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Resistências africanas: novos problemas e debates / Anos 90 / 2019
A história da resistência africana tem também a sua história. Seus primórdios remontam à tendência anticolonial a partir da segunda metade do século XX e que marca não apenas os textos ficcionais sob a forma de contos, novelas e romances de uma primeira geração de escritores africanos, mas também a historiografia sobre a África do período colonial.
Até então, uma literatura colonial havia abordado as resistências como movimentos retrógrados, refratários à modernização. Ela considerou as várias rebeliões e insurgências como “revoltas bárbaras”, irracionais e amorfas. Na perspectiva dos colonizadores europeus, as resistências eram um atavismo, uma simples manifestação da “tradição” em prol da reprodução das estruturas arcaicas, da preservação dos direitos consuetudinários, da defesa dos privilégios de uma elite local etc.
Nos arquivos coloniais, encontram-se evidências de diversas manifestações e movimentos anticoloniais em África, com destaque para aquelas que ocorreram nas áreas de forte presença muçulmana. Para ficar num exemplo, a Revolta Mahdista ou Mahdiyya no Sudão (1881-1899), uma das maiores experiências históricas de contestação ao domínio estrangeiro. Em reação à ingerência econômica e política da Inglaterra e da França e que atingiam o vice-reinado do Egito quedival e do Império otomano, a Mahdiyya – liderada por Muhammad Ahmad – foi uma forma de resistência paradigmática e com desdobramentos nas relações de poder na África setentrional e na África Oriental durante o imperialismo colonial.
Também na África ocidental, os movimentos de resistência pululam, sobretudo em áreas islamizadas. Tais movimentos foram considerados de caráter “primário” por uma historiografia da primeira metade do século XX. A partir da década de 1950, temos as primeiras análises de relatos produzidos oralmente e de fontes escritas em árabe, que se revelam verdadeiros “campos de batalhas” narrativos, na acepção de Edward Said, na sua conhecida obra Cultura e Imperialismo.
Uma primeira historiografia crítica ao colonialismo favoreceu a identificação de processos de negociação entre os poderes coloniais e as elites africanas. Houve também novas interpretações das resistências africanas. Em Dacar, Ibadan e Dar es Salaam, para ficar em três exemplos, a nova historiografia africana fez das resistências africanas uma ferramenta importante para a análise das relações de poder nos quadros do colonialismo.
Os trabalhos de Allen Isaacman, Jan Vansina, Terence Osborn Ranger e de outros historiadores contribuíram para uma ideia de conjunto sobre as resistências africanas. Houve também propostas para uma tipologia das resistências africanas e mesmo para uma cronologia, como aquelas do historiador queniano Ali Al’amin Mazrui e do historiador ganense Albert Adu Boahen.
Acontece que a lógica binária do modelo “dominação e resistência” para a história da África colonial acabou por limitar a análise de certas formas concretas de exercício do poder. Para Frederick Cooper, o emprego do conceito de “resistência” na historiografia africana foi “menos sutil, menos dialético, menos reflexivo” do que a ideia de agência dos estudos subalternos.1 É verdade que o modelo “dominação e resistência”, que marcou a historiografia sobre a África colonial nas décadas de 1960 e 70, foi por vezes redutor, pois quem não resistia, colaborava e quem não colaborava, resistia.
Ao mesmo tempo, livros como Things Fall Apart (1958), de Chinua Achebe, e Les Damnés de la Terre (1961), de Frantz Fanon, apresentam o colonialismo como um sistema que provocava uma “esquizofrenia social” e que redundava numa série de contradições, numa aporia. Tal processo desagregador, na perspectiva fanoniana, seria superado pela via revolucionária, que provocaria a necessária ruptura com o colonialismo, ensejando as independências africanas.
No entanto, aquilo que justificou ideologicamente certos movimentos de libertação, revelou- -se frágil e anacrônico quando foi transposto como ferramenta de análise dos processos africanos de um passado recente. Pode-se dizer que houve na historiografia pós-colonial uma inflação das resistências anticoloniais e dos movimentos protonacionalistas. Desde o início do processo de independência dos países africanos, uma escrita da história nacionalista projetou no passado africano pré-colonial a ideia de nação. Fazer a genealogia das modernas nações africanas foi a missão de uma historiografia que, não sem ironia, defendeu a perspectiva africana, a história “autenticamente” africana.
Apesar da importância da busca pela autenticidade africana em termos epistemológicos, novas abordagens no campo da história têm suscitado uma revisão da historiografia daquela primeira geração de historiadores africanos e de africanistas. Além dos estudos subalternos e dos estudos pós-coloniais, as próprias experiências políticas de um passado recente, especialmente de ditaduras militares, de guerra civil ou de regimes de partido único, concorrem para repensar as resistências africanas, inclusive contra um neocolonialismo. Destacam-se, por exemplo, as contribuições de Klaas van Walraven, Jon Abbink, Gregory Maddox e Frederick Cooper sobre o conceito de resistência na história da África. Cabe ainda ressaltar uma “feminização” da resistência africana por uma historiografia atenta às questões de gênero e cujos trabalhos de Nina Emma Mba, Catherine Coquery-Vidrovitch, Cora Ann Presley, Luise White, Tabitha Kanogo e Norma Krieger são alguns exemplos.
A reflexão e o debate sobre as resistências africanas trouxeram à baila novas questões sobre a África diante à colonização e mesmo diante à globalização. Os estudos sobre as resistências africanas reunidos nesse dossiê propõem novas abordagens, novos casos e algumas revisões necessárias, inclusive um rigor teórico e metodológico à luz das contribuições historiográficas recentes, além de outras de áreas afins como a antropologia e a sociologia da África contemporânea.
O artigo intitulado O conceito da resistência na África colonial: recompondo um paradigma, de Felipe Paiva, abre o presente dossiê. Trata-se de uma revisão crítica de um paradigma da historiografia sobre a África colonial pelo autor de Indômita Babel. 2Muçulmanos africanos e a escravidão negra no Mundo Atlântico: interpretações, significados e resistências (séculos XVI e XVII) é o segundo artigo do dossiê. De autoria de Thiago Henrique Mota, o artigo aborda algumas resistências na África ocidental a partir da conexão entre escravidão e religião islâmica. O terceiro artigo também destaca a relação entre religião (muçulmana) e resistência. Sua autora, Regiane Augusto de Mattos, aborda as formas de trabalho no norte de Moçambique entre o final do século XIX e início do século XX como elementos fundamentais para a análise das resistências. Diferente é o foco do artigo de Hector Guerra Hernandez sobre as formas de resistências cotidianas durante o colonialismo tardio no sul de Moçambique. O autor analisa diferentes ações individuais e coletivas diante do recrutamento dos trabalhadores forçados durante o colonialismo português.
No quinto artigo do dossiê, Mahfouz Ag Adnane propõe uma análise da resistência nos territórios saarianos do Kel Tamacheque diante da ofensiva colonial francesa (1881-1919). Destaca-se a leitura crítica das fontes para propor uma nova abordagem ao debate historiográfico.
O último artigo do dossiê tem uma componente biográfica. Ângela Fileno da Silva apresenta as dissenções entre os brasileiros que se encontravam em Lagos entre as décadas de 1880 e 1890. A autora analisa conflitos e acomodações diante da presença britânica, destacando aspectos relevantes para a compreensão dos limites das ações individuais e coletivas, das constantes renegociações e dos seus desdobramentos na vida daqueles brasileiros.
A entrevista com Suresh Kumar, do Departamento de Estudos Africanos da Universidade de Délhi, enfatiza a importância do Departamento de Estudos Africanos da citada universidade, criado em 1948, no imediato pós-independência indiana, com a perspectiva de se propor uma aproximação com os espaços africanos em processos de conflitos anticoloniais e de se pensar em pautas internacionais reivindicatórias das novas nações que emergiam. Encerra o dossiê a sessão com as seguintes resenhas: A Escrita da História da África: Política e Resistência, de Carolina Bezerra Machado, Entre experiências, agências e resistências: complexos de interconexões e a coligação contra o colonialismo no norte de Moçambique (1842-1910), de Matheus Serva Pereira, e Sonhos em Tempos de Guerra, de Daniel De Lucca.
Boa leitura!
Notas
1. COOPER, Frederick. Conflict and connection: rethinking colonial African History. The American Historical Review, v. 99, n. 5, p. 1516-1545, 1994
2. PAIVA, Felipe. Indômita Babel: resistência, colonialismo e a escrita da história na África. Rio de Janeiro: Eduff, 2017.
Patrícia Teixeira Santos – Universidade Federal do Estado de São Paulo (UNIFESP), São Paulo, SP, Brasil Sílvio.
Marcus de Souza Correa – Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, SC, Brasil.
SANTOS, Patrícia Teixeira; CORREA, Marcus de Souza. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 26, 2019. Acessar publicação original [DR]