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Lógicas e métodos – Das Filosofias às Teorias da História
The work of the critic 2. comic –ar 650:433 | Imagem: IF/IA/Midjourney (jun. 2023)
Colegas, boa tarde!
Neste texto, avançamos na empreitada de comparação entre manuais de Lógica e manuais de Teoria/Metodologia da História. Nosso o objetivo é reforçar uma hipótese: a ideia de que a estrutura dos mais conhecidos discursos sobre o método copia a estrutura dos manuais que ensinavam a arte de ordenar os raciocínios ou a Lógica.
Assim, na primeira parte do texto, inventariamos fins e temas de manuais de Lógica e examinamos o lugar do “método” nesses instrumentos propedêuticos. Na segunda, buscamos os significados de “método” nos textos de Lógica e algumas apropriações de Lógica nos manuais de Teoria e Método da ou para a Ciência Histórica.
Boa leitura!
Introdução
Manuais de Lógica, principalmente os produzidos em cátedras universitárias de Filosofia, na Itália, Espanha, França, Inglaterra e Alemanha, são um bom objeto de comparação com manuais de Teoria e Metodologia da História (TMH), mas, apenas em termos de analogia, isto é, como estímulo à compreensão de algumas escolhas dos escritores e não por encarnarem supostos ancestrais dos manuais propedêuticos.
É provável que o primeiro (entre os historiadores do método) a exercitar a comparação sistemática dos escritos de TMH do século XIX com os escritos de Lógica dos três séculos precedentes tenha sido o Filósofo (e autor de livros de Lógica) Giovanni Gentille (1875-1944), em artigo (bastante elogiado por B. Croce) publicado no ano de 1909.
Gentille (1909, p.138) foi também o primeiro historiador, entre os historiadores do methodus a identificar o par “investigação / exposição” ou, como ele mesmo escrevia, as operações de “metodologia” e as operações de “ars historica”1 tanto nos manuais de “método histórico” como nos manuais de Lógica do século XVII. Ele, contudo, não gostou do que leu porque viu demasiada ênfase nas operações de comunicação em detrimento da pesquisa.
Cem anos antes deste artigo de Gentille, o Teólogo e professor de Filosofia da Universidade de Marburg, Ludwig Wachler (1767-1838) escrevera, talvez, a primeira história da Historiografia europeia, ressaltando a dicotomia que seria desprezada por Gentille tanto no título, História da pesquisa e da arte histórica (Geschichte der historischen Forschung und Kunst seit der Wiederberstellung der litterarischen Cultur in Europa 1812/13), como nos elementos textuais do seu trabalho, onde “pesquisa” designava matéria metahistórica e “arte” representava as coisas necessárias à escrita histórica de material substantivo (Wachler, 1813, p.vii, p.834-936).
Da nossa parte, percebemos o valor do par (investigação / apresentação) e da necessidade da comparação quando nos deparamos com a esparsa (embora crescente) referenciação de títulos de Lógica (o Órganon de Aristóteles e o Novo órganon de Bacon), autores de Lógica (I. Kant e W. Hegel) e, de modo mais significativo, com os apelos que os escritores de propedêutica histórica faziam aos termos “lógico” e “logicamente” para justificar os usos de procedimentos analíticos e sintéticos, por exemplo.
Vamos aprofundar essa comparação, inventariando fins e temas de manuais de Lógica e examinando o lugar do “método” nesses instrumentos propedêuticos.
Em seguida, vamos buscar os significados de “método” nos textos de Lógica e demonstrar algumas apropriações de Lógica nos manuais de Teoria e Método da Ciência Histórica ou para a Ciência Histórica, entre os séculos XVIII e XIX, nos ambientes de produção intelectual situados nos países que hoje conhecemos como da Itália, Espanha, França, Inglaterra e Alemanha.
1. Fins e temas
A primeira analogia entre os domínios da Lógica e as concepções de methodus dos nossos escritores pode ser feita em termos de fins e temas para cada empreendimento.
No que se refere aos fins, os textos de Lógica2 poderiam ser classificados, tipicamente, como auxílios formais do conhecer – e é o que fizemos aqui (SILVA, 1813, p.446. v.1). Ao fundo de cada conhecimento professado estavam posições (céticas, dogmáticas ou críticas) sobre a possibilidade de apreender ou representar os objetos (as coisas ou a realidade), sobre lugar onde a realidade poderia ser encontrada, percebida e concebida (sentidos externos, imaginação e entendimento) (KANT, 2013, p.612-614) e, ainda, sobre a moral que governaria os fins e os meios prescritos pelos domínios da Lógica.
Na Introdução à doutrina da razão e no Exercício da doutrina da razão (1691), ambos escritos pelo professor de Direito da Universidade de Halle, Christian Thomasius (1655-1728), por exemplo, tal domínio tinha por objeto as regras para a descoberta e a comunicação das verdades racionais e das verdades históricas, cuja aquisição era uma obrigação de todo “ser decaído” (em versão agostiniana).
Inferiores (embora não opostas) à “verdade revelada” dos livros sagrados, as verdades do mundo deveriam ser buscadas, inicialmente, com o auxílio de um professor e, depois, sob os esforços dos poderes mentais de cada um, como forma de aperfeiçoar “diariamente” a sua compreensão sobre o mundo. (Thomasens, 1719, p. 5).
Contingências desse e de outros tipos (sobretudo, de compreensões mundanas) foram as principais razões para a variação dos fins, entre as primeiras iniciativas modernas de reforma do Órganon de Aristóteles, a exemplo da Lógica de Petrus Ramus (Ramee), e as Lógicas concomitantes à publicação dos textos propedêuticos de Droysen e Langlois e Seignobos, como aquela Lógica empiricista produzida por S. Mill (1843) e também aquela outra, opositora racionalista, escrita por W. Wundt (1883).
Assim, os textos de Lógica foram construídos como instrumentos viabilizadores da declaração da verdade ou da falsidade (Ramee), da certeza demonstrada e da natureza interpretada (Bacon), da verdade distinguida e bem julgada (Descartes) e do juízo verdadeiro e exato (Arnauld e Nicole).
Também foram os seus fins a verdade conhecida e racionalmente justificada (Balmes), o conhecimento certo / aprendido e o conhecimento provável / recitado (Meier) e as regras do julgamento ou o conhecimento avaliado ou retificado (Kant).
As variações, como vemos, além das clássicas divergências em termos de Moral, concepções de origem do conhecimento e de utilidade da Lógica, estavam, sobretudo, no número de coisas da Lógica, como nos casos da simples disputa ou raciocínio (Ramee) e da aprendizagem e da recitação (Meier).
As variações estavam também nos limites do alcance das suas normas, traduzíveis, por exemplo, nos graus de certeza de Bacon e nas regras necessárias (inatas) ou contingentes (dependentes dos sentidos externos) de Kant.
No fundo, excetuadas as situações nas quais os lógicos ocuparam todo o seu texto na definição de verdade (Hegel) ou se afastaram da função utilitária imediata demandada pela docência – a exemplo do ensinar a raciocinar por silogismos (Kant) –, as respostas sobre as finalidades da Lógica convergiram, dominantemente, para as generalizadas expressões de identificar as regras do conhecer e identificar as regras de comunicar.
Essa mesma estrutura predominante nas Lógicas foi empregada pelos escritores de textos de TMH, expressas, por exemplo, sob as díades conhecer e representar (Mortet), investigar e expor (Bauer e Ballesteros) e descobrir e sintetizar (Firth).
O vigor dessas estruturas em alguns escritos e a sua instabilidade em outros tantos, no século XIX, em países europeus, guardam certamente alguma relação com as mudanças no ensino de Lógica, efetivadas no século XVII.
Naquela época, o Organon de Aristóteles permanecia modelo escolástico (combinado ou contraditado com proposições extraídas de Platão ou dos filósofos Pré-Socráticos).
Contudo, da insatisfação com os seus limites emergiram alternativas que refletiam a arquitetônica dos programas de ensino em colégios de Artes ou em faculdades, reformados por seus respectivos catedráticos.
O aprendizado clássico (aristotélico) do instrumento necessário ao conhecimento das coisas prescrevia, então, as macro operações de conhecer e demonstrar: conhecer a estrutura de palavras, as proposições e as formas gerais de expressão (verdadeiro, provável ou falso) e demonstrar a verdade (analítica), a probabilidade (dialética) ou falsidade (sofística) das proposições.3
Por uma série de razões reiteradamente narradas nas histórias da Lógica,4 essa estrutura do instrumento do conhecer aristotélico foi alterada entre os séculos XVI e XVIII.
Naquele tempo, a operação de descobrir (inventar ou investigar) ganhou maior importância e o comunicar (expor ou compor) ganhou certa autonomia ou recebeu novas metas provenientes dos domínios da Retórica e da Poética.
A leitura de obras produzidas nesse período (ver quadro 1) nos possibilitou a clara percepção de que os escritores oscilaram entre a ênfase na operação de comunicar, a ênfase na operação de descobrir ou o equilíbrio entre a demonstração e a investigação, explicitada nas tarefas escolares de aprender para si e aprender para ensinar aos outros.
Um dos exemplos mais citados dessas mudanças foi a experiência de Giacomo Zabarella (1533- 1589), descrita no livro Opera logica [1597].
Condicionado pelas demandas dos alunos da Faculdade de Medicina, esse aristotélico ortodoxo e professor de Filosofia Natural da Universidade de Pádua reconheceu a existência de dois métodos relacionados às finalidades do conhecer e do aprender (ASHWORTH, 2008, p.615-616). Ao primeiro nomeava “methodus” (método “resolutivo” ou de conhecimento) e ao segundo “ordo ou ordines” (método “compositivo” ou de demonstração).
Para os fins atribuídos à Lógica no seu cotidiano de professor, entretanto, Zabarella priorizou as operações da “demonstração”, valorizando esse domínio como ferramenta para a melhoria da aprendizagem. (MIKKELI, 1992, p.81-82, p.86-87).
Outra mudança importante, efetuada na Lógica por Zabarela, foi a separação entre “Historica” e “ars historica” (MIKKELI, 1992, p.75-76), base para as diferenciações de “história” (evento, representação do evento e reflexão sobre o evento a partir das representações escritas), explicitadas pelo lexicógrafo Benjamin Herderich (1645-1748), em 1709. (Pandel, 1990, p. 130).
No seu Guia para as ciências históricas mais nobres (1709),5 ele empregou a palavra “método” apenas uma vez, atribuindo-lhe o significado de modo compacto para apresentação de um conjunto de “ciências auxiliares”. (HEDERICHS, 1711, p. viii-ix).
Mediado por Hederich, Zabarela também serviu à invenção de conceitos e à estruturação de domínios típicos da “Historiografia” (tomada como Teoria da História) e da “Historiomathia”, entendida como responsável pelas regras de aprender História (autodidática) e regras para ensinar História (didática).
Foi esse o esquema que Johann Christoph Gatterer (1727-1799) criou na Universidade de Göttingen (Pandel (1990, p.130-131, p.135; GEIGER, 1908, p.42, p.45), no último terço do século XVIII, interpretado como ponto zero da Teoria da História ou do método histórico por uns e, também, anacronicamente, como iniciativa de institucionalização da História na Universidade sob modelo interdisciplinar.
Foi também esse esquema dicotômico de significar methodus – conjunto de regras para escrever e conjunto de regras para ensinar – que Moeller (filho) recuperou como modelo formativo para os pós-graduandos em História e/ou futuros professores de História na Bélgica, no último quartel do século XIX. E ele fez isso mesmo sabendo que o seu responsável (Moeller-pai) havia escrito a proposta na primeira metade do século XIX, inspirando-se na experiência como aluno de universidades alemãs, onde a orientação de propostas semelhantes a de Gatterer (“historiografia” / “historiomathia”) era bastante comum.
A Lógica aristotélica também foi modificada com a agregação de operações do domínio da Retórica escolástica.
A inventio e o iudicium, segundo os desejos do francês Pierre Ramee (1515-1572), deveriam constar como elemento da Dialética (RAMEE, 1555, p.121). Diferentemente de Zabarella, que queria aprofundar o conhecimento sobre a Filosofia Natural, já abordada no texto de Aristóteles, nosso já conhecido Ramee era um professor de Eloquência e Filosofia, interessado em facilitar a aprendizagem e demonstrar a utilidade dos estudos de humanidades prescritos pela Universidade de Paris.
Seu propósito não era tanto a descoberta de novos conhecimentos e sim a sistematização e a organização dos argumentos conhecidos, ou seja, a melhoria do currículo, em termos de estratégias de ensino e de aprendizagem. A Lógica, então marcada pelas operações de análise e síntese, deveria ser útil aos alunos em todas as “artes” (História e Literatura, por exemplo).
Esse interesse o fez negar a diferença entre o “methodus” (com o significado de descoberta) e método como “ordo” (com o significado de ensino) e defender o emprego dos dois conjuntos de operações para uma mesma tarefa, no seu caso, a leitura dos antigos: decompor um texto em seus elementos lógicos e compor um texto seguindo os procedimentos adotados para a análise textual que se findava. (ERLAND, 2016).
Essa tentativa de unificação dos métodos inventada por Ramee foi o que possibilitou, em parte (VASOLI, 1996, p.8), a construção de uma das primeiras e mais controversas ideias de método histórico do século XVI: Methodus ad facilem historiarum cognitionem (1566).
Evidentemente, o seu responsável, o jurista Jean Bodin (1530-1596), não se empenhava em tornar científico um domínio chamado História. Seus interesses estavam bem longe dos debates sobre teoria do conhecimento histórico do final do século XIX.
Apoiando-se nas ideias de método de Ramee, os escritos de História examinados por Bodin foram transformados em instrumento para sistematizar corpos legais dispersos no tempo e no espaço e viabilizar a invenção e uma espécie de Direito Universal.
O método que lhe facilitaria a tarefa, a “aplicação da análise à leitura das histórias”, consistia na classificação dos gêneros de histórias, de historiadores e, adiante, a comparação de conteúdos substantivos como as formas de Constituição e de governo em várias partes do mundo. (BARROS, 2012, p.172, p.180, p.186- 187).
Bodin foi citado como exemplo positivo e negativo por quase todos os historiadores da passagem do século XIX ao XX que historiaram o “método”, o “método histórico” ou a “crítica histórica”.
Até mesmo o experiente escritor Bernheim, que cultivava a ciência Histórica como investigação e representação, atribuiu valores exagerados (BERNHEIM, 1888, p. 128) àquela invenção bodiniana de “método histórico”, centrado em práticas de classificar e de ler histórias.
Dois exemplos bem mais conhecidos de iniciativas modificadoras da estrutura das Lógicas de base aristotélica, deflagradas pela diferenciação dos objetivos perseguidos por seus cultores, foram o Novo organon (1620), de Bacon, e o Discurso do método (1637), de Descartes.
Ambos compreenderam a Lógica, respectivamente, como operações de “invenção” de “novas verdades” e operações para o “aperfeiçoamento do espírito”. Bacon quis “inventar” ou descobrir uma nova arte (as Ciências Naturais) e Descartes prontificou-se a aprender a usar melhor a sua capacidade de julgamento. (ROUX, 2012, p. 11-12, p. 15).
Os dois punham ênfase na investigação (descoberta) de novas verdades e reclamavam da insuficiência dos instrumentos disponibilizados pela escolástica: “nós rejeitamos (declarava Bacon) a prova por silogismos [método de indução] porque ela opera em confusão [de palavras e imaginação] e permite que a natureza escape de nossas mãos. [O silogismo está] bastante divorciado da prática e é completamente irrelevante para a parte ativa das ciências.” (BACON, 2014, p. 19).
Descartes (1989, p. 43) fazia crítica idêntica ao afirmar que a Lógica baseada em silogismos servia muito “mais para explicar a outrem as coisas que já se sabia”. Além disso, haveria nos silogismos bons preceitos, mas também preceitos “nocivos e supérfluos”, sendo quase tão difícil separá-los quanto tirar uma “Diana ou uma Minerva de um bloco de mármore que nem sequer está esboçado.”
Quando comparamos essas concepções, fins e temas de Lógica dos filósofos e as concepções fins e temas de método dos escritores de propedêutica histórica, percebemos com facilidade que a Lógica de Descartes (as condições do conhecer e as quatro regras fundamentais) foi consumida por Tardif e o princípio básico do raciocinar cartesiano – a dúvida metódica – atravessou as operações de interpretação de Seignobos.
Percebemos ainda a dedicação de Droysen à construção de um Órganon – uma Lógica – para a Ciência Histórica, com referências aos idola baconianos que depurariam a imagem construída pelo historiador, resultante da relação entre o que ele percebia nos restos do acontecido e o que ele desejava que pudesse acontecer no seu entorno.
Por fim, reiteramos, é fácil detectar o desprezo pelo silogismo aristotélico, não apenas como instrumento do conhecer em Ciências Naturais, mas também na História filosófica (ou na Filosofia histórica). Essa prática foi manifestada por Collingwood na construção da sua Lógica da História. Com esses casos, chegamos ao terreno dos métodos nas Lógicas e nas Ciências Históricas.
2. Significações de método
Na Lógica de Aristóteles (2010, p. 347-350), o silogismo estava situado na Dialética (também chamada de Tópica). Era um instrumento para raciocinar que servia à invenção (investigação) e também demonstração (sustentação do argumento).
Aristóteles já grafava “métodos”, mas Ramee (1555, p. 3), como vimos, acusou um erro do estagirita: a distinção entre os caminhos para a demonstração da verdade (Analíticos) e os caminhos para a demonstração da opinião (Dialética). Para Ramee (1555, p. 119-120), contudo, haveria apenas um método, realizado no dispor as coisas no discurso (sintaxe). Método, na versão de 1555, significava “disciplina’ [ordem] e “disputa” a serviço do julgamento.
Quadro 1 – Lugares do método na arquitetônica dos textos de Lógica (Século XVI – Século XIX)
Autor |
Ano |
Estrutura |
Aristóteles |
335/323 |
Categorias / Interpretação / Analíticos / Dialética / Sofística |
Ramee |
1555 |
Invenção / Julgamento |
Zabarella |
1578 |
Lógica / Sylogismo / Método / Conversações, demonstrações emdefinições… |
Bacon |
1620 |
Divisão das ciências / Novo órganon / Fenômenos do universo… |
Descartes |
1637 |
Discurso do método / Ótica-Meteorologia-Geometria |
Port-Royal |
1662 |
Concepção / Julgamento / Raciocínio / Método |
Wolff |
1712 |
Discurso preliminar / Teorética / Prática |
Berkeley |
1710 |
Princípios do conhecimento / [A segunda parte é desconhecida] |
Meier |
1752 |
Conhecimento / Aprender / Ensinar / [Características] do estudioso |
Kant |
1800 |
Analítica ou Doutrina Geral dos elementos / Dialética ou Doutrinageral do método |
Hegel |
1812/13 |
Doutrina do Ser / Doutrina da Essência |
Mill |
1843 |
Nomes e proposições / Raciocínio geral / Indução / Lógica dasCiências Morais |
Balmes |
1846 |
Faculdades auxiliares / Faculdade principal – entendimento / Método |
Wundt |
1880/83 |
DG do Método / Matemática / C. do Espírito / C. Históricas / C. deLeis / Filosofia |
Produzido pelo autor a partir de: Ramee (1555), Zabarella (1758), Bacon (1620), Descartes (1637), Port-Royal (1662), Wolff (1712), Berkeley (1710, Meier (1752), Kant (1800), Hegel (1812), Mill (1843), Balmes (1846) e Wundt (1880). Obs.: (DG) – Doutrina Geral.
Na estrutura do discurso de Bacon (1909, p.62, p.78, p.235), o instrumento de descoberta das ciências ocupava a parte central (quadro 1, linha 5). Seu método reunia os movimentos de (1) inferir os axiomas e (2) fazer novas experiências a partir dos axiomas já formados, designados como indução-experimentação e dedução-experimentação.
Já os movimentos sugeridos por Descartes (1637, p. 20-23) seguiam quatro regras: (1) evidência-intuição, (2) análise, (3) dedução e (4) enumeração. O Método era a primeira parte da publicação. A segunda demonstrava a serventia do instrumento para o cálculo e as respectivas descobertas no campo da Ótica. Observando a estrutura do Discurso de Descartes, percebemos que o seu “método” praticamente assumiu (ROUX, 2012, p. 6-7) as antigas funções da “Lógica”.
O mesmo não podemos dizer de Bacon que isolou as operações de método em uma parte da obra (com majoritário significado de ensino) e preferiu, dominantemente, os termos “via”, “ratio” e “organum” para referir-se aos caminhos da descoberta e avaliação do conhecimento (MENNA, 2014, p.12n).
Foi com esse tipo de informação e procedendo por analogia inversa no tempo (passado / presente) que conseguimos minimizar o nosso estranhamento em relação às Teorias de Droysen e de Seignobos, ou seja, a legítima possibilidade de a palavra e as coisas do “método” situarem-se como parte de uma Teoria (o Esquema de Droysen, versão 1882) ou serem transformadas, praticamente, em toda a Teoria da História (o “ensaio sobre o método”, de Langlois e Seignobos, e a primeira versão do Esquema de Droysen – 1857/8).
Quadro 2 – Métodos de análise e de síntese na Lógica Port-Royal (1662)
Análise |
Síntese |
|
Fins da Lógica |
Descobrir a verdade |
Provar a verdade aos outros |
Designações de Método |
Método de resoluçãoMétodo de invenção |
Método de composiçãoMétodo de doutrina |
Elaborado pelo autor a partir de Arnauld e Nicole (1668, p.391-392).
Na Lógica de Port-Royal (1662) – uma expressão exemplar da Lógica cartesiana (quadro 2) –, os jansenistas radicados em Paris, Antoine Arnauld (1612-1694) e Pierre Nicole (1625-1695), apresentavam apenas duas possibilidades de método, destinados, respectivamente, à resolução de problemas (problemas de palavras e de coisas) e à demonstração dos seus resultados.
Tal prescrição, situada na última parte do escrito jansenista, nos deu uma nítida ideia da profusão de termos e de significados para método (caminho para o descobrir / provar ou caminho analítico / sintético) que seriam empregados adiante em outros domínios e gêneros (quadro 2) e também no manual de Tardif (método de ensinar e método de investigar) que, por sua vez, se orgulhava de empregar a Lógica e a erudição francesas.
Uma dessas distinções (método como investigação e método como exposição) foi mantida na Arte de cultivar a razão (1712), texto seminal de Lógica em língua alemã, de C. Wolff (1735, p.46).
Wolff declarou que o conjunto de regras destinadas ao raciocínio e empregadas na Filosofia era o método matemático, ou seja, aquele que prescrevia o uso de sujeitos e predicados precisos, ordenados e admitidos como verdadeiros.
Wolff (1735, p.1, p.166-168) também referiu-se às verdades históricas como não demonstráveis e sim acreditáveis. Se esse tipo de conhecimento não possuía fundamentos incontestáveis (definições, axiomas e experiências claras), estabelecidos de modo irrefutável (via silogismos), “História” não seria, evidentemente, uma “ciência”, ele afirmou.
Esse raciocínio (entendido por nós a partir das premissas de Wolff) pode ter sido o problema que mobilizou os esforços de Johann Martin Chladenius (1710-1759) a construir uma Lógica para a História (História qualificada como Geschichtswissenschaft e não ars historica) a qual designou de Ciência Histórica geral (1752).
Era, então, o mesmo Chladenius abonado por Langlois e Seignobos no seu “ensaio sobre o método”. Contudo, apesar de oferecer caminhos para a aquisição da “certeza” e da “probabilidade” históricas, do “aprender uma História” e da “arte de escrever História” (temas, respectivamente, relativos à analítica, dialética, análise e composição), Chladenius (2013, p.231, p.257, p. 282, p. 292) não usou “método” ou “metodologia” (seja em latim, seja em alemão). Preferiu “regra” ou “regras gerais” para codificar o processo de produção do conhecimento histórico.6
Da segunda metade do século XVII ao início do século XIX, as Lógicas permaneceram como modelos de estrutura para os discursos sobre regramento da pesquisa e da exposição históricas e base para justificação dos métodos e de partes do método de escritos qualificados como “de História.” (CHLADENIUS, 1752, p. 21).
As mesmas dicotomias que acompanhamos no início desse texto seriam agora flagradas nos manuais enciclopédicos que circulavam nos Estados alemães, ganhando a estrutura de três ou quatro elementos e ressignificando o termo “metodologia histórica”.
No Esquema de ciências históricas auxiliares (1802), J. E. Fabri (1808, p.440-443) empregava esse termo7 para designar as coisas da “heurística”, “crítica”, “técnica” e “sofística” e constituir um domínio que servia à Cronologia, Genealogia, Diplomática, Heráldica, Numismática e à Geografia.
Era metodologia prescritora de princípios e regras para a “produção”, “composição” e “comunicação” históricas (regras para a Historik ou ars historica) e regras para o conhecimento das obras e dos conteúdos e os seus respectivos usos na vida prática (Historiografia).
Vemos aí uma estrutura similar (embora anterior) ao quadripartidismo de Droysen e de Bernheim, fundado em elementos da Lógica aristotélica: descoberta (heurística e crítica) / demonstração (concepção e representação).
Na Enciclopédia de ciências históricas auxiliares (1808) de J. G. Fesmaier a situação se inverteu: “método histórico” tornou-se elemento da “Crítica Histórica”, uma das ciências auxiliares históricas.
Tal método compreendia princípios para a apresentação (acadêmica e pragmática) (FESMAIER, 1802, p.202-293, p.308-309), cujas formas eram derivadas das regras da Lógica.
Para Carl Traugott Gottlob Schönemann (1765-1802), “metodologia abarcava as operações dos “estudos históricos” e do “ensino” histórico: preparação do material (busca e crítica de fontes) e tratamento do material (seleção, concatenação e representação) (SCHÖNEMANN, 1799, p.12) do mesmo modo que as díades privilegiadas pelos citados Moeller e Tardif.
Durante o século XIX, dada a sofisticação, por exemplo, nos escritos já canônicos de Kant e de Hegel, a apropriação das Lógicas se deu de modo mitigado (mesmo em termos de “método” – a palavra e a coisa atribuída pelos filósofos apropriados).
Na versão mais elaborada da lógica transcendental, inserta na Crítica da razão pura (1781/87),8 Kant (2013, p.96-97) dissertou sobre as regras do conhecer conceitual, isto é, sobre as leis que governavam o entendimento ou faculdade de pensar, mas distinguiu a Lógica do “uso universal do entendimento” (“Lógica elementar”) e a Lógica do “pensar corretamente sobre um certo tipo de objetos” (“órganon”).
Resultante da sua concepção fenomenológica (da separação entre o sujeito conhecedor e um objeto com hipotética existência em si mesma), a Lógica Geral Pura foi reservada ao estudo das formas do pensamento intuitivo ou conceitual, classicamente conhecidos como os imperativos categóricos tempo e espaço.
Sob a designação de “Lógica Transcendental”, o escrito de Kant (2013, p.40) determinava, desse modo, “a origem, o alcance e a validade objetiva” dos conhecimentos a priori (independentes dos objetos experimentados).
Foi justamente essa parte da Lógica kantiana (o entendimento do tempo como intuição pura e mais abrangente) que Droysen empregou para fundamentar parte da sua versão de Ciência Histórica. Ele caracterizou o domínio como modo de ver as coisas em sucessão (diferenciando-o da Geografia que, por sua vez, seria o modo de ver as coisas em simultaneidade). (DROYSEN [1882] 1977, p. 421; KANT, 2013, p. 71, p. 79-80).
Em polo oposto, foi justamente essa a parte da lógica de Kant que Xenopol reprovou em sua Teoria da História. Ele preferiu a concepção de tempo e espaço como coisas exteriores ao sujeito do conhecimento, apoiando-se na Lógica do inconsciente de Eduard von Hartmann (1842-1906).
Quanto à Lógica particular, que pensava objetos específicos constituintes de ciências particulares, ela não foi desenvolvida por Kant e se algo fizesse de semelhante, estaria, provavelmente, direcionado às Ciências Naturais.
Quem levou adiante a possibilidade de uma lógica particular aplicada à História foi Bernheim. Ele a desenvolveu sob a designação de “metodologia da História” (1889). Tratava-se de um novo domínio histórico que ofereceria os princípios e procedimentos práticos constituintes dos métodos empregados na pesquisa histórica, dentro dos mesmos critérios referidos e abonados por Kant.9
Mais à frente, a sofisticação de Kant, em termos da relação sujeito-objeto, foi ampliada por Hegel (2015, posição 697) que estabeleceu a integridade matéria-conceito (ou ser e vir-a-ser).
Hegel também tratava das leis do pensamento, mas admitia ser inapropriado abstrair a Lógica de todo “conteúdo” (o pensado): “uma vez que o pensar e as regras do pensar devem ser seu objeto, ela já possui imediatamente seu conteúdo peculiar.” Essas leis e regras do pensamento (forma e conteúdo da Lógica) constituíam para Hegel as coisas do “método” ou do “método científico”.10
Tais regras foram referidas intensamente na primeira parte do seu texto (doutrina do Ser). Contudo, foi o conjunto das operações distribuídas ao longo da sua Lógica (e experimentadas na constituição do Ser e da Essência) que ganharam algum espaço nos manuais de TMH produzidos na passagem do século XIX para o século XX.
Essa ideia hegeliana de que a realidade é pensamento (e vice-versa) e de que o pensado se configura nos movimentos de afirmação, negação e síntese (ou “ser”, “nada” e “tornar-se”) foi designada como “método dialético” e serviu de molde ao próprio Hegel para a invenção de uma História da Humanidade, provocando reações positivas e negativas por parte de escritores de TMH.
Em relação à forma dessa História (o método dialético), encontramos aprovações no texto de Collingwood, adversário do método experimental e de propostas realistas ingênuas do conhecimento.
Por outro lado, encontramos reprovação do método dialético no texto de Villari que defendia o “método experimental” e/ou o “método positivista” como freio à desreferencialização da realidade na representação disseminada do passado. As negações em termos de conteúdo, por seu turno, foram esboçadas na TMH de Labriola (embora, nesse ponto, já estejamos avançando muito mais para o campo da especulação metafísica).
Considerações finais
Nas histórias do método histórico ou nas histórias de como a História veio a se tornar “ciência”, é comum reivindicar a contribuição de um ou outro domínio de diferentes campos do conhecimento.
A Filosofia, em seus ramos retórico e dialético, mãe, madrasta ou concorrente da História, é o sujeito preferencial de comparações quando o século XIX ajuda a constituir o objeto historiado. A Lógica, ao contrário, tem merecido pouco atenção.
Com as breves informações sobre os conhecimentos e o ensino de Lógica e os conhecimentos e o ensino de História, via o exame de manuais propedêuticos em longa duração, esperamos que uma conjectura muito previsível tenha sido razoavelmente demonstrada e testada a respeito do tema: a ideia de que a arquitetônica dos mais conhecidos discursos sobre métodos históricos, produzidos na passagem do século XIX para o século XX, copia a arquitetônica dos manuais que ensinavam a arte de ordenar os raciocínios ou a Lógica, produzidos, principalmente, entre os séculos XVI e XIX.
A reflexividade de domínios dos Estudos Históricos em domínio da Lógica fica mais clara quando comparamos a segmentação (em quantidade e substância) flagrada em textos de Lógica e a segmentação operada pelo escritor de História que dele se apropriava, principalmente, ao tratar da divisão do methodus (histórico) em operações bi, tri ou quadripartite.
Entre meados do século XIX e meados do século XX, percebamos ainda alguns professores de Filosofia, produtores de manuais, impondo lógicas para a(s) ciência(s) da História – John Stuart Mill (1806-1873), Heinrich John Rickert (1863-1936), Wilhelm Maximilian Wundt (1832- 1920), Francis Herbert Bradley (1843-1924), William Brindley Joseph (1867-1943) e Henri Berr (1863-1954) – ou, de modo raro, aceitando a reflexão sobre objetos, fins e métodos produzidas por autodenominados historiadores como produtos dignos de figurar em compêndios gerais de Lógica – Susan Stebbing (1855-1943).
No mesmo período, contudo, assistimos à proliferação de manuais de TMH, com idêntico poder dos impressos de Lógica, legitimados que estavam com a instituição da História na condição de licenciatura em muitos países.
Nesse novo tempo, as escritas já praticavam verdadeiros programas de Lógica (busca da verdade, métodos destinados à investigação e à exposição), mas sem a preocupação de citar esse ou aquele filósofo ou sistema.
Além disso, incorporavam como históricas as questões relativas à natureza da verdade e às respectivas regras de validação, construídas sob ideais de imparcialidade e de objetividade.
A situação, agora, se invertia, estando as Lógicas dispersas no interior dos manuais de Teoria da História ou de Introdução aos Estudos Históricos.
Notas
1 A literatura sobre a ars historica é extensa. Consultamos apenas os textos da coletânea de Giana Pomata e Nancy Siraisi (2005) e os trabalhos monográficos de Antony Grafton (2005, 2007).
2 Para o mapeamento dos textos mais influentes na construção dos manuais de Lógica, consultamos sínteses de “História da Lógica”(FRANK, 1838; BLAKEY, 1851; NEIL, 1859; CROCE, 1917; BELNA, 2014), os volumes do Handbook of the History of Logic (GABBAY; WOODS, 2004/2009) e artigos monográficos sobre autores e manuais.
3 Segue a descrição das partes da Lógica de Aristóteles: 1. “Categorias” – formas do pensamento; “Interpretação” – formas gerais de expressão do pensamento (verdadeiro, provável ou falso); “Analíticos” (demonstração) – formas de expressão da verdade; “Dialética” (ou “Tópica”) – formas da probabilidade; e “Sofística” – formas do erro. O método (ou a Lógica) é constituído pelas três formas de expressão: Analíticos (demonstração), Dialética (tópica) e Sofística. Categorias e Interpretação são partes propedêuticas.
4 Uma das mais significativas, para o nosso trabalho, foi contada recentemente por Sellberg Erland (2016), que explora as disputas pelas significações de “método” (adquirir ou exibir conhecimento), de “ordo” (ensinar ou exibir conhecimento) ou da maneira correta de proceder (do geral para o particular e vice-versa).
5 [Anleitungzudenfuernehmsten historischen Wissenschaften].
6 [Die allgemeinen Regeln der hiſtoriſchen Erkentniß].
7 [Historische Methodologie]
8 Nas notas de aulas ministradas, desde 1765 e publicadas em 1800, método é definido como a “maneira pela qual há de se conhecer completamente um certo objeto, ao conhecimento do qual ele deve ser aplicado” (p.37). Método tem como objeto as regras e como fim a “perfeição lógica do conhecimento”. (KANT [1800] 1992, p.158, p.160, p.163).
9 “A lógica do uso particular do entendimento contém as regras para pensar corretamente sobre um certo tipo de objetos. [Pode ser denominada] o organon desta ou daquela ciência [e] é apresentada nas escolas, muitas vezes, como propedêutica das ciências.” Kant (2012, p.97).
10 Também grafa “método do cálculo infinitesimal”, “método do cálculo diferencial”, “método matemático” (geométrico e analítico).
Referências
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Para citar este texto:
FREITAS, I. Lógicas e Métodos – Das Filosofias às Teorias da História. Ponta de Lança: Revista Eletrônica de História, Memória & Cultura. São Critóvão, v. 16, n. 31, p. 98 – 116, 3 fev. 2023. Disponível em <https://www.resenhacritica.com.br/a-cursos/logicas-e-metodos-das-filosofias-as-teorias-da-historia/>.
Critérios lógicos e retóricos para avaliação de resenhas acadêmicas
The work of the critic. comic –ar 650:433 | Imagem: IF/IA/Midjourney (jun. 2023)
Colegas, boa tarde!
Hoje vamos discutir critérios para avaliar resenhas acadêmicas, dentro do princípio de que um avaliador criterioso é também um potencial escritor criterioso.
Os critérios de avaliação de textos acadêmicos podem ser tipificados de forma varia. Um dos marcos definidores é a sua proveniência. Nesta direção, temos, por exemplo, critérios provenientes da lógica, critérios da retórica e critérios provenientes da epistemologia de domínio histórico (que somam elementos dos dois primeiros).
Os critérios provenientes da epistemologia do domínio histórico são o objeto da aula 3. Para aprofundamento e a rememoração sobre a historicidade da epistemologia histórica como lógica, clique aqui.
Nesta aula, nosso objetivo é apresentar definições e regras lógicas e retóricas que possibilitem a você avaliar uma resenha acadêmica, próximo aos padrões exigidos pela revista Crítica Historiográfica.
1. Pensamento crítico e argumento
Os critérios de avaliação de resenha que reunimos aqui são buscados em textos de Lógica e Retórica que têm por objeto de conhecimento o “pensar criticamente” ou o “pensamento crítico”.
Os critérios mobilizados com fins de pensamento crítico, quando respeitados, legitimam os argumentos dos resenhistas.
Várias das definições de pensamento em circulação (limitados às referências listadas ao final da aula) são fundadas na ideia de pensamento isento de erros, sob parâmetros mais gerais de verdade exigida pela ciência moderna.
Assim, pensar criticamente é a ação de raciocinar com método, como um cientista. (Haber, 2020, p.36). Pensar criticamente é mobilizar padrões de habilidades mentais superiores (Bassham, 2022, p.23).
Além de convergirem nas habilidades mentais exigidas, estudiosos do pensamento crítico reforçam a ideia de que o raciocinar criticamente é útil à compreensão de argumentos e crenças, à crítica de argumentos e crenças e ao desenvolvimento e defesa de argumentos e crenças (Canale, 2022, p.22, 34).
Por fim, especialistas em pensar criticamente definem um argumento como uma uma declaração justificada mediante razões, ou seja, uma declaração composta por duas ou mais premissas, como neste exemplo: “Os patriotas do 8 de janeiro devem ser presos porque atentaram contra o regime democrático de direito [Declaração]. Eles estavam uniformizados em verde e amarelo, planejaram as ações autoritárias, viajaram dois dias antes em caravanas de ônibus e depredaram as sedes dos poderes executivo, legislativo e judiciário [Evidências].”
As premissas são realizadas por sentenças. A primeira sentença fornece um juízo racional [Patriotas devem ser presos porque atentaram contra a democracia]. A segunda fornece prova/apoio [Planejaram ações autoritárias e depredaram as sedes dos poderes republicanos].
As sentenças devem funcionar como: afirmações, negações, comandos acompanhados por um julgamento ou perguntas retóricas acompanhadas por julgamento. As sentenças, por fim, podem comunicar declarações verdadeiras, falsas ou abertas.
- Exemplo de sentença afirmativa verdadeira: “Bolsonaro está no Brasil. “
- Exemplo de sentença afirmativa falsa: “Bolsonaro está morto”.
- Exemplo de sentença negativa verdadeira: “Bolsonaro não é mais o presidente da República”.
- Exemplo de sentença negativa falsa: “Bolsonaro nunca impediu a vacinação contra a Covid 19”.
- Exemplo de questão retórica: “Você deveria parar de defender Gilberto Uchoa. Não percebe que ele participou dos atos antidemocráticos em frente ao Quartel do 28 BC?”
- Exemplo de sentença que expressa comando: “Pare de defender o dono da Havan: conspiradores contra as eleições presidenciais não merecem o respeito de cidadãos, como você.”
- Exemplo de declaração aberta: “Deus não existe”.
2. Habilidades e obstáculos do pensamento crítico
Algumas das principais habilidades do pensamento crítico são, por si mesmas, padrões para a criação e a avaliação dos argumentos anunciados em resenhas. O reconhecimento e o desenvolvimento dessas habilidades, bem como dos obstáculos ao pensamento crítico fazem do avaliador de resenhas e do resenhista um potencial pensador crítico.
Nesse aspecto também a literatura é convergente. Em geral, autores listam qualidades do pensador crítico, com as que se seguem:
- Clareza – distinção do problema enfrentado, das alternativas e das vantagens e desvantagens de cada alternativa de resolução do problema.
- Precisão – uso de informação verdadeira na construção do argumento.
- Relevância – reconhecimento do que é pertinente/importante na argumentação.
- Consistência lógica – pensamento e comunicação coerente de coisas verdadeiras.
- Consistência prática – comunicação e ação coerentes.
- Correção lógica – pensamento ou comunicação com coerência entre a premissa de conclusão e a premissa de evidência.
- Completude – profundidade na busca, análise e interpretação dos dados e comunicação das conclusões.
- Justiça – comportamento imparcial (tratamento de pontos de vista e dos casos iguais com isonomia).
Já vimos que o pensamento crítico é benéfico à sociedade e ao cidadão. Ele auxilia a compreensão do argumento do outro, a crítica do argumento do outro e a construção de argumento para comunicarmos nossos interesses e posicionamentos.
Entretanto, diversas barreiras impedem que esse modo de pensar criterioso seja maioria na sociedade. (Bassham et al, 2023, p.37). Entre os obstáculos do pensamento crítico estão:
- Egocentrismo – predisposição para medir toda a realidade a partir dos próprios valores.
- Sociocentrismo – predisposição para medir toda a realidade a partir do pensamento do seu grupo, resultando em viés de grupo (nação, religião etc. superior às demais), tribalismo (lealdade) e conformismo (comportamento de rebanho).
- Suposições injustificadas – predisposição de classificar algo como certo (estereótipo) sem lançar mão de evidências.
- Relativismo – predisposição para tomar a verdade ou o comportamento como questão de opinião individual (subjetivismo epistêmico e subjetivismo moral) ou de opinião social ou cultural (relativismo cultural e relativismo moral).
- Pensamento positivo – predisposição para acreditar em algo porque lhe faz bem e não porque há evidências para tal.
Conhecidas as habilidades e os obstáculos do pensamento crítico, podemos concluir o tópico retirando um princípio de procedimento para o avaliador de resenhas acadêmicas. Ele deve identificar potenciais inibidores de raciocínio correto na escritura da obra, observando indícios da presença de egocentrismo, sociocentrismo, suposições injustificadas, relativismos e pensamento positivo.
Além disso, o avaliador de resenhas tem que estar habilitado a identificar e a jugar um texto sob o ponto de vista da sua clareza, precisão, relevância, consistência (lógica e prática), correção lógica, completude e justiça.
3. Conhecer e identificar falácias de relevância e falácias de evidência
A ação do avaliador de resenhas não se limita ao conhecimento ou a identificação de potenciais habilidades e impedimentos relacionados ao exercício do pensamento crítico. Ele deve dominar um corpo mínimo de definições e exemplos das principais proposições falaciosas que ele mesmo faz uso no seu dia adia.
Assim, a formação do avaliador de resenhas exige que ele avalie a sua própria forma de comunicar ideias, modifique as formas falaciosas de comunicar ideias e, em seguida, identifique as formas falaciosas com as quais os autores das obras resenhadas, eventualmente, comunicam suas ideias.
Etimologicamente, falácia significa: “Engano, trapaça, manha”. Nos dicionários de sinônimos é concebida como “qualidade do que é falaz; falsidade e definida em três modos: 1 afirmação inverídica; inverdade ‹não respondo a falácias nem a hipocrisias›; 2 fil. no aristotelismo, qualquer enunciado ou raciocínio falso que, entretanto, simula a veracidade; sofisma; 2.1 fil. na escolástica, termo usado para a caracterização do silogismo sofístico do aristotelismo, que consiste em um raciocínio verossímil, porém inverídico. (Houaiss, sd.).
Entre especialistas do pensamento crítico, “Uma falácia lógica – ou simplesmente falácia – é um argumento que contém um erro de raciocínio” (Bassham, 2022, p.215).
É possível tipificar as falácias mais comuns em dois grupos: falácias de relevância e falácias de evidência insuficiente.
3.1. Identificando falácias de relevância
Falácias de relevância “são erros de raciocínio que ocorrem porque as premissas são logicamente irrelevantes para a conclusão.” (Bassham, 2022, p.215).
Declarações relevantes são as que contam (as que são importantes), em geral, para o grupo de pessoas envolvidas na discussão: “Uma declaração é relevante para outra declaração se fornecer, pelo menos algum motivo para pensar que a segunda declaração é verdadeira ou falsa”, ou seja, se “fornece, pelo menos, alguma razão [positiva, negativa ou lógica] para pensar que a conclusão é verdadeira” (Bassham, 2022, p.215-216).
3.1.1. Exemplos de declarações de relevância positiva
- Antônia é aluna de Petrônio Domingues (P1). Petrônio Domingues somente orienta pesquisas sobre pós-abolicionismo (P2). Antônia investiga pós-abolicionismo (C). [Lógica]
A relevância positiva aqui reside na regra exclusiva imposta pela segunda premissa: Petrônio Domingues somente orienta pesquisas sobre pós-abolicionismo. Isso significa que todos os estudantes sob sua orientação, incluindo Antônia, necessariamente estão pesquisando pós-abolicionismo. Portanto, se Antônia é aluna de Petrônio Domingues, de acordo com a regra estabelecida na Premissa 2, ela estará inevitavelmente investigando o pós-abolicionismo. As premissas (P1 e P2) fornecem evidências que, sob essas condições, forçam a conclusão (C) a ser verdadeira, demonstrando a relevância positiva de maneira forte e lógica.
- Antônia é aluna de Petrônio Domingues (P1). Petrônio Domingues é especialista em pós-abolicionismo (P2). Antônia investiga pós-abolicionismo (C). [Plausível]
A relevância positiva aqui está no fato de que, em geral, os alunos tendem a seguir a especialidade de seus orientadores. Então, se Antônia é aluna de Petrônio Domingues e ele é especialista em pós-abolicionismo, isso aumenta a probabilidade de Antônia estar investigando o pós-abolicionismo. Portanto, as premissas (P1 e P2) fornecem evidências que apoiam a conclusão (C), o que demonstra a sua relevância positiva.
3.1.2. Exemplo de declaração de relevância negativa
- Antônia flerta com partidos racistas e xenófobos de extrema direita (P1). Ela possui todos os requisitos para se transformar em uma liderança do Movimento Negro Unificado do bairro Rosa Else (P2).
A relevância negativa aqui está no fato de que há uma contradição implícita entre as declarações. Os movimentos de direitos dos negros geralmente se opõem fortemente ao racismo e à xenofobia, princípios muitas vezes associados a partidos de extrema direita. Portanto, se Antônia flerta com tais partidos, isso enfraquece a probabilidade de ela ser vista como uma potencial liderança em um movimento que se opõe a tais princípios. Portanto, a primeira afirmação é negativamente relevante para a segunda, pois fornece informações que, se verdadeiras, tornam a segunda afirmação mais provável de ser falsa.
3.1.3. Exemplos de declarações de irrelevância lógica
- Antônia é aluna de Petrônio Domingues, pesquisador do pós-abolicionismo (P1). Então, provavelmente, Antônia conhece todas as contradições comunicadas pelos pesquisadores que escrevem sobre a experiência dos negros no pós-abolição. (C).
A irrelevância lógica aqui está no fato de que, apesar de Antônia ser aluna de Petrônio Domingues, um especialista em pós-abolição (P1), isso não garante que ela conheça todas as contradições comunicadas pelos pesquisadores que escrevem sobre a experiência dos negros no pós-abolição (C). Apesar de o professor Petrônio Domingues ser um especialista em pós-abolição, e portanto Antônia ter algum grau de familiaridade com o campo, a conclusão de que ela conheça todas as contradições deste campo de estudo é um salto lógico grande demais baseado apenas nesta premissa. Há muitos outros fatores que podem afetar o nível de conhecimento de Antônia sobre as contradições no pós-abolição, como a profundidade dos seus estudos sob a orientação de Petrônio, o tempo que ela tem estudado o assunto, entre outros.
3.1.4. Falácias mais comuns
Agora que você conhece as declarações de relevância positiva, de relevância negativa e de irrelevância lógica, leia os tipos que se seguem e tente localizar no seu próprio discurso cotidiano alguns dos tipos mais frequentes de falácias lógicas.
Se você comete estes erros de raciocínio, está na hora de corrigi-los. Se você encontrar alguns desses erros durante a leitura da obra resenhada, deve anotar imediatamente, sob pena de abonar erros crassos em lógica.
- “Veja só quem está falando!” (atacar o caráter do argumentador).
- “Ela é a pessoa mais interessada!” (atacar o motivo do argumentador).
- “Você não tem moral para falar…” (atacar a hipocrisia do argumentador).
- “Erro maior cometeu fulano e ninguém reclamou…! (justificar um erro maior por outro menor).
- “Você sabe com quem está falando?” (ameaçar o argumentador ou o ouvinte).
- “Professor, tenha compaixão de nós!” (evocar piedade ao argumentador ou ao ouvinte).
- “Todo mundo faz isso, porque só eu não posso?” (evocar o direito de ser aceito ou valorizado segundo a moda/onda).
- “Você mesmo acabou de dizer que…” (deturpar a visão/fala do argumentador).
- “Isso não é verdade, como eu acabo de provar! (desviar o foco com uma prova que não responde à questão inicial ou distrair o argumentador ou o público).
- “É exatamente como eu entendo…” (usar o sentido de uma palavra quando o contexto demanda outro) e reafirmar a conclusão com palavras diferentes.
3.2. Identificando falácia de evidência insuficiente
Falácias de evidência insuficiente são “erros de raciocínio em que as premissas, embora relevantes para a conclusão, não fornecem evidências suficientes para a conclusão” (Bassham, 2022, p.250).
Entre mais de uma dezenas de falácias do tipo, os especialistas citam: declaração citada incorretamente; declaração citada fora do contexto; declaração que contradiz a opinião de especialistas; declaração sobre algo do qual não se conhecem os especialistas; declaração de algo explicitamente improvável e declaração de algo falso.
São também comuns as falácias do tipo:
- Requisição inapropriada à autoridade (autoridade/testemunha não confiável), ou seja, de pessoa incompetente no assunto: “O professor Itamar Freitas afirmou que Clovis Moura é ambivalente em termos de critério de julgamento dos movimentos negros no Brasil pós abolição.”
- Declaração tendenciosa (ou de testemunha tendenciosa) à mentira ou ao engano: “Não devemos permitir a demarcação o de terras para negros auto identificados como quilombolas porque tal política estimula a preguiça e reduz a produtividade do trabalho no campo.
- Declaração imprecisa: “Antônia é negra. Ela adora a cultura hip-hop. (Testemunha imprecisa).
- Declaração (ou declaração de pessoa) reconhecidamente não confiável: “cota racial, assim como várias ações puxadas pelo ‘movimento negro’, são meros programas partidários.” (Hélio Bolsonaro).
Conclusão
Nesta aula, apresentamos categorias e procedimentos que podem capacitá-lo a avaliar uma obra e, em seguida, escrever uma resenha de modo crítico, ou seja, atribuindo valores a partir de critérios retóricos e lógicos que estão na base do pensamento crítico moderno.
Assim, no trabalho com resenhas devemos admitir que: 1. criticar é atribuir valor (I. Kant); 2. a crítica se exerce, dominantemente, sobre os argumentos do autor da obra resenhada (declaração + evidências); 3. os argumentos podem possuir declarações verdadeiras, falsas ou abertas; 4. Podem cometer falácias de relevância e falácias de evidência.
Apontar estes problemas nas resenhas de livro é uma jeito simples de contribuir com a formação de pesquisadores das humanidades alinhados aos princípios epistêmicos/éticos implantados pela ciência moderna, nos últimos quatro séculos, e que regem a pesquisa acadêmica universitária, no caso brasileiro, desde o início do século XX.
Referências
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Para citar este texto:
FREITAS, Itamar. Critérios lógicos e retóricos para avaliação de resenhas acadêmicas. Resenha Crítica. 15 jun. 2023. Disponível em <https://www.resenhacritica.com.br/todas-as-categorias/criterios-logicos-e-retoricos-para-avaliacao-de-resenhas-academicas/>.
El culto a Juárez. La construcción retórica del héroe (1872-1976) | Rebeca Villalobos Álvares
Benito Juárez es una de las figuras heroicas por antonomasia de México, por lo que ha sido objeto de análisis en diferentes estudios que se han abocado a entender diferentes aspectos de su vida política, así como el aspecto mítico del originario de Oaxaca. Justamente, es lo referente al mito en lo que se enfoca Rebeca Villalobos en su libro, estudiando para ello la construcción retórica del héroe a partir de diversas representaciones relacionadas con el culto a Juárez.
La autora advierte que a Benito Juárez la muerte le sentó bien, pues a partir de su deceso ocurrido el 18 de julio de 1872, se desplegaron una serie de ceremonias fúnebres en honor al presidente. La autora se pregunta cuáles fueron las razones y mecanismos que llevaron a considerar a Juárez como uno de los héroes más importantes de la historia de México, para darse, a continuación, a la tarea de visibilizar las implicaciones políticas, retóricas y estéticas en la construcción de la figura heroica del hijo de Guelatao, además de observar los atributos más representativos de su imagen y las estrategias con las que fue difundida. Esto con el fin de identificar “cuáles han sido sus transformaciones más notables y cuáles las más significativas implicaciones de estos cambios” (p. 17). Leia Mais
Trajetória das paixões: uma retórica da alma | Maria Flávia Figueiredo, Acir de Matos Gomes e Luana Ferraz
Em meio ao pandêmico ano de 2020, que transformou profundamente a forma com que concebemos a difusão do conhecimento no meio acadêmico – que hoje, mais do que nunca, acontece principalmente de forma remota–, o Grupo PARE (Pesquisa em Argumentação e Retórica), sediado na Universidade de Franca (UNIFRAN) e certificado pelo CNPq desde 2013, compôs a obra a qual esta resenha faz referência, Trajetória das paixões: uma retórica da alma.
O PARE é um grupo composto de pesquisadores que se encontram em diferentes níveis na carreira acadêmica. Tal diversidade possibilita um sistema de contribuição entre os seus membros, chamado de orientação em cascata. Por meio desse sistema, pessoas que se encontram em níveis acadêmicos mais avançados auxiliam e orientam colegas que também trilham o caminho acadêmico. À vista disso, o grupo conta com professores titulares, pós-doutores, doutores, mestres, especialistas, graduados e alunos de Iniciação Científica. Leia Mais
Mikhail Bakhtin. Rhetoric, Poetics, Dialogics, Rhetoricality (D. Bialostosky)
BIALOSTOSKY, Don. Mikhail Bakhtin. Rhetoric, Poetics, Dialogics, Rhetoricality [Mikhail Bakhtin: retórica, poética, dialógica, retoricalidade]. Anderson, South Carolina: Parlor Press, 2016. 191 p. Resenha de: PISTORI, Maria Helena Cruz. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.12 n.3 São Paulo Set./Dec. 2017.
Inicio esta apresentação destacando e comentando o título da obra, Mikhail Bakhtin: retórica, poética, dialógica, retoricalidade. A enumeração, aposta ao nome do filósofo russo, claramente representa uma síntese feliz de duas trajetórias: a primeira, a do próprio autor – Don Bialostosky, cujo percurso intelectual se inicia com o interesse pelas disciplinas do trivium, especialmente a Retórica e a Poética, passando depois a relacioná-las à obra de Bakhtin; a segunda, a trajetória do próprio livro, que coloca em diálogo a obra bakhtiniana com esses outros campos de conhecimento e, por muitas vezes, propõe leituras bastante originais, chegando à “dialógica” e, depois, à “retoricalidade”. Implicitamente, e dando unidade aos textos, está o compromisso do autor com o ensino da produção textual escrita, aspecto que também se destaca ao longo de todos os artigos.
O nome de Don Bialostosky – segundo a contracapa da obra, professor na área de Redação, Letramento, Pedagogia e Retórica, além de Chefe do Departamento de Inglês da University of Pittsburgh, Pennsylvania2 -, chama a atenção dos brasileiros ou por seu interesse na obra do Círculo – no Posfácio da tradução de Para uma filosofia do ato responsável, Faraco cita seu diálogo (polêmico) com Morson e Emerson (BAKHTIN, M. São Carlos – SP: Pedro&João Ed., 2010, p.148); ou, principalmente, como é o meu caso, por seus trabalhos que relacionam a obra bakhtiniana à retórica.
Fruto de pesquisas profundas tanto dos clássicos como da obra do Círculo de Bakhtin, os ensaios aqui reunidos surgem dos diálogos que Bialostosky encetou durante sua carreira, com diferentes interlocutores. Na realidade, trata-se da reunião de trabalhos publicados desde 1986, de forma esparsa, por instituições acadêmicas como a Modern Languagem Association (PMLA), ou a Rhetoric Society of America, ou organizados em livro por acadêmicos, preferentemente americanos. E em todos eles vamos observar que o autor sempre está respondendo a alguma questão, ora refutando, ora confirmando, discordando, antecipando as respostas contrárias e objeções potenciais, procurando apoio, etc. Dá espaço aos interlocutores contemporâneos, porém vai apresentá-los sempre criticamente, assim como faz com aqueles parceiros mais constantes, Aristóteles e Bakhtin. Embora apenas no último artigo afirme que vai manter nele o registro da presença das vozes de seus ouvintes e os comentários dos colegas – em geral, os artigos surgiram de comunicações orais em congressos -, os diálogos e polêmicas inscritos em todos os textos são facilmente recuperáveis numa leitura atenta, mesmo se velados.
Já no Prefácio, Don Bialostosky conta de sua descoberta da obra de Mikhail Bakhtin, em 1984, e da primeira apresentação de um trabalho sobre as implicações da teoria bakhtiniana para o ensino da produção de uma voz autêntica nos textos de estudantes universitários, na convenção da Conference on College Composition and Communication (CCCC) [Conferência sobre Produção Textual Universitária e Comunicação]. Naturalmente, começa lembrando o fato de a retórica ser marginal na obra bakhtiniana, com referências quase hostis e reducionistas. Justamente por isso, uma das principais questões que busca responder ao longo dos artigos é sobre o porquê de Bakhtin, autor que não tem nada de bom a dizer sobre a retórica, ser obrigatório e produtivo para estudantes de retórica e produção textual hoje.
Na Introdução, apresenta-nos vários autores que procuraram compreender Mikhail Bakhtin e o Círculo, relacionando-os a uma crítica retórica, e aponta a inclusão de suas obras em publicações na área de comunicação, retórica e composição. Para aqueles interessados tanto na retórica quanto na teoria do discurso bakhtiniana, e ainda no ensino de língua/linguagens, a leitura deste início é indispensável, não apenas como uma necessária e rica contextualização do que vem a seguir, mas também como fonte de indicações bibliográficas na área.
O livro está dividido em duas partes, que correspondem aos dois momentos em que a obra do Círculo foi traduzida para o inglês. Assim, na primeira parte Dialógica, retórica, crítica [Dialogic, Rhetoric, Criticism], o diálogo do autor se dá principalmente com Problemas da poética de Dostoiévski (BAKHTIN, M. M.), Marxismo e filosofia da linguagem (VOLOSHINOV, V. N.), O discurso na vida e o discurso na poesia (VOLOSHINOV, V. N.)3 e os textos que compõem a coletânea The Dialogic Imagination (BAKHTIN, M. M.)4, todos traduzidos antes de 1990. Conforme Bialostosky, neste momento, a “dialógica” é a questão mais importante para aqueles que trabalham com retórica e composição, e ele a define como a quarta arte do trivium já no primeiro artigo, Dialógica como uma arte do discurso (2) [Dialogics as an Art of Discourse]. Na construção de seu argumento, parte da oposição aristotélica entre retórica – arte do discurso centrada nas pessoas, e dialética – arte do discurso centrada em ideias/teses -para a compreensão do que considera a “arte bakhtiniana”, a dialógica – centrada na inseparabilidade entre ideias e pessoas, tal como Bakhtin coloca em Problemas da poética de Dostoiévski – a imagem de uma ideia é inseparável da imagem de uma pessoa, aquela que carrega a ideia. Se a dialética luta pela convicção numa questão e a retórica pela persuasão de uma audiência, a dialógica luta por uma responsividade compreensiva, e uma responsabilidade consequente entre pessoas-ideias de um tempo, uma cultura, uma comunidade, ou uma disciplina. A partir desses princípios, dialoga com outros autores, como Tzvetan Todorov, Merle Brown, Richard Rorty e Hans-Georg Gadamer, mostrando que os 25 séculos de história do trivium no Ocidente também deixaram marcas em suas ideias. No entanto, apenas a dialógica, segundo ele, permite o diálogo entre a retórica, a dialética e o discurso dos teóricos atuais, possibilitando a articulação das diferenças entre eles. Este capítulo proposicional é um dos mais importantes no livro, ainda que, na realidade, os outros o complementem, esclarecendo melhor as possibilidades dialógicas entrevistas por Bialostosky entre a obra bakhtiniana e as artes do trivium.
O capítulo seguinte (3), Booth, Bakhtin e a cultura da crítica [Booth, Bakhtin, and the Culture of Criticism], é dedicado ao exame da crítica retórica a partir da visão pluralista de crítica literária contemporânea de Wayne Booth. Orientador de tese de Bialostosky, autor de The rhetoric of fiction5, introdutor da tradução de Problemas da poética de Dostoiévski e aristotelista da Escola de Chicago, é a ele que esta obra é dedicada. Bialostosky faz a leitura da obra de Booth, afirmando que ele, ao tentar chegar a bons termos com o trabalho do Círculo, defende (impositivamente) um posicionamento em relação às outras possibilidades de crítica que mais o aproxima da retórica do que da dialogia. Em Retórica, crítica literária, teoria e Bakhtin (4) [Rhetoric, Literary Criticism, Theory, and Bakhtin], defendendo a possibilidade de uma crítica retórica para a leitura de trabalhos literários de todos os tempos, o capítulo se dedica inicialmente a tratar do debate entre o desconstrutivismo e a Escola de Chicago (aristotélica). A seguir, dialoga com a leitura que Jeanne Fahnestock6 faz das figuras de pensamento como elementos de interação contextual, ampliando-a bakhtinianamente.
O quinto capítulo (5) denomina-se Bakhtin e a crítica retórica [Bakhtin and Rhetorical Criticism]. Trata-se de um ensaio bastante interessante para aqueles que se surpreendem com a posição hostil de Bakhtin em relação à retórica, querendo compreendê-la. Sua origem é o debate dos trabalhos de Kay Halasek e Michael Bernard-Donals, numa convenção da Modern Language Association, em 1990. Em relação à primeira, que atribui a hostilidade de Bakhtin à sua recusa a um monologismo e dogmatismo “em defesa da autoridade opressora” (o regime soviético), propondo uma retórica dialógica, Bialostosky recorre a texto de Nina Perlina. Segundo essa última, Bakhtin se opõe, de fato, ao teórico retórico formalista seu contemporâneo, Victor Vinogradov, uma voz oficial da propaganda soviética, para quem a retórica é um jogo agonístico, cuja intenção principal é tornar sua oratória a única manifestação discursiva efetiva de autoridade (Com certeza, posição a conferir!). Quanto a Bernard-Donals, que almeja uma abordagem mais científica ao debate retórica, responde sobretudo com as oposições aristotélicas entre retórica, dialética e analítica, atribuindo ao interlocutor uma posição platônica. O final do ensaio deve despertar um interesse especial nos educadores, pois o autor retoma a exercitatio retórica e suas semelhanças com o processo bakhtiniano de apropriação de palavras (a palavra própria e as semi-alheias), propondo que “[U]uma pedagogia crítica e produtiva da poderosa articulação entre retórica e dialógica pode se desenvolver por meio do aprofundamento da história e da prática da exercitatio em combinação com reflexões ulteriores acerca da formação dialógica do sujeito”7.
Finalizando a primeira parte o capítulo 6, Antilógica, dialógica e psicologia sofística social [Antilogics, Dialogics, and Sophistic Social Psychology] articula a dialógica com o renascimento dos sofistas na recente teoria retórica, e examina trabalhos do sociólogo Michael Billig sobre a retórica de Protágoras. O autor começa, então, a reelaborar a polêmica definição de retórica já apresentada, diluindo-a num não institucionalizado processo discursivo – uma “retoricalidade”, na segunda parte do livro.
É em torno dos textos de Bakhtin com tom mais filosófico, traduzidos posteriormente para o inglês – a coletânea Art and Answerability8, em 1990, e Toward a Philosophy of Act9, em 1993 -, que Bialostosky reúne os ensaios da segunda parte, Arquitetônica, poética, retoricalidade, educação liberal [Architectonics, Poetics, Rhetoricality, Liberal Education]. Considera-os, de fato, igualmente importantes para os trabalhos com a linguagem e a literatura e continua a buscar neles contribuições para uma renovada compreensão das artes do trivium, refutando uma leitura de Para uma filosofia do ato (PFA) como basicamente um tratado de ética. Ao longo dos ensaios, o autor conduz o leitor à noção de “retoricalidade”, difundida por Bender e Wellbery10, que caracterizam os trabalhos de Bakhtin como “tratados virtuais sobre a natureza e funcionamento da retoricalidade”, uma “retórica generalizada que penetra os mais profundos níveis da experiência humana, … não limitada por nenhuma organização institucional, … não mais o título de uma doutrina e de uma prática… [mas] alguma coisa como a condição de nossa existência” (p.14; minha tradução)11. Bialostosky abraça essa perspectiva dinâmica, preferível a uma arte dialógica disciplinada, restritiva ou reguladora, segundo ele.
No capítulo 7, O rascunho grosseiro de Bakhtin [Bakhtin’s ‘Rough Draft’], os interlocutores preferenciais do autor são Gary S. Morson e Caryl Emerson, especialmente em Mikhail Bakhtin: Creation of a Prosaics12; mas outros ainda que, como Helen Rothschild Ewald, defendem uma nova ênfase a questões éticas nesses primeiros trabalhos, praticamente invalidando quase uma década de apropriação da obra de Bakhtin nos estudos de composição, de modo predominantemente socioconstrutivista. Basicamente, Bialostosky não concorda com a leitura realizada por Morson e Emerson, que reduz a importância da linguagem e da sociedade na obra bakhtiniana, alegando que maior atenção deveria ser atribuída a “histórico”, como epíteto do ato responsável, assim como do enunciado concreto.
O capítulo 8, Arquitetônica, retórica e poética no primeiros estudos fenomenológicos e sociológicos do Círculo de Bakhtin [Architectonics, Rhetoric, and Poetics in the Bakhtin School’s Early Phenomenological and Sociological Texts] dá continuidade à argumentação anterior. E, junto aos dois seguintes, cap. 9 – A Retórica de Aristóteles e a teoria do discurso de Bakhtin [Aristotle’s Rhetoric and Bakhtin’s Discourse Theory] e cap.10 – Relendo o papel da retórica na Poética de Aristóteles à luz da teoria do discurso de Bakhtin: retórica como dianoia, poética como uma imitação da retórica [Rereading the Place of Rhetoric in Aristotle’s Poetics in Light of Bakhtin’s Discourse Theory: Rhetoric as Dianoia, Poetics as an Imitation of Rhetoric], são os ensaios que buscam mais detalhadamente compreender uma retórica bakhtiniana, concomitantemente a uma retórica e a uma poética clássicas a partir da teoria do discurso do Círculo. Nesses três capítulos, o autor nos leva a raciocinar em termos de categorias da retórica, da poética e da teoria do discurso bakhtiniana, abordando tanto os primeiros quanto os demais trabalhos de Bakhtin e membros do Círculo, e apontando o impacto que exercem na reconsideração de ambas as disciplinas clássicas. Indico a seguir apenas algumas questões levantadas por Bialostosky: a oposição de Bakhtin a um conhecimento sistematizado ou racionalizado em PFA aproximaria seu pensamento do modo de raciocínio retórico; a preocupação de seus textos com participação, avaliação, decisão e ação, e a questão do tom emotivo-volitivo, revelariam uma preocupação comum à retórica; o reconhecimento de que Bakhtin estrutura seu trabalho sobre a poética de Dostoiévsky a partir do fundo teórico da Poética de Aristóteles; ou ainda a observação de que, “em sua teoria do discurso, ele reabilita a mais abjeta parte da retórica aristotélica, a actio” – tratando do enunciado concreto, efetivamente realizado, “e subordina a mais importante – inventio, à dispositio, elocutio e actio13. A plena exposição do profundo raciocínio argumentativo do autor naturalmente não caberia em uma resenha…
Educação liberal, escrita e o indivíduo dialógico (11) [Liberal Education, Writing, and the Dialogic Self], o último artigo, é seu primeiro trabalho sobre Bakhtin e o ensino da escrita. Em parte um metatexto, na medida em que é um texto sobre a produção de textos, expondo o próprio trabalho de produção textual do autor, conta-nos das revisões e atualizações efetuadas no antigo manuscrito para inseri-lo nesta coletânea, das modificações requeridas ao mudar sua audiência, ou mesmo ao transformar a comunicação oral em escrita. Respondendo a teorias expressivistas e socioconstrutivistas, afirma que “ensinar a escrever de uma perspectiva dialógica é diferente de fazê-lo a partir de outras teorias sociais do discurso, em sua visão de pessoas ideologicamente situadas, envolvidas em lutas sobre o sentido das coisas e a propriedade das palavras” (p.152; minha tradução)14. Por meio de tal perspectiva, dá-se a descoberta da interação discursiva entre as disciplinas e suas diferentes linguagens, e a construção dialógico-discursiva do indivíduo, afirma. Enfim, segundo Bialostosky, a teoria bakhtiniana nos “alerta sobre as limitações em nossos modelos retóricos e, ao mesmo tempo, sugere modos de transcendê-las, ainda que sob o risco de perder a retórica, ou ao menos a retórica tal como a conhecemos”15 (p.13; minha tradução). Essa questão, a meu ver, o autor ousa enfrentar teórica e praticamente com sucesso e proveito, numa obra que mostra a coerência e a unidade do pensamento que desenvolveu ao longo de toda a carreira profissional.
Finalmente devo acrescentar que a obra apresenta uma lista de referências bastante útil para aprofundamento de qualquer um dos tópicos tratados, e um bem cuidado índice onomástico. Mas quero destacar ainda mais uma questão: a leitura da coletânea também oferece, com muita clareza, as condições concretas em que são produzidos os diferentes ensaios e, então, exotopicamente, observamos particularmente a grande importância do ensino da produção textual na universidade americana, ao lado da efervescência dos estudos retóricos, intimamente ligados às disciplinas de redação – composição de texto (acadêmico, poético ou ficcional) e crítica textual. Boa reflexão para nossas universidades…
2Currently he is Professor in the Composition, Literacy, Pedagogy, and Rhetoric track and Chair of the English Department at the University of Pittsburgh.
3VOLOSHINOV, V. N. Marxism and the Philosophy of Language. Trans. L. Matejka and I. R. Titunik. New York: Seminar, 1973; Discourse in Life and Discourse in Art. In Freudianism: A Critical Sketch. Ed. Neil H. Bruss. Trans. I. R. Titunik. Bloomington: Indiana University Press, 1987. Sem constar da tabela da p.vi, mas também citados: Os gêneros do discurso [The Problem of Speech Genres], que no inglês se encontra em BAKHTIN, M. M. Speech Genres and Other Late Essays. Ed. Michael Holquist and Caryl Emerson. Trans. Vern W. McGee. Austin: University of Texas P, 1986; Apontamentos de 1970-1971 [Extracts from ‘Notes’ (1970-1971)], que se encontra em BAKHTIN, M. M. Bakhtin: Essays and Dialogues on His Work. Ed. Gary Saul Morson. Chicago: University of Chicago Press, 1986; e Rabelais and His World. Trans. Helene Iswolsky. Cambridge, MA: MIT Press, 1968.
4BAKHTIN, M. M. The Dialogic Imagination. Four Essays. Edited and translated by Michael Holquist and Caryl Emerson. Austin: University of Texas Press, 1982. No inglês, encontram-se na coletânea os seguintes ensaios: O discurso no romance [Discourse in the novel]; Da pré-história do discurso romanesco [From the Prehistory of Novelistic Discourse]; Epos e romance (Sobre a metodologia do estudo do romance) [Epic and Novel]; e Formas de tempo e de cronotopo no romance (Ensaios de poética histórica) [Forms of Time and of the Chronotope in the Novel].
5The Rhetoric of Fiction. Chicago: University of Chicago Press, 1961.
6Rhetorical Figures in Science. New York: Oxford UP, 1999.
7No original: “A critically fruitful and pedagogically powerful articulation of rhetoric and dialogics might well grow out of further excavation of the history and practice of exercitatio in combination with further reflection on the dialogic formation of the subject” (p.72).
8BAKHTIN, M. M. Art and Answerability. Early Philosophical Essays by M. M. Bakhtin. Edited by Michael Holquist and Vadim Liapunov. Translation and notes by Vadim Liapunov. No inglês, encontram-se nesta coletânea os seguintes ensaios: Arte e responsabilidade [Art and Answerability (1919)], O autor e a personagem na atividade estética [Author and Hero in Aesthetic Activity (ca. 1920-1923)], Suplemento: O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária [Supplement: The Problem of Content, Material, and Form in Verbal Art (1924).
9BAKHTIN, M. M. Toward a Philosophy of the Act. Edited by Vadim Liapunov & Michael Holquist. Translation and notes by Vadim Liapunov. Texas: University of Texas Press, 1993.
10BENDER, J.; WELLBERY, D. E. The Ends of Rhetoric: History, Theory, Practice. Palo Alto: Stanford University Press, 1990.
11No original: “virtual treatises on the nature and functioning of rhetoricality” (p. 37), a “generalized rhetoric that penetrates to the deepest levels of human experience, . . . bound to no specific set of institutions, . . . no longer the title of a doctrine and a practice . . . [but] something like the condition of our existence” (p.25).
12MORSON, G. S.; EMERSON, C. Mikhail Bakhtin: Creation of a Prosaics. Palo Alto: Stanford University Press, 1990.
13No original: “In his theory of discourse, he rehabilitates the most abjected part of Aristotle’s rhetoric-delivery-and he subordinates Aristotle’s most important part-invention-to arrangement, style, and delivery” (p.122).
14No original: “A dialogic orientation to teaching writing differs from other social theories of discourse in its vision of ideologically situated persons involved in struggles over the meanings of things and the ownership of words” (p.152).
15No original: “His work alerts us to limitations in our rhetorical models and at the same time suggests ways to transcend them, even at the risk of losing rhetoric, or at least rhetoric as we know it” (p.13).
16Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP/Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso, São Paulo, São Paulo, Brazil; mhcpist@uol.com.br
17BAKHTIN, M. Problems of Dostoevsky’s Poetics. Translated into English by Caryl Emerson. Minneapolis, MN: University of Minnesota Press, 1984
18VOLOŠINOV, V. Marxism and the Philosophy of Language. Trans. L. Matejka and I. R. Titunik. New York: Seminar, 1973; Discourse in Life and Discourse in Art. In Freudianism: A Critical Sketch. Ed. Neil H. Bruss. Trans. I. R. Titunik. Bloomington: Indiana University Press, 1987. And without being directly referred in the table on p.vi, he also cites: The Problem of Speech Genres, which is in BAKHTIN, M. Speech Genres and Other Late Essays. Ed. Michael Holquist and Caryl Emerson. Trans. Vern W. McGee. Austin: University of Texas P, 1986; Extracts from ‘Notes’ (1970-1971), which is in BAKHTIN, M. Bakhtin: Essays and Dialogues on His Work. Ed. Gary Saul Morson. Chicago: University of Chicago Press, 1986; and, Rabelais and His World. Trans. Helene Iswolsky. Cambridge, MA: MIT Press, 1968.
19BAKHTIN, M. M. The Dialogic Imagination: Four Essays. Edited and translated by Michael Holquist and Caryl Emerson. Austin, TX: University of Texas Press, 1982. In this collection, we find the following essays: Discourse in the novel, From the Prehistory of Novelistic Discourse, Epic and Novel, and Forms of Time and of the Chronotope in the Novel.
20BOOTH, W. The Rhetoric of Fiction. Chicago: University of Chicago Press, 1961.
21FAHNESTOCK, J. Rhetorical Figures in Science. New York: Oxford UP, 1999.
22BAKHTIN, M. M. Art and Answerability: Early Philosophical Essays by M. M. Bakhtin. Edited by Michael Holquist and Vadim Liapunov. Translation and notes by Vadim Liapunov. Austin, TX: University of Texas Press, 1990. In this collection, we find the following essays: Art and Answerability (1919), Author and Hero in Aesthetic Activity (ca. 1920-1923), Supplement: The Problem of Content, Material, and Form in Verbal Art (1924).
23BAKHTIN, M. M. Toward a Philosophy of the Act. Edited by Vadim Liapunov & Michael Holquist. Translation and notes by Vadim Liapunov. Austin, TX: University of Texas Press, 1993.
24MORSON, G. S.; EMERSON, C. Mikhail Bakhtin: Creation of a Prosaics. Standford, CA: Stanford University Press, 1990.
Maria Helena Cruz Pistori – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP/Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso, São Paulo, São Paulo, Brasil; mhcpist@uol.com.br.
Convergencias teóricas: usos y alcances de la retórica – VIDAL; CISNEROS (C)
VIDAL, G. R.; CISNEROS, É. L. Convergencias teóricas: usos y alcances de la retórica. México: IIF/Unam, 2015. Resenha de: PAULA, Erico Lopes Pinheiro de. Conjectura, Caxias do Sul, v. 22, n. 3, p. 618-622, set/dez, 2017.
A obra é o 32º volume da Colleción Bitácora de Retórica, editada pelo Instituto de Investigaciones Filológicas da Universidad Nacional Autónoma de México (IIF/Unam). O trabalho foi organizado pelos professores Gerardo Ramírez Vidal e Érika Linding Cisneros, com o subtítulo “Homenaje a Helena Beristáin”. A coletânea reuniu 17 textos acadêmicos, para marcar os dois anos de falecimento da pesquisadora emérita do IIF/Unam. Sobre os organizadores, Vidal foi secretário-geral da Asociación Latinoamericana de Retórica entre 2010 e 2012. O pesquisador desenvolve projetos individuais com enfoque no movimento sofístico nos séculos 5-6 a.C. na Grécia. Cisneros é membro do Sistema Nacional de Investigadores no México, desde 2007, e direciona seus trabalhos ao fenômeno da construção do pensamento social e político.
Logo na apresentação, os organizadores citam quais seriam as aplicações atuais para a disciplina “Retórica”. Segundo Vidal e Cisneros, entre as atividades teóricas e didáticas empreendidas de forma subjacente, a retórica possibilita investigar questões teóricas e metateóricas, relacionando-as com um sistema crítico. A seção também sistematiza breve apresentação dos artigos reunidos, analisando-os em três capítulos independentes. Leia Mais
A vertigem da Palavra. Retórica, Política e Propaganda no Estado Novo – ACCAIUOLI; FERRO (LH)
ACCAIUOLI Margarida; FERRO, António. A vertigem da Palavra. Retórica, Política e Propaganda no Estado Novo. Lisboa: Bizâncio, 2013. Resenha de: VICENTE, Filipa Lowndes. Ler História, n.65, p. 182-188, 2013.
1 Em 1923, António Ferro publicou no Brasil A Idade do Jazz Band1. O texto fazia um elogio ao jazz – um símbolo «frenético, diabólico, destrambelhado, ardente» da contemporaneidade. Num momento em que este tipo de música era ainda incompreendido por uma vasta maioria, vilipendiado por atentar contra a harmonia musical e usado para fundamentar teorias racistas que o associavam à música negra, o jazz era para Ferro o símbolo de uma Europa renascida depois da Grande Guerra, e aberta ao que vinha do outro lado do Atlântico.
2 Nas décadas de 20 e 30, Ferro era ainda um jovem intelectual inquieto. Politizado, sem ser ainda político. Sempre em movimento, num entra e sai do país. Manifestava-se em múltiplos escritos – uns para consumo interno, outros destinados a públicos externos. Foi o caso da entrada que redigiu sobre o regime político português, na prestigiada Encyclopédie Française dirigida pelo historiador Lucien Febvre (1933)2. Uma sinopse do «Estado Novo», integrada num capítulo dedicado aos «outros regimes autoritários», aqueles que não cabiam na categoria dos «regimes fascistas», nem nos «regimes nacionais-socialistas». Uma entrada que era, sobretudo, um elogio a Salazar e ao seu modo de ser um português suave com mão de ferro.
3 Mas a vasta obra publicada de Ferro não foi um gesto silencioso e solitário. Intelectual de ação, a sua palavra impressa era, em geral, registo de um discurso oral, do diálogo-entrevista, da conferência proferida, no Rio de Janeiro ou em Lisboa. Em voz alta, pronunciada à frente de um público, discursada ao microfone, Ferro aprendeu bem a utilizar o melhor de todos os meios de comunicação disponíveis, quer na sua própria escrita, quer nas múltiplas vertentes de comunicação usadas pelos órgãos institucionais ou culturais que dirigiu.
4 Ferro traz para Portugal o mundo «lá de fora» onde ele identifica os traços do que era «moderno» na música, literatura, pintura, arquitetura ou escultura, bem como nos protagonistas dos novos fascismos europeus. Enquanto repórter jornalístico fez entrevistas a D’Annunzio, Mussolini ou mesmo Hitler, e transformou-as no livro Viagem à volta das Ditaduras, que antecedeu as suas conversas, mais longas, com Salazar. Destes diálogos nasceu a ligação que faria deles cúmplices na ação política e na construção das suas imagens públicas.
5 Um destes diálogos teve lugar num automóvel, em andamento, como se vê numa das fotografias publicadas em Salazar. O homem e a sua obra (1933). Para que o entrevistado não perdesse o pouco tempo que tinha para equilibrar as finanças do país? Ou para que a imagem do católico tradicionalista que tinha vindo da província fosse marcada pela modernidade do século? A conversa entre os dois homens foi marcada pelo click imediato da fotografia instantânea, bem como pelo movimento do automóvel, tal como o Chevrolet que levara Álvaro de Campos de Lisboa a Sintra.
6 Em 1933, já diretor do recém-criado Secretariado de Propaganda Nacional (SPN), o escritor da contemporaneidade – ou o historiador do presente – passa a ser o político do espírito. Foi, então, que o seu cosmopolitismo deu lugar à construção de uma ideia de «Portugalidade» definida em várias frentes. Um Portugal dos sentidos para aqueles que sabiam ler, mas também para aqueles – a maioria – que só sabia ver. O Bailado do Verde-Gaio, a hesitar entre a reinvenção de um folclore esquecido e uma tradição clássica internacional; os múltiplos prémios literários e artísticos, a construir os cânones da época – onde A Romaria do Padre Vasco Reis ganhou o prémio de poesia de 1934, relegando a Mensagem de Pessoa para um prémio de consolação; as pousadas de Portugal, para que os portugueses pudessem americanizar os seus lazeres e viajar na própria terra; o concurso da aldeia mais portuguesa de Portugal e a definição etnográfica de uma cultura popular (o povo deveria continuar a ser povo, mas um povo ciente das tradições que o identificavam e que deveria reproduzir); as intervenções numa Lisboa urbana, entre o culto do bairro de Alfama, com vasos de flores à janela para o rio, e a abertura das avenidas novas, com nomes de colónias e países estrangeiros; ou a tentativa de regulamentar o estilo decorativo através das «campanhas do bom gosto». Um estilo que os críticos chamavam, ironicamente, o «estilo secretariado».
7 Esta última é uma das poucas referências feitas no livro à contestação da política cultural do regime ou à resistência àquilo que muitos também viam como um excesso de regulamentação que pouco ou nada se coadunava com a prática da criatividade. Face à multiplicação de prémios e concursos para todos os tipos de escrita ou de arte, a revista Presença pôs o dedo na ferida. Onde estava aquele Ferro que, no passado, tinha escrito sobre a incompatibilidade entre a liberdade da produção cultural e a intervenção política?
8 A autora do livro dá bastante ênfase aos discursos proferidos por Ferro aquando da sua saída do Secretariado, em 1950. Foi através destes discursos que Ferro aproveitou para responder às críticas de que naturalmente também foi alvo, entre as múltiplas homenagens. Mas ficamos com vontade de saber mais sobre o que suscitou estes discursos justificativos. Em que margens se encontra a contestação ao regime, para lá do texto de Almada ou de António Pedro a questionar a ideia de converter os portugueses ao «bom gosto»? Onde estão os artistas, escritores e intelectuais que ficaram de fora? Por exemplo, segundo Jorge Segurado, Ferro teria dito que «era uma pena que o Arlindo Vicente não tivesse aderido ao Estado Novo». Que possibilidade de resistência – ou sobrevivência – é que tiveram aqueles que não aderiram? E as organizações que foram extintas pelo regime, como o Conselho Nacional de Mulheres Portuguesas, principal organismo feminista, liderado pela intelectual Maria Lamas? Em 1947, este conselho organizou, na Sociedade Nacional de Belas Artes, uma Exposição de Livros Escritos por Mulheres de todo o Mundo e foi, em parte, o sucesso deste evento e dos colóquios que o acompanharam que acabaria por levar à sua extinção compulsiva.
9 E onde ficam as mulheres de uma história cultural do Estado Novo? Não aquelas que apareciam com trajes de minhota nas fotografias a preto e branco ou nas aldeias populares reconstituídas na exposição de 1940, mas as que escreviam, pintavam, ilustravam livros ou coreografavam espetáculos de dança e teatro. O livro refere vários nomes de mulheres, sobretudo as que ganharam prémios literários ou participaram nas muitas exposições patrocinadas pelo SPN (um útil apêndice mostra todos os premiados). Mas não faz qualquer abordagem de género. E é pena, pois o próprio António Ferro refletiu várias vezes sobre a contemporaneidade ou sobre a criatividade através daquilo que identificou como sendo valores femininos ou masculinos. E aqui, longe de «modernas» – Virginia Woolf, por exemplo, publicaria A Room of one’s own em 19293 –, as posições de Ferro correspondiam à ideologia dominante em relação à incapacidade da mulher para a escrita e para a criatividade.
10 Ferro aproveitou a sua entrevista à escritora francesa Colette para escrever sobre o assunto: por um lado, elogiou-a, nas vésperas de ser condecorada com a Legião de Honra, afirmando que só em França isso seria possível4. Uma Colette portuguesa, escreveu Ferro, seria uma imoral, fútil e – como todos aqueles «que se limitam a ser de hoje» – seria considerada «futurista». Mas, por outro lado, para ele a literatura era uma «arte masculina», a mulher era «o manequim da literatura», a musa inspiradora e a exceção que só servia para confirmar a regra da incapacidade da mulher para a escrita. Ou seja, aquelas que escreviam bem faziam-no por terem «cabeça de homem» e por não serem «mulheres de carne e osso».
11 Este é o mesmo homem que escolheu casar com uma mulher intelectual. Fernanda de Castro, uma escritora de múltiplos registos e vasta obra, da tradução, à poesia, ao teatro ou romance5. Como tantas outras mulheres de intelectuais do seu tempo, também ela contribuiu ativamente para consolidar a carreira do marido, traduzindo-lhe os discursos ou colaborando em muitas das iniciativas do SNI. Mas claramente existe uma opção de cingir a biografia a aspetos da vida pública de Ferro e não da sua vida familiar e privada. No entanto, o papel cultural ativo e interveniente de Fernanda de Castro subverte esta fronteira entre público e privado.
12 A «masculinização» de uma estética dos regimes fascistas europeus, para lá do óbvio domínio masculino do poder tem sido um tema abordado noutros casos europeus. De que forma é que este culto do corpo masculino se fazia sentir em Portugal? Por exemplo, Ferro escreveu que só admirava aqueles escritores que tinham «músculo na prosa» (Colette, p. 28). A iconografia da propaganda do Portugal dos anos 40 dá-nos outros exemplos – erotizados? – desta masculinidade visível. É o caso do livro Portugal 1940, publicado pelo SPN, que mostra imagens de homens a construir pontes em tronco nu ou a escavar a terra em mangas de camisa, os braços erguidos em uniformes militares ou em perfeitas coreografias de ginástica, homens negros a dançar seminus numa fotomontagem destinada a ilustrar a viagem do Presidente da República às colónias, ou um homem que, qual estátua grega, noutra sobreposição fotográfica, parece dominar o novo Estádio Nacional6.
13 À vertigem da palavra, bem notada no subtítulo do livro, será necessário acrescentar a vertigem da imagem. Enquanto «moderno», Ferro reconhecia naturalmente a relevância crucial da fotografia e do cinema, quer enquanto arte, quer enquanto instrumento de propaganda. Margarida Acciaiuoli reconhece a importância da imagem, dedicando um capítulo específico aos usos que Ferro, através do SPN/SNI, fez das tecnologias visuais. Mas não legenda, apropriadamente, as magníficas fotografias do livro. Sem autoria, sem identificação e sem data, muitas das imagens acabam por ser abordadas não como um documento histórico, mas apenas como uma ilustração. Neste uso da fotografia, como superfície de representação e não como um objeto em si que precisa de ser contextualizado historicamente e abordado criticamente, acabam por se reproduzir os modos como a própria fotografia foi usada no passado: como ilustração e não como documento.
14 Entre os casos mais interessantes que são referidos no livro, estão as encomendas dos álbuns fotográficos Portugal 1934 e Portugal 1940 – ambos com a enorme sofisticação gráfica comum a tantas das publicações do Secretariado. Com a participação de vários fotógrafos e a utilização das diferentes técnicas de montagem disponíveis na época, o próprio meio de propaganda correspondia à mensagem de modernidade que se queria transmitir. Da permanente relação contemporânea entre a fotografia e as exposições, Ferro tinha plena consciência. Em algumas exposições, a fotografia era usada negativamente – para mostrar aquilo que se queria rejeitar; noutras, positivamente, para expor aquilo que se pretendia celebrar.
15 O passado recente que se queria renegar era o da I República, como bem nota Acciaiuoli. A fotografia, retrabalhada em montagens que favoreciam o contraste, serviu de prova da «desordem» que o Estado Novo viera erradicar. Ao recorrer ao arquivo do fotógrafo Joshua Benoliel, com as suas reportagens visuais da politização das ruas republicanas, António Ferro tentou demonstrar uma consciência das potencialidades políticas da imagem que caracterizou todo o século XX. A Exposição Anticomunista, realizada em 1936 na sede do SPN, foi mais um exemplo dos usos políticos da fotografia, para os quais contribuíram as fotomontagens de Mário Novais. A mesma técnica foi também usada por Novais nos Pavilhões de Portugal nas exposições universais de Paris (1937) e de Nova Iorque (1939) para propagandear um país simultaneamente moderno e tradicional, consciente do seu passado, mas a viver o futuro.
16 Em 1942, António Ferro promoveu uma exposição do britânico Cecil Beaton, já então um fotógrafo de prestígio, conhecido pelos seus retratos sofisticados e produções de moda, na Vogue como nos círculos de Hollywood. Beaton fora pago pelo governo britânico para fotografar as personagens políticas do Portugal de Salazar, mas Ferro compreendeu a oportunidade única de poder mostrar ao público do Palácio Foz um Carmona, um Cerejeira ou um Duarte Pacheco. Este último, de cigarro entre os dedos, a olhar para um mapa de Lisboa, um belo homem fotografado como um ator de cinema. Esta foi, talvez, uma das raras oportunidades para Ferro mostrar algo de «internacional» em Portugal. Como demonstram muitos casos referidos no livro de Acciaiuoli, era quase sempre Portugal a ser exportado para fora – os pavilhões de Portugal nas exposições internacionais, os redescobertos Pauliteiros de Miranda no Royal Albert Hall de Londres em 1933, a exposição de arte popular portuguesa em Genebra, em 1935, ou a companhia de bailado Verde-Gaio apresentada num teatro parisiense em 1949.
17 O arquivo fotográfico do SPN/SNI, hoje na Torre do Tombo, é o arquivo de um Portugal de Trás-os-Montes a Timor. Um Portugal que se podia fotografar e que se podia divulgar. Estas imagens eram usadas nas múltiplas publicações do SNI, mas também cedidas para os portugueses ou estrangeiros que quisessem participar nesta divulgação. O guia de Portugal para estrangeiros que a embaixatriz britânica Ann Bridge e Susan Lowndes publicaram em 1949 é exemplo disso7. Muitas das fotografias que ilustram o Selective Traveller in Portugal foram escolhidas pelas autoras no arquivo fotográfico do SNI, instituição que também apoiou, logisticamente, as viagens que as duas inglesas fizeram pelo país nos finais da década de 1940. Um Portugal ainda a preto e branco, feito de igrejas restauradas, casas caiadas, e monumentos modernos em homenagem a feitos antigos – um cânone visual que a ação do SNI contribuiu muito para consolidar e que somente uma revolução política veio perturbar.
18 Este era também um Portugal para «inglês ver». Traduzido em inúmeras línguas e exportado numa linguagem estética moderna, mas não modernista, onde além dos «feitos do passado» se queria mostrar a «obra do presente», com as colónias a ocuparem um lugar central. Mais tarde, o SPN passou a chamar-se Secretariado Nacional da Informação (SNI), assinalando uma passagem da ideia de «propaganda» para a ideia de «informação» que não foi acidental. Mas a ideia de criação de uma «imagem» de Portugal – para fora ou para dentro – esteve sempre presente em Ferro. Nesta consciência e ação de um nacionalismo exportado está um dos aspetos mais fascinantes da sua obra institucional, pois é nela que melhor se consubstanciam as ideias de cosmopolitismo e nacionalismo.
19 Parecia existir uma tensão entre a modernidade tal como ela era sentida por Ferro – da moda ao jazz, na estetização das ditaduras, ou nas potencialidades do visual consubstanciadas na fotografia, nas exposições ou no cinema – e a crescente resignação em aceitar que o caminho cultural de Portugal tinha que ser o de um Portugal «português». Um exemplo poderia ilustrar esta hesitação, ou mesmo conflito, entre diferentes modos de pensar uma política cultural nacionalista. Em 1945, Villas-Boas teve um programa de música jazz na Emissora Nacional, a rádio oficial dirigida por Ferro. Mas, pouco depois, o programa passou para o Rádio Clube Português, por se considerar que não era adequado à ideia de «Portugalidade» que o SNI definia sempre com maior precisão. Tivera Ferro que abdicar do seu «cosmopolitismo» para não suscitar grande oposição do próprio regime? Porque é que o homem que não acreditava no passado, que renegava a nostalgia e a saudade, e que tanto tinha escrito sobre a necessidade da arte e da escrita celebrarem o presente, e mesmo o futuro, colaborava agora na construção de uma estética do passado português?
20 António Ferro. A vertigem da palavra teria beneficiado com abordagens de género, com um outro uso das fotografias fascinantes que o ilustram, com uma maior distanciação do discurso oficial das próprias fontes para melhor explorar as vozes de resistência e, também, com uma abordagem transnacional do assunto, atenta àquilo que de semelhante se passava para lá das fronteiras nacionais. O livro dialoga com os textos do seu biografado, dando-nos uma súmula muito útil do pensamento de Ferro, mais do que com uma bibliografia secundária de teses de doutoramento já publicadas ou por publicar. Do livro de Ellen Sapega, Consensus and Debate in Salazar’s Portugal: Visual and Literary Negotiations of the National Text, 1933-19488, ou o de Vera Alves, sobre arte popular e nação no Estado Novo9, à tese recente de Marta Prista sobre as Pousadas de Portugal10, são muitas as investigações interessantes que sobre este período têm sido realizados. Falta, agora, desenvolver uma maior consciência do contexto cultural internacional em abordagens transnacionais e comparativas.
21 Este é um livro bem escrito e com referências especialmente interessantes para a história dos museus, exposições e arquitetura do Estado Novo, onde uma narrativa mais centrada na figura de Ferro, e sobretudo no seu discurso, é intercalada com referências à cultura oficial do tempo. Tal como o nome da revista criada por Ferro para divulgar a cultura e a arte portuguesas, este livro constitui um panorama para quem se interesse pela história cultural, e política, do período. Desperta a curiosidade para outras leituras sobre o assunto, para a própria obra de Ferro e para os muitos traços estéticos e monumentais que a «política do espírito» deixou nas ruas e edifícios do país. Porém, cabe ao leitor assumir um papel ativo. Lendo para lá da voz reproduzida do biografado e interpelando uma narrativa que por vezes oficializa a história oficial. Sem problematização, a estética do Estado Novo, com a sua atração inegável, corre o risco de se despolitizar, e nos deixar com saudades de brincar, na ilusão da liberdade infantil, no Portugal dos Pequeninos.
Notas
1 António Ferro, A Idade do Jazz Band, São Paulo, Monteiro Lobato, 1923.
2 António Ferro, «L’État Nouveau», pp. 10’88-15, Encyclopédie Française publiée sous la direction gen (…)
3 Virginia Woolf, Um Quarto que seja seu, pref. de Maria Isabel Barreno, trad. de Maria Emília Ferros (…)
4 António Ferro, Colette, Colette Willy, Colette , Lisboa – Porto, H. Antunes, 1921.
5 As suas obras foram recentemente republicadas: Fernanda de Castro, Obra literária completa, com a i (…)
6 Barros, J. Leitão (dir.), Portugal 1940, Lisboa, Secretariado da Propaganda Nacional, 1940.
7 Bridge, Ann e Susan Lowndes, The Selective Traveller in Portugal, Londres, Chatto & Windus, 1949.
8Sapega, Ellen W., Consensus and Debate in Salazar’s Portugal: Visual and Literary Negotiations of t (…)
9Alves, Vera Marques, Arte Popular e nação no Estado Novo. A política folclorista do Secretariado de (…)
10Prista, Marta, Discursos sobre o Passado: Investimentos Patrimoniais nas Pousadas de Portugal, Lisb (…)
Filipa Lowndes Vicente – Investigadora Auxiliar no Instituto de Ciências Sociais (UL). E-mail: filipa.vicente@ics.ulisboa.pt
Relações de força: história, retórica, prova | Carlo Ginzburg
Fazer História (de qualquer tipo, e especialmente a história cultural) nos idos atuais sem se render às incertezas, fraquezas e ambiguidades do paradigma dito pós-moderno é uma façanha que poucos conseguem levar adiante. Optar por este caminho e, para além disto, avançar no debate e na construção de uma história com procedimentos realistas (para não dizer científicos), ancorada solidamente na pesquisa documental e na busca da verdade, é tarefa ainda mais ingrata, a qual se impôs Carlo Ginzburg, com esmero e galhardia. São poucos os que fazem esta opção, e muitíssimo poucos os que a realizam a contento, como este italiano, autor – entre outros clássicos da historiografia contemporânea –, de Os andarilhos do bem, O queijo e os vermes, História Noturna, além de importantes ensaios para se discutir um novo paradigma para a história, ciência do homem. Leia Mais
A política à meia luz: ética, retórica e ação no pensamento de Maquiavel – NUNES (RFA)
NUNES, Edison. A política à meia luz: ética, retórica e ação no pensamento de Maquiavel. São Paulo: EDUC, 2008. Resenha de: VALVERDE, Antonio José Romera. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.22, n.30, p.299-302, jan./jun, 2010.
Se, como escreveu Otto Maria Carpeaux, “a bibliografia moderna sobre Maquiavel é imensa; menos em língua portuguesa”, com a publicação de A política à meia luz: ética, retórica e ação no pensamento de Maquiavel, de Edison Nunes, há que se rever a métrica de tal constatação, sobremaneira pela excelência da reflexão expressa acerca da densa obra do Secretário Florentino.
A originalidade é percebida desde a dedicatória, in memoriam, a Lorenzo di Piero de’ Medici, Clemente Settimo, Zanobi Buondelmonti e Cosimo Rucellai – respectivamente, ao príncipe ao qual Maquiavel dedicou Il Principe, ao papa que encomendou as Istorie Fiorentine, e aos amigos do Orti Oricellari, locus dos debates filosóficos políticos, que animaram a escrita dos sumarentos Discorsi sopra la prima Deca di Tito Lívio.
Objeto de tese doutoral, o livro de Nunes é resultante do trabalho árduo de fino pesquisador e de hábil escritor a suplantar conhecidos truísmos acerca da escrita e do estilo linguístico do Cidadão Florentino. O autor exerce o duro ofício de estudar Maquiavel e perspectivá-lo – desde a retórica e a ética até a ação política. O que não é tarefa para neófito, pois implica parcimônia e destreza metodológicas para vencer o ardil da construção maquiaveliana, que se movimenta de forma ora disjuntiva ora dilemática, às margens do contraditório, sob uma forma de raciocínio distinta da lógica estreita das deduções previsíveis, além de acertar contas filosóficas com o passado e a projetar o futuro da ciência política moderna, no movimento de acompanhar a teoria e a prática do dinamismo próprio do objeto de pesquisa: a política num tempo de criação, o tempo instaurador do Renascimento, sob o arco do Humanismo Cívico.
Grande parte da originalidade do livro em pauta reside na explicitação crítica da incorporação da retórica de talhe aristotélico, e pela recomposição da trama e da urdidura da extensa obra maquiaveliana, nos nexos entre retórica e conhecimento. A retórica como eloquência, como queriam os humanistas cívicos florentinos, considerada uma das ideias-força a mobilizar, desde Petrarca, o reconhecimento de que tal instituição era necessária para dar expressão às novas concepções e ações políticas surgidas nas cidades ao norte da Itália, do século XII e seguintes, como registrou Otto de Freising. As cidades redivivas ansiavam por autonomia em relação ao Império e à Igreja, autogoverno, retomada do regime político republicano e liberdade cívica. Porém, se Petrarca, na aurora do Humanismo Cívico Florentino, como querem Hans Baron e Eugenio Garin, principiou por criticar a dureza da retórica de Aristóteles, pois este “falava” mal, o resgate dos antigos romanos pelo “falar” bem, contra a dureza técnica do Estagirita, significou retomar, exemplarmente, Cícero, filósofo e político, e, por conseguinte, o entrelaçar das concepções de vita contemplativa e de vita activa, sob nova conjugação política. E para os humanistas cívicos, a segunda sempre tendeu a ser mais relevante. Nunes destaca a antecedência dessa discussão política, no encontro dos tempos, pelas recorrências constantes a Dante. No mesmo passo em que a política é analisada sob o viés trágico.
Se o sugestivo título da obra alude a um conhecido tango, o ritmo da exposição dos argumentos, à contra luz do que se escreveu criticamente sobre Maquiavel – sem milongas –, nada deixa a desejar. Lançando mão de metáfora orgânica, o autor ilumina o que a primeira parte do título sugere, mesmo não tendo sido escrita para este fim: “A figura resultante é a de uma árvore que, a partir do tronco, desse a ver apenas a um de seus galhos e, deste, um ramo que se desdobra novamente apenas para fazer surgir o único fruto visado; o restante permanece lá, somente que encoberto, como fundo” (NUNES, 2008, p.139) – felicíssima imagem.
Dividido em três capítulos amalgamados entre si, “A política e a condição humana”, “Conhecimento e retórica: os modos da verdade” e “Ação, responsabilidade e ética”, a matizar os meandros sinuosos e caleidoscópicos do pensamento ético político do Florentino. Algumas concepções de tempo, fortuna, os conflitos de humores dos grandes e do povo, as fontes e os modos de conhecimento da política, o lugar da retórica, os fins éticos da ação política, os nexos e os estranhamentos entre lei natural e virtude de talhe civil, a ação política e o espelhamento da responsabilidade, são temas recorrentes analisados ao correr da refinada análise.
O anêmico pensamento político brasileiro – se deveras existe, como inquiriu Raymundo Faoro – aditou muito com a edição deste livro original, esclarecedor sob muitos aspectos e traspassado de erudição. Em especial, o universo acadêmico, quase sempre em compasso de espera dos modismos europeus e norte-americanos. Se os ideólogos da política brasileira do passado, como Tavares Bastos, com pretensões difusas a certa envergadura liberal, não enfrentaram nem assimilaram, no detalhe, o pensamento de Maquiavel, os pesquisadores acadêmicos, durante grande parte do século passado, andaram a reboque de tal pensamento político e só recentemente principiaram por encará-lo por sua altura intelectual e inventividade. Praticamente, só foi possível ler Maquiavel, sem as peias da fortuna crítica, a pendular entre maquiavelismo e antimaquiavelismo, desde o pós-Segunda Guerra Mundial. Não que não fosse possível lê-lo e assimilá-lo, anteriormente. Mas lê-lo pela obra em si, sem apropriações indébitas e incompreensões, fruto de prejulgamentos, é fenômeno acadêmico dos últimos 50 anos. Neste ponto, a obra de Nunes é modelar, sobremaneira pela correta assimilação da tradição crítica e síntese para além dela, a remeter o leitor aos escritos exemplares de Claude Lefort e de Gennaro Sasso. Sem descuidar das assertivas maquiavelianas compostas entre si “con una lunga sperienza delle cose moderne ed una continua lezione delle antiche avendo io con gran diligenzia lungamente excogitate et examinate, et ora in uno piccolo volume ridotte…”, recolhida de Il Principe (“Nicolaus Machiavellus magnifico Laurentio Medici iuniori salutem”. MACHIAVELLI, 1999, p.107-108), e ainda “perché in quello io ho espresso quanto io so e quanto io ho imparato per una lunga pratica e continua lezione, delle cose del mondo” (Nicolló Machiavelli a Zanobi Buondelmonti e Cosimo Rucellai Saluete. MACHIAVELLI, 1994, p.101), dos Discorsi.
À página final de A Política à meia luz, há uma passagem acerca do primeiro epitáfio ensaiado pelos amigos de Maquiavel: “movido pelo amor, sujou muita neve”. Cumpre lembrar o epitáfio da lápide de seu túmulo na Igreja Santa Croce, escrito a pedido da esposa, ao lado de outros homens ilustres de Florença: “Tanto nomini nullum par elogium”.
Referência
MACHIAVELLI, n.Il Principe e altre opere politiche. Milano: Garzanti, 1994.
————-. Opere. Tomo I. A cura de Rinaldo Rinaldi. Torino: UTET, 1999.
Antonio José Romera Valverde – Professor do Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), do Departamento de Fundamentos Sociais e Jurídicos da EAESP-FGV, São Paulo, SP – Brasil. E–mail: antonio.valverde@fgv.br
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