naturais acontecem como se ele não estivesse presente, a palavra éter é aqui destituída de significado físico, e ele, por conseguinte, não existe de fato como algo “material” no sentido tradicional do termo. Se não for possível conciliar o princípio de relatividade e a não existência do éter com nossas reflexões anteriores sobre a propagação da luz, essas reflexões devem ser revisadas. A grande descoberta de Einstein foi a de que tal revisão era possível, isto é, que aquelas reflexões estavam fundadas em pressupostos não testados acerca das medições do espaço e do tempo, e que precisamos apenas descarta-los para afastar a contradição entre o princípio de relatividade e o princípio de invariância da velocidade da luz (SCHLICK, 2016: 21)
Deve-se, portanto, partir das informações das experiências sensíveis para construir a teoria. O mais interessanteé “que a teoria da relatividade elimina de forma suficientemente radical os conceitos tradicionais de espaço e tempo e abole da física o “éter” concebido como substância” (SHLICK, 2016: 29). Na física newtoniana, tem-se o espaço absoluto e o tempo absoluto, um independente do outro. Contudo, a experiência mostra que a velocidade da luz é constante, não sofrendo alteração devida ao meio.
Com isto, não há necessidade empírica de postular o éter; e o problema do movimento pode ser deslocado para a proposta da teoria da relatividade geral, mais abrangente que a teoria restrita.
Schlick dedica três capítulos (35) de sua obra à geometria utilizada pela teoria da relatividade geral de Einstein. O ponto central de sua abordagem é em relação à realidade geométrica do espaço e do tempo. Partindo da visão de que “aquilo que se pode medir é o que existe” (SCHLICK, 2016: 32), o físico newtoniano pode entender que o espeço pode ser medido independentemente do tempo e vice-versa. Parece-nos fácil entender que são separados, que cada um tem sua medida própria. E a geometria euclidiana é satisfatória para essa empresa. Contudo, diz Schlick:
Mas calma lá! Quem está bem informado sobre o assunto sabe que existe muita controvérsia sobre a natureza dos objetos geométricos. E mesmo que não houvesse, não faz muito tempo que aprendemos a rastrear, justamente em meio aos conceitos fundamentais da ciências, pressupostos ocultos não testados, e assim deveremos pesquisar se também a concepção da geometria como doutrina das propriedades do espaço não é influenciada por certas representações ilegítimas, das quais ela deve ser depurada (SCHLICK, 2016: 32)
Novamente, Schlick está apontando a intromissão e utilização de conceitos não autorizados na elaboração do conhecimento físico. E, o mais importante, é que “os corpos na natureza não têm apenas uma forma geométrica, mas também, e sobretudo, propriedades físicas, como, por exemplo, massa” (SCHLICK, 2016: 34). Não é possível, portanto, separar a geometria da física. E essa inseparabilidade vai determinara aplicação de cada geometria às “necessidades”, não à realidade. Por que a geometria euclidiana – e a física newtoniana podem ser utilizadas e, de fato, é utilizada? Porque ela “sempre permanecerá apropriada ao menos para uma representação apropriada” (SCHLICK, 2016: 46). A constituição própria do espaço “não é nem euclidiana nem não euclidiana, assim como não é próprio de uma distância que ela seja medida em quilómetros, e não em milhas” (SCHLICK, 2016: 46). Para aplicar uma geometria específica deve-se fixar pontos de vista. E, como regra geral, Schlick diz que “espaço e tempo só são separáveis das coisas e processos físicos em uma abstração(…) Ao realizar uma abstração, é preciso que sempre se pergunte se ela tem um significado cientifico, isso é, se os elementos que a abstração separa são, também, factualmente, independentes uns dos outros (SCHLICK, 2016: 47).
Os capítulos 6 a 9 formam um bloco destinado a apresentar a teoria da relatividade geral. A tônica da exposição de Schlick é insistir no ponto de que a teoria da relatividade de Einstein elimina considerações de que o espaço e o tempo são entidades que subsistam por si só. É significativa a seguinte passagem:
Da teoria da relatividade geral segue-se, portanto, que é de todo impossível atribuir qualquer propriedade ao espaço sem levar em conta as coisas nele. Agora, também na física a relativização do espaço se realizou de forma completa, por um caminho que as considerações mais gerais que tecemos acima nos fizeram reconhecer como o único natural. O espaço e o tempo nunca são, por si mesmos, objetos de medição. Eles formam juntos um esquema quadridimensional, no qual ordenamos os objetos e processos físicos com o auxílio de nossas observações e medições. Escolhemos o esquema (e podemos fazê-lo, pois se trata de uma estrutura de abstração) de modo que o sistema da física resultante assuma a estrutura mais simples possível (SCHLICK, 2016: 62)
A passagem acima é muito importante; nela estão presentes muitos aspectos da concepção de Schlick sobre a ciência, principalmente do ponto de vista epistemológico. Em primeiro lugar, espaço e tempo não “existem” por si mesmos, mas fazem um conjunto, chamado de espaço-tempo, no qual não há três dimensões, mas quatro. Em segundo lugar, não medimos o espaço ou o tempo isoladamente, mas os dois em conjunto. Em terceiro lugar, é o esquema quadrimensional que permite as medições na teoria geral da relatividade. Em quarto – e acredito que do ponto de vista da teoria do conhecimento isto é o mais relevante – podemos escolher a estrutura abstrata mais simples possível; isto é, de acordo com o que é dado pela observação. E o que a observação apresenta? Diz Schlick que “o fundamento de toda observação exata está em manter em vista precisamente os mesmos pontos físicos em diferentes tempos e em diferentes lugares, e que toda medição se resume à constatação da coincidência, no mesmo lugar e no mesmo tempo, de dois desses pontos que fixamos (SCHLICK, 2016: 62). Assim:
A maneira como a lei fundamental é formulada deixa bem clara a diferença que existe entre as concepções newtoniana e einsteiniana dos efeitos gravitacionais. Segundo Newton, estes representam forças reais, por meio das quais um corpo é desviado de seu trajeto “natural”, o movimento inercial retilíneo e uniforme. Segundo Einstein, ao contrário, é o movimento de um corpo em um campo gravitacional que é “natural” e completamente subtraído à influência de forças (SCHLICK, 2016: 76).
Para Newton, o que é natural são as forças gravitacionais, para Einstein, o movimento de um corpo num campo gravitacional. Ora, não há respaldo na experiência para o conceito de força, mas há para o de movimento num campo gravitacional.
Assim, na visão de Schlick, e também na do positivismo lógico em geral, “A estruturado Todo que a teoria da relatividade geral nos desvela é de surpreendente coerência, de imponente grandeza, além de ser tanto física quanto filosoficamente satisfatória” (SCHLICK, 2016: p. 93). A teoria einsteiniana da relatividade geral não é somente uma excelente teoria; mais do que isto, ela tem ganhos filosóficos, isto é, ela cumpre os critérios epistemológicos dos positivismo lógico de não utilizar conceitos que não têm respaldo no mundo físico, no mundo observacional. Neste sentido, a cooperação entre física, matemática e filosofia torna-se a marca do avanço do conhecimento científico por eliminar conjecturas que nada contribuem para a compreensão do universo físico:
Uma cooperação genial do pensamento físico, matemático e filosófico tornou possível responder com métodos exatos às questões sobre o todo do universo, as quais pareciam estar fadadas a ser sempre apenas objeto de vagas conjecturas. Nós novamente reconhecemos o poder emancipador da teoria da relatividade, que dota o espírito humano de uma liberdade e consciência de suas próprias forças que jamais qualquer outros feito científico foi capaz de oferecer-lhe (SCHLICK, 2016: p. 93).
O capítulo 10 encerra a obra com considerações filosóficas. O ponto central, agora, é a crítica aos conceitos az priori da filosofia de Kant. Para Schlick,
O espaço do físico [e o mesmo se aplica ao tempo físico], por outro lado, que contrapomos àqueles espaços subjetivos designando-os como objetivos, é apenas um e pensado de forma independente de nossas percepções sensíveis (é claro, porém, que não independentemente dos objetos físicos; ao contrário, só é adquirido realidade em conjunção com eles) (…). Os objetos físicos são não intuitivos, o espaço físico não é de forma alguma dado nas percepções, mas é uma construção conceitual (SCHLICK, 2016: p. 97).
O espaço-tempo einsteiniano é uma construção conceitual. A realidade deste conceito só é obtida em conjunto com as percepções, portanto, não é algo isolado. Aqui Schlick está criticando a doutrina kantiana da subjetividade do espaço e do tempo, na qual ambos são formas de nossa intuição. Para Schlick, “É obvio que apenas os espaços e tempos psicológicos nos são dados primitivamente, de modo que temos que nos perguntar como se chega, a partir deles, à construção daquela variedade espaço-tempo objetiva” (SCHLICK, 2016: 99). A variedade é dada por uma coordenação empírica bem determinada; por exemplo, nossas experiências táteis não são totalmente independentes de nossas experiência ópticas (Schlick dá o exemplo de tatear um cubo e ver um cubo, no qual existem coincidências nas percepções de tatear e olhar o formato do cubo), de modo que “o que entra em consideração aqui são experiências de coincidências”(SCHLICK, 2016: 100). Desta maneira, Schlick nega que espaço e tempo ou espaço-tempo sejam categorias a priori, pois não há modo de justificar essas noções como independentes da experiência:
Uma vez, porém, que não se teve sucesso em especificar de uma vez por todas esses axiomas independentes de toda experiência, devemos considerar essa tentativa como fracassada. O apriorismo tenta em vão reclamar para si a teoria da relatividade ou seus resultados; contrariamente, estes recebem imediatamente uma interpretação natural do ponto de vista da filosofia empirista (SCHLICK, 2016: 103).
É a filosofia empírica (o empirismo lógico) que tem primazia na descrição da relação entre o mundo e a construção científica. As categorias apriorísticas de nada servem epistemologicamente para descrever a relação entre mundo e teoria científica. E continua Schlick:
Toda teoria consiste de uma estrutura de conceitos e juízos, e é correta ou verdadeira quando o sistema de juízos designa de forma inequívoca o universo dos fatos. Com efeito, se existe tal coordenação inequívoca entre conceitos e realidade, pode-se, com o auxílio da estrutura de juízos da teoria, derivar o curso dos fenômenos naturais e assim, por exemplo, predizer eventos futuros. Sabemos que a ocorrência de tais predições, ou seja, o acordo entre o que foi calculado e a observação, é a única pedra de toque da verdade de uma teoria (SCHLICK, 2016: 106).
Qualquer teoria que queira ser entendida como científica deve passar pelos testes, isto é, os testes mostram se há acordo entre os conceitos teóricos com a realidade física. Tem que haver acordo entre o que é calculado pelos conceitos teóricos com a realidade do mundo factual. Mas:
Ora, mas é possível descrever os mesmos fatos por meio de diferentes sistemas de juízos, de modo que pode haver diversas teorias às quais o critério de verdade se aplicada mesma maneira e que, todas elas, fazem jus às observações na mesma medida e conduzem às mesmas previsões. São simplesmente sistemas simbólicos diferentes que estão coordenados à mesma realidade objetiva (SHLICK, 2016: 106).
Mas dentre os sistemas simbólicos que tratam diferentemente da realidade objetiva, existem os que são mais simples, isto é, que contêm menos arbitrariedades, menos especulações apriorísticas sem respaldo com o empirismo. Para Schlick, sistemas mais simples e menos arbitrários representam uma economia prática que impede a intromissão de elementos não permitidos pela experiência.
Finalizando, como nosso conhecimento não tem acesso a qual teoria é de fato a verdadeira, temos que nos contentar com o que podemos conhecer. Neste sentido, o critério de simplicidade é um instrumento intelectual que permite eliminarmos conceitos que impedem uma imagem de universo condizente com nossas capacidades de conhecimento:
Nunca será possível demonstrar que só Copérnico tem razão e que Ptolomeu, por outro lado, estava equivocado; não há coerção lógica em virtude da qual devemos opor a teoria da relatividade à do absoluto como a única correta, ou dizer que as determinações métricas euclidianas são absolutamente falas ou absolutamente corretas – mas a única coisa que Se pode sempre mostrar é que, entre essas alternativas, uma concepção é mais simples que a outra e conduz a uma imagem de universo mais coesa e satisfatória (SCHLICK, 2016: 106).
O conhecimento, para Schlick, expresso na obra aqui tratada, é fruto não especificamente da descoberta da teoria concludentemente verdadeira, mas da teoria que as nossas capacidades de conhecimento permitem obter.
É preciso destacar a grande contribuição que a Editora Mundaréu dá para o público, seja acadêmico ou não, interessado em filosofia da ciência com a tradução e publicação dessa importante obra de Schlick. Trata-se da primeira tradução para o português desse trabalho que foi publicado pela primeira vez no final da década de 1910. Acredito que será um texto muito útil tanto como material para aulas como discussões sobre epistemologia e filosofia da ciência.
Notas
2 Um dos principais representantes do positivismo lógico que trata as questões tradicionais da filosofia entendendo-se por esses, principalmente, os problemas metafísicos – como pseudoproblemas é Rudolf Carnap em seu texto “A superação da metafísica traves da analise lógica da linguagem”
Referências
CARNAP, R. A superação da metafísica pela análise lógica da linguagem. Cognitio, 10, 2, p. 293-309, 2009.
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SCHLICK, M. Positivismo e realismo. In Os pensadores, Nova Cultural, São Paulo, 1988.
Claudemir Roque Tossato – Professor adjunto da Universidade Federal de São Paulo. E-mail: c.tossato@unifesp.br
Gilles Deleuze: Credere nel reale – RONCHI (RFMC)
RONCHI, Rocco. Gilles Deleuze: Credere nel reale. Feltrinelli: Milano, 2015. Resenha de: GATTI, Giorgio Majer. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.4, 147-155, n.1, 2016.
Deleuze sempre rejeitou ter seguidores diretos e constituir uma escola. Nenhum pensamento oficial, nenhum círculo estreito, nenhuma diretiva, nenhuma busca de ortodoxia: “somente” um convite a entrar no laboratório filosófico sem qualquer seleção de entrada (algo que o mundo universitário jamais lhe perdoou). Adentrando então no laboratório filosófico dos conceitos – sujando as mãos, e aprendendo assim os truques do ofício – percebe-se que para cada um deles é designada pelo menos uma assinatura; isso, porém, não deve ser entendido com uma espécie de copyright filosófico, algo como um direito autoral: significa antes que cada conceito é ligado a uma experiência histórica concreta, que pode sempre ser recolhida e relançada, uma vez que a assinatura não é índice de uma propriedade, mas de uma passagem, ou de uma inauguração, ambas quase sempre conflituosas. Essa é a potência de Deleuze, bem como a fragilidade na qual ele quis inscrever seu trabalho e sua herança (a qual sentia bem pouco como sua); mas uma herança não menos exposta aos riscos da escolástica do que aquela de tantos filósofos que desejaram fazer escola desde o início de seu percurso. Deleuze é, para nós, um fantasma que nos relembra continuamente a função do humor em filosofia: o que é o Abecedário se não um retorno fantasmático, pensado para ser humoristicamente póstumo?
Esse Deleuze ativo e fantasmático pode ser apreendido no livro que Rocco Ronchi lhe dedicou, inclusive por meio de alguns aspectos insólitos, que se tratará de receber em seu caráter de preensões, para retomar a inspiração whiteheadiana que percorre todo o texto. Encontramo-nos diante de uma alternativa entre a retomada da prática que Deleuze nos legou e a descrição dessa própria prática. Pode-se dizer que é uma tarefa árdua, em parte porque a alternativa, que de início se mostra não pertinente, resulta, no final das contas, compulsória e asfixiante. A tentativa de Ronchi é a de relançar a prática filosófica de Deleuze, de maneira não ortodoxa, digamos, e isto tanto do ponto de vista terminológico quanto histórico-conceitual; resulta daí a separação de núcleos teóricos importantes, os quais são postos em movimento e retrabalhados: já um tal esforço deveria ser forte motivo de interesse para o leitor, e nos impulsionar para além das litanias da (in)fidelidade.
Ora, já nas primeiras linhas do texto Ronchi insere uma afirmação programática que não deve passar despercebida: “O que me propus a fazer foi escrever uma capítulo de história da filosofia contemporânea” (2015: 9). Não se trata, portanto, de uma introdução à filosofia de Deleuze, tampouco uma interpretação em chave hermenêutica; notese que o intento preciso de Ronchi deve ser acompanhado, caso se queira testar o alcance da operação que realiza, e caso se queira averiguar qual tipo de continuidade ele entrevê entre sua própria operação e o modus operandi característico de Deleuze, notório por seu um historiador da filosofia bastante teorético. Nesse sentido, cabe mencionar o importante conjunto de trabalhos fruto da linha de pesquisa que Ronchi delinou nos últimos anos, dentre os quais Bergson, una sintesi (2011), Come fare. Per una resistenza filosofica (2012), isso sem esquecer volumes que organizou, como Durata reale e flusso di coscienza. Lettere e alti scritti 1902-1939 (a correspondência entre Bergson e William James, publicada em 2014), e a tradução comentada de A transcendência do ego, de Sartre (2011). Lido dentro da teia relacional composta por tais trabalhos, o livro de Ronchi pode ter seu alcance específico mas bem compreendido, o qual quer justamente fugir da pretensão de fornecer o retrato exclusivo de um filósofo a partir de uma suposta identidade histórica cristalizada.
Dentro dessa perspectiva, toda a série de pontos delineados por Ronchi ao longo do livro faz emergir diversos aspectos problemáticos da filosofia deleuzeana. O tema da história da filosofia é apresentado em sua ligação essencial com o objeto de estudo: “De fato, foi Deleuze – mas não apenas ele – que nos ensinou que a história da filosofia não é uma narrativa linear. Não pode sê-lo, porque de outra forma nada restaria da filosofia.” (2015: 9) Esta afirmação coloca em relevo a tentativa de alcançar aquela indeterminação entre a voz de quem escreve e a do filósofo que é tomado como objeto de estudo, algo que Deleuze definira, na esteira de Bakhtin e Pasolini, discurso indireto livre. A emergência desse tema, longe de ser somente um modo de dar continuidade a uma herança, é também o índice de um conflito, nunca efetivamente abafado, entre filósofos teoréticos e historiadores da filosofia, ou, antes, entre filosofia e história da filosofia.
Desde o início, Ronchi desvela – sem se desviar do foco da coleção à qual o livro pertence (Eredi), dirigida pelo psicanalista Massimo Recalcati – o intento preciso de não se defrontar com a filosofia de Deleuze tomada como um corpo morto, ou como una experiência já conclusa, que se trataria então de reconstruir retrospectivamente “com filologia acríbia”. Este é o sentido mais geral que Ronchi atribui à própria prática filosófica, acerca da qual, alguns anos antes, mencionava a “hipótese de uma história teorética da filosofia, que segue percursos diversos daqueles da historiografia filosófica”, demarcando ainda o contraste de fundo com as abordagens historiográficas, mais especificamente historicistas: a história historiográfica da filosofia permaneceria alheia ao ato filosófico, restringindo-se ao fato. Tal premissa orienta todo o texto de Ronchi sobre Deleuze, que além de ter o não desprezível valor de estar explicitada, conduz seu autor por um terreno cheio de riscos, colocando em relevo uma coragem teórica. Um mérito preliminar da perspectiva adotada, para além do grau de condivisão que ela possa suscitar, está na ideia de abordar a filosofia de Deleuze em suas características peculiares, isto é, buscando atravessar os estratos interpretativos de gêneros diversos que ainda ofuscam a recepção deste filósofo (Derrida e Foucault tiveram maior sorte nesse sentido).
Deleuze é então apresentado como o filósofo que, mais do que qualquer outro na segunda metade do século XX, acreditou, ainda que ingenuamente, na possibilidade da filosofia. A partir daí, não é apenas a historiografia filosófica a ser colocada em discussão; Ronchi recorre a uma generalização de cuja insuficiência ele é plenamente consciente, mas a qual utiliza declaradamente com finalidade introdutória, qual seja, a que reconhece em duas linhagens de pensamento, que remontam respectivamente a Heidegger e a Wittgenstein, dois programas de pesquisa filosófica que, mesmo em sua diversidade, encontram-se comprometidos com a temática da descontinuação do filosófico. Ora, o autor coloca-se logo em guarda contra críticas: não se trata de contrapor Deleuze a Heidegger ou Wittgenstein de modo ingênuo ou desavisado, mas de delinear, dentro do amplo espectro dos herdeiros de cada um deles, a descontinuação do especulativo em filosofia (tomemos como referência, por exemplo, o ensaio heideggeriano O fim da filosofia e a tarefa do pensamento, ou a agenda filosófica do linguistic turn, que em grande medida via na segunda filosofia wittgensteiniana seu momento de fundação, conquanto injustificada seja reduzi-la a tal corrente). Note-se também que essa hipótese de Ronchi parece muito próxima da que Quentin Meillassoux defende no seu livro Após a finitude, ao que voltaremos mais abaixo.
Mas como Deleuze teria acreditado na possibilidade da filosofia? Antes de tudo construindo uma ideia diversa de história da filosofia (uma ideia que pode ser definida como problemática – como enfatiza Ronchi, retomando algumas belas e negligenciadas páginas de Diferença e repetição – ou como menor); uma ideia que coloca em relevo justamente a própria possibilidade da filosofia, a partir da influência particulamente decisiva do ensinamento de Martial Gueroult, o “monumental” historiador da filosofia que tanto insistiu na necessária identificação do filosófico com sua instauração. Nessa passagem, Ronchi apreende com lucidez um importante e ainda pouco conhecido eixo do pensamento deleuzeano, o qual, no entanto, ele tende a propor sem ressaltar as diferenças decisivas que separam o professor do aluno, e que podem ser sintetizadas incialmente pelo contraste entre a absoluta recusa de qualquer impulso “criativo” do historiador da filosofia, por um lado, e o desarranjo sistemático dessa recusa, por outro — uma diferença em cuja gênese certamente desempenhou um papel importante Ferdinand Alquié, com sua oposição teórica quase especular a Gueroult.
Deleuze retoma então a concepção estruturalista de Gueroult, reconhecendo seu caráter pioneirístico com respeito ao estruturalismo desenvolvido a partir da matriz linguística, mas não mantém a já menciona “censura” com relação à zona de indeterminação que acomuna o histórico e seu objeto, zona na qual Deleuze encontra a possibilidade de construir e retomar conceitos, no contexto de um movimento mais geral de repensar a temporalidade. Se o “filosófico” deve ser instaurado, conforme a dianoemática gueroultiana, a solução de Deleuze ao problema é justamente o discurso indireto livre, como Ronchi destaca com precisão. Deve-se, porém, levar em conta o fato de que a filosofia da história da filosofia de Gueroult, em seus aspectos mais fundamentais2 , abre-se à contingência pela apropriação deleuzeana, sobretudo a partir do final dos anos 1960. Neste sentido parece que Ronchi reconhece que contingência possa ser exclusivamente uma forma do limite e da negação em sentido antropológico, e não o lugar da virtualidade de todo devir. Mas não foi justamente Deleuze, em um cerrado confronto com a genealogia de Nietzsche, bem como com a de Foucault, (e se deveria também acrescentar aí a filosofia de Canguilhem) a conceber uma relação ativa, e não de mútua exclusão, entre história e vida criativa? O devir na contingência não é justamente o resultado dessa relação? E o próprio sentido da operação deleuzeana não é justamente aquele de problematizar a coexistência entre filosofia teorética e história da filosofia buscando na contingência algo que pode “fugir” à história? Nos escritos de Deleuze parece não haver efetiva contraposição entre história e devir, tampouco uma relação de pura exterioridade entre eles; antes, encontramos precisamente a remissão à relação entre vida criadora e história, isto é, a relação entre o evento que irrompe, perfurando a continuidade linear do tempo, e a temporalidade reificada do atual. Se é verdade que Deleuze tende a conotar negativamente a história, é igualmente verdadeiro que tal postura não corresponde a uma interrupção da dimensão histórica da filosofia, mas a uma ideia da história como “marcador temporal do Poder” (DELEUZE; BENE, 2002: 95), além de corresponder a uma crítica da história entendida como interioridade no conceito (é por isso que Hegel e Heidegger apareciam como historicistas a seus olhos). Ronchi apreende perfeitamente o aspecto produtivo do pensamento de Deleuze enquanto historiador da filosofia, por exemplo ao afirmar que “o historiador não narra a filosofia mas reativa a cada vez sua dimensão problemática e agonística” (2015: 11), muito embora pareça insistir em uma espécie de separação estrita, em nossa opinião não rastreável na filosofia deleuzeana, entre evento (natureza naturante) e contingência (natureza naturada), na qual não é nada simples abarcar o devir transcendental do empirismo. A crítica de Deleuze é entendida por Ronchi como uma prática que abole a si mesma; há uma espécie de identificação problemática entre crítica e finitude (e, portanto, contingência) que deixa algumas perguntas importantes em aberto. Deleuze, seguindo Nietzsche, havia demonstrado como Kant não estivera em condições de levar a crítica até as últimas consequências, algo que certamente leva a um desarranjo radical do nexo entre a crítica e a esfera do transcendental; mas uma tal crítica da crítica equivale a uma espécie de autodemolição operada pela própria crítica? Ronchi parece dar a entender que sim (e nisto talvez esteja mais próximo de Badiou que de Deleuze), enquanto nos parece que, ao radicalizar e revirar a crítica kantiana, Deleuze mostre uma passagem de sentido obrigatório em direção a um princípio de razão contingente, a qual desemboca em uma crítica entendida como tensão imanente, filha monstruosa e indesejada do kantismo (de onde se pode dar sentido ao grande e inequívoco interesse de Deleuze pelos póskantianos, em particular Salomon Maimon).
A referência a Giovanni Gentile que Ronchi propõe, a confirmar a leitura que apresentamos, é audaz e traz consigo o problema da tematização de uma história menor da filosofia, para além da aparente fragilidade da associação entre “o ato de pensar engendrado em sua genitalidade” (DELEUZE, 1997: 217)3 e o conceito gentiliano de ato: seguindo-a no plano propriamente teórico, não parece ponto pacífico que a teoria do ato puro de Gentile possa coexistir alinhado com o arcabouço deleuzeano, algo que Ronchi mesmo explicita ao escrever que “não é preciso dotar esse pensamento de um ‘Si’, como fará Gentile com seu ‘Eu’.” (2015: 11) Contudo, se Ronchi bem sabe que se expõe a uma avalanche de críticas com tal aproximação – as quais, cremos, necessitariam de um aprofundamento que foge ao escopo desta resenha4 –, por outro lado, aquilo que ele destaca do gesto de Deleuze permanece como algo central: a linha menor do pensamento filosófico não se dá o objetivo de narrar de maneira irenista a história da filosofia, trata-se sim de concebê-la como um campo de batalhas “do qual não se conhece antecipadamente o desfecho” (2015: 10), como também acreditava Althusser. É sobre essa base que Ronchi trabalha, buscando delinear as feições de um Deleuze filósofo do absoluto, no sentido etimológico de “ab-solto de seus pressupostos empíricos, da doxa e, em última análise, do preliminar referimento à experiência humana assumida como a única experiência possível” (2015: 10). Orbitamos ainda o supracitado ensaio de Meillassoux, texto que suscitou muitos debates internacionalmente, e que trouxe ao foco da atenção o problema do correlacionismo, tratado por Ronchi como passagem útil para a crítica da finitude e da contingência em filosofia, isto é, para a crítica da exceção humana e da relação entre o humano e o mundo. É a partir dessa diretriz que o livro se divide em cinco sessões: Ética, Método, Ontologia, Cinema, Psicanálise.
A centralidade do maio de ’68 aparece desde o início, colocado como evento paradigmático da ruptura com a representação e com o fundamento transcendente da experiência. A relação entre crença e realidade, presente no cerne da filosofia de Deleuze já desde Empirismo e subjetividade, é colocada na perspectiva da imanência; a representação seria uma normalização e uma despontencialização da experiência, uma sua redução a termo relativo”, escudo contra toda absolutização imanente da própria experiência: “A experiência como tal, para a metafísica, não pode ser absolutizada, o real não pode bastar, o devir, para poder ser possível, precisa de uma sustentação no eterno, no imóvel, no transcendente, enfim, na Lei” (2015: 14). Crer no real significa, para Ronchi, não renunciar à absolutização da experiência, e consequentemente à natureza especulativa da filosofia. A experiência imanente vai lado a lado com a univocidade do real, concebida por Deleuze como a igualdade ontológica de todos os entes, uma igualdade que tem o caráter da infinitude, e que Ronchi aproxima recorrentemente ao neoplatonismo, em particular àquele do Renascimento, de autores como Giordano Bruno e Nicolau de Cusa. Ora, Deleuze sempre estabeleceu precisos referenciais em sua história da univocidade do ser, e portanto da imanência: enquanto em Diferença e repetição o precursor designado era Duns Scoto, em Espinosa e o problema da expressão Deleuze mostrava o alcance histórico-filosófico do neoplatonismo internamente a uma pequena história da imanência, amplamente ignorada por muitos estudiosos em seu caráter complementar às teses desenvolvidas em Diferença e repetição. Em parte, esse interesse pelo neoplatonismo explica-se até mesmo em aspectos bastante concretos: o diretor da grand thèse de Deleuze foi Maurice de Gandillac, autor de La philosophie de Nicolas de Cues, estudioso da tradição neoplatônica cristã, que escreveu numerosos ensaios sobre esses temas. Também Jean Wahl, outro professor que teve grande importância para Deleuze, já havia falado difusamente sobre a relação entre transcendência e imanência na segunda parte de seu Traité de métaphysique.
Dessa forma, o Deleuze que Ronchi retrata é um filósofo da experiência pura que levou a sério as análises foucaultianas sobre filosofia moderna como antropologia transcendental: a finitude como fundamento da compreensão do ser, o homem como ente que goza de um primado ontológico. Como Ronchi justificadamente destaca, o movimento crítico de Foucault certamente estava voltado para a fenomenologia, mesmo em sua versão heideggeriana. Deleuze condividia com Foucualt essa orientação, e havia sido desde o início mais “livre” na construção de uma linha de fuga5 ; a sua primeira e já significativa tomada de posição remonta à resenha de Logique e existence, de Jean Hyppolite, livro fundamental para toda uma geração de filósofos franceses, no qual o autor “implantava” o pensamento ontológico do Heidegger da Carta sobre o humanismo na lógica hegeliana, através de um confronto não secundário com Bergson. Deste célebre livro de Hyppolite, Deleuze criticava fundamentalmente o resíduo antropológico e a concepção dialética da diferença. A propósito desse importante tema, Ronchi fala do dogma antropológico dos modernos, e elenca as teses constitutivas dessa antropologia da qual Deleuze se distanciará: 1) a finitude, enquanto limite negativo estrutural; 2) o par desejo-falta, enquanto imposição da Lei, a qual transcende a experiência; 3) a semelhança com o Deus dos monoteísmos, na “miserável transcendência do morrer” (2015: 25), enquanto imitação da transcendência do Princípio; 4) o débito, na medida em que o homem recebe o ser “de um Outro que o possui, ao contrário, de modo eminente” (2015: 25). Junto com Guattari, Deleuze teria buscado uma via de escape às armadilhas dessa antropologia analógica, construindo uma filosofia da experiência pura que, para Ronchi, é uma clara aproximação às filosofias da natureza, em particular à filosofia do processo de Whitehead6 . O anti-Édipo, através de sua crítica radical da negação e do uso negativo da síntese disjuntiva, não faria outra coisa que dissolver a antropologia analógica ainda presente na psicanálise, assim como Diferença e repetição e Lógica do sentido faziam o mesmo com respeito à tradição filosófica dominante. Assim, Ronchi sustenta que aquele de Deleuze é “o programa de uma nova filosofia da natureza que finalmente se desvincula do homem como unidade de medida, isto é, que não parte daquele ente para o qual se dá apenas negação” (2015: 33). Ora, percebe-se como não estava tanto em jogo, naqueles textos publicados entre os anos 1960 e 1970, uma suposta recaída no fundo indiferenciado para o qual Hegel apontava o dedo (gesto que Žižek procura atualizar), o ponto de apoio imprescindível para todos os que renegam ou renegaram o maio de 1968. Porém, pode-se perguntar, ao emancipar-se do limite humano, da falta e de transcendência da Lei, o que restará se não a noite escura da indistinção? A resposta que Deleuze e Guattari buscaram deixar clara era: a experiência pura é a experiência do real que escapa à alternativa entre simbólico e imaginário, experiência esta que viria “antes da relação sujeitoobjeto, antes da representação, antes da intencionalidade” (2015: 36). É aqui que a filosofia da natureza de Deleuze se hibrida com o último Lacan, segundo Ronchi: o Real lacaniano não possui uma consciência como suporte, e não possui qualquer dogma antropológico que o funde. Curiosamente, estamos justamente diante do que William James defendia nos seus Ensaios de empirismo radical a propósito da experiência pura. Eis aí, enfim, o peculiar alinhamento no qual Ronchi coloca Deleuze, caracterizando-o como o filósofo que pensou o real “absolto da relação” (2015: 37), reeditando uma filosofia do absoluto.
Há um mérito no esforço de Ronchi em trazer à tona os diversos elos de possível conjunção do pensamento de Deleuze, algo particularmente profícuo no capítulo dedicado ao cinema. A função estratégica do texto sartreano A transcendência do ego é um bom exemplo, uma vez que o mesmo inadvertidamente descortinava a hipótese de um campo transcendental impessoal, constituindo uma antecipação de algo caro a Deleuze: “Eis que se desenha sobre o fundo dessa consciência desprovida de um eu o vulto atordoado e estúpido da natureza naturante!” (2015: 104) Mas aqui também Ronchi mostra com habilidade um outro lado da construção deleuzeana: destituindo os últimos resíduos de intencionalidade da consciência fenomenológica, Deleuze serviu-se das pesquisas de uma outra figura importante, a saber Raymond Ruyer. Desse pouco conhecido filósofo da biologia, Deleuze retoma sobretudo a ideia, definida por Ronchi como whiteheadiana, de que “toda entidade atual – o que equivale a dizer todo ser realmente existente – é um processo capaz de autossobrevoar-se a uma velocidade infinita” (2015: 105). Trata-se sempre da imanência, de uma consciência desprovida de ego e que acomuna todos os entes, ou melhor, de uma consciência que não é de algo, como em Husserl, mas que é algo, tal como em Bergson. Eis que emerge novamente o Deleuze filósofo da imagem em si e da reviravolta do transcendental, kantiano e, em seguida, fenomenológico; um filósofo para o qual, no cinema, tem-se “um conjunto de imagens que existem em si mesmas, um imenso espetáculo sem espectador, uma memória sem lembrança ou uma consciência sem testemunho” (2015: 110).
Ronchi está particularmente interessado, em sua leitura de Deleuze, à natureza em seu aspecto naturante, a qual, como já mencionado, ele prefere aproximar à categoria whiteheadiana de processo, em vez daquela, considerada ainda excessivamente metafísica, de devir. Deslocando o eixo do finito ao infinito, Deleuze teria não só declarado o seu profundo espinosismo, teria mostrado que também para a filosofia poderia valer o que viria a ser reconhecido como real pela ciência (tal como afirmariam mais tarde Prigogine e Stengers )7: o ser humano não goza mais de privilégios ontológicos, não é mais o fundamento do pensar. Se é verdade, enfim, que a obra de Deleuze não foi uma filosofia do limite e sim do evento, anti-historicista, pioneira de um pensamento inumano, não é menos verdade que a contingência e a crítica assumem aí um papel central, conquanto sejam concebidas em um modo próprio, a contrapelo de como certa tradição as pensou. Caso contrário não se consegue apreender a força de uma afirmação como esta, escrita junto com Guattari: “[…] há, de fato, uma razão da filosofia, mas é uma razão sintética, e contingente – um encontro, uma conjunção. Ela não é insuficiente por si mesma, mas contingente em si mesma” (DELEUZE; GUATTARI, 1996: 86)8 . Aqui fica bem caracterizado o ponto que nos separa da leitura de Ronchi, embora o assunto exija ulteriores desenvolvimentos. O empirismo transcendental é o nome que Deleuze escolhe para liberar-se da dimensão ordinária da doxa; é a potência dos corpos e de suas composições, o desfazer-se do organismos (o corpo sem órgãos). Outro ponto crítico do livro parece ser, em consonância com as leituras italianas, a escassa consideração do papel desempenhado pela figura de Félix Guattari. Pois, em geral, os estudiosos tendem a distinguir em facetas reconhecíveis o filósofo (Deleuze) e o teórico inclassificável (Guattari, misto de psicanalista, ativista político, teórico, etc), quase como quem quer evitar o confronto direto com esse estranho par, e com as complexas perspectivas filosóficas aí inauguradas (neste ponto a influência de Žižek parece totalmente negativa). Enfim, a ideia de um Deleuze filósofo da natureza é acompanhada pela ideia de um Deleuze “reformista”9 , ambas convergindo de maneira bastante conciliadora com um recorte do último Lacan — mais um problema levantado por Ronchi e digno de atenção particular, tendo em vista as relações entre filosofia e psicanálise. Não à toa, mesmo aqui se reencontra a problemática dimensão política, posto que o livro passa ao largo do confronto com Marx, através Althusser, presente tanto em várias das sessões de O anti-Édipo, quanto em muitos outros textos. Nesse sentido a filosofia da natureza circunscrita por Ronchi parece sustentar-se toda sobre uma ideia de materialismo especulativo que ratifica o fim da crítica e que parece distanciar Deleuze e Guattari e alguns de seus melhores e mais revolucionários matizes filosóficos. Ainda assim, a perspectiva delineada por Ronchi oferece diversos elementos para uma discussão ampliada, com o intento preciso de extirpar de uma certa ingenuidade compartilhada por diversos leitores “desejantes” e pouco pacientes, que são atraídos mais pelos jargões que pelos conceitos.
Notas
1 giorgiomajer.gatti@gmail.com
2 a estrutura das primeiras monografias de deleuze deve muito à arquitetura dos sistemas filosóficos que a obra de gueroult nos legou.
3 em português, cf: diferença e repetição. 2a. ed. são paulo: graal, 2006, p. 162.
4 cf., pelo menos, r. ronchi, n=1. l’empirismo integrale di gentile e bergson, https:// www.academia.edu/12315367/n_1._lempirismo_integrale_di_gentile_e_bergson.
5 “o pensamento de deleuze é profundamente pluralista. ele fez seus estudos ao mesmo tempo que eu, e 5 ele preparava uma tese sobre hume. eu fazia sobre hegel. eu estava do outro lado pois, nessa época, eu era comunista, enquanto ele já era pluralista. e acho que isso sempre o ajudou. seu tema fundamental: como se pode fazer uma filosofia que seja uma filosofia não-humanista, não militar, uma filosofia do plural, uma filosofia da diferença, uma filosofia do empírico, no sentido mais ou menos metafísico da palavra.” in m. foucault, dits et écrits, n. 139, maggio 1973, ora in g. deleuze, che cos’è lo strutturalismo?, se, milano 2004: 71-72. em português, cf: m. foucault, a verdade e as formas jurídicas. rio de janeiro: nau, 2002: 132.
6 a centralidade de whitehead é um outro aspecto pouco enfrentado pelos estudiosos de deleuze, tema 6 pelo qual ronchi tem uma sensibilidade particular, ao menos em parte decorrente da influência de carlo sini. a presença de whitehead na filosofia de deleuze tende a ser bastante difusa, mas poderíamos destacar aqui, em particular, o capítulo vi de a dobra, leibniz e o barroco.
7 cf. prigogine y., stengers i., la nouvelle alliance. métamorphose de la science, gallimard, paris 1981; tr. it. di p. d. napolitani, la nuova alleanza. metamorfosi della scienza, einaudi, torino 1999.
8 em português cf: o que é a filosofia? são paulo: editora 34, p. 122.
9 se é verdade que o imediatismo político capta os humores adolescentes (embora se deva lembrar que 9 isso jamais foi concretamente proposto pelos dois autores), o “reformismo”, com a sua específica história e conotação política, não nos parece ser conciliável com a perspectiva filosófica daqueles que elaboraram o conceito de “máquina de guerra”, para dar apenas um esemplo. o aspecto político de ruptura e subversão inscrito na filosofia de deleuze e guattari aparece-nos enfraquecido nessa leitura de ronchi.
Referências
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Giorgio Majer Gatti – Dottore magistrale in Filosofia Università di Milano 1
Après Bergson: portrait de groupe avec philosophe – BIANCO (RFMC)
BIANCO, Giuseppe. Après Bergson: portrait de groupe avec philosophe. Paris: PUF, 2015. Resenha de: SOUZA, Herivelto P. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.4, p. 141-146, n.1, 2016.
- Como se escreve a história (da filosofia)?
Em Après Bergson: portrait de groupe avec philosophe, o pesquisador Giuseppe Bianco apresenta uma versão reduzida e modificada de seu trabalho de doutorado, no qual a recepção da obra de Henri Bergson no pensamento francês contemporâneo — com especial ênfase à “prosa de ideias”, ou seja, ao âmbito filosófico — é exposta de maneira minuciosa e bem documentada, destrinçando e alinhavando os mais diversos fatores que compõem aquilo que se pode chamar de “a herança intelectual” dessa que se tornou uma figura maior do cânone filosófico. O assunto convoca logo de saída questões metodológicas que podem perturbar adeptos de uma historiografia da filosofia mais, digamos, ortodoxa (à la Gueroult ou Goldschmidt), uma vez que experiências intelectuais que deram ensejo a importantes posicionamentos filosóficos são retratados não em sua coerência sistêmica autorreferenciada, mas em meio a teias de relações reconstruídas e analisadas a partir de uma abordagem que retoma instrumentos da história das ideias e da sociologia do conhecimento1 . Uma das conquistas mais evidentes desse tipo de postura é a de se retirar o discurso filosófico de um suposto lugar aquém (primeiro, mais fundamental) ou além (último, mais acabado) de outras formas discursivas, de modo tal que conceitos possam mostrar a amplitude de sua eficácia histórica e teórica. Nesse sentido, é feliz a escolha de submeter o caso Bergson a esse tipo de escrutínio, já que se trata de um autor que mobilizou os mais diversos tipos de reação; e embora possa-se perguntar com qual grande filosofia o mesmo não ocorreu, fato é que o século XX francês foi palco de uma profusão teórica muito significativa, no qual comentário de texto e reflexão original não se apartaram, tendo a obra bergsoniana constituído aí um referencial incontornável. Mas para compreender adequadamente tal cenário, noções como as de autor, obra ou escola não podem não ser problematizadas, pois se não se leva em conta os modos pelos quais são remanejadas em cada caso, perde-se de vista boa parte das nuançadas vicissitudes pelas quais uma experiência intelectual pode mostrar seu impacto, sem que aí esteja pressuposto qualquer resquício de teleologia, o que tornaria inevitável a leitura de que a tal “glória” de Bergson estivera já prenunciada por tal ou qual fator que se queira destacar.
Dessa forma, o estudo de Bianco distanciase também de um tipo de reconstrução que se restringe a interlocuções privilegiadas, aquelas nas quais se tenta mostrar como a influência mais decisiva de um determinado autor é um determinado outro autor. Isso deverá causar uma certa estranheza a quem possa estar muito habituado a algo que se encontra de maneira recorrente em trabalhos de história da filosofia; logo nos primeiros parágrafos do livro explicita-se essa escolha metodológica:
A despeito da problematização de noções como as de autor, obra e de continuum biográfico, introduzida em história intelectual por Foucault, Barthes e Bourdieu, a ideia desacreditada de que a produção filosófica seja redutível a uma performance solitária vinculável a uma subjetividade criadora e cujo objetivo é o de construir uma obra ou um sistema permanece tenaz quando se chega à metodologia realmente utilizada pelos historiadores da filosofia. Nestas páginas, os personagens se comportam diferentemente: eles pensam e falam sempre, para retomar a expressão de Judith Schlanger, “com a boca cheia”. Cada um deles fala em seu nome, mas com a boca cheia das noções, dos conceitos, das torções, das expressões, dos tiques de linguagem, das posturas de outros. Tenta-se assim seguir um programa forte que visa fazer desaparecer, do ponto de vista metodológico, a distinção entre personagens principais e personagens secundários, entre os grandes e os pequenos, entre os indivíduos e os “dejetos’”, para retomar a terminologia de Böll. (BIANCO, 2015: 4)
Qualquer leitor do livro perceberá com qual seriedade o compromisso com tal programa metodológico é seguido, e a que ponto se adensa conceitualmente a imagem do campo intelectual no qual o bergsonismo se inscreve, ou melhor, o campo que o mesmo ajudar a compor, de maneira decisiva.
Temos, portanto, uma história da filosofia cuja temporalidade não é linear, marcada pela regularidade de uma sucessão (de autores, doutrinas, etc.), mas plural, com diferentes escalas ou ritmos, uma temporalidade na qual o surgimento e consolidação de “-ismos” ou de “modas” podem ser postos em confronto com “a história dos programas, das instituições e das disciplinas” (2015: 7). O que muda? Para citar apenas um emblemático exemplo, a opinião um tanto aceita e repetida de que Bergson, até a publicação do livro de Deleuze de 1966, seria um “cachorro morto”, cuja obra sequer era lida ou vista como relevante, pode ser vigorosamente problematizada, se não rechaçada, mostrando-se 1) como antes mesmo de toda a celebração do centenário, em 1959, desde os anos 1940 aliás, obras como A evolução criadora e Matéria e memória já figuravam no programa da agrégation, e que, para professores “como MerleauPonty e Jean Hyppolite, os cursos de agrégation representam uma oportunidade para colocar Bergson em relação a outras correntes filosóficas contemporâneas” (2015: 258); 2) mostrando-se também que, mesmo durante os anos da hegemonia estruturalista, é possível encontrar menções a conceitos bergsonianos no interior de debates centrais. Ora, o livro oferece suficientes elementos de que seria muito mais justo falar em uma espécie de presença subterrânea de Bergson do que em sua ausência ou falta de relevância, pois fica claro que os conceitos bergsonianos foram sempre bastante frequentados e, é claro, muito criticados. Mas alguém ainda acredita que o impacto de uma experiência intelectual, ou a relevância de uma herança conceitual, efetiva-se apenas pela via do elogio? A frequentação de textos filosóficos fornece sem dificuldades exemplos de como, às vezes, quem se pretendeu o mais fiel seguidor tenha acabado por constituir, por assim dizer, um grande deturpador da obra de seu mestre, não porque haja um lastro que possa assegurar uma interpretação unívoca de um texto, mas justamente por causa da ausência da mesma.
- Uma aufhebung histórica do bergsonismo?
A reconstrução que o livro apresenta é escandida em três tempos, que segundo o autor correspondem, grosso modo, a três “momentos” da filosofia francesa contemporânea: o do “espírito”, o da “existência” e o da “estrutura”. Contudo, a divisão tripartite do livro não representa uma separação da recepção da obra bergsoniana em fases estanques, ou mesmo progressivas, na medida em que permite acompanhar as diferentes estratégias de apropriação dos diversos aspectos do pensamento bergsoniano. Nessa direção, o livro de Bianco é precioso, pois aspectos inauditos da centralidade do bergsonismo são trazidos à tona, não desacompanhados das referências a aspectos já há muito explorados, com diferentes níveis de aprofundamento: as críticas de Alain e alguns de seus principais seguidores – com destaque para o imbróglio que envolveu a participação francesa na primeira grande guerra -, bem como aquelas dos neokantianos franceses; as dívidas e rupturas dos existencialistas e fenomenólogos franceses; o estruturalismo e o papel de suas teses na rejeição do bergsonismo como uma espécie de psicologismo; a recepção por parte de um pensamento filosófico cristão, bem como a criação da “Sociedade dos amigos de Bergson”; a atenção que as assim chamadas “ciências psi” (psiquiatria, psicologia, psicanálise) deram à guinada introspectiva presente no pensamento bergsoniano; a importância que teve para vanguardas artísticas e literárias; a reviravolta desencadeada pela retomada deleuzeana da filosofia de Bergson. Como se pode vislumbrar, pouco escapa ao olhar atento de Bianco, embora, como já indicado, ele dedique fôlegos diferenciados a cada um desses diversos pontos.
A primeira parte do livro persegue as vias pelas quais se constitui, no cenário filosófico francês dos dois primeiros decênios do século XX, uma polarização entre “intelecção” e “intuição”, ou seja, uma tensão opositiva entre o modo pelo qual os neokantianos retomam o trabalho de fundamentação das condições de possibilidade do conhecimento racional e os efeitos da proposição bergsoniana de um método para a metafísica centrado no acesso intuitivo ao imediato. Em jogo aí está a ressonância das ideias de Bergson e os modos pelos quais elas logo geraram reações críticas muito severas. Entre as primeiras que se configuraram, e que tiveram seu impacto no modo como Bergson foi lido no decorrer do século, merecem destaque da parte de Bianco: 1) o ensino de Alain no Liceu Henri-IV, ao qual estiveram vinculados, entre outros, Canguilhem, Hypollite e Simone Weil; 2) duas frontes dominantes na Sorbonne à época: o neokantismo, proeminentemente impulsionado por Léon Brunschvicg, e a escola durkheimiana capitaneada por Célestin Bouglé; e 3) a tomada de partido em favor da teoria da relatividade por ocasião do confronto da metafísica de Bergson com a física de Einstein, exemplarmente manifesta na obra de Bachelard. O livro defende que essas “três barreiras antibergsonianas […] se combinam e influenciam a elaboração de textos na fronteira entre filosofia e prosa de ideias em um momento no qual a filosofia universitária não oferece perspectiva de carreira aos novos ingressantes.” (2015: 108) Com efeito, trata-se de um conjunto de perspectivas críticas a partir das quais a obra bergsoniana se viu continuamente sob ataque, já que a consideração de que o método da intuição é insustentável — uma vez que acaba por deixar o pensamento sem uma efetiva ancoragem no objeto — tem incidência não apenas epistemológica (impossibilidade de dar conta das condições de possibilidade da objetividade dos juízos), como também ético-política (sem ponto de referência, a razão torna-se refém das paixões, enreda-se em um inaceitável relativismo). Levado a seu ponto extremo, esse psicologismo ressaltado como inerente à intuição redundaria nitidamente em solipsismo: o pensamento bergsoniano padeceria então de todas as desastrosas consequências daí oriundas.
Ao longo de páginas muito estimulantes, a segunda parte do livro aborda a face que o bergsonismo adquire no panorama intelectual do entre-guerras, período decisivo no qual eclode a filosofia existencialista, consolida-se a influência da fenomenologia, sem perder de vista como se movem algumas peças importantes do tabuleiro, como Canguilhem, Lacan ou Jankélévitch. Mas tudo isso aparece precedido pela exploração mais detida dos movimentos argumentativos contidos na peculiar obra de um autor que representou um verdadeiro ponto de referência intelectual: trata-se de Georges Politzer. E isso não apenas por que crítica epistemológica e crítica política encontram aí uma espécie de sintonia perfeita, a ponto de se tornarem inseparáveis, mas sobretudo pela potência conceitual resultante desse embate crítico, com a proposta de que uma psicologia epistemologicamente consistente deveria estar assentada na noção de concreto. Este é um ponto que exige muito cuidado, pois quem conhece a obra de Bergson sabe que a noção de concreto é mobilizada para criticar o modus operandi abstracionista da velha metafísica. Politzer faz tal crítica voltar-se contra o próprio Bergson, e Bianco faz questão de apresentrar detalhadamente o que está em jogo: o cerne da crítica politzeriana reside na leitura de que tudo o que a filosofia da duração consegue fazer é dinamizar um pouco a fixidez das hipóstases da psicologia clássica, uma vez que generalidades sobre o fluxo do tempo em sua dimensão qualitativa não são suficientes para desvencilhar-se daquele realismo criticado. Tomar o qualitativo como princípio de individuação, tendo o fluxo dos dados imediatos do vivido como solo do sentido, seria relegar a experiência concreta do indivíduo no mundo a uma mera espécie de registro introspectivo. Afinal, para Politzer, a clivagem entre prático e especulativo, entre inteligência e intuição, entre espaço e duração dá-se ainda dentro do horizonte realista da metafísica, de modo que a adesão bergsoniana a um dos lados da separação o mantém rigorosamente apartado do concreto.
Ora, a leitura politzeriana será fortemente empregada por diversos autores que, mesmo antes do impacto do estruturalismo na filosofia e nas ciências humanas, criticarão incisivamente Bergson por todo seu descrédito com respeito às capacidades da linguagem em dar conta do objeto do pensamento. Ela será ainda uma ferramenta preciosa nas mãos de autores como Lacan, Foucault e Althusser, quando cada um, a seu modo, posicionar-se contra uma tendência ecletista na psicologia. Para Lacan, por exemplo, será ocasião de responder a uma série de críticas recebidas, as quais ele rotula, em 1935, como “intuicionismo bergsoniano”, colocando em relevo as consequências irracionalistas do mesmo. Por outro lado, o livro acompanha a série de mediações teóricas que levam a uma virada na avaliação da filosofia de Bergson por Canguilhem, o qual, enquanto jovem alainista, seguia de perto as críticas de seu mestre, mas que retorna mais tarde ao textos bergsonianos, encontrando neles elementos importantes para pensar as relações entre técnica e ciência sobre o pano de fundo de uma consequente reflexão filosófica sobre o vivente.
A leitura canguilhemiana não será desprovida de consequências para as formas pelas quais Bergson será lido em seguida. Ao lado daquela empreendida por autores como Jean Hyppolite, Raymond Aron ou Paul Ricœur, os quais tinham como uma questão central a história, a terceira parte mostra como a noção de vida é importante para a crítica do humanismo como resquício de uma metafísica a ser abandonada, problema que o pensamento francês articula a partir do influente texto heideggeriano de 1947.
Mas eis que a trama de reconstituição teórica da herança intelecutal bergsoniana enfim trata da “criança monstruosa” resultante da leitura à contrapelo realizada por Gilles Deleuze. Aqui, temos ocasião não apenas de ponderar elementos do percurso formativo que permitiram a configuração desse modo muito peculiar de se debruçar sobre a história da filosofia, como também – e, com isso, alcançamos talvez o ponto alto do livro – somos colocados em presença de uma articulação teórica decisiva a partir da qual da noção de diferença advirá uma espécie de centro de referência para a vindoura constelação conceitual deleuzeana, que se estabiliza, por assim dizer, com Diferença e Repetição. Destaque-se a atenção dedicada a escavar a gênese desse problema a partir de dois textos aparentemente menores, mas que ganham uma importância inaudita quando inseridos no desenvolvimento da produção teórica deleuzeana: a resenha de um livro de Hyppolite sobre Hegel e o artigo sobre a concepção de diferença em Bergson. Se Deleuze elogia o esforço interpretativo de Hyppolite em desvincular o sistema hegeliano de uma impostação antropológica, em favor da ontologia como dimensão mais fundamental, seu confronto com o bergsonismo o fará ressaltar aí essa passagem como já algo acabado, isto é, como uma filosofia cujos conceitos nos permitem pensar a diferença em si mesma, em sua imanência ao real, e não a partir de um quadro de projeções que a prenderiam, na experiência e, consequentemente, em certo regime de pensamento, como um sistema fixo de oposições. Ora, a operação deleuzeana é muito hábil em elevar a problema central esse tema da diferença, que, a rigor, “é totalmente ausente da obra de Bergson” (2015: 293), sem que se trate, no entanto, de uma imposição arbitrária à mesma: afinal, uma tal “singular perversão do bergosnismo” (2015: 296) envolve mostrar como a intuição pode ser rigoroso “método de compreensão do real” (2015: 298), uma vez que a consistência do real é durativa, isto é, “se diferencia imediamente consigo mesma” (2015: 301).
Ainda que por menções breves, mas sem jamais cair em generalizações grosseiras, Bianco deixa registrado como o confronto com Bergson será profícuo e se estenderá até o final do percurso intelectual de Deleuze, o qual coincide com os últimos decênios do século XX, do qual o livro nos fornece um panorama sucinto, com ênfase no papel do bergsonismo dentro do debate entre Deleuze e Badiou acerca da teoria das multiplicidades.
- Experiência ou conceito?
Ao fim da leitura surge uma estranha impressão de ter passado por todo um livro sobre o bergsonismo sem se deparar com qualquer citação do próprio autor. O curioso é que não se deve esperar do livro um comentário textual de Bergson, pois seu propósito é reconstruir os diversos modo de apropriação de uma obra em um determinado contexto histórico. Assim, possíveis críticas de que tenha faltado entrar no mérito da análise textual dos argumentos são descabidas na medida em que isso foge ao escopo do estudo. De fato, como o próprio autor aponta logo de saída, o livro não é bergsoniano. Mas não conter análise e citações de Bergson parece estratégico, pois permite tornar manifesta uma certa “ausência do autor” que coloca em relevo as modalidades discursivas de apropriação que justamente configuram a complexa feição de determinado autor.
Ora, tal feição é o resultado de textos em confronto com textos, e a nitidez dela dependerá de como esse entrelaçamento textual é apreendido. Ora, Bianco sabe muito bem que a trama aí é bem intrincada, na medida em que os textos não são apenas unidirecionalmente voltados para Bergson, mas se atravessam e dialogam entre si, extrapolando a referência ao autor privilegiado pelo recorte. E se há todo o esforço de dar conta das relações entre eles, em certas ocasiões alguns elementos poderiam ser mais explorados, como o papel de Koyré no contexto das críticas epistemológicas, ou mesmo nomes como Ruyer e Simondon, que não apenas eram leitores atentos de Bergson, mas tiveram uma parcela não negligénciável de importância para autores bem mais conhecidos como Canguilhem, Deleuze e Lacan (no caso do primeiro). Não se trata, é claro, de apontar tal ou qual aquela referência faltante, e sim de ressaltar em que medida o assunto é complexo, dada a profusão de experiências intelectuais originais em jogo, e de como a tarefa de realizar um retrato consequente é muito mais árdua do que pode parecer.
De qualquer forma, o livro não se destina apenas a quem quer conhecer melhor o contexto histórico de recepção da filosofia bergsoniana, mas deverá interessar bastante a pesquisadores dedicados a compreender o aparato conceitual da mesma, na medida em que tais conceitos são empregados em problemáticas diversas. Particularmente rico é o lugar atribuído a Bergson na oposição, tornada famosa por Foucault, entre experiência e conceito, pois Bianco dedica uma seção a mostrar, retomando o que já havia analisado de maneira mais demorada anteriormente2 , como tal oposição é incapaz de dar conta do que representou o bergsonismo, tanto em uma insidiosa influência subterrânea, quanto em seu recente interesse renovado para discussões muito próximas de problemas científicos.
Conta-se que o Prof. Bento Prado Jr. costumava dizer, acerca da filosofia francesa contemporânea, que todo mundo havia lido Bergson. Com este livro de Bianco podemos compreender melhor o como e o porquê daquela afirmação.
Notas
1 Na Introdução várias páginas são dedicadas às devidas considerações e justificativas metodológicas, nas quais as escolhas de certos instrumentos e objetos de análise é explicada — como, por exemplo, a forma pela qual textos bergsonianos são introduzidos na composição de programas, disciplinas, discussões, etc. Do ponto de vista de alguém interessado na minuciosa reconstrução sistemática da obra de um autor, tais justificativas podem não parecer convincentes de saída. Cabe ressaltar, no entanto, que o desenvolvimento do livro deixa bastante claras as dinâmicas de funcionamento do “campo filosófico” relevantes para o assunto, aí inclusas suas tensões e transformações em um período de muita reviravolta política e efervescência cultural, de modo que o “retrato de grupo” resultante possui uma notável densidade histórica, com a devida descrição da trama teórica envolvida.
2 Cf Bianco, G. Experience vs. Concept? The Role of Bergson, in Twentieth-Century French Philosophy, in: The European Legacy, vol. 16, n. 7, p. 855-872, 2011.
Herivelto P. Souza – Professor do Departamento de Filosofia UnB.
Nietzsche, Adorno e um pouquinho de Brasil – BURNETT
BURNETT, Henry. Nietzsche, Adorno e um pouquinho de Brasil. São Paulo: Editora Unifesp, 2011. Resenha de: GARCIA, André Luis Muniz; PETERLEVITZ, Mayra Closs. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.4, p.135-140, n.1, 2016.
Pode ser estranho iniciar uma recensão pelo final de um livro, mas esse parece ser o melhor caminho para se compreender a estratégia de Henry Burnett neste livro, Nietzsche, Adorno e um pouquinho de Brasil, que reúne artigos publicados ao longo de 4 anos de pesquisa. Nas duas grandes partes que compõem o livro, uma temática comum pode ser destacada: pensar as mais diversas tendências da cultura europeia e brasileira a partir da música, ou como sugere Burnett, a partir da “canção popular” [Volkslied]. Essa relação entre cultura e Volkslied parece ser o ponto central das reflexões de Burnett. Isso não apenas porque ele quer pensar o reconhecido fracasso da aliança de Nietzsche com a arte de Wagner no que concerne ao “renascimento da tragédia” (primeira parte do livro de Burnett). Seu argumento é mostrar também que as reflexões sobre a música nortearam importantes debates sobre o estatuto da Volkslied no processo de massificação, primeiramente, das culturas ocidentais no início do século XX em decorrência da consolidação do capitalismo como modus operandi de toda formação cultural pautada pelo elemento musical (segunda parte do livro). Se cultura, dentre suas várias definições, pode ser entendida como aquilo que pelos indivíduos é imediatamente comunicável e compreendido, a proposta de Burnett parece ser então conceber a forma “canção popular” como elemento universal unificador, basilar na construção de uma Weltanschauung. Essa é a importância do capítulo final do livro (Autenticidade, Comunidade, Povo: A Canção Popular em O Nascimento da Tragédia), no qual Burnett concebe como seu projeto de pesquisa um estudo sobre o conceito de Volkslied para um diagnóstico mais específico da cultura (2011: 243), em especial, da cultura brasileira.
Essa proposta parece tocar, exatamente, em um sutil e decisivo insight de Nietzsche em O Nascimento da Tragédia. Ao afirmar que a poesia lírica de Arquíloco é a criadora da forma “canção popular”, supõe ter entendido como ocorreu a unificação (Vereiningung) da cultura grega a partir dela:
Quão distinto [era] aquele perpetuum vestigium de uma unidade do apolíneo e do dionisíaco; sua grandiosa propagação, que se estende por sobre todos os povos e insurge em renovados nascimentos, é para nós testemunha de quão poderoso é aquele duplo impulso artístico da natureza: um impulso que, de maneira análoga, deixa suas pegadas na Volkslied tal como os movimentos orgiásticos de um povo se eternizam em sua música. Sim, dever-se-ia também demonstrar historicamente como nas canções populares [an Volksliedern] todo rico período produtivo foi, simultaneamente, estímulo aos mais fortes por meio de fluidos dionisíacos, os quais temos sempre que observar como sendo o fundamento e o pressuposto da Volkslied. (NIETZSCHE, KSA 1: 48) 1
Essa citação apresenta mais do que um ponto de vista sobre a cultura grega, ela apresenta um prognóstico de Nietzsche que Burnett parece perseguir com precisão: ainda não existia um estudo que comprovasse a tese segundo a qual épocas e períodos produtivos e maduros de uma cultura teriam sido estimulados por uma dionysische Strömung, que manifestar-se-ia, assim sugere Nietzsche na seção 6 d’O Nascimento da Tragédia, justamente, na forma “canção popular”. Burnett persegue a compreensão filosófica da forma canção popular em todos os capítulos do livro. Daí seu interesse não apenas pela filosofia de Nietzsche, mas também por Theodor Adorno (um dos mais severos críticos da versão novecentista da Volkslied, a “popular music”) e pelo pensamento de Mário de Andrade, poeta, musicólogo, novelista, reconhecido fundador do modernismo no Brasil. Apesar da ausência de um sistemático diálogo entre os três pensadores, que não ocorreu nem em obras, nem em cartas ou apontamentos, a preocupação com os rumos da cultura ocidental no exato momento em que é patente a deterioração da forma “canção popular” surge como fio condutor das reflexões de Burnett.
Adorno observou e analisou a “morte” do conceito de cultura, tal como o século XVIII e XIX o concebeu, com a insurgência de sua apropriação pelos mecanismos e técnicas de produção industrial. Mário de Andrade via na cultura brasileira, nas primeiras décadas do século passado, o solo fértil para se pensar o contrário: enquanto o Brasil não padecia, como a Europa e a América, do maciço processo de evolução do sistema capitalista, e também devido ao seu “atraso industrial”, o Brasil teve condições de mapear e ordenar as mais diversas fontes de seu “impuro” surgimento. Foi na música popular, na unidade de sua diversa manifestação em solo brasileiro, que Mário de Andrade buscou a origem “impura” (interracial e polissêmica), portanto híbrida e muito rica, da nossa cultura. Não me parece exagero afirmar, seguindo Burnett, que, assim como Nietzsche, Mário de Andrade parece ter entendido a canção popular como o perpetuum vestigium da nossa cultura.
No caso de Nietzsche, a tarefa é mais complexa, não só porque a forma “canção popular” é apenas tratada pelos escritos de juventude do filósofo e de modo, muitas vezes, genérico, como também porque o conceito Volkslied, tal como em Adorno e Mário de Andrade, não é tratado no âmbito de uma “teoria social”. Antes, o tratamento de Nietzsche do conceito Volkslied2 , como mostra boa parte dos apontamentos póstumos, dá-se no âmbito da Kulturkritik, portanto, na esteira de autores como J. G. Herder, W. Goethe e J. Burckhardt. Se por um lado Herder é considerado o “fundador” do conceito de cultura3 , por outro Burckhardt é o responsável por dissolvê-lo em uma pluralidade de processos de formação históricos [Kulturen] ao investigar seu surgimento e morfologia no âmbito das Geisteswissenchaften4 ; mas, no que concerne ao conceito de Volkslied, Goethe é o autor com quem Nietzsche mais dialoga nas anotações e textos preparatórios ao Nascimento da Tragédia. A referência constante a Goethe aponta para um fato muito importante5. Goethe via na incorporação da Volkslied à sua lírica a unificação da força criativa do Individuum – o gênio [das Genie] – enquanto a mais espiritualizada forma de manifestação linguística da natureza: o espírito [der Geist]. 6
Os inúmeros estudos de Nietzsche sobre a lírica poderiam então convergir com seus esforços para entender o elemento poéticomusical presente nas mais genuínas “manifestações de vida de um povo [Lebensäusserungen eines Volkes]”, cuja unidade [Einheit] de estilo poderia ser designada cultura7 . Todavia, aqui, deve-se advertir para o fato de que, ao tratar da função da lírica na formação do drama musical grego, Nietzsche não concede a ela stricto sensu a forma Volkslied. Nietzsche sabia que a relação entre Melodie e Strophenform é conditio sine qua non da formaLied, como observa Henry Burnett em seu livro, mas disso não decorre que a forma musical moderna Lied seja o modo genuíno de comunicação musical e construção (universal) de sentido que Nietzsche reivindica a partir da tragédia grega. Em uma importante passagem de O Drama Musical Grego, Nietzsche, ao falar da peculiar característica da língua grega [Musikvokal], aponta para uma sutil nuance entre a forma Lied e Gesang.
Os gregos aprendiam uma Lied tal como eles aprendiam uma Gesang: no ouvir, eles sentiam, assim, o mais íntimo ser-um da palavra e do tom.(NIETZSCHE, KSA: 529) 8
Nessa fundamental passagem, ele emprega duas palavras, que em geral são traduzidas por “canção” [Lied e Gesang], e então associa ambas. Ali, não se trata de uma distinção conceitual entre Lied e Gesang. A nuance está em apontar para o modo como a Lied é universalmente compreendida, a saber, como Gesang, isto é, como unidade entre Tonsprache (linguagem tonal) e Wortsprache (linguagem-por-palavra). Essa unidade indica que, no caso da língua grega, o timbre e rítmica naturais do tom e do signo fonético articulado (a palavra) ainda não foram rompidos. A compreensão não é tangenciada pela aspecto lexical da canção, mas puramente musical. Assim, o poeta compositor de uma Lied, isto é, o poeta lírico da antiguidade clássica, argumenta Nietzsche em Os Líricos Gregos, “não conhece nenhum leitor [Leser], mas apenas o ouvinte [Hörer], que, em geral, é também o espectador [Zuschauer]” (NIETZSCHE, 1933, V: 307). Assim, Gesang poderia ser interpretada como forma mais geral da comunicação e compreensão musical de sentido; Gesang, portanto, é o tornar comum, o “tornar popular” o componente músicovocal da língua na sua função de estruturação de significar e comunicar. E sua forma fundamental é o coral, o “cantar em conjunto”. Talvez aqui poderia residir o paralelo fundamental entre o popular e o coro, que Nietzsche exaltou no caso da “dionisíaca rural”.
Essa comunhão popular da arte é vista por Nietzsche, no final do famoso apontamento 12[1], que é citado e comentado por Henry Burnett em seu livro, como o momento de passagem do Singen – o cantar – (i.e. a forma Lied) para o Mitsingen – cantar-com – (a forma Gesang, muito próxima, como dito, do que entendemos por forma-coral). Esse talvez possa ser um plausível fio condutor para se pensar as inúmeras confusões que surgem quando se trata de compreender o conceito Volkslied. O caso exemplar, que Burnett chama atenção, é o de Adorno, que, ao relacionar popular music à noção (para ele idêntica) de mass music9 em seu famoso ensaio “O fetichismo na música e a regressão da audição” (1938), mostra surpreendente desconhecimento de uma já diagnostica, na Alemanha, nuance entre Volkslied e Volksgesang. Em seu livro Das Deutsche Volkslied: Über Wesen und Werden des deutschen Volksgesang, de 1921, Johann Weygardus Bruinier apresenta um decisivo argumento para aquele insight de Nietzsche concernente aos conceitos Lied e Gesang no âmbito do popular (o coro).
O modo popular de cantar coletivamente [Volksgesang] é a canção [Gesang] dos círculos onde são vívidas as intuições populares, ele está livre dos tipos de coro introduzidos pela moral [Sitte], isto é, não possui uma legislação pela batuta [Taktstock], ele ainda soa em alguns tipos conservados de coro, pois sempre ressoa a partir da memória. Apenas lá onde a moral estabelecida conserva esse coletivo modo de cantar a partir da memória, [apenas ali] vive ainda a Volksgesang, e lá onde a Volksgesang, desbotada pela bruma da vida, tem que ressoar novamente, ali o cantar coletivo, livre e dependente da memória tem que, tal como a moral, surgir. Tem-se que distinguir da Volksgesang e da Volksdichtung [a canção poética popular] a Volkslied. A Volkslied surge sempre da Volksgesang, mas ressoa também na boca do indivíduo [im Munde des Vereinzelten]e daqueles que não mais exercitam a Volksgesang; conserva-se, com efeito, a Volkslied, mas sua apresentação, no entanto, não é de modo algum Volksgesang. (BRUINIER, 1921: 23-24)
Em suma: três são as teses que o argumento de Bruinier apresenta, e que enriqueceriam, por exemplo, os insights de Mário de Andrade explorados por Henry Burnett nos capítulos 8, 9 e no capítulo final (denominado “Um Projeto”): (i) que a Volksgesang é essencialmente uma intuição popular, um sentimento popular livre, que não se deixa fixar em um costume (numa técnica), mas, pelo contrário, o costume mantém-se vivo em virtude da Volksgesang, isso quer dizer que os costumes, a moral é “fundada” esteticamente; (ii) que a Volksgesang é o paradigma de reconhecimento público dos valores, é o paradigma de comunicação e compreensão destes em uma cultura, uma vez que são conservados pela sua memória; por fim, (iii) a Volkslied é uma forma musical especial, “particular”, que, no momento de sua produção, pode representar a ruptura do “costume enquanto canção popular [Sitte als Volksgesang]”. Volkslied é a forma musical por meio da qual uma ação individualmente (já que ela não mais ressoa o “coletivo”, mas o “indivíduo”, e nós podemos pensar aqui na origem do poeta lírico) não mais deseja praticar a “Sitte als Volksgesang”. Em Nietzsche, o poeta lírico é justamente aquele que deseja uma nova “Sitte”, e por isso precisa romper com a anterior. A canção popular [Volkslied] surge de uma prática coletiva, mas é pelo indivíduo (o “cancioneiro” lírico) que ela se distingue de sua forma matricial. É aqui que ato individual e sentimento popular, do qual ela deriva, mais se aproximam. Parece-nos que o insight de Nietzsche vai justamente nesta direção, isto é, em apresentar a força da cultura grega para fazer convergir o (suposto) antagonismo individual/popular. Por fim, perguntamo-nos ainda sobre a utilidade dessas teses de Bruinier para o argumento de Henry Burnett: a terceira tese de Bruinier não ajudaria a compreender a confusão feita por Adorno e discutida por Burnett (2011: 217) concernente ao aspecto “individual” na produção da música popular? A segunda não tornaria ainda mais consistente o insight de Mário de Andrade (2011: 231), qual seja, de que ainda é preciso discutir o “valor mnemônico da canção”? Em suma: em que medida a árdua preservação dessa unidade entre movimentos antagônicos de ruptura e criação musical não custou aos gregos a própria dissolução de sua cultura? Pensamos aqui na transição, diagnosticada por Nietzsche como “natural”, da tragédia na assim chamada dionisíaca rural em direção àquela cultivada em Atenas, pelos poetas nos concursos, e que culmina, com Eurípedes, na potencialização da Wortsprache, do logos. Talvez o projeto que o último capítulo do livro de Burnett pretende realizar possa nos ajudar, futuramente, a entender melhor essas questões.
Notas
1 Trata-se da oba NIETZSCHE, F. Nascimento da Tragédia, 6. Salvo indicações contrárias, as obras de 1 Nietzsche serão citadas a partir da seguinte edição. NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke: Kritische Studienausgabe in 15 Bänden. Hg. G. Colli und M. Montinari. Berlin/New York: Walter de Gruyter/DTV, 1999. Essa edição é resumida pela sigla KSA, seguida do número do volume e página. As traduções são de responsabilidade dos autores.
2 Cf. GAIER, Ulrich. „Herder als Begründer des modernen Kulturbegriffs“, in: Germanisch-Romanische Monatsschrift. Bd. 57, Heft 1, 2007: 5-18.
3 Apenas duas vezes o conceito ocorre na obra publicada, Nascimento da Tragédia 6 e Para Além de Bem e Mal 190.
4 Cf. EBERSFELD, „Durchbruch zum Plural. Der Begriff der ,Kulturen’ bei Nietzsche, in: Nietzsche- Studien, 38, 2008.
5 Cf. KSA 1, 8[47]; 9[85]; 9[146]; 19[270].
6 Cf. SUTER, J. Das Volkslied und sein Einfluss auf Goethes’ Lyrik. Druck und Verlag von H. R. Saueländer & Co., 1897.
7 Cf. NITEZSCHE, F. Segunda Consideração Extemporânea 4. In. KSA 1: 271
8 Mais precisamente trata-se do texto NIETZSCHE, F. O Drama Musical Grego 1.
9 A partir de um famoso artigo de Philip Tagg, pode-se notar que essa relação “contaminou” boa parte dos estudos, na América, do conceito de “popular music”. “There is no room here to define ‘popular music’ but to clarify the argument I shall establish an axiomatic triangle consisting of ‘folk’, ‘ar’ and ‘popular’ musics. Each of these three is distinguishable from the other two according to the criteria presented in Figure 1. The argument is that popular music cannot be analysed using only the traditional tools of musicology because popular music, unlike art music, is (1) conceived for mass distribution to large and often socioculturally heterogeneous groups of listeners, (2) stored and distributed in non-written form, (3) only possible in an industrial monetary economy where it becomes a commodity and (4) in capitalist society, subject to the laws of ‘free’ enterprise, according to which it should ideally sell as much as possible of as little as possible to as many as possible”. In TAGG, Philip. “Analysing popular music: theorie, method and practice”. In. Popular Music, 2: 1982: 41
Referências
BRUINIER, J. W. Das Deutsche Volkslied: Über Wesen und Werden des deutschen Volksgesang. Leipzig und Berlin: Verlag und Druck von B. G. Teubner, 1921.
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NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke: Kritische Studienausgabe in 15 Bänden. Hg. G. Colli und M. Montinari. Berlin/New York: Walter de Gruyter/DTV, 1999.
NIETZSCHE, F. Historisch-Kritike Gesamtausgabe Werke. Hg. H. J. Mette et alli. München: DTV, 1933.
SUTER, J. Das Volkslied und sein Einfluss auf Goethes’ Lyrik. Druck und Verlag von H. R. Saueländer & Co., 1897.
TAGG, Philip. “Analysing popular music: theorie, method and practice”. In. Popular Music, 2: 1982.
André Luis Muniz Garcia – Professor Adjunto Departamento de Filosofia – UnB.
Mayra Closs Peterlevitz – Mestre em Filosofia -UNIFESP.
Genealogia di un pregiudizio. L’immagine di Spinoza in Germania da Leibniz a Marx – MORFINO (RFMC)
MORFINO, Vittorio. Genealogia di un pregiudizio. L’immagine di Spinoza in Germania da Leibniz a Marx. Hildesheim: Georg Olms Verlag AG, 2016. Resenha de: LANCIATE, Diego. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.4, p. 116-119, n.2, 2016.
Publicado pela Georg Olms Verlag em 2016, Genealogia di um pregiudizio. L’immagine di Spinoza in Germania da Leibniz a Marx [Genealogia de um preconceito. A imagem de Spinoza na Alemanha de Leibniz a Marx] de Vittorio Morfino é resultado de um estimulante e rigoroso trabalho de fôlego em que a articulação entre Spinoza e spinozismo se faz pela efetividade de sua recepção, sua Wirkungsgeschichte, em terras germânicas. Assim, três grandes momentos são divididos: a refutação do spinozismo clandestino, o renascimento spinozano e, por fim, o Spinoza do Idealismo. Filósofos como Leibniz, Wachter, Bayle, Mendelssohn, Lessing, Jacobi, Kant, Herder, Goethe, Schelling, Hegel, Heidegger, Feuerbach, Marx, Engels até Plekhanov, Althusser, Pascucci, Negri, Fischbach et alii são mobilizados, porém, longe de um procedimento genético e historicista de apreensão do par significante spinoza/spinozismo, Morfino investiga genealogicamente, ou seja, é tal articulação que é posta em exame em seus efeitos. E, para tanto, podemos dizer que seu centro geométrico é localizado em Marx, cujo olhar míope sobre Spinoza é, em certa medida, efeito do spinozismo germânico. Assim, a questão posta por Morfino assume traços e contornos ímpares: Marx lê Spinoza, todavia, tal leitura, não é caracterizada por uma inadequação no sentido em que se diz do inadequado enquanto erro – um pressuposto de um sujeito empírico de conhecimento – tampouco que seja uma leitura cujo pressuposto seria um sujeito tout-court como epicentro, mas que se trata, antes do mais, de um efeito sujeito que a historialidade efetiva do spinozismo provoca na leitura de Marx. Como efeito de um discurso, Marx é atravessado em seu ver. Uma efetividade post festum que retroage certos sentidos do spinozismo e de Spinoza construindo uma narrativa linear capaz de evidenciar-se na contemporaneidade de Marx leitor. E é em tal narrativa evidente que se instaura a opacidade mesma de Spinoza, então, que a contemporaneidade da evidência, que se faz narrativa da historialidade efetiva da articulação spinoza/spinozismo, é o que permite Morfino rearticular o jogo complexo entre tais significantes pelo ato de ler como efeito desta narrativa. Marx viu através dessa narrativa límpida e linear e, por isto mesmo, não viu em Spinoza uma teoria da História e da Política. Como Marx não pôde ver, o não-visto de Marx é o início da trajetória genealógica de Morfino, por aí ele propõe-se a abrir os pontos de sutura do discurso que interpela Marx e que compõe a imagem de Spinoza através da contemporaneidade de certo sentido que faz seu não-visto, porém, que reintroduzida em sua não-contemporaneidade, i.e.¸ em seu Kampfplatz, abre-se a complexa trama de operações discursivas em sua pluralidade mesma. Ou seja, o sentido é atingido em sua equivocidade pela abertura das suturas que compõem a narrativa da imagem de Spinoza/spinozismo, então, tudo se passa como se a estratificação de conflitos discursivos, deslocamentos de sentidos e defasagens articuladas em temporalidades diferenciais nas quais se desvelam os níveis em ritmos entremeados produzissem certo efeito-imagem de Spinoza, cuja estruturação não seria outra que a produção de sua opacidade pela lógica de poder característica da ideologia/imaginário. A leitura que faz Marx, assim, é o “efeito da complexa história da presença e ausência de Spinoza em terra germânica”.
Não-contemporâneo que se faz contemporâneo, a opacidade do real dada pela narrativa linear, pela sucessividade cumulativa de sedimentos discursivos, é submetida à desconstrução materialista por Morfino. Cada contexto pontual de disputa que se produz uma imagem sedimentada compondo a linearidade ideológico-discursiva do par significante Spinoza/spinozismo, sua trama interrelacional que produz o sentido desta narrativa, é submetida, então, ao exame e recontrução das interpretações que foram feitas de Spinoza nos três momentos principais. E, para tal reconstrução, Morfino suspende o juízo sobre a adequação dos objetos interpretados, i.e., não se trata de trazer um Spinoza como régua da adequação ou inadequação das interpretações que lhe são dadas, mas sim de examinar precisamente como tais interpretações se fazem e exercem um efeito na recepção de Spinoza e no spinozismo. Morfino analisa cada intérprete através da problemática que lhe é própria e não através da problemática do próprio Spinoza, e disto se pode dizer que cada problemática, cada estrutura de pensamento analisada, provoca significativas modificações e reafirma certas permanências da imagem mesma de Spinoza e do spinozismo. Mais ainda, trata-se de problemáticas não só de cada intérprete, mas também de sua dimensão conflitiva com problemáticas de intérpretes entre si, seu diálogo plural, tanto no que diz respeito à estrutura de pensamento de cada intérprete modificando a imagem de Spinoza e do spinozismo quanto no que diz respeito também ao ambiente de produção interpretativa. A tensão e conflitualidade entre problemáticas, os encontros entre os ritmos defasados, impõem-se na tarefa genealógica. Tal trama de problemáticas defasadas, que podemos chamar de sobreproblemática, é a interpenetração mesma das tramas problemáticas singulares, as quais configuram o presente de uma instabilidade discursiva de algo que, em sua posteridade, é tido como acabado, como ponto pacífico e suturado, ou seja, que se lê o presente passado pelo futuro já passado projetando-o teleologicamente – i.e.¸ pelos seus resultados sedimentados – num esquema genético de uma temporalidade histórica de sucessão, esquema cumulativo em sua opaca transparência, pois, em suma, também tais problemáticas sempre-já são interpenetradas por certo e determinado futuro anterior.
Daí que Morfino ausculta a materialidade textual em seu tecido através dos sintomas, da ausência e presença, os quais, por sua vez, são detectados em suas diversas roupagens. É, com efeito, a espectralidade mesma que faz dos significados sintomáticos procedimentos textuais no jogo entre as problemáticas e a sobreproblemática em sua historicidade tomada não mais geneticamente, mas sim genealogicamente, a saber, em sua historialidade efetiva. Sintomas tais que, em seu campo semântico, fazem-se como desvios de sentido, os quais são operados por mecanismos marcados, como a redefinição de conceitos, inversão de conceitos, os efeitos de tradução como sintoma da resistência de um campo problemático ao estranhamento de uma filosofia alheia em sua economia teórica o que força a “tradução criativa”, ou seja, força a tradução entre significantes tendo em vista a problemática de recepção, as remoções inusitadas como tecidos invisibilizados na própria materialidade textual de Spinoza e, sobretudo, dos efeitos destes movimentos de escritura que condensam a espectralidade em sua posteridade próxima como “imagemlimite”, como sentido retroagido capaz de transmitir-se como tal sob uma problemática de um intérprete futuro, um intérprete, de certo modo, do futuro anterior.
Morfino perquire a “imagem-limite”, ou a imagem de Spinoza/spinozismo, referindose a ela como pregiudizio, que podemos traduzir por preconceito, desde que considerando que aí se condensa o juízo dado pela inadequação de sua anterioridade temporal que se faz presente no ato de julgar – tenhamos em mente que preconceito está submerso no sentido propriamente spinozano de imagem, pelo que se remete aos mecanismos de superstição capaz de suscitar afetos e dominação.
Por trás da desconstrução materialista, são as teses de Althusser que Morfino não só mobiliza, mas que as aprimora consideravelmente em estado prático em sua genealogia. Assim, é à revolução teórica inaudita de Spinoza, segundo Althusser, que Morfino dá consequências: a história não se lê na evidência de seu discurso como um logos manifestando-se como a voz uníssona de uma estrutura sedimentada, contudo, que nesta presença mesma uníssona do logos a dissonância se faz pela sua ausência, pelo inaudível e ilegível. O ler, o escrever, o ouvir etc não são de modo algum indiferentes e atos neutros, e é a opacidade ela mesma em sua imediatidade ou, para utilizar-me de um oximoro, a translucidez turva do discurso uníssono manifesto, que exerce o efeito de modificação dos atos de ler, escrever, ouvir etc. Uníssono composto pela plural dissonância de uma contemporâneo não-contemporâneo, pelos ritmos diversos que compõe conflitantes os sentidos. Notável é que a revolução de Spinoza indicada por Althusser pela posição do problema do ler e do escrever tornou-se apreensível a partir da problemática do próprio Marx, pela sua estrutura de pensamento que mobilizou a articulação entre ideologia e política. É por isto que Morfino pôde escavar o subterrâneo dissonante suturado pela presença de uma narrativa de um preconceito, então, que ele pôde voltar Spinoza contra sua imagem que, com toda sua potência explicativa, fez da miopia de Marx o reconhecimento/ desconhecimento de Spinoza em sua problemática.
É o “trabalho spinozano sobre a linguagem da tradição” em sua conjuntura de produção e seu horizonte semântico que intervém como uma máquina filosófica combatente em seu Kampfplatz. Uma máquina de guerra filosófica que Spinoza opera pela posição do problema da Histórica e da memória, ou seja, é sua teoria da imaginação e sua teoria da História que são confrontadas com a imagem do spinozismo alemão em seus três momentos. Não é que a memória, para Spinoza, seja mero conhecimento inadequado, mas que ela é, simultaneamente, hábito, o que implica a eficiência de suas formas discursivas, de sua “história sacra”, como diz Morfino, na história real. São, por isto, os ritmos dos ritos, dos gestos e comportamentos, em suma, dos corpos que são materializados e efetivados na atualidade de um presente, de sorte que a pluralidade dos hábitos, a defasagem de seus ritmos todos, permitem a Spinoza desconstruir a temporalidade linear, simples e contínua de uma narrativa teológico-política. Daí a articulação entre a causalidade imanente e a opacidade do real (teoria da imaginação) permitir conceber a história “como construção conceitual que mostre o estatuto imaginário de cada autobiografia dando relevo ao complexo intrincamento de causas naturais e sociais que produzem a simplicidade de uma história.”
Aparente circularidade, Spinoza contra o spinozismo em terras alemãs, põe em questão a adequação deste Spinoza que permite abrir as suturas da narrativa do preconceito. De fato, o Spinoza que Morfino lança sobre o percurso genealógico seria a imagem de certo Spinoza? Seria a imagem de Spinoza composta pelo que podemos chamar de “segundo renascimento spinozano” datado, mais ou menos, dos meados do século XX na França até os nossos dias? A lição deste Spinoza materialista a que o século XX foi capaz de começar a dar outra voz através de Cavaillès, Guéroult, Deleuze, Chauí etc e, mais próximos de Morfino, de Althusser, Macherey e Balibar, é a de que justamente os ritmos plurais da história, suas defasagens e deslocamentos, em suma, a pluralização das temporalidades da história também produzem e são produtos de uma intervenção política em filosofia, ou seja, que a genealogia de Morfino não só nos presenteia com uma obra imprescindível de erudição e aprendizado de sua laboriosa empresa teórica, mas também e, sobretudo, que ela é a posição política que o materialismo do século XXI apenas começa a colocar em nosso atual Kampfplatz. Ademais, o trabalho de Morfino nos instiga à possibilidade de confrontar a desconstrução materialista com a tradição anglo-saxônica que hoje se faz presente e potente em nosso Kampfplatz, ou melhor, de desconstruir a posição das formas dominantes de interpretação idealista de Spinoza que repercutem com força em nossa conjuntura.
Genealogia di um pregiudizio é um acerto de contas do materialismo em geral e do materialismo de Spinoza em particular com a história que, simultaneamente, deixa seu rastro da vitalidade e força na impura conflitualidade constitutiva da filosofia entre materialismo e idealismo. Mas não só um acerto de contas. O trabalho de Morfino abre positivamente a articulação teórica imprescindível e demarcatória do próprio materialismo hodierno: trata-se de pensar a “fábrica Spinoza-Marx”, como escreve, visando construir uma ontologia da relação sob o primado das indicações do materialismo aleatório de Althusser e, ainda, pensá-lo sob o primado da teoria das temporalidades plurais. O problema fundamental aqui é pensar o compor-se e decompor-se de toda e qualquer estrutura em termos relacionais, de toda e qualquer história, o que implica diretamente a inteligibilidade do campo de ação política. Não só inteligibilidade, mas a intervenção teórica de Morfino é ela mesma política, pois, como dizia Althusser, filosofia é, em última instância, luta de classes em teoria, ou seja, filosofia e política são de certo e determinado modo – não idênticas – mas coextensivas. O êxito e rigor de Genealogia di um pregiudizio é um convite para a desconstrução materialista, para a posição materialista em filosofia e, também, um convite para enfrentar sob este prisma o desafiante e imprescindível problema da articulação entre História e Política.
Diego Lanciate – Doutorando Universidade Estadual de Campinas.
El idealismo de Kierkegaard – BINETTI (RFMC)
BINETTI, María J. El idealismo de Kierkegaard. Ciudad de Mexico: Universidad Iberoamericana, 2015. Resenha de: PAULA, Marcio Gimenes de. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.4, p. 112-115, n.2, 2016.
Maria José Binetti, pesquisadora argentina, seguindo a trilha dos maiores especialistas em Kierkegaard, traz para a América Latina – em parceria com os colegas mexicanos – um estudo que, a meu ver, será de importância singular no âmbito das investigações sobre o pensador dinamarquês em nosso continente. Penso que aqui já temos o primeiro grande mérito do seu trabalho. Tal atitude é fruto do seu compromisso de diálogo acadêmico, já firmado há alguns anos, com centros de investigação como Kierkegaard Hong Library – St. Olaf College (Estados Unidos), bem como com o S.Kierkegaard Research Centre (Dinamarca).
Na interpretação de nossa colega sulamericana, seguindo a esteira do já renomado pesquisador norte-americano Jon Stewart, e ao contrário do que uma dada tradição nos parece haver legado, Kierkegaard é um pensador que se encontra bem no cerne do idealismo e suas discussões e, nesse sentido, pode ser tomado como um pensador idealista. Por isso, sua tese afirma categoricamente que o pensador de Copenhague não apenas é um pensador idealista, mas que seu idealismo parte de uma dada metafísica absoluta. Por isso, parece exemplar a definição que ela mesma nos fornece nas primeiras páginas do seu primeiro capitulo sobre a caracterização básica do idealismo (Sinzarones y razones del idealismo hegeliano):
Do ponto de vista histórico, o idealismo se apresenta como um projeto libertário de cunho metafísico, inspirado na atmosfera política da Revolução francesa e gestado em dois grandes epicentros: O Seminário Teológico de Tübingen (1788-1793), onde se formaram F.Schelling, F. Holderlin y F. Hegel; e o Ateneu de Iena (1798-1800), fundado pelos irmãos Schlegel, e visitado entre outros por F. Schleiermacher, Novalis, J.L.Tieck e F. Schelling. Todos esses autores compartilharam o interesse pelas Lições de J.G.Fichte em Iena (1794-1799) e a simpatia por Espinosa. (BINETTI, 2015: 15- tradução minha)
Em outras palavras, o idealismo possui uma parte política, uma forte herança protestante e um antecedente que remonta a Espinosa. Se observarmos com cuidado esse será exatamente o quadro que teremos diante dos olhos aos estudarmos os póshegelianos. De igual modo, mas também como fruto de sua época, podemos verificar aqui as sementes já lançadas pela clássica interpretação de Karl Löwith no seu De Hegel a Nietzsche, ainda que Binetti apresente suas discordâncias pontuais em relação a ele.
Assim, com extrema audácia e coragem para romper com preconceitos, Binetti afirma o quanto é descabida, a tese tradicional sobre Kierkegaard que tende a tomá-lo como uma espécie de autor antihegeliano de modo extremamente banal:
Apesar da vacuidade de sua polêmica contra a filosofia hegeliana, moderna e especulativa em geral, e ainda apesar de que o próprio Kierkegaard alguma vez se tenha reconhecido hegeliano, o certo é que a imagem de um Kierkegaard anti-idealista e anti-hegeliano dominou a história da filosofia contemporânea e se instituiu como um dos seus lugares mais comuns. (BINETTI, 2015: 21- tradução minha)
Desse modo, a tese de Binetti, seguindo já os passos de Jon Stewart no seu Kierkegaard ´s relations to Hegel reconsidered, é instigante na medida em que nos impulsiona a pensar Kierkegaard não de modo estático e acabado, mas a compreendê-lo como um pensador do seu tempo, como um idealista e até mesmo como um hegeliano. O que talvez pode variar – e certamente será muito rico. Além, é claro, de perguntar-se que tipo de idealismo ou hegelianismo ele parecia trazer no bojo de sua reflexão filosófica. Assim, ao romper com um antihegelianismo dado como certo do pensador de Copenhague, Binetti problematiza o autor e seus temas, o que é bastante fecundo na discussão filosófica, isto é, pensar com o autor e, se for o caso, pensar mesmo contra ele. Por isso, nossa colega não se omite quando deve criticar Kierkegaard e o faz de forma contundente quando julga que ele se equivocou, por exemplo, ao ver em Hegel um final da história e um fechamento do sistema:
Nesse sentido não é possível atribuir a Hegel um fim da história, nem um fechamento definitivo do sistema, tal como Kierkegaard o faz… (BINETTI, 2015: 27- tradução minha).
Assim, no seu entender, o tema do singular e da dialética, que muitos tomam como uma invenção do autor dinamarquês, se constituem em provas da influência hegeliana e idealista no pensamento kierkegaardiano e devem ser tomados dentro de um quadro crítico amplo, o que não significa diminuir o mérito de sua abordagem filosófica.
No capítulo segundo, Binetti faz uma profunda investigação sobre o tema do romantismo depois do romantismo. Em outras palavras, avalia dois aspectos da história da filosofia fundamentais para compreender o romantismo, a saber, a herança espinosana e o traço da fé. Seguindo a mesma lógica desenvolvida na definição do que seria um pensador idealista, a autora vê em Kierkegaard uma dubiedade, talvez como igualmente podemos vê-la diante do hegelianismo do autor dinamarquês frente ao romantismo. Contudo, isso é muito mais forte, ou seja, a dubiedade diante do romantismo na verdade só ocorre por conta da dubiedade kierkegaardiana diante do hegelianismo. Aliás, o próprio romantismo carrega no seu corpo tal traço, isto é, ele mescla elementos de um espinosismo com aspectos constituintes e centrais da fé cristã. Aqui reside aquilo que os alemães chamavam de Bildung e Binetti a explicita com muita clareza ao avaliar o tema do romantismo na obra de Kierkegaard:
Alguns autores tem entendido que Kierkegaard superou a irreligiosidade e a imoralidade românticas em virtude seu apriori cristão. Nossa opinião, pelo contrário, é que precisamente em virtude do seu apriori cristão, Kierkegaard se converteu em um pensador romântico, uma vez que poetizava seu inalcançável ideal cristão. O cristianismo de Kierkegaard não é uma doutrina, nem uma comunicação direta, nem uma dogmática, sim ‘uma comunicação de existência’, uma potencialização da subjetividade, cujo esgotamento reflexivo produz a fé como unidade dialética do divino. A fé kierkegaardiana é paixão e onde há paixão e fé há romantismo. Por isso, entendemos que Kierkegaard é romântico na sua mesma concepção cristã, nesse esforço renovador e liberador da consciência cristã, que repete o absoluto da idealidade romântica e o consuma como reduplicação amorosa. (BINETTI, 2015: 63- tradução minha)
Entretanto, é bem verdade que, nesse mesmo capítulo, nossa colega, sabedora das teses de Kierkegaard no Conceito de ironia, apresenta claramente que, em alguns momentos, mesmo com o seu romantismo, o autor dinamarquês parece se postar ao lado de Hegel contra determinadas teses românticas. Tal coisa no seu entender, não afeta a posição romântica de Kierkegaard, mas a coloca dentro de um amplo quadro de entendimento, a saber, a herança que o próprio romantismo recebe de Hegel e trabalha criticamente.
No capítulo terceiro, que é o de maior fôlego da obra e certamente envolve um domínio de boa parte da reflexão hegeliana, Binetti nos apresenta, com extrema competência discussões bastante centrais do hegelianismo, buscando compreender como Kiekegaard está posicionado dentro de tal contexto. Por isso, explora aqui novamente o tema de Hegel em oposição aos românticos mas, ao contrário de uma leitura mais previsível e comum, apresenta também uma tese muito instigante e que vale a pena investigar: a possibilidade de que não apenas Kierkegaard pode ser tomado num dado sentido como pensador romântico, mas que o mesmo também ocorre com Hegel. Sua interpretação é claramente tributária das teses de Jon Stewart e, nesse sentido, coloca-se em clara oposição às teses de Niels Thulstrup que, na sua clássica obra Kierkegaard´s relation to Hegel, defende peremptoriamente a tese de que Hegel e Kierkegaard são pensadores absolutamente distintos. Binetti, juntamente com Stewart, contesta tal tese com energia. A fim de melhor fundamentar sua argumentação, a autora baseia-se num tríplice divisão da obra kierkegaardiana proposta por Stewart. Segundo tal cronologia, a primeira parte da produção iria de 1834 a 1843, sendo tal período tomado como um período de recepção positiva da obra de Hegel. Aqui situam-se, por exemplo, obras importantes de Kierkegaard como Conceito de ironia, Ou Ou e Temor e Tremor. O segundo período iria de 1843 a 1846 e aqui percebemos claramente um confronto do idealismo de Kierkegaard com o hegelianismo dinamarquês de sua época. Aqui entra uma forte acentuação da tese de que, quando Kierkegaard criticava fortemente Hegel (ou parecia criticar), no fundo criticava ao hegelianismo dinamarquês que já era, por sua vez, uma degeneração do que havia escrito o próprio filósofo alemão. Por fim, a terceira e última fase vai de 1847 a 1855. Aqui Kierkegaard parece voltar à filosofia hegeliana que havia sido tão criticada por ele próprio e que parece agora receber também inúmeras outras críticas em tantos outros contextos. Data de tal período boa parte de suas polêmicas com Heiberg, Martensen e outros autores do contexto hegeliano dinamarquês. Alguns temas aqui recuperados por Kierkegaard são claramente de inspiração hegeliana: o tema dos estádios é de fundo hegeliano, uma vez que tem inspiração nas etapas do caminho da consciência, o tema da subjetividade, a discussão em torno de pecado e consciência do pecado possui igualmente uma coloração hegeliana. Aqui Maria Binetti deixa categoricamente expressa sua posição ao lado de Jon Stewart:
A conclusão de Stewart é clara: Kierkegaard nunca objetou seriamente o pensamento hegeliano, mas o caricaturou ironicamente com a finalidade de atacar de maneira encoberta os seus contemporâneos imitadores. (BINETTI, 2015: 96- tradução minha).
Por fim, na quarto e último capítulo, Binetti nos apresenta outro tema profundamente merecedor de investigação, a saber, o tema da filosofia da religião póshegeliana. Aqui, com precisão, a autora aponta historicamente a data de publicação das Lições sobre a filosofia da religião, isto é, 1832. Tal obra é publicada postumamente, uma vez que Hegel morreu um ano antes. Contudo, muito mais do que apontar datas ou fazer referências históricas pontuais, o cerne da argumentação reside em apontar que Hegel trata de religião e filosofia como conceitos, ainda que fizesse entre eles diferenças. Kiekegaard recebe tal influência em seu pensamento notadamente pelas aulas que assistiu de um hegeliano bastante famoso no contexto dinamarquês: Martensen. Ali, nas suas aulas de Teologia, aprendeu teses centrais do pensador alemão, notadamente aquelas relacionadas com a sua filosofia da religião. Igualmente importante aqui é a citação que Binetti faz de Karl Löwith que na sua já citada De Hegel a Nietzsche, situa Kierkegaard entre os pós-hegelianos de esquerda, inclusive aproximando-o, com certo exagero, de Marx. A autora, profunda conhecedora do contexto de origem do hegelianismo dinamarquês e do debate entre hegelianos de esquerda e de direita, move-se com extrema competência no intuito de fazer um balanço do que seria de fato o idealismo (e o hegelianismo) de Kierkegaard. Por isso, com o intuito de nos estimular a pensar afirma, segundo os passos de Derrida, que em Kierkegaard encontramos o tema da “religião sem religião”. Ponto que poderíamos tomar como marcante e constitutivo de boa parte da tradição pós-hegeliana.
A título de conclusão, a autora mostra que o idealismo de Kierkegaard é, na verdade, muito próprio do seu modo de pensar. Se quisermos nos mover rigorosamente numa definição kierkegaardiana poderíamos quiçá dizer que ele é, no fundo, uma reapropriação: “O idealismo de Kierkegaard não é o de Schlegel, nem o de Hegel, nem o de Feuerbach. É sua própria expressão, no cálculo combinado de matizes, acentos e preferências” (BINETTI, 2015: 174- tradução minha). Por isso, a autora parece ter razão quando afirma que “Kierkegaard recolhe um idealismo pós-hegeliano que se questiona e debate a si mesmo” (BINETTI, 2015: 176- tradução minha).
Na concepção de Binetti, o idealismo kiekegaardiano é um idealismo cristão e por isso parece ser original e paradoxal notadamente dentro do contexto onde ele se situa. Desse modo, Kierkegaard avalia temas centrais tanto na herança do cristianismo como nos debates acerca do indivíduo, ou seja, a escolha, a liberdade, etc. Fornece, para todos eles, uma nova feição tanto no campo da filosofia como da própria teologia. Assim, de modo muito curioso, a autora pode afirmar que “paradoxalmente a inspiração deste idealismo é a que refrata sua figura antiidealista” (BINETTI, 2015: 176- tradução minha). Desse modo, “Cristo expressa o escândalo dialético da existência, o enorme paradoxo que é o modelo e o caminho de cada pobre homem singular” (BINETTI, 2015: 177- tradução minha).
Uma última palavra: a obra de Binetti possui, ao mesmo tempo, uma clareza e uma profundidade admiráveis. Nem sempre os especialistas conseguem essa virtude, o que torna o livro ainda mais recomendável em tempos de falsa intelectualidade e esnobismo infrutífero. A bibliografia é igualmente rica e pode ser um excelente guia para os que querem aprofundar seus estudos na obra do pensador dinamarquês, bem como em Hegel e nos pós-hegelianos.
Marcio Gimenes de Paula – Professor Universidade de Brasília.
Interpreting Schelling: Critical Essays – OSTARIC (RFMC)
OSTARIC, Lara (Editor). Interpreting Schelling: Critical Essays. Cambridge University Press,2014. Resenha de: PACHECO, Marília Cota. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, p. 197-202, n.2, dez. 2018.
Interpretando Schelling: Ensaios Críticos é uma coletânea de onze ensaios, organizados por Lara Ostaric2 . Esses ensaios traçam sistematicamente o desenvolvimento histórico do pensamento de Friedrich Wilhelm Joseph Schelling desde a Filosofia Transcendental e Filosofia da Natureza (1794-1800), passando pela sua Filosofia da Identidade (1801-1809), Escritos sobre a Liberdade, Idades do Mundo (1809-1827), chegando até sua Filosofia Positiva / Negativa e à crítica de Hegel (1827-1854). Como bem ressalta a organizadora, o volume oferece uma compreensão mais sutil do idealismo alemão do que a oferecida por uma narrativa super simplificada “de Kant a Hegel,”3 que retrata esse movimento filosófico como uma progressão teleológica que começa com Kant, é avançada por Fichte e Schelling e culmina no sistema de Hegel que sintetiza todas as visões anteriores.
É claro que o assim chamado idealismo objetivo de Schelling, com um princípio incondicionado que transcende tanto o sujeito quanto o objeto, marca um afastamento do idealismo subjetivo de Fichte e abre caminho para o sistema de Hegel. No entanto, prestando mais atenção à constelação das ideias que motivaram o pensamento de Schelling, é possível apreciálo mais como um pensador original, um pensador cujo impacto ultrapassou o estágio inicial do idealismo alemão e cujas ideias são importantes para nós hoje.4
A coletânea nos mostra muito mais continuidade no pensamento de Schelling do que é geralmente reconhecido; ressalta os diferentes estágios no desenvolvimento de seu sistema filosófico não como um sinal de imaturidade intelectual, nem como o resultado inevitável da influência de muitas e diferentes posturas filosóficas. O conjunto desses ensaios críticos indica que talvez as reformulações de Schelling em seu próprio sistema filosófico sejam “uma indicação de sua modéstia e seu reconhecimento de que, embora rigorosa e sistemática, a reflexão filosófica não seja onipotente diante da complexidade da condição humana,” como bem ressalta Ostaric.
Em “The Early Schelling on the Unconditioned,” Eric Watkins5 faz uma análise das passagens centrais de dois ensaios do jovem Schelling: Über die Möglichkeit einer Form der Philosophie überhaupt – 1794 (Sobre a possibilidade de uma forma absoluta de filosofia) e Vom Ich als Prinzip der Philosophie oder über das Unbedingte im menschlichen Wissen – 1795 (Do eu como o princípio da filosofia, ou Sobre o Incondicionado no Conhecimento Humano). Watkins esclarece como o primeiro Schelling chega a empregar a noção de “incondicionado” no centro de seu projeto filosófico; sem negar a influência de outras figuras no pensamento inicial de Schelling, como Fichte ou Reinhold, Watkins argumenta que são as visões específicas de Kant sobre o incondicionado que desempenham um papel crucial no desenvolvimento de uma série de características fundamentais do pensamento inicial de Schelling.
Michael N. Forster6, em seu ensaio “Schelling and Skepticism”, contesta as acusações de Hegel em sua Introdução à Fenomenologia do Espírito sobre a filosofia de Schelling entendida como dogmática e vulnerável ao ceticismo. Segundo Forster, tais acusações não são totalmente justificadas; não se aplicam à carreira de Schelling como um todo, pois as reflexões de Schelling sobre o ceticismo e sua relação com a filosofia passaram por três fases diferentes. A primeira é uma posição inspirada, durante o período de 1794-1800; a segunda, uma posição inspirada em Hegel, que ele adotou brevemente em 1802-1803 e a terceira, uma posição inspirada no romantismo que ele adotou por volta de 1821. No final de seu ensaio, Forster considera uma quarta fase da tentativa de Schelling de lidar com o ceticismo: a sua filosofia positiva como uma modificação da sua posição inspirada no Romantismo.
Em “The Concept of Life in Early Schelling,” Lara Ostaric mostra como nos estágios iniciais de sua Naturphilosophie Schelling é motivado pela questão da correspondência necessária entre o eu e a natureza e, portanto, tenta demonstrar que a natureza não é um objeto inanimado desprovido de autoconsciência, mas algo que é ao mesmo tempo um sujeito e seu próprio objeto. A natureza não deve ser concebida como um mecanismo morto, mas como uma organização viva e como um “análogo da razão” e liberdade, porque ser o próprio sujeito e objeto é ser autodeterminado. É isso que Schelling considera a característica essencial da vida. Nisso, Ostaric mostra que os primeiros escritos de Schelling fazem parte de um desenvolvimento progressivo e contínuo de seu sistema filosófico. Paul Guyer7, em seu ensaio “Knowledge and Pleasure in the Aesthetics of Schelling” (Conhecimento e Prazer na Estética de Schelling), analisa passagens centrais do Sistema de Idealismo Transcendental de 1800, e das palestras sobre A Filosofia da Arte 1802-1803 (Philosophie der Kunst), para mostrar como Schelling adotou e transformou a concepção estética de Kant. Guyer alega que Kant criou uma síntese da nova estética desenvolvida em meados do século XVIII na Escócia e na Alemanha, com a teoria clássica de que a experiência estética é uma forma distinta de apreensão da verdade. A estética de Schelling favorece uma abordagem puramente cognitiva e a compreensão de que a experiência estética é prazerosa apenas porque nos libera da dor de uma contradição inescapável da condição humana. Em “Exhibiting the Particular in the Universal’: Philosophical Construction and Intuition in Schelling’s Philosophy of Identity (1801-1804)”(Exibindo o Particular no Universal: Construção Filosófica e Intuição na Filosofia da Identidade de Schelling), Daniel Breazeale8 discute o método de construção filosófica de Schelling em sua Filosofia da Identidade. Inuenciado pelo texto de Kant Princípios Metafísicos… (onde “construir” um conceito é “exibir [darstellen] a priori a intuição correspondente a ele”) e pelo desenvolvimento posterior que Fichte dá a esse método filosófico, Schelling desenvolve sua própria concepção de construção filosófica. Breazeale concentra-se em oito das características mais importantes do método de construção de Schelling: (1) seu ponto de vista “absoluto”, (2) seu princípio (a lei da identidade racional), (3) seu órgão (intuição intelectual), (4) seu método atual (exposição do particular no universal), (5) seus elementos (ideias da razão), (6) seu produto (o Sistema de Identidade), (7) sua verdade e realidade, e (8) a capacidade inata e intocável de intuição intelectual (gênio filosófico). Em sua conclusão, ele oferece um exame e uma crítica à concepção de construção filosófica de Schelling.
Em seu ensaio”IdentityofIdentity and Non-Identity: Schelling’s Path to the Absolute System of Identity,” (Identidade de identidade e não-identidade: o caminho de Schelling para o Sistema Absoluto de Identidade), Manfred Frank9 foca no pensamento central do Sistema Absoluto de Identidade de Schelling, que diz respeito a uma forma de identidade que não é simples, mas concebida de tal modo que duas coisas diferentes pertencem inteiramente a um e mesmo todo. Frank descreve os problemas do início da filosofia moderna, para os quais a noção de identidade de Schelling tenta fornecer uma solução. Discute as figuras da história da filosofia que influenciaram a Filosofia da Identidade madura de Schelling e mostra a relevância da noção de identidade de Schelling para as teorias contemporâneas sobre mente-corpo. NapartefinalFrank aborda a diferença entre a noção de identidade de Schelling e Hegel.
Em “Idealism and Freedom in Schelling’s Freiheitsschrift” (Idealismo e Liberdade no Freiheitsschrift de Schelling), Michelle Kosch10 faz uma distinção entre uma concepção “formal”de liberdade, isto é, uma caracterização do livre-arbítrio que permite uma distinção entre comportamento imputável / não-imputável e uma concepção do livre-arbítrio como fonte de imperativos morais.
No seu ensaio “Beauty Reconsidered: Freedom and Virtue in Schelling’s Aesthetics” (Beleza reconsiderada: liberdade e virtude na estética de Schelling), Jennifer Dobe considera que Freiheitsschrift (1809) de Schelling, contrariando a visão predominante, oferece recursos para identificar a nova e inovadora abordagem de Schelling à estética. Concentra-se nas principais passagens do discurso de Schelling de 1807 para a Akademie der Wissenschaften em Munique (Über das Verhältnis der bildenden Künste zu der Natur) e nos fragmentos de Weltalter de 1811-1515. Dobe mostra como Schelling começa a ampliar sua estética com base na nova concepção de liberdade alcançada em Freiheitsschrift.
Em “Nature and Freedom in Schelling and Adorno” (Natureza e Liberdade em Schelling e Adorno), Andrew Bowie11 mostra como a tensão dialética entre existência e seu fundamento, razão autodeterminada e seu outro, no Freiheitsschrift de Schelling, abre espaço para uma compreensão não-dogmática da Natureza, isto é, uma compreensão da Natureza como algo que precisa ser legitimado e não algo usado como legitimação, mostrando sua relação com o sujeito e, portanto, com a liberdade.
O ensaio de Günter Zöller, “Church and State: Schelling’s Political Philosophy of Religion” (Igreja e Estado: Filosofia Política da Religião de Schelling), enfoca a relação entre Igreja e Estado no Curso de Palestras Privadas de Stuttgart de 1810 e em suas Investigações Filosóficas sobre a Essência da Liberdade Humana de 1809. Num primeiro momento Zöller apresenta o pano de fundo histórico da filosofia política da religião de Schelling; em seguida, o desenvolvimento de uma concepção liberal e legal do Estado para uma concepção absolutista e ética na filosofia política de Schelling. Por fim Zöller discute a teoria filosófico-teológica de Schelling sobre o estado.
A coletânea finaliza com o ensaio de Fred Rush12 “Schelling’s Critique of Hegel” (A Crítica de Schelling a Hegel), cujo foco central são as preleções de Berlim, apresentadas nas décadas de 1840 e início de 1850, quando Schelling faz uma ampla distinção entre duas abordagens da filosofia: “negativa”e “positiva.”O ensaio de Rush levanta a questão de até que ponto a crítica de Schelling a Hegel é válida. Sua principal alegação é que as críticas de Schelling retêm em grande parte sua força, embora algumas delas mostrem que o Schelling tardio está mais próximo de Hegel em alguns pontos do que a polêmica filosófica inicialmente sugeriria.
Notas
2 Lara Ostaric é Professora Assistente de Filosofia na Temple University. Publicou artigos sobre Kant e Schelling e está trabalhando num livro sobre a terceira Crítica de Kant e sua influência na filosofia alemã pós Kant.
3 Von Kant bis Hegel é o título do importante estudo sobre o idealismo alemão de Richard Kroner.
4 Ostaric, Lara. Interpreting Schelling: Critical Essays. Edited By Lara Ostaric, Cambridge University Press, 2014, Introduction, p. 03. A tradução é minha.
5 Eric Watkins é professor de Filosofia na Universidade da Califórnia em San Diego. Ele é o autor de Kant and the Metaphysics of Causality (Cambridge, 2005), o editor de Kant and the Sciences (2001), o editor e tradutor de Kant’s Critique of Pure Reason: Background Source Materials (Cambridge, 2009).
6 Michael n. Forster é Professor na Alexander von Humboldt, titular da cadeira de Filosofia Teórica e co-diretor do Centro Internacional de Filosofia da Universidade de Bonn. Ele é o autor de German Philosophy of Language: From Schlegel to Hegel and Beyond (2011), After Herder: Philosophy of Language in the German Tradition (2010), Kant and Skepticism (2008), Wittgenstein on the Arbitrariness of Grammar (2004), Hegel’s Idea of a Phenomenology of Spirit (1998), and Hegel and Skepticism(1989).
7 Paul Guyer é Professor na Brown University. Ele é o autor de nove livros sobre Kant, incluindo Kant and the Claims of Taste (Cambridge, 1997, 2nd edn.), Kant and the Claims of Knowledge (Cambridge, 1987), Kant and the Experience of Freedom (Cambridge, 1993), e Kant on Freedom, Law, and Happiness (Cambridge, 2000). O professor Guyer é um dos coeditores gerais da Cambridge Editionde Kant. Seu trabalho de três volumes, A History of Modern Aesthetics, foi publicado pela Cambridge em 2014
8 Daniel Breazeale é professor de Filosofia na Universidade de Kentucky. Ele é o autor de Fichte and the Project of Transcendental Philosophy e numerosos artigos de revistas, capítulos de livros, traduções e edições de / sobre filosofia alemã de Kant a Nietzsche, com um foco de pesquisa sobre a filosofia de J.G. Fichte.
9 Manfred Frank é Professor Emérito de Filosofia na Eberhard Karls University, Tübingen. Ele é autor de inúmeros artigos, edições e monografias, que foram traduzidos para mais de vinte idiomas. Seus livros incluem Der unendliche Mangel an Sein. Schellings Hegelkritik und die Anfänge der Marxschen Dialektik (1975/1992), Selbstbewutsein und Selbsterkenntnis. Essays zur analytischen Philosophie der Subjektivität (1991) e ‘Unendliche Annäherung.’ Die Anfänge der philosophischen Frühromantik (1997).
10 Michelle Kosch é Professora Associada de Filosofiana Cornell University. Ela é autora de Freedom and Reasonin Kant, Schelling, and Kierkegaard (2006) e vários artigos sobre Kierkegaard, Fichte e a filosofia continental do século XIX.
11 Andrew Bowie é professor de Filosofia e Alemão na Royal Holloway, Universidade de Londres. Ele é o autor de Adorno and the Ends of Philosophy (2013), German Philosophy: A Very Short Introduction (2010), Music, Philosophy, and Modernity (Cambridge, 2007), Introduction to German Philosophy from Kant to Habermas (2003), From Romanticism to Critical Theory: The Philosophy of German Literary Theory (1997), Schelling and Modern European Philosophy: An Introduction (1993), e Aesthetics and Subjectivity from Kant to Nietzsche (1990).
12 Fred Rush é Professor Associado de Filosofia na Universidade de Notre Dame. Ele é o autor de Irony and Idealism (2014), On Architecture (2009) e o editor do Cambridge Companion to Critical Theory (Cambridge, 2004).
Marília Cota Pacheco – Professora substituta do Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília.
Circuito dos Afetos: Corpos políticos, Desamparo, Fim do Indivíduo – SAFATLE (RFMC)
SAFATLE, Vladimir. Circuito dos Afetos: Corpos políticos, Desamparo, Fim do Indivíduo. São Paulo: Cosac Naify, 2015. Resenha de: PACHECO, Mariana Pimentel Fischer. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.3, p 190-193, n.1, 2015.
Em Circuito dos Afetos, Vladimir Safatle investiga desdobramentos de suas ideias acerca de uma ontologia do negativo, as quais sustentou em sua tese de doutorado 1 por meio de uma engenhosa articulação entre Hegel, Lacan e Adorno. Seu novo livro aborda especificamente a dimensão dos afetos. Nosso autor já havia apontado para essa direção em dois de seus trabalhos, Cinismo e Falência da Crítica e Grande Hotel Abismo. O primeiro mostra que cínico é aquele que aprendeu a rir das normas: não importa se estas se realizam de maneira invertida, para o cínico o que realmente interessa é a promessa de gozo imediato do neoliberalismo. Posteriormente, Grande Hotel Abismo aprofunda a investigação sobre uma ontologia capaz de exercer uma pressão subtrativa e insiste no potencial produtivo de experiências de indeterminação.
Que afetos estão ligados à produtividade do trabalho do negativo? Que afetos permitem a insurgência de uma violência destruidora daquilo que nos faz estagnar em um circuito de repetições intermináveis? Que afetos criam sujeitos? Estas são as perguntas centrais de Circuito dos Afetos. Para pensa-las, Safatle retorna a Freud, particularmente ao desamparo [Hilflosigkeit] freudiano. Este é, de fato, um retorno, pois somente após incorporar sua tríade (Hegel, Lacan e Adorno) nosso autor poderia ler Freud tal como, agora, propõe.
Diferentemente do medo ou da esperança, o desamparo não está ligado a projeções de determinados acontecimentos futuros. O desamparo se conecta a situações às quais não somos capazes de atribuir um sentido (ou, como prefere Safatle, atribuir um predicado) ou a experiências que não sabemos como lidar. No desamparo agimos sem saber em que lugar chegaremos. Mas, mesmo desamparados, agimos. Movemonos, pois de algum modo devemos ter sido capazes de perceber que estávamos presos a um circuito de repetições. Estranhamos isso – o desamparo é, nestes termos, articulado ao estranhamento (Das Unheimlich) freudiano. Nosso autor escreve sobre uma política do impossível, isto é, sobre uma política ligada a um ato que não está mais fundado nas possibilidades que nos são disponibilizadas por uma ordem simbólica. Trata-se de um ato que só poderá adquirir sentido retroativamente.
A partir de textos freudianos, Safatle formula, ainda, um diagnóstico acerca da hegemonia de certos afetos em nosso modo de vida: sua leitura de Totem e tabu expõe a força atual de um circuito repetitivo de medo e culpa, conexo a um laço social de base melancólica.
Em Totem e tabu, Freud conta a história de um pai primevo que possuía todas as mulheres e tinha acesso a um gozo ilimitado. Os filhos se unem, matam o pai e, depois disso, comem a sua carne. Ocorre que, desde o início, a relação com o pai era ambivalente: os filhos não só o odiavam, também o amavam. Foram, por isso, após o parricídio, tomados por sentimentos de medo e de culpa. O banquete totêmico mostra que, com o assassinato, o pai não fica para trás, ele é introjetado. É desse modo que o supereu freudiano se forma.
Poderíamos concluir, como fazem alguns, que o parricídio é um marco para a constituição de um laço horizontal entre irmãos. Há quem diga que estaria aí a base de uma sociedade democrática e igualitária. Safatle mostra, todavia, que não é esta a história narrada em Totem e tabu: a morte do pai e sua introjeção melancólica produz um fantasma. Nosso autor escreve que as democracias neoliberais são sociedades de irmãos assombrados pelo fantasma do pai. Vivemos em tempos de neoliberalismo e de injunção ao gozo, em vez do supereu repressivo da época de Freud, o supereu, hoje, ordena: goze agora! Satisfaça-se imediatamente! Os irmãos se tornaram indivíduos que competem entre si e buscam afirmar sua potência (querem ser como o pai); são, hoje, empresários de si mesmos.
Para pensar a política no tempo presente, devemos, então, compreender que o laço entre indivíduos no neoliberalismo se constitui melancolicamente. A centralidade desta ideia fica clara na afirmação “a gênese do supereu em Freud está alicerçada em uma analítica da melancolia” (SAFATLE, 2015: 82) e na passagem que a segue:
É possível dizer que o poder nos melancoliza e é dessa forma que ele nos submete. Essa é sua verdadeira violência, muito mais do que os mecanismos clássicos de coerção e dominação pela força, pois trata-se aqui de violência de uma regulação social que leva o Eu a acusar a si mesmo em sua própria vulnerabilidade e a paralisar sua capacidade de ação (SAFATLE, 2015: 83).
Tanto o luto como a melancolia são processos ligados à perda de um objeto de forte investimento libidinal. Na melancolia, entretanto, o trabalho de elaboração não se realiza por completo. O objeto não é deixado para trás, ele permanece de um modo bastante peculiar: é introjetado, ou seja, é ligado ao eu. Dessa maneira, afetos como raiva e ressentimento por ter sido abandonado pelo objeto amado se voltam contra o próprio sujeito. Na melancolia há um movimento pendular entre, de um lado, autoacusações e sentimento de impotência e, de outro, afirmações obstinadas da potência. Não é por acaso que indivíduos, empresários de si, oscilam, hoje, entre uma profunda sensação de impotência (o aumento dos diagnósticos de depressão não aconteceu sem motivo) e procura por maximização da performance. Os indivíduos não cessam de tentar alcançar a potencia plena ou gozo ilimitado (como o do pai primevo) que o neoliberalismo promete.
O luto conforma outro modo de lidar com a perda. O trabalho de luto apenas pode se realizar, contudo, se formos capazes de agir sem medo de perder um objeto que já, desde sempre, estava perdido. Em outras palavras, o luto está ligado um ato que acontece sem o amparo de fantasias como a de um pai primevo e sem a promessa de um gozo ilimitado. Safatle se refere ao luto da ideia de indivíduo e da promessa neoliberal de gozo; este é, para ele, um luto do impossível.
Nosso autor realiza, assim, uma crítica que convoca a performatividade adorniana: falar sobre o esgotamento de um modo de vida é também uma maneira de fazer alguma coisa, é um modo de realizar uma intervenção interpretativa. É como se tivéssemos que fazer ressoar, afirmar, uma vez e de novo, que um modelo se esgotou e que não há saída possível, apenas para que, em um segundo momento, possamos dizer: “há, agora, novas possibilidades, há sim uma saída”. Trata-se de tornar o impossível possível: “conseguiremos mais uma vez explodir os limites da experiência e fazer o que até então apareceu como impossível tornar-se possível” (SAFATLE, 2015: 185). Este é um projeto crítico que busca mobilizar “a força performativa da rememoração” (SAFATLE, 2015: 176). Safatle insiste que instituir outros modos de narrar a história pode ser um maneira de realizar um trabalho de luto.
Propomos, por fim, avançar um pouco mais na discussão sobre o luto e possibilidades para crítica. Em diversos trechos do livro, Safatle se refere a Judith Butler. Isso de nenhum modo surpreende, pois a filósofa norte-americana também pensa a política a partir de ideias freudianas sobre luto e melancolia2. Nosso autor não se aprofunda, entretanto, no exame das diferenças entre o seu ponto de vista e o de Butler.
Não é o luto do indivíduo ou de uma promessa de gozo que interessam a Butler, ela investiga o luto que experimentamos em nosso cotidiano, aquele que vivenciamos ao perdermos pessoas importantes como um parceiro ou parceira, nossos pais, filhos, um grande amigo. O trabalho de luto pode, nesses casos, mostrar que não somos proprietários de nós mesmos. Butler não cuida, então, de um luto referente à morte do individuo-proprietário; para ela, é o próprio luto que mata o individuo-proprietário que imaginávamos ser.
Para compreendermos esta ideia, basta nos lembrarmos de perdas que vivenciamos. Ao perdermos pessoas importantes comumente imaginamos que a dor que sentimos é temporária e que, posteriormente, retornaremos à situação anterior. Mas certas perdas não permitem que esse retorno ocorra. São justamente estas que podem revelar algo realmente significativo sobre nós mesmos. Após tais perdas irreversíveis, o que antes sabíamos sobre nós mesmos se desfaz. É como se o “eu” não perdesse simplesmente um “tu” do qual se separaria, é como se perdesse o que conhecia sobre si mesmo: perdemos alguém para descobrir que nos perdemos daquilo que imaginávamos ser. Somente conseguiremos deixar que o trabalho de luto ocorra se aceitarmos essa falta de sentido, isto é, se aceitarmos que não mais sabemos o que fazer, que estamos desamparados. Parece, então, que, para nossa autora, o luto produz desamparo.
Apenas poderemos atravessar o luto se nos deixarmos submeter a uma transformação cujos resultados não podemos prever. Há algo em jogo no luto que é mais forte do que previsões, do que conhecimento, do que escolha. Algo toma conta de nós e, assim, o luto nos mostra que não somos proprietários de nós mesmos. Não seria equivocado falarmos, então, sobre “estranhamento” no sentido que Freud atribui à palavra: no trabalho de luto, o sujeito se percebe como outro.
A nossa autora escreve que, hoje, certas vidas, quando perdidas, não produzem luto (a expressão que usa é “ungrieveble lives”). Ela associa esta ideia à luta de movimentos sociais e pergunta: como os movimentos sociais, formados por pessoas que passaram por perdas irreversíveis, podem realizar o luto? Talvez a elaboração de suas perdas possa mobilizar uma autocrítica e impulsionar o avanço desses movimentos. Ainda, tendo em conta as políticas de guerra nos EUA, nossa autora indaga: o que aconteceria com os EUA se pronunciássemos, uma vez e de novo, o nome de afegãos e iraquianos mortos em virtude da ação de norte-americanos? E se pronunciássemos, uma vez e de novo, os nomes dos prisioneiros de Guantánamo, que não estão ainda mortos, mas também não estão exatamente vivos (BUTLER. 2004).
Parece-nos que há, aqui, dois caminhos para a crítica. De um lado, a crítica adorniana de Safatle e, de outro, a crítica de Butler, que busca uma conexão direta com a ação de movimentos sociais. Os dois projetos têm algo em comum: os nossos autores indicam que crítica deve nos permitir deixar algo para trás e, desse modo, limpar o terreno para que novas possibilidades possam emergir. Estas duas propostas poderiam ser articuladas? Como tal articulação poderia ser feita? Estas são questões que gostaríamos de investigar em futuros trabalhos.
Notas
1 SAFATLE, Vladimir. A Paixão do Negativo: Lacan e Dialética. São Paulo: UNESP, 2006.
2 Esta discussão está presente em diversos trabalhos de Butler. A ligação entre luto e lutas de movimentos sociais é formulada de uma maneira especialmente clara em Precarious Life. BUTLER, Judith. Precarious Life: The Powers of Mourning and Violence. London & New York: Verso, 2004
Referências
SAFATLE, Vladimir. A Paixão do Negativo: Lacan e Dialética. São Paulo: UNESP, 2006.
____. Cinismo e Falência da Crítica. São Paulo: Boitempo, 2008.
____ .Grande Hotel Abismo: Por uma Reconstrução da Teoria do Reconhecimento. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
____. Circuito dos Afetos: Corpos políticos, Desamparo, Fim do Indivíduo. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
BUTLER, Judith. Precarious Life: The Powers of Mourning and Violence. London & New York: Verso, 2004.
Mariana Pimentel Fischer Pacheco – Pós-doutoranda – USP.
Uma vida humana – COSTA (RFMC)
COSTA, Uriel da. Uma vida humana. Tradução, posfácio e notas de João Alberto da Costa Pinto. Goiânia: Editora da Universidade de Goiás, 2015. Resenha de: RUFINONI, Priscila Rossinetti. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.3, p. 171-175, n.2, 2015.
Entre dois anjos: Gabriel-Uriel da Costa
O pequeno livro que a UFG dá a público, na tradução de João Alberto da Costa Pinto, em edição do selo Todo Tipo, é um documento estranho da história da filosofia. Escrito provavelmente em 1640, em latim, com o título Exemplar humanae vitae, trata-se não apenas de um opúsculo de debate teológico, ou canônico, mas da suposta carta de um suicida que, após o desenlace fatal, foi reproduzida por cultores e detratores do judaísmo. Não temos, portanto, o texto pela mão de Uriel, mas citado por outrem. Na encruzilhada de um opúsculo confessional, embora apócrifo, o texto quer dar forma a uma vida, concedendo-lhe, não necessariamente essência, mas o sentido natural de uma conclusão honrada. Assim, não é exatamente a carta de um suicida. Aliás, como bem atenta Cecília Michaëlis de Vasconcelos, o vocábulo “suicida”, de origem francesa e posterior ao acontecido, não se aplica aqui tão certamente quanto o próprio latino homicidium sui, ou o grego eutanásia (VASCONCELOS, 1922: 56).
Que não se espere, entretanto, texto apressado, escrito no calor da hora, ou composição retórica confessional. Apesar de sabermos, por comentadores e pelo próprio Uriel da Costa, que este conhecia e compunha bem em latim, ou seja, que era versado na arte da escrita, não se trata de uma peça de retórica confessional, composta sob essas regras (cf MORDOCH, 2011: 23). Bem composto, claro e conciso nos detalhes narrativos, o opúsculo é antes uma exposição de ideias, um testamento intelectual. A tradução da UFG, ao apostar nesse sentido, concede ao texto uma espécie de ardor desapaixonado, cujo contraste com a tradução da edição de Braga, por exemplo, nos leva a aquilatar as escolhas do tradutor. Compare-se os dois trechos finais. Na edição de Braga, em tradução de Castelo Branco Chaves, com acento mais quente, pelo uso de fórmulas como “vão espetáculo”, “que vosso coração pese na balança” e “demônios”:
Tal é a verídica narração da minha vida. A personagem que representei no vão espetáculo do mundo, durante esta pobre vida, expu-la aos vossos olhos. E agora, filhos dos homens, que vossa justiça julgue, sem que vosso coração pese na balança. Acima de tudo, pronunciai uma sentença livre e conforme a verdade. É isso que incumbe aos homens dignos de tal nome. Se a narração da minha vida vos oferece alguma coisa que mereça a vossa comiseração, reconhecei a miséria da condição humana e chorai, lembrando-vos que vós próprios dela participai. E para que tudo fique dito, revelarei que em Portugal, como cristão, me chamava Gabriel da Costa, e entre judeus (e que demónios me conduziu para eles?), Uriel. (COSTA, 1995: 584)
E o mesmo parágrafo final, na presente edição brasileira, contida no uso dos termos e metáforas:
Aqui tendes a verdadeira história da minha vida e a personagem que no teatro do mundo tem interpretado ao longo de uma honesta e sempre insegura vida está aqui apresentado diante de vós. Julgai-me agora corretamente, filhos dos homens e sem emoção alguma, emitam então uma sentença verdadeira, isto é um julgamento particularmente digno dos homens que realmente merecem esse nome. E, se alguma coisa encontrardes que vos arraste á comiseração, e deplorai a miserável condição humana da qual também sois participantes. E para que nada falte nesse julgamento, meu nome, o nome cristão que tive em Portugal era Gabriel da Costa. Entre judeus, oxalá nunca os tivesse encontrado, foi ligeiramente modificado, fui chamado Uriel. (COSTA, 2015: 33)
O texto traz a narrativa dessa vida exemplar, tornada destino pela eutanásia, um todo fechado que se abre ao juízo do leitor. Narra-se a vida de Gabriel da Costa, nascido no Porto, de pai cristão novo. Faz questão de frisar, este narrador Gabriel, que o pai era bom cristão. Também o narrador, criado nos evangelhos, era cristão devoto, não seguia o rito apenas pela necessidade formal de todo converso, necessidade provavelmente comum entre a comunidade de comerciantes judeus a que a família dos Costas pertencia, ditos em Portugal “gente da nação” ou “homens de negócio”. Gabriel estudou direito canônico, foi jurista, como bem explica Cecília Michaëlis, não necessariamente uma advogado formado, mas estudante de direito, especialmente direito canônico, com idas e vindas pela Universidade de Coimbra, atestando, talvez, já as indecisões e dúvidas que o moveriam durante sua vida. Cecília Michaëlis, em sua biografia, prefere então chamá-lo “canonista”, ou seja, estudioso das leis religiosas. O próprio Uriel, por sua vez, em seu texto Exame das tradições farisaicas, se diz “jurista hebreu”. Nesse contexto antes de tudo acadêmico, é a comparação racional entre os evangelhos, com suas minúcias intrincadas, e a clareza da lei mosaica original, que leva o cristão à reconversão ao judaísmo. Ou seja, a volta ao judaísmo original não se dá, pelo menos segundo a carta, por qualquer atavismo ou por resquícios da antiga prática religiosa arraigada à vida familiar. Segundo o texto, não eram os Costas, como se diria à época, judaizantes, acusação que levaria à condenação, anos depois, de outro famoso escritor judeu de língua portuguesa, o dramaturgo brasileiro Antônio José da Silva, dito “o judeu”.
Não se descartam, evidentemente, outras hipóteses, não contempladas pelo racionalismo piedoso desse Uriel narrador: os irmãos também o seguem na reconversão ao judaísmo, movidos quem sabe pelas facilidades da vida religiosa e do comércio na comunidade judaica livre de Amsterdã. Sabe-se das dificuldades dos judeus conversos na Península ibérica, exilar-se e reconverter-se não deve ter sido incomum na Europa do século XVII (cf MORDOCH, 2011: 14). O fato é que no texto de Uriel, não se elencam problemas pessoais ou de negócios, sabemos por este apenas que emigrou com a mãe, seus irmãos e irmã, após a morte de seu pai que lhe fez então chefe da família. Das intenções dos irmãos, das dificuldades, dos debates familiares, das relações cotidianas com as tradições judaizantes (ou não), quase nenhuma menção. Não há nem mesmo menção ao desfecho da vida de sua mãe, Branca Dinis da Costa ou Sara da Costa, também excomungada por segui-lo. Não há pois muito de uma confissão pessoal, de biografia no sentido lato, da narrativa dos atos de uma pessoa e de seus haveres com a fortuna. Assim que chegou a Amsterdã com a família, só nos dá notícia de que continuou seu trabalho canônico de pesquisar e estudar a fundo as leis divinas.
Mas, a religião judaica, após anos de cismas e êxodos, também havia se tornado outra, permeada de apêndices à lei mosaica, de leis convencionais de tradição oral, de hierarquias e mesmo preconceitos quanto às origens dos judeus. Na sua breve apresentação de Espinosa, Marilena Chauí nos dá um fino relato das divergências histórico/canônicas em voga na Amsterdã do século XVII. Dividiam-se em classes sefarditas de sangue ibérico e os demais judeus não ibéricos, dividiam-se marranos e não-marranos, divisões que davam cor político-social às querelas religiosas entre racionalistas e materialistas, cultores da lei mosaica original, e os fariseus, ligados à lei oral e rabínica:
Dividia-se por fim, religiosa e teologicamente, entre fundamentalistas tradicionais e deístas racionais, e entre talmudistas e cabalistas místicos. A divisão religiosa recobria e dominava as divergência socais e políticas, dadas as peculiaridades de uma comunidade que não possuía autonomia política, e não constituía propriamente um Estado e cujos costumes eram regulados pela religião e por tradições teocráticas. (CHAUÍ, 1995: 16)
No livro ora comentado, o tradutor, João Alberto da Costa Pinto, professor de História da UFG, também expõe em perspectiva histórica os vários cismas, as sinagogas, enfim o lugar no qual aportou esse Gabriel-Uriel cristão novo ex-converso. O posfácio e as notas de João Alberto da Costa Pinto, esclarecedores, têm ainda o mérito de facultar ao leitor uma bibliografia acessível, no mais das vezes de viés histórico. Talvez por essa escolha histórica não conste da publicação remissão à também acessível apresentação de Espinosa, aqui citada. Entre as lembranças dignas de nota, o tradutor remete ao livro da escritora portuguesa Agustina Bessa-Luís, Um Bicho da terra, biografia romanceada do nosso escritor. 1 Apenas um senão quanto à remissão às demais obras de Uriel da Costa: é difícil saber, pelo posfácio ou pelas notas, se há outras obras que escaparam, como esta, da perseguição e da fogueira2 , e a menção ao livro no qual estão compilados capítulos das obras de Uriel, de Samuel da Silva, não consta da bibliografia final. Há um texto que vem referido como Costa, 1995, na página 39, mas tal referência também não se encontra listada na bibliografia. Acreditamos tratar-se do volume publicado em Braga que citamos. Outra questão sobre as obras de que sentimos falta seria uma discussão sobre o estatuto apócrifo do Exemplar (c f MORDOCH, 2011). Apenas detalhes fáceis de se corrigirem numa próxima edição, como uma e outra gralha tipográfica.
Mas voltemos ao embate entre Uriel e os fariseus seus contemporâneos, tal como aparece no texto. Logo o autor percebe que as leis farisaicas, contras as quais escreve, muito se afastaram da original lei mosaica, sendo portanto leis históricas e humanas, como aquelas dos evangelhos que havia renegado em Portugal; e, no seu estudo incansável, mesmo os livros sagrados, as leis originais, se lhe afiguram eivados de contradições, humanas, demasiado humanas. A única lei a que podemos conceder divindade é a lei natural. O autor do testamento o diz com todas as letras. Não é difícil trazer à memória as preocupações de Espinosa com a historicidade muitas vezes imagética da Bíblia e da própria língua sagrada, o hebraico, premida entre a possibilidade de uma exposição geométrica e a experiência dialetal do falante (SANTIAGO, 2013).
O resto da história, muito já se comentou. Uriel é condenado várias vezes, em Hamburgo, Veneza e Amsterdã, – fatos aos quais o narrador também não acrescenta detalhe em sua Vitae – é separado da comunidade, apartado dos irmãos, impedido de contrair um segundo casamento e constituir uma família. Em 1640, diante da sinagoga, e talvez dos olhos de um menino chamado Bento Espinosa, todos o dizem, o homem se retrata, lê a infame confissão que para ele escreveram, é açoitado, pisoteado. Em seguida, apesar de reaproximado da comunidade, prefere tirar a própria vida. Por que teria aceitado tal humilhação, se na confissão final não há a mais mínima sombra quanto a suas convicções? Por atavismos lusitanos, como sugerem uns, por covardia, como querem outros? Seria, por outro lado, o texto apócrifo eivado de apêndices posteriores, estranhos à pena do Uriel histórico? 3
Não é o caso de se condenar ainda outras vezes o autor. Longe do homem, fiquemos com a letra. Quando Uriel aceita, ao fim de longos 7 anos, depois de uma condenação anterior de mais 15 anos, passar pela humilhação da confissão na sinagoga, talvez o tenha feito em nome de suas convicções, conforme a confissão deixa entrever. Em nome daquela lei divina, natural, que une em laços afetivos pai e filhos, irmãos, amigos e amantes, uma lei simples, para a qual nenhum deus poderia solicitar o absurdo do sacrifício de Abraão; supremo sacrifício ao qual condenaram o próprio Uriel por anos, o de ser espicaçado pelos irmãos e amigos. Uma lei de afetos, forte, firme, lei de bicho da terra, lei sem Bem e Mal, que não condenaria nem mesmo o ódio que alguns creditam a Uriel contra seu denunciante4. Esses afetos tornariam uma sociedade coesa, feliz; essa lei faria viver livre o cidadão, mais que qualquer fariseu ou cristão, ao permitir “proclamar-se simplesmente homem”. Nas palavras do próprio narrador:
Afirmo que essa lei é comum e inata para todo os homens, pelo fato mesmo de serem todos humanos. Ela liga todos entre si com mútuo amor impedindo divisões que é a causa original de todo ódio e dos maiores males. Ela é a mestra do bem viver porque distingue o justo do injusto, o abominável do belo.(COSTA, 2015: 26)
O comentário de João Alberto da Costa Pinto, no livro da UFG, aponta por fim para a filiação materialista dessa lei vislumbrada por Uriel. Ideias que serão, ao cabo de alguns anos, o fermento para renovadores como Espinosa, para as ideias de um deísmo ético, que frutificariam ainda nos séculos seguintes. Sejam ou não totalmente autorais, as ideias do Exemplar ainda assim refazem o fundo movediço das mudanças em curso. A edição da UFG é bem-vinda ao reapresentar ao público brasileiro esse documento estranho, cruel, signo vivo tanto do racionalismo cristalino do século XVII, como da turva intolerância, capaz de sobreviver mesmo nas sociedades mais livres.
Notas
1 Não deixa de ser notável, como escreve Mordoch, que Uriel da Costa tenha mais vida na ficção que no debate filosófico. São dignos de nota, além do romance de Agustina Bessa-Luís, a peça de Karl Gutzkow, Uriel Akosta, de 1846, e o interesse de Goethe pelo Exemplar.
2 Sabemos que se encontrou em Copenhague um exemplar único do Exames das tradições farisaicas, e que alguns capítulos de outra obra, destruída ou não publicada, principalmente a parte sobre a imortalidade da alma, foram compilados, com função de crítica, por Samuel da Silva. Assim, há apenas um texto que podemos creditar totalmente a da Costa: o exemplar de Copenhague, escrito em português
3 Neste sentido, escreve Mordoch: “Mas foi o famoso Exemplar Humanae Vitae o grande impulsionador dos estudos sobre Uriel da Costa. A já mencionada problemática quanto ao caráter semi-apócrifo dessa obra não impediu que a pesquisa o atribuísse a da Costa e, de fato, a leitura do Exame das tradições aponta coincidências que corroboram a autoria do Exemplar atribuída a da Costa. Alguns trechos específicos despertaram a desconfiança de que o Exemplar recebeu enxertos apócrifos, entre eles a descrição da cerimônia do erem (excomunhão) ou, de maneira geral, o modo como a narrativa tenta representar Uriel da Costa quase como um Cristo moderno”. (MORDOCH, 2011:8)
4 Cecília Michaëlis comenta os rumores de que Uriel teria atentado contra o primo que o denunciara e só então se suicidado, num ato de furor. Para a autora, os documentos nos quais assentam tal denuncia são espúrios e servem mais para abrandar o papel da sinagoga no desfecho da vida de Uriel
Referências
CHAUÍ, Marilena. Espinosa, uma filosofia da liberdade. São Paulo: Ática, 1995.
COSTA, Uriel da. Exame das tradições farisaicas, acrescido com Samuel da Silva, Tratado imortalidade da alma. Introdução, notas e carta genealógica por H. P. Salomon e I.S. D. Sassoon. Braga: Edições APPACDM, Distrital Braga, 1995.
MORDOCH, Gabriel. A Língua e o discurso do Exame das tradições phariseas de Uriel da Costa. Dissertação de mestrado. Universidade de Jerusalém, 2011.
SANTIAGO, Homero. “O Compêndio de gramática hebraica de Espinosa”. In: Trans/form/ação. Marília, nº 36, vol 2, 2013, p. 26-44.
VASCONCELOS, Cecília Michaëlis. Uriel da Costa. Notas relativas à sua vida e às suas obras. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1922 (Separata da Revista da Universidade de Coimbra, vol. VIII, nº 144).
Priscila Rossinetti Rufinoni – Professora adjunta – UnB.
O crucificado encontra Dionísio – estudos sobre Kierkegaard e Nietzsche – VALLS (RFMC)
VALLS, Álvaro. O crucificado encontra Dionísio – estudos sobre Kierkegaard e Nietzsche. São Paulo: Edições Loyola, 2013. Resenha de: PAULA, Marcio Gimenes de. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.2, p.177-179, n.1, 2014.
O ano de 2013 marcou uma efeméride significativa no universo kierkegaardiano: a data do bicentenário de nascimento do autor dinamarquês. Em decorrência disso, mas não apenas por isso, muitos eventos significativos foram realizados em vários locais onde existe o interesse pela pesquisa kierkegaardiana. Nesse sentido, o mercado editorial brasileiro brindou o leitor interessado em Filosofia e na obra do pensador de Copenhague com duas instigantes obras do professor Álvaro Valls, célebre tradutor de Kierkegaard e um dos pioneiros na pesquisa desse autor em solo brasileiro. Uma dessas obras foi, na verdade, publicada em 2012 (Kierkegaard cá entre nós, resenhada logo a seguir).
A primeira obra, O crucificado encontra Dionísio – estudos sobre Kierkegaard e Nietzsche, é fruto de anos de trabalho e de uma pesquisa com mérito reconhecido por inúmeros colegas e também pelo CNPQ, que a financia. O pesquisador gaúcho congrega aqui, em seus doze capítulos, treze ensaios sobre Kierkegaard e Nietzsche. Talvez, por receio de ser excessivamente cobrado por alguns nietzschianos, o pesquisador parece deixar claro, logo de saída, que não é um especialista na obra do pensador alemão, mas apenas um leitor interessado e que, num dado grau desse interesse, Nietzsche se encontra com o autor estudado por ele há alguns anos, a saber, Kierkegaard.
Ironia e melancolia é o primeiro ensaio da coletânea e dialoga com as teses de Kierkegaard desde o Conceito de Ironia, passeando ainda pela temática da melancolia em autores brasileiros como Machado de Assis, Gregório de Mattos e o compatriota gaúcho do autor, Moacyr Scliar. Trata-se de um muito curioso diálogo que atravessa o frio da Dinamarca, chega até os trópicos e dialogo ainda com temas já mencionados por autores como os paulistas Paulo Prado e Mário de Andrade.
O texto que se segue, denominado Sócrates oscilando entre Kierkegaard e Nietzsche é uma curiosa interpretação da figura do pensador de Atenas pelas lentes de Nietzsche, talvez mais conhecidas do público brasileiro. Com efeito, trata-se também da interpretação do conceito da ironia socrática e a percepção de como essa tornou-se central para a obra kierkegaardiana. Trata-se de uma tentativa de mostrar, ao menos em nuance, as múltiplas faces de Sócrates na obra do autor dinamarquês, comparando-a com o modo nietzschiano de entendê-las. O ensaio que se segue, Ironia socrática e Ironia kierkegaardiana, aprofunda um pouco mais tal questão, fazendo um mergulho filosófico.
Já o texto Heiberg e Brandes, críticos contemporâneos de Kierkegaard e Nietzsche, investiga dois desses autores, talvez ainda pouco conhecidos no Brasil, mas que foram importantes para o hegelianismo dinamarquês (Heiberg) e para a divulgação cultural da obra de Kierkegaard na Europa (Brandes). Ambos foram estudiosos de temas de estética e valem efetivamente uma aproximação. Brandes foi, inclusive, amigo particular de Nietzsche com quem trocou inúmeras correspondências e, numa delas, recomendou-lhe a leitura de um psicólogo dinamarquês profundo: Søren Kierkegaard. Tal fato foi, infelizmente, impossibilitado pela doença de Nietzsche e dele, ao que parece, temos apenas esse registro. A ética dos discursos kierkegaardianos é o tema do quinto ensaio da obra de Valls. Nele, o autor, fortemente influenciado pela interpretação de Henri-Bernard Vergote, começa pela pergunta de como se deve ler a obra kierkegaardiana, comprendendo-a, na esteira do pensador francês, como ironia do inicio ao final. Tal tom, serve para modular também aquilo que Vergote denominará como segundo percurso kierkegaardiano. O momento onde o autor dinamarquês parece se aliar aqueles que, segundo alguns podem supor, seriam seus adversários como Feuerbach e outros críticos do cristianismo. Contudo, tais autores tornam-se seus aliados na crítica à cristandade e na tentativa de articulação de um novo conceito: o de cristicidade ou tipicamente cristão. Tal segundo percurso tem uma ligação também com aquilo que se denomina de segunda ética, isto é, a ética tipicamente cristã, diferente da ética grega do bem e do belo. Tal discussão aqui iniciada é ainda mais aprofundada, especialmente ao levar em conta As Obras do Amor (e alguns outros discursos kierkegaardianos), no ensaio seguinte denominado Estética, ética e religião nos discursos de 1847.
A discussão ética também será o tema do texto apresentado no capítulo sétimo, O amor dos poetas e o que se torna dever. Aqui, bem ao gosto kierkegaardiano, Valls aponta, a partir de duas obras centrais do autor dinamarquês (Temor e Tremor e Obras do Amor) em que implica uma ética do dever de amar e em que ela se difere de uma ética do dever racional kantiano. O diálogo com as teses do pensador alemão são excelentes e o ensaio vale não apenas pelo que aponta, mas especialmente pelas lacunas que ele deixa em aberto, pistas possíveis para uma investigação de maior fôlego. Nesse mesmo sentido, O Elogio do amor desinteressado, texto que vem logo a seguir, faz o aprofundamento do mesmo tema dentro da análise das Obras do Amor.
Nietzsche reaparece no ensaio seguinte, Sobre a saúde e a doença. Trata-se de uma discussão que busca resgatar uma função muitas vezes negligenciada da filosofia: a cura, o cuidado, a preocupação com temas de vida e de morte. Valls convida, para essa discussão que se encaixa muito bem também nas discussões contemporâneas de bioética, inclusive, o filósofo Michel Foucault.
Os dois próximos capítulos, Temor, Medo e Angústia I e II, trabalham com um tema bastante caro aos estudos kierkegaardianos. O autor busca, através de uma leitura atenciosa de O Conceito de Angústia, aproximar conceitos éticos importantes em Kierkegaard e em Nietzsche, compreendendo ainda tais inquietações dentro do contexto da antiga literatura dinamarquesa. O mesmo Conceito de Angústia será, não fortuitamente recuperado no ensaio final, que tem o significativo título Enfim, ler o Conceito de Angústia.
Já o penúltimo ensaio do livro de Valls, Um leitor de Nietzsche avant la lettre, é, talvez, um dos mais provocativos e instigantes da obra. Nele, o professor nos apresenta um Kierkegaard que, talvez, teria sido “nietzschiano” antes mesmo de Nietzsche, recuperando muito de suas críticas, notadamente aquelas feitas ao cristianismo.
Por todos os motivos elencados, penso que não faltam boas razões para ler a obra de Valls que mais do que nos provocar, parece que nos desperta o apetite, serve como um aperitivo filosófico, preparatório para os que estiverem dispostos a um banquete.
Marcio Gimenes de Paula
La aventura de la filosofa francesa a partir de 1960 – BADIOU (RFMC)
BADIOU, A. La aventura de la filosofa francesa a partir de 1960. Trad. Irene Agof. Buenos Aires: Eterna Cadencia, 2013.1. Resenha de: ALBA, Fernando Roberto. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.2, p.107-101, n.2, 2014.
El momento analizado en la obra es comparado con el de la Grecia clásica o el del idealismo alemán respecto a su amplitud, singularidad y novedad. La plétora de autores y la diversidad de movimientos (existencialismo, estructuralismo, deconstrucción, posmodernismo, realismo especulativo…) es tal que ridiculiza la actual escena filosófica francesa, la cual para el filósofo está “generosamente poblada de impostores”. Entre la publicación de El ser y la nada (1943) de Jean Paul Sartre y el último libro de Gilles Deleuze ¿Qué es la filosofía? (1991), instante breve, intenso y creador, acontece lo que Alain Badiou no vacila en llamar “filosofía francesa contemporánea”.
El tema se constituye en un presupuesto fundamental y transversal a la obra que el también dramaturgo y novelista francés reconstruye como cartografía de momentos y localizaciones particulares de una filosofía singular. En este sentido, la empresa de Badiou es indagar por la existencia o no de una “unidad histórica e intelectual” que bien podría cobijar la contingencia de un work in progress en el pensamiento francés desde la segundad mitad del siglo XX.
Ahora bien, Badiou advierte claramente cómo el sintagma “filosofía francesa” se desentiende de cualquier sentido etnocéntrico, incluso en lo referido al antiamericano french touch. Bien es cierto, existen unos momentos filosóficos excepcionales y singulares como el señalado en la obra, dicha singularidad es capaz de generar repercusiones universales y es precisamente en esa universalidad que Badiou inscribe el prolífico panorama de la filosofía francesa contemporánea.
En efecto, el horizonte descrito por el filósofo es presentado en términos de una “aventura del pensamiento”, toma cuerpo como compilación y se constituye por autores tan diversos como Gilles Deleuze, Alexandre Kojève, Georges Canguilhem, Paul Ricoeur, Jean Paul Sartre, Louis Althusser, Jean François Lyotard, Françoise Proust, Jean Luc Nancy, Barbara Cassin, Christian Jambet, Guy Lardreau y Jacques Rancière. No obstante, a esta misma se suma la ya descrita y caracterizada en Petit panthéon portatif (2008): Jacques Lacan, Jean Cavaillès, Jean Hyppolite, Michel Foucault, Jacques Derrida, Jean Borreil, Philippe Lacoue-Labarthe y Gilles Châtelet.
En dicho texto Badiou daba inicio a un tríptico que establecía claramente la empresa retomada por la presente obra y que el autor, en el prefacio, promete completar con una tercera entrega que bien haría justicia a aquellos autores pasados por alto, ya sea porque su obra se estabilizó o por su prematura muerte (Monique DavidMénard, Stéphane Douailler, Jean Claude Milner, François Regnault, François Wahl), ya sea por su temprana juventud filosófica, pues para Badiou “en filosofía, la madurez es tardía” (BADIOU, 2012: 8).
En esta perspectiva, la búsqueda de una unidad histórica e intelectual que cobije a estos autores hace que Badiou enuncie una caracterización arriesgada y ciertamente discutible en las páginas que componen el prefacio, cuyos temas se encuentran en buena parte desarrollados en el texto “Panorama de la filosofía francesa contemporánea” (2005). De manera que Badiou emprende inicialmente una “genealogía del momento filosófico”, el cual emerge a principios del siglo XX con el establecimiento de dos corrientes bien diferentes: una filosofía de la interioridad vital -son un referente las conferencias impartidas por Henri Bergson en Oxford en 1911, publicadas como La pensée et le mouvant (1969)- y una filosofía del concepto apoyada en las matemáticas -la publicación de Les Étapes de la philosophie mathématique de Brunschvicg en 1912 es vista como la obra icónica de esta tradición-. Total que estas dos corrientes de pensamiento terminan por postular un problema transversal a la filosofía gala, a saber, el sujeto.
La cuestión del sujeto organiza el periodo en mención al ser la parte común de las dos orientaciones de la filosofía. El sujeto, en últimas, está llamado a interrogarse sobre su vida subjetiva y orgánica, así como sobre su pensamiento y su capacidad creadora en una batalla conceptual que a menudo tomó la forma de una controversia respecto a la herencia cartesiana en la filosofía de la posguerra. El filósofo francés señala una estrecha relación entre el problema en cuestión y algunas “operaciones intelectuales” o “metódicas” que buscan identificar el momento filosófico. Tal es el caso de la llamada “operación alemana” en torno al problema de la herencia del pensamiento germano, cuyos ecos Badiou ubica en el seminario que impartió Kojève sobre Hegel y que influyó de forma determinante tanto Lacan como a Lévi-Strauss; a su vez en el descubrimiento de la fenomenología por filósofos del treinta y del cuarenta (Sartre, Merleau Ponty); en la interpretación “absolutamente original” que hizo Derrida del pensamiento alemán, así como en la influencia de Nietzsche en Foucault y en Deleuze, y, finalmente, en los ensayos de Lyotard, Lardreau, Deleuze y Lacan sobre Kant.
De suerte que a dicha operación subyace el objetivo de encontrar en la filosofía alemana nuevos medios para tratar la “relación entre concepto y existencia”. Para la cual, sin importar su denominación: “deconstrucción”, “existencialismo”, “hermenéutica”, se busca modificar y desplazar la mentada relación en una suerte de “transformación existencial del pensamiento”. En ultimas, la filosofía alemana, en su traducción gala, devino en algo totalmente novedoso para el “campo de batalla” de la filosofía francesa.
La “visión creadora de la ciencia” (Bachelard, Cavaillès), el “radicalismo político” en tanto compromiso de la filosofía con la actividad política (Sartre, Merleau-Ponty, Foucault, Althusser, Deleuze, Jambet, Lardreau, Rancière, Proust, Badiou) y una “búsqueda constante de nuevas formas del arte y de la vida” (Deleuze) son otras operaciones descritas por el autor y que tuvieron como objeto proponer una nueva disposición del concepto, una creación de nuevos conceptos en sus estrechas relaciones con la cuestión de la forma, con la creación y disposición de las formas: bien como relación singular de la filosofía con la literatura (Lacan y Lévi-Strauss y el movimiento surrealista), bien como cambio espectacular de la escritura filosófica (Deleuze, Foucault, Lacan, Derrida, Sartre, Althusser) que busca dar una vida literaria al concepto mediante la creación, en la lengua, de una nueva forma de sujeto.
Ciertamente, la creación de una nueva forma de sujeto lleva a la filosofía francesa de mediados del siglo XX a entablar una relación estrecha, de complicidad y de rivalidad, de amor y odio con el psicoanálisis pues éste ocupa un lugar esencial entre las dos grandes corrientes que están implicadas en el tema del sujeto: el vitalismo existencial y el formalismo conceptual. Toda vez que la idea de inconsciente promulgada por el psicoanálisis se inscribe en la relación como algo vital y simultáneamente simbólico que cobra forma en el concepto. A este respecto, el autor llama la atención sobre las tensiones entre filósofos de la escena intelectual como Bachelard, Sartre, Deleuze, Foucault, Derrida y el psicoanálisis freudiano. Algunas obras de los tres primeros se inscriben como fundamentales para comprender dicha tensión: La Psychanalise du feu (1938) donde Bachelard formula un nuevo psicoanálisis sustentado en la poesía y en la ensoñación que denomina “psicoanálisis de los elementos”; el final de El Ser y la nada (1943), obra en la que Sartre opone al psicoanálisis de Freud un psicoanálisis en el que es necesario remplazar la estructura del inconsciente por un “proyecto de existencia”; el cuarto capítulo del Anti-Œdipe (1972) de Deleuze y Guattari formula la necesidad de oponer al psicoanálisis otro método de análisis que Deleuze llama “esquizoanálisis”.
En este panorama esbozado, tras el establecimiento de una genealogía del momento filosófico y la caracterización de varias operaciones metódicas que subyacen al mismo, cada texto emerge como una huella inasible que potencia lo señalado por Badiou y lo evidencia en la lucidez de sus análisis. De manera que Badiou no duda en radicalizar sus apuestas al señalar la existencia de un “elemento común” que se refracta entre los autores en cuestión a pesar de sus diferencias y contradicciones y que no refiere a las obras, a los sistemas o a los conceptos, sino al programa pues: “cuando la cuestión programática es fuerte y compartida hay un momento filosófico con una gran diversidad de medios, de obras, de conceptos y de filósofos” (BADIOU, 2012: 22).
En esta medida, los últimos cincuenta años del siglo XX son caracterizados en el estudio con un programa definido en seis puntos: disolución de la oposición sujeto y existencia: “el concepto está vivo, es una creación, un proceso y un acontecimiento, él no está separado de la existencia” (BADIOU, 2012: 22).); sacar la filosofía de la academia y hacerla circular en la vida; abandono de la oposición entre filosofía del conocimiento y filosofía de la acción; inscripción frontal de la filosofía en la escena política; retoma de la cuestión del sujeto; creación de un nuevo estilo de exposición filosófica, reinvención del “escritor-filósofo”.
Todos estos aspectos del programa se ven acompañados por el deseo de hacer del filósofo algo más que un sabio, de acabar con la figura mediadora, profesoral y reflexiva del filósofo, pues éste es más bien visto como un “escritor combatiente, un artista del sujeto, un amante de la creación” (BADIOU, 2012: 24). En suma, para Badiou la filosofía francesa contemporánea, más que el conocimiento de un objetivo, buscó trazar un camino muy singular por sus apuestas metodológicas, conceptuales y existenciales. Camino que está siempre más cerca de la acción y de la intervención filosófica que de la mediación y la sabiduría, pues la filosofía francesa “ha sido una filosofía sin sabiduría” (BADIOU, 2012: 24).
Testigo directo de la escena filosófica descrita, es preciso decir que Badiou conoció a todos los autores de quienes escribe: maestros (Althusser, Canguilhem), mayores (Foucault, Deleuze), contemporáneos (Rancière, Lyotard, Nancy) y otros tantos compañeros de lucha e interlocutores en el debate de las ideas. Este aspecto, ciertamente subjetivo, es potenciado por el mismo origen de los textos: desde breves notas y alocuciones publicadas en Critique (Althusser), Elucidation (Ricoeur), Po&sie (Cassin) y Les temps modernes (Sartre, Françoise Proust), hasta capítulos de libro completos (Deleuze, Canguilhem, Nancy, Rancière).
La noción de rizoma desarrollada por Gilles Deleuze y Félix Guattari en Mil mesetas (1988) deviene ciertamente una potente imagen conceptual para hacer una economía del desarrollo teórico del texto de Badiou, pero a su vez, se constituye en un dispositivo de crítica del mismo. El libro es en sí un rizoma que comporta tanto lineas de articulación y de segmentaridad como movimientos de des-territorialización y de des-estratificación que no dejan de metamorfosear constantemente su naturaleza y que terminar por cuestionar radicalmente el estatuto del autor.
Así, cuando Badiou arriesga semejante esquematización del panorama de la filosofía francesa contemporánea, en sus análisis convergen lineas de fuga y movimientos de des-territorialización que dan vida a nuevas articulaciones rizomáticas, à devenires otros del pensamiento en acto. De esta manera es posible hablar de toda una cartografía en la que se encuentran autores y posturas completamente heterogéneas como lo pueden ser las de Sartre, Foucault y Rancière a propósito del radicalismo político, o a su vez en cuanto al diálogo ininterrumpido de diversos autores como Bachelard, Derrida y Deleuze con el psicoanálisis. En este sentido el titulo hace total justicia pues de lo que se trata es de toda una “aventura del pensamiento”.
Ahora bien, estas mismas lineas de fuga son susceptibles de reterritorializarse y de generar nuevamente estructuras arborescentes que tienden a homogeneizar y, en últimas, a anular la multiplicidad, es decir, los devenires impersonales de cada filosofía. De tal suerte, el panorama trazado corre el riego de sedimentarse en una suerte de lectura políticamente correcta, ciertamente normalizada y reconocida por el establishement intelectual francés. Badiou y el cargo que desempeña en la Ecole Normale Supérieure son un buen ejemplo para ilustrar este caso.
Es cierto, el filósofo no se desentiende en lo absoluto de su contexto histórico y político, más aún cuando su reflexión siempre fue cercana al militantismo político. Sin embargo, la cartografía establecida por Badiou y en la que él, además, se ubica modestamente, parece perder totalmente de vista el enorme trabajo que Levinas realizó para la misma época, para no hablar del trabajo arduo y silencioso de toda una pluralidad de autores no-cartografiables. Tal vez sea un caso irrelevante e incluso hasta accidental sin embargo no deja de ser un signo que aterriza la “lectura” de Badiou y que evidencia su carácter subjetivo a propósito de un monstruo que él mismo osa llama “filosofía francesa contemporánea”.
Notas
1 Existe otra edición: BADIOU, A. La aventura de la filosofa francesa a partir de 1960. Santiago de Chile: LOM, 2014. Sin embargo, todas las citaciones del presente texto son tomadas de la edición francesa L’aventure de la philosophie française depuis des années 1960. París: Éditions La fabrique, 2012.
Referências
BADIOU, A. La aventura de la filosofa francesa a partir de 1960. Trad. Irene Agof. Buenos Aires, Eterna Cadencia, 2013. L’aventure de la philosophie française depuis des années 1960. París: Éditions La fabrique, 2012.
___________. Petit panthéon portatif. París: La fabrique, 2008. Pequeño panteón portátil. México: Fondo de Cultura Económica, 2009.
___________. “Panorama de la filosofía francesa contemporánea”. En: ABENSOUR. M. Voces de la filosofía francesa contemporánea. Buenos Aires: COLIHUE, 2005, pp. 73-83.
BACHELARD, G. La Psychanalyse du feu. París : Gallimard, 1938. Psicoanálisis del fuego. Madrid: Alianza, 1966.
BERGSON, H. La pensé et le mouvant. París : Presses Universitaires de France, 1969. El pensamiento y lo moviente. Buenos Aires: Cactus, 2013.
BRUNSCHVIG, L. Les Étapes de la philosophie mathématique. París: Alcan, 1912. Las etapas de la filosofía matemática. Buenos Aires : Lautaro, 1945.
CUSSET ,F. French theory : Foucault, Derrida, Deleuze & Cia y las mutaciones de la vida intelectual en Estados Unidos. Mónica Silvia Nasi. Barcelona: Melusina, 2005.
DELEUZE, G. & GUATTARI, F. L’Anti Œdipe : Capitalisme et Schizophrénie. Paris, Editions de Minuit, 1972. El Anti Edipo: Capitalismo y esquizofrenia. Barcelona: Paidos, 1995.
___________________________. Mil mesetas: capitalismo y esquizofrenia. Valencia: Pretextos, 1988.
___________________________.Qu’estce que la philosophie ? París: Editions de Minuit, 1991. ¿Qué es la filosofía? Barcelona: Anagrama, 1994.
SARTRE, J.P. L’être et le néant. París: Gallimard, 1943. El ser y la nada. Buenos Aires: Lozada, 1979.
Fernando Roberto Alba – Estudiante de Master en Filosofía Contemporánea. Universidad de Paris VIII. Vincennes Saint-Denis.