Manifestações das religiosidades no espaço cemiterial | Revista Brasileira de História das Religiões | 2021 (D)

Filosofia e Historia da Biologia 37 Manifestações das religiosidades no espaço cemiterial
Assim caminha a religiosidade. Imagem: ValmirSarmento.wordpress.com |

Apresentação

Nós só temos uma certeza

É que a vida tem um norte

Que nos leva para a morte

Faz parte da natureza

E nisso temos clareza.

No mundo qualquer sujeito

Tem tudo o mesmo direito

Não se fazendo mistério

– RICO OU POBRE, O CEMITÉRIO

RECEBE DO MESMO JEITO.

(Mote inspirado em Dalinha Catunda)

O ano de 2020 foi duramente impactado pela pandemia de Covid-19. Contaminação, isolamento, distanciamento social e mortes fizeram parte de nossa realidade nos últimos meses, afetando a todos ainda que de diferentes maneiras. Rituais foram interditados, reduzidos e ressignificados em alguns momentos e este local de despedida e homenagem foi esvaziado de sociabilidades e práticas religiosas, mas infelizmente ocupado pelos numerosos cadáveres vítimas dessa doença. Não apenas como um local cercado onde cadáveres são enterrados, o cemitério enquanto espaço para as manifestações religiosas também sentiu os efeitos dessa mudança recente, celebrações de devoções coletivas e individuais foram neste contexto interditadas. A sepultura enquanto signo da presença do morto para além da morte (ARIÈS, 1975) não pode cumprir plenamente sua função: ainda que continue afastando o cadáver agora contaminado, não permite rituais e simbologias que expressem essa passagem e recordação para os familiares e entes queridos.

Esta dimensão sagrada neste espaço de sepultamentos é encontrada em diversas culturas e é objeto de grande produção historiográfica no Brasil. Um de seus percursores é o sociólogo Clarival do Prado Valadares que na sua obra já clássica Arte e Sociedade nos Cemitérios Brasileiros enfatiza a transferência na crença de qualidades místicas dos mortos, ou a denominação de almas santas, que antes era limitada a padres para os mortos comuns com a laicização dos cemitérios (VALADARES, 1973, p.441). Sepulturas cujos mortos são dotados de algum tipo de santificação ou poder místico estão presentes em diferentes espaços e tempos. Devoções temporárias ou seculares não indicam um só modelo de morto. Do bandido à criança, vítimas de doenças, epidemias ou assassinatos, a diversidade no caráter do escolhido é tão ampla como a causa de seu falecimento. As formas de manifestação dessas devoções também são distintas, das mais comuns placas passando por gêneros alimentícios, objetos sagrados ou profanos, alguns permanecem e outros inéditos são acrescentados a este rol de ex-votos. A grande possibilidade de promessas, segundo Maia, indica como é a compreensão do milagreiro na vida desses devotos (MAIA, 2019, p. 127).

Essa espontaneidade devocional inspira a análise dessas práticas. Independente da vida ou do bom ou mau exemplo, da aprovação ou não de uma instituição religiosa, o milagreiro estabelece uma relação íntima com o devoto, um afeto concreto e sentido (ANDRADE JÚNIOR, 2008, p.97) Nesta chamada temática o objetivo geral foi reunir pesquisas que discutiram o cemitério para além desse espaço de sepultura dos mortos. Os textos aqui publicados procuraram identificar neste espaço as crenças, vivências e práticas religiosas articulando a necrópole com experiências variadas de devoção e representações individuais da fé.

Nessa perspectiva, reunimos textos que trazem contribuições para o debate do cemitério como espaço possível de múltiplas manifestações religiosas. Nossa amostra aqui publicada, indica as variadas possibilidades de abordagem dessa temática e a abundância de fontes e de pesquisas com diferentes interesses.

A chamada contém cinco artigos em que as relações entre as religiosidades e os cemitérios são pesquisadas a partir de abordagens específicas que apontam para as possíveis dinâmicas desse objeto de estudo. No primeiro artigo de Ludimila Campos, Piedade Mariana e hibridismo cultural na catacumba de Santa Priscila e no sarcófago de Adelfia (séc. III-IV) o processo de enterramentos subterrâneos na Roma Antiga e a mistura entre culturas pagãs e o cristianismo permitem ao pesquisador entender como certos elementos foram apropriados pela nova crença. As inscrições nos sarcófagos caracterizam a riqueza de fontes possíveis para evidenciar o hibridismo que é a marca dessas manifestações. O artigo demonstra como nestes espaços já existia uma religião mortuária pagã e que com o cristianismo essa cultura funerária recebeu novas particularidades.

O segundo artigo é marcado por um grande salto cronológico e espacial. Em Consolo escatológico: cemitérios, morte e porvir em relatos e obituários adventistas durante a Gripe Espanhola, Allan Macedo de Novaes problematiza a questão do espaço cemiterial para uma instituição religiosa em que tal aspecto foi pouco explorado. Sua grande contribuição nessa pesquisa está na análise de um conjunto riquíssimo de fontes que apresentam os cemitérios como espaços de disputa para os membros da Igreja Adventista neste contexto de epidemia, em que o evangelismo e a confirmação da doutrina indicam o predomínio dos ritos fúnebres dirigidos por consolo escatológico. O artigo questiona como a não crença no além e as narrativas apocalípticas influenciam os sentidos de morte e salvação que rondam o lugar do cemitério nas narrativas adventistas da Revista Mensal.

Os milagreiros de cemitério são o tema do artigo Maria Adelaide (XIX) e Antero da Costa Carvalho (XX) a religiosidade popular no espaço cemiterial de Jaciely Soares Silva. A questão da religiosidade popular é analisada a partir de dois estudos de caso um do Brasil e outro de Portugal. Nesta perspectiva, o artigo discute a devoção a Antero em Catalão-GO, Brasil, que em 1930 foi linchado pela população e, Adelaide, pertencente à freguesia de Arcozelo, em Portugal, exumada em 1916, muitos anos após seu falecimento e que seu corpo foi encontrado incorrupto. Casos distintos, em espacialidades distantes, mas que possuem pontos de união, manifestada principalmente pela superação de sua existência privada para a esfera de um sagrado coletivo. A dimensão da apropriação e ressignificação desses mortos constitui elementos de um poder popular de escolha de suas devoções. O protagonismo do devoto é enfatizado nestes dois exemplos.

Nós que aqui estamos a vós ajudamos é o artigo dos pesquisadores José Cláudio Alves de Oliveira e Edvania Gomes de Assis Silva. A comparação entre duas manifestações religiosas cemiteriais é apresentada no texto a partir das análises da devoção nos Estados Unidos no espaço da sala de milagres do cemitério de São Roque (Saint Roch), em Nova Orleans; e no Brasil, no Cemitério da Consolação em São Paulo, nos túmulos de Antônio da Rocha Marmo e de Maria Judith de Barros. O significado cultural do espaço cemiterial é abordado nessa análise que percebe na presença e riqueza de ex-votos a dimensão incontrolável da devoção aos mortos e sua capacidade de interceder nos pedidos dos vivos. Nesta pesquisa, a conexão entre morte ou morto e a graça que pode ser concedida evidencia os múltiplos sentidos dessa devoção. Maria Judith de Barros pode ser solicitada igualmente por estudantes que enfrentam concursos como Enem ou Vestibular e pessoas que estão com problemas conjugais ou desejam adquirir uma casa própria.

Finalizando o volume, contamos com o artigo Morte e cemitério na memória coletiva e identidade étnica dos pomeranos e seus descendentes no Brasil de Renata Siuda-Ambroziak e Cione Marta Raasch Manske. O objetivo deste artigo é refletir sobre o papel da morte e o local do cemitério na memória coletiva entre os pomeranos e descendentes assentados em Santa Maria de Jetibá, no Espírito Santo. A contextualização da inserção dessa comunidade e a articulação com a questão religiosa, já que se configurava em um grupo luterano, influenciaram a ênfase em aspectos étnicos que reforçassem as origens. Os três cemitérios analisados na pesquisa, exemplificam a manutenção das tradições, e também os conflitos entre questões identitárias e a nova realidade enfrentada pela comunidade.

A chamada temática procurou avançar na temática a partir de diferentes propostas teórico-metodológicas em que este espaço dos mortos, o cemitério, permite a compreensão de diversificadas formas de devoção e religiosidade, marcadas pela valorização deste espaço e da memória desse indivíduo morto. Esta dimensão do cemitério permite a compreensão das transformações nos processos do morrer e de nossa relação com os mortos, o que atrai, afasta ou leva ao total esquecimento uma devoção. Num momento tão trágico para a História da Humanidade e especialmente para o Brasil, pensar na valorização dos cemitérios, práticas de memória e o culto aos mortos é um desafio diário e uma forma de resistência.

O volume finda com artigos livres.

Dra. Adriane Piovezan (FIES – Faculdades Integradas Espírita)

Dr. Lourival Andrade Júnior (UFRN-CERES-DHC/Programa de Pós-graduação em História dos Sertões)


PIOVEZAN, Adriane Piovezan; ANDRADE JÚNIOR, Lourival. Apresentação – Manifestações das religiosidades no espaço cemiterial. Revista Brasileira de História das Religiões. Marigá, v.14, n.40, p.5-8, maio / ago. 2021. Acessar publicação original [IF].

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Religiões e religiosidades: dinâmicas institucionais e práticas devocionais (Brasil e Portugal, séculos XVIII e XIX) | Temporalidades | 2021

Basta lermos o jornal ou assistirmos ao noticiário na TV para percebermos que a temática da religião é recorrente em nosso dia a dia. Quem nunca ouviu a expressão bancada evangélica ou escutou que grupos políticos alteraram seus discursos para não desagradar a determinados segmentos religiosos? Quem, nos últimos 20 anos, não se deparou com o conceito de fundamentalismo ou de guerra santa? Não há como negarmos a influência cultural das religiões ainda hoje. Além disso, percebemos uma constante tensão entre diferentes crenças no Brasil. Basta uma busca rápida no Google para localizarmos diversas informações sobre a violência e a intolerância religiosa. O jornal Correio Brasiliense divulgou, no ano de 2019, que as religiões afro-brasileiras são alvos de 59% dos crimes de intolerância no Distrito Federal [1]. O Relatório sobre intolerância e violência religiosa no Brasil (2011-2015) analisou a crescente violência noticiada na imprensa. Segundo os dados, 53% dos agredidos são de religiões afro-brasileiras [2]. O que explicaria toda essa violência? Por que as religiões afro-brasileiras sãos as que sofrem mais ataques? Não são questões simples de serem respondidas, mas são possíveis de serem analisadas à luz da História das Religiões. Marcelo Massenzio, ao analisar a obra de Angelo Brelich, lembra-nos que os fenômenos que atribuímos ao plano da religião podem ser percebidos em distintas sociedades, mas o conceito religião não. Este é uma construção própria do ocidente cristão (MASSENZIO, 2005, p. 179). Leia Mais

Gênero e Religiosidades: resistências e modos de vida / Revista Brasileira de História das Religiões / 2020

A chamada temática “Gênero e Religiosidades: resistências e modos de vida” foi proposta com a intenção de congregar trabalhos atentos a práticas e experiências diversas de vida religiosa a partir das categorias gênero e resistência. Consideramos que a pertinência da proposição se fundamenta no exercício de pensar as múltiplas dimensões que conformam nosso Tempo Presente, particularmente no que diz respeito às tensões, imposições e reinvenções quanto às questões de gênero, categoria central para analisar práticas e experiências religiosas.

Articuladas as noções de classe e etnia, as questões de gênero, segundo sugere Ana Maria Bidegain (1996), são úteis não apenas para a escrita da história das religiões, mas igualmente, para possibilitar a compreensão de uma omissão a respeito das mulheres (e, acrescentamos, de outras identificações de gênero) nas religiões em todas as suas formas de estruturação e / ou institucionalização de relações de poder. Conformadoras das maneiras através das quais nos reconhecemos e identificamos, as questões de gênero são abordadas aqui tanto como categoria de análise, quanto como campo multidisciplinar. É interessante notar, neste sentido, uma certa ambivalência do campo religioso que, se muitas vezes se constitui como espaço conservador e, por vezes, repressor, em outros momentos abre linhas de fuga e emerge como espaço de possibilidades para práticas subversivas, apropriações criativas e interpretações insurgentes.

Pensando nisso, esse volume reúne artigos consagrados a refletir sobre religiosidades como lugar / discurso / prática de vida e resistência no que se refere à igualdade de gênero no Brasil e no mundo. Gênero, como categoria histórica e viva, segue em elaboração e afirma-se, hoje, como conjunto de perguntas conforme sugere Joan Scott (2013), o que fica evidente nos textos que integram essa coletânea. Tal multiplicidade encontra-se representada nos textos que compõe a chamada temática no que diz respeito às vinculações religiosas, sujeitos e espaços dos quais tratam e, igualmente, aos métodos e campos nos quais se amparam.

A outra categoria articuladora destes textos, ainda que tenha lugar e forma menos evidentes, é resistência. Pensá-la como categoria significa percebê-la enquanto prática de vida, ainda que não seja textualizada enquanto tal nas fontes de pesquisa. A resistência, esta categoria fluida e fugidia, emerge – conforme observaremos a seguir – nos espaços de ação menos prováveis, de textos a terreiros, como forma de transformar realidades, como sugere bell hooks (2013).

Patricia Folgeman, inicia a chamada temática com discussões em que amplia as relações entre gênero e religiosidades no artigo intitulado “Travestis migrantes, arte y religiosidad en la cultura queer de Buenos Aires” e possibilita pensar formas de vida que reivindicam espaços e visibilidades através de manifestações artísticas das mais variadas. A autora trata de representações religiosas, tradições culturais e refrações ocasionadas por práticas migratórias de cunho geográfico e social. Tais movimentos do mundo “trava” portenho são observados através da arte contemporânea e, assim, os textos, músicas, imagens e performances permitem-nos acessar pervivências, mudanças e rupturas.

Na sequência, “Prostituição e religiões afro-brasileiras em Portugal: gênero e discursos pós-coloniais”, de Joana Bahia, trata das possíveis relações entre o exercício da prostituição e as religiões afro-brasileiras em Portugal. A autora analisa, a partir de diálogos veementes entre história e antropologia, o modo como a imagem da pomba-gira emerge, em relatos, como metáfora sexual e, simultaneamente, religiosa. No artigo a perspectiva decolonial afirma-se em suas nuances históricas generificadas.

“Duelo de Absoluto e Relativos: Os evangélicos, a heteronormatividade e o pós-tradicional”, de José Sena Silveira, encerra este dossiê discutindo a relação entre grupos evangélicos, a heterossexualidade e o pós-tradicional, a partir de um debate teórico e de uma revisão de literatura. O artigo debruça-se, entre outras coisas, sobre uma discussão em torno do papel do binarismo masculino e feminino na construção da heterossexualidade normativa, elemento central para a manutenção do modelo tradicional de família e insinua o medo que questões de gênero / sexualidade sejam tratados fora da moral religiosa.

O volume apresenta-se marcado por uma pluralidade de abordagens, as quais denotam a amplitude dos campos em questão. As relações entre religiosidade, gênero e resistências expressam-se, assim, das mais diversas maneiras em distintas artes de ler, fazer e, fundamentalmente, ser. Além dos textos presentes no dossiê, a revista apresenta ainda artigos livres os quais atestam a amplitude do campo de estudos da História das Religiões e Religiosidades. A edição contém ainda artigos livres e resenha.

Referências

BIDEGAIN, Ana Maria. Mulheres: autonomia e controle religioso na América Latina. Petrópolis: Vozes, 1996.

HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade. São Paulo: Editora WMF Mantis Fontes, 2013.

SCOTT, Joan. Entrevista com Joan Scott realizada por Fernanda Lemos. Revista Mandrágora, São Paulo, v. 19, n. 19, p. 161-164, jan. / dez. 2013.

Caroline Jaques Cubas1 – Professora Adjunta do Departamento de História da Universidade do Estado de Santa Catarina. Atua no Programa de Pós-Graduação em História e Mestrado Profissional em Ensino de História na mesma Universidade. Graduada em História pela Univali, possui doutorado em História pela Universidade Federal de Santa Catarina, com um estágio realizado na Université de Rennes 2. Foi uma das vencedoras do Prêmio Memórias Reveladas de 2015, promovido pelo Arquivo Nacional. Pesquisadora dos grupos de pesquisa “Ensino de História, memória e culturas” (CNPQ / UDESC) e Memória e Identidade (CNPQ / UDESC). E-mail caroljcubas@gmail.com Orcid: https: / / orcid.org / 0000-0001-5411-6824

Cintia Lima Crescêncio2 – Professora do curso de História da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Campus de Três Lagoas. Graduada em História na Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Mestre e Doutora em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Realizou pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura, na Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). É coordenadora do grupo de pesquisa História, Mulheres e Feminismos – HIMUFE. E-mail: climahist@gmail.com Orcid: https: / / orcid.org / 0000-0002-2992-9417


CUBAS, Caroline Jaques; CRESCÊNCIO, Cintia Lima. Apresentação. Revista Brasileira de História das Religiões. Maringá, v.12, n.36, jan. / abr. 2020. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê [DR]

Inquisição, justiça eclesiástica, religião e religiosidades na Época Moderna / Contraponto / 2020

O presente dossiê teve como ponto de partida uma reflexão sobre a atualidade dos estudos tocantes a Inquisição e aplicação da justiça eclesiástica ao longo da Época Moderna. Na proposta que apresentamos, com o título “Inquisição, justiça eclesiástica, religião e religiosidades na Época Moderna”, procuramos também que se integrassem estudos sobre formas de religiosidade consideradas, na época, heterodoxas e trajetórias dissidentes, bem como os mecanismos utilizados para as controlar e “disciplinar”. A adesão ao dossiê foi significativa e a diversidade de artigos recebidos espelha, em nosso entender, dois aspectos que merecem ser sublinhados. Em primeiro lugar, os contributos aqui congregados são representativos de diferentes momentos do percurso de investigação, correspondendo a primeiros esforços de reflexão no início de uma pós-graduação, até trabalhos elaborados no âmbito de investigações de doutorado e de pós-doutorado. Nesse sentido, a conclusão que podemos retirar é a de que as investigações nestas temáticas estão ativas e que os próximos anos serão de continuidade e até mesmo de renovação dos contributos.

Em segundo lugar, este dossiê contou com um vasto corpo de avaliadores externos – cerca de 65 – oriundos de múltiplas universidades americanas e europeias. A versão final dos trabalhos beneficiou, assim, de um profundo diálogo entre autores, editores e avaliadores. Parece-nos que esse aspecto deva ser sublinhado no contexto global em que nos encontramos. O processo de montagem e de elaboração coincidiu com o duro golpe que a pandemia trouxe para as nossas vidas. O diálogo contínuo e enriquecedor entre todos os envolvidos neste processo, bem como a persistência para superar os condicionamentos provocados por um mundo que, subitamente, se fechou, permitiu-nos chegar até aqui. Por essa razão estamos muito gratos a todos os autores, avaliadores e ao pessoal da Revista Contraponto, que possibilitaram fechar este dossiê.

Um dos blocos centrais do conjunto de artigos aqui apresentados é, sem dúvida, a ação da Inquisição no Mundo Moderno, em diferentes vertentes e perspectivas. Os estudos sobre a temática inquisitorial têm tido, ao longo das últimas décadas, muitas contribuições e novas leituras o que se traduz num amplo manancial de trabalhos académicos editados em vários países [1]. Os agentes do tribunal, a sua atuação nas sociedades extra europeias, os alvos da ação repressiva dos inquisidores, entre outros temas, têm despertado a análise dos investigadores [2]. Os artigos aqui reunidos mostram bem a importância da Inquisição Portuguesa enquanto instituição de vigilância e de punição em Portugal e nos territórios imperiais [3].

O primeiro texto deste dossiê apresenta uma reflexão sobre a atuação inquisitorial num dos seus espaços ultramarinos, os territórios africanos nos quais não se estabeleceu um tribunal, mas onde vários agentes do Santo Ofício, ou instituições eclesiásticas que com ele se associaram, procederam a um controlo e vigilância de todo o tipo de comportamentos que podiam ser considerados como delitos que se enquadravam dentro da jurisdição inquisitorial. A autora do artigo, Sonia Siqueira, apresenta-nos neste ensaio mais uma reflexão dentro da sua vasta e importante obra historiográfica. Os muitos textos que Siqueira foi publicando ao longo da sua trajetória acadêmica contribuíram para um melhor conhecimento das formas de atuação do Santo Ofício nos espaços coloniais [4], dando uma grande atenção aos aspectos jurídicos e aos procedimentos [5] do tribunal, mas também ao seu quadro de oficiais[6].

Como já referimos, os estudos que compõem este dossiê são diversificados, como se demonstra através do elenco dos mesmos. Gabriel Cardoso Bom apresenta uma reflexão sobre o contributo da historiografia italiana para os estudos sobre Inquisição, expondo as propostas metodológicas de Paolo Prodi e de Adriano Prosperi, as quais foram significativas para os avanços da temática. Depois desta primeira reflexão historiográfico-metodológica, Alécio Nunes Fernandes transporta-nos, com um olhar renovado, para os meandros da primeira visitação ao Brasil. O autor analisa, auxiliado pela elaboração de uma tabela de categorias delitivas, as circunstâncias que podiam servir de atenuantes no momento de se decretar uma sentença. Ainda dentro da análise do enquadramento jurídico do Santo Ofício, Isabela Miranda Corby analisa, no âmbito do seu projeto de doutoramento, as denúncias por crimes de feitiçaria que se conservam nos Cadernos do Promotor e referentes à região de Minas Gerais no século XVIII.

Os seguintes artigos focam-se na diversidade de delitos que caiam sob a alçada do Santo Ofício. Marcus Vinicius Reis explora o fascinante caso de Joana de Jesus, analisando, à luz da proposta teórica dos estudos de género, o processo inquisitorial que lhe foi movido pela Inquisição de Goa. Por seu turno, Monique Marques Nogueira Lima detém-se no universo dos escravos e nos “malefícios” que lhes eram atribuídos pela sociedade envolvente e pelo Santo Ofício e seus oficiais. O delito de proposições heréticas é abordado por Isabel Andrade dos Reis Valentim, através da revisitação do conhecido caso de Pedro de Rates Henequim. Por fim, Elaine da Silva Santos apresenta o percurso de um cristão-novo dos sertões do São Francisco às prisões do Santo Ofício.

Os agentes do tribunal são também objeto de análise neste dossiê. Ana Paula Sena Gomide dedica-se a recriar a carreira do inquisidor Jorge Ferreira ao serviço do Santo Ofício de Goa. Luiz Fernando Lopes, através do estudo do rico fundo documental das habilitações do Santo Ofício, apresenta-nos uma proposta analítica e metodológica de estudo de processos de habilitação aprovados e rejeitados. As relações entre Inquisição e política são destacadas por Afrânio Jácome, através da figura do cardeal D. Nuno da Cunha de Ataíde, que chegou a ser Inquisidor-Geral. Por sua vez, Yllan de Mattos, traz-nos o detalhado estudo das intrincadas malhas que se tecem entre as administrações das estruturas diocesanas e a Inquisição [7], seguindo a trajectória de Giraldo José de Abranches na Amazônia colonial, o que permite fazer uma transição para um segundo bloco temático que compõe o nosso dossiê.

É bastante corrente a afirmação de que a historiografia que versa sobre o Império Português tenha dado pouca atenção aos estudos da Igreja [8] e, sobretudo, em nível de diocese, ao funcionamento jurídico-processual dos Auditórios Eclesiásticos (Tribunal Episcopal ou Juízo Eclesiástico), seja do ponto de vista institucional, seja no trato dos indivíduos que foram, direta ou indiretamente, atravessados por esta instituição. Tamanha afirmação se torna mais latente se a compararmos com as investigações que versam sobre Santo Ofício. Justifica-se, comumente, a dificuldade em localizar suas documentações produzidas e o acesso extremamente restrito, vinculados, ora sob a posse de arquivos privados, ora sob a posse das cúrias metropolitanas.

No entanto, apesar destas dificuldades, que, pouco a pouco, estão sendo transpostas, como bem sinalizou Jaime Gouveia [9], é notável o vertiginoso crescimento das pesquisas acerca desta temática. Uma prova disto é o projeto, em curso (2017 – 2021), Religião, administração e justiça eclesiástica no Império Português (1514- 1750) – ReligionAJE [10], coordenado pelo português José Pedro Paiva. Constituído por dezenas de historiadores africanos, americanos e europeus, numa interessante e profícua mescla entre novos e consagrados historiadores, cujo “[…] objetivo final é uma interpretação em escala global do impacto do episcopado no império”, amparados a partir das propostas metodológicas da connected history. Atrelados a este grandioso projeto, vários eventos e publicações foram e serão realizadas durante sua vigência, forjando, assim, um impacto indelével aos futuros investigadores. Ambicionados a revitalizar um campo de estudo que tem sido praticamente abandonado [11], a sua vitalidade, ainda que neste curto espaço de tempo, já pode ser sentida neste dossiê que ora apresentamos, mostrando que várias pesquisas sobre a temática se encontram em curso.

João Antônio Fonseca Lacerda Lima é quem assina o artigo: Cura das almas, da fé e de suas lavouras: A trajetória do Pe. Caetano Eleutério de Bastos nos bispados do Maranhão Grão-Pará (1694-1763). Propõe-se investigar a trajetória do Pe. Caetano Eleutério de Bastos enquanto clérigo e comissário do Santo Ofício nos bispados do Maranhão e Grão-Pará do século XVIII.

Pedrina Nunes Araújo em seu artigo, Todo sertão tem a Igreja que Deus (rei) dá: O Bispado do Maranhão e as ações eclesiásticas no Piauí do século XVIII, discute, balizada por uma documentação até então inédita, a dinâmica e o funcionamento da Igreja nos primórdios da anexação do Piauí à administração espiritual do bispado do Maranhão, tratando, por conseguinte, dos conflitos jurisdicionais com o bispado de Pernambuco – diocese que até então era responsável pela região do Piauí -, evidenciando, assim, o papel fundamental do bispo Dom Frei Manuel da Cruz na resolução das contendas e na consolidação desta região aos ímpetos maranhense. Temática essa que, ainda que tangencialmente discutida por Pollyanna Gouveia, sobretudo, em sua tese de doutoramento, permanece praticamente inexplorada.

Nas trilhas das investigações sobre o clero regular, as autoras Marcia Eliane de Souza e Mello e Rozane Barbosa Mesquisa, tratam da conflituosa relação entre as ordens regulares e o episcopado de Dom Bartolomeu do Pilar (1724 – 1733) – primeiro bispo do recém-criado bispado do Pará. A investigação que ora é apresentada, assenta-se na disputa jurisdicional acerca da realização de visitas pastorais em regiões de missões indígenas. As tensões entre as ordens regulares, capitaneadas pela Companhia de Jesus, e o mitra Dom Bartolomeu do Pilar, trazem ao relevo motivações e interpretações de diferentes matrizes dos sujeitos ávidos em alterar, ou permanecer, prerrogativas jurídicas há muito assentadas em prol de seus interesses e perceções.

No seu artigo, Patrícia Ferreira dos Santos analisa o Tribunal Eclesiástico de Mariana, do qual é especialista. A autora apresenta-nos os meios de administração, organização e funcionamento jurídico-processual desta diocese que, como as demais administrações eclesiásticas que constituíam o Império Português, estava inserida dentro da lógica do direito de padroado régio. Assim, busca-se apresentar, através do exercício cotidiano das querelas (exclusiva para eclesiásticos, pois possuíam imunidade de foro) e queixas (denúncias especificas), o espaço de ação exclusiva do Tribunal Episcopal que atuavam como dispositivos de identificação, e, por conseguinte, punição espiritual à dissensão através, geralmente, da excomunhão. Punição essa temida por todos, ou, pelo menos, por quase todos.

Por fim, Gilian Evaristo França Silva se propõe apresentar as práticas fúnebres e caritativas das irmandades religiosas inseridas na Prelazia de Cuiabá – capitania de Mato Grosso –, durante o século XVIII. A criação da administração eclesiástica de Cuiabá, assim como a prelazia de Goiás e as dioceses de Mariana e São Paulo, em meados do século XVIII, revela como essas instituições religiosas foram fundamentais para o disciplinamento social contra a dissensão e, principalmente para a expansão e delimitação de fronteiras no Império Português.

O último bloco de textos que compõem este dossiê diz respeito à temática das religiosidades e sensibilidades religiosas, em sentido lato, muitas delas consideradas como expressões heterodoxas no mundo pós-tridentino [12]. Em primeiro lugar encontramos dois artigos que se reportam a identidades religiosas fluídas. Regina Carvalho Ribeiro da Costa dedica-se ao período do Brasil holandês para apresentar o que designa por “disjuntivas judaicas”, pensando nas alianças que se podem criar num espaço multicultural, as quais superam, muitas vezes, as divergências da fé. Também o artigo de Jadson Ramos de Queiroz nos fala de uma trajetória de vida pouco linear, entre duas fés, neste caso o percurso do calvinista que chega ao território brasileiro, onde se converte ao catolicismo e acaba por ser batizado duas vezes. Transforma-se assim, num arquétipo de herege, caindo nas malhas punitivas da justiça eclesiástica e da inquisitorial.

Karina Fonseca Soares Resende apresenta um artigo de revisão historiográfica sobre um panfleto do século XVII, da autoria do pregador puritano Samuel Petto, e a imagem que nele é apresentada da figura da bruxa.

O texto seguinte, da autoria de Bruno Kawai Souto Maior de Melo, centra-se no movimento conhecido como “Jacobeia”, analisando as suas características e dinâmicas, ao longo do século XVIII, e prestando também uma atenção detalhada às trajetórias de alguns dos seus membros.

Fredson Pedro Martins aborda o problema do cruzamento do movimento de evangelização na região andina de inícios da Conquista com as concepções cosmológicas indígenas, através do estudo do conteúdo do Manuscrito de Huarochirí.

Por fim, o artigo de Daniel Sepúlveda oferece uma reflexão sobre o conceito de confessionalização, articulando com as formas de implementação da ortodoxia católica na Modernidade, bem como com os mecanismos de segregação e de racismo que se desenvolveram ao longo da Época Moderna.

Como podemos ver, trata-se de um dossiê plural, rico em investigações de arquivo e em balanços e reinterpretações historiográficas, um bom exemplo de que os investigadores continuam ativos e produzindo conhecimento, mesmo em “tempos sombrios” – para utilizar uma expressão cara a filósofa Hanna Arendt – e desafiantes.

Notas

1. Uma síntese da produção historiográfica sobre Inquisição publicada no Brasil, com uma contabilização de teses e dissertações, pode ser encontrada em: ASSIS, Angelo Adriano Faria de. “No interior do labirinto, o olho do vulcão: Revisitar os estudos inquisitoriais no Brasil e vislumbrar o futuro que tecemos”, Revista Ultramares, Alagoas, vol. 1, nº 7, p. 10-33, 2015.

2. Não é este o espaço para elencar os múltiplos contributos que têm surgido sobre a temática nos últimos anos. No tocante à Inquisição portuguesa, veja-se, por exemplo a análise de: MARCOCCI, Giuseppe. “Toward a history of Portuguese Inquisition: Trends in Modern Historiography”, Revue de l’histoire des religions, Paris, vol. 3, p. 355-393, 2010.

3. Sobre a atuação da Inquisição em contexto colonial veja-se: MARCOCCI, Giuseppe. “A fé de um império: a Inquisição no mundo português de Quinhentos”, Revista de História, São Paulo, nº 164, p. 65-100, 2011. Para compreender o funcionamento da Inquisição Portuguesa numa perspectiva diacrónica é fundamental a síntese de: MARCOCCI, Giuseppe; PAIVA, José Pedro. História da Inquisição Portuguesa, 1536-1821, Lisboa: A Esfera dos Livros, 2013. Um estudo que trouxe uma visão comparada da instituição e que marcou a historiografia posterior é o de: BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália – Séculos XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

4. Veja-se, neste particular, o estudo pioneiro que apresentava um estimulante quadro da inserção da Inquisição no Brasil Colônia: SIQUEIRA, Sonia Aparecida. A Inquisição Portuguesa e a Sociedade Colonial, São Paulo, Ática, 1978.

5. Para este conhecimento contribuiu a publicação por Sonia Siqueira dos textos dos regimentos do Santo Ofício português. Sobre isso, consultar: SIQUEIRA, Sonia Aparecida. Os Regimentos da Inquisição. In. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, n. º392, p. 495-1020, 1992.

6. O resultado da sua tese de doutoramento, defendida na USP em finais dos anos 60 do século XX, acabou por ser publicado apenas em 2013, materializando como um grande afresco do pensamento da autora sobre o Santo Ofício. SIQUEIRA, Sonia Aparecida. O Momento da Inquisição. João Pessoa: Editora Universitária, 2013.

7. Temática que tem sido destacada por vários autores e que tem, sem dúvida, nas obras de José Pedro Paiva um contributo de notável importância. Veja-se, por exemplo: PAIVA, José Pedro. Baluartes da fé e da disciplina. O enlace entre a Inquisição e os bispos em Portugal (1536-1750), Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011.

8. Referimos as investigações de pesquisas regionais que trazem uma visão mais especifica do objeto. Tendo em vista que as extensões territoriais “[…] foram, sem dúvida, um elemento importante a exigir adaptações em relação às formas tradicionais do exercício da governação eclesiástica”. Sobre a consideração acerca dos trabalhos que trazem visões genéricas da história da Igreja na colônia. MUNIZ, Pollyanna Gouveia Mendonça. Parochos imperfeitos: Justiça Eclesiástica e desvio do clero no Maranhão Colonial. Tese. Programa de Pós-graduação em História. Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, 2011, p. 20. A respeito da citação: SOUZA, Evergton Sales. Estruturas eclesiásticas da monarquia portuguesa. A igreja diocesana. In: XAVIER, Ângela Barreto; PALOMO, Frederico; STUMPF, Roberta. Monarquias ibéricas em perspectiva comparada (Sécs. XVI-XVIII). Lisboa: ICS, 2018, p. 516.

9. “A ideia dominante é a de que a maior parte desses fundos documentais se perdeu, pouco ou nada existindo que permita reconstituir a ação dos dispositivos judiciais de parte significativa das dioceses de Portugal e de seu império ultramarino. Há de reconhecer, todavia, que a natureza privada dos arquivos onde foram depositados esses espólios, a deficiente e, na maior parte dos casos, inexistente, catalogação dos documentos, faz crer que o panorama não seja tão sombrio e que parte das fontes cujo paradeiro, até hoje, se desconhece, seja dada a conhecer no futuro”. GOUVEIA, Jaime. “O Tribunal Episcopal de Portalegre, 1780 – 1835”. Boletim do Arquivo da Universidade de Coimbra, Coimbra, vol.31, 1, p. 61-102, 2018, p. 61.

10. Projeto PTDC / HAR-HIS / 28719 / 2017. https: / / www.uc.pt / fluc / religionAJE

11. Para ficarmos com as próprias palavras postas na apresentação do projeto Religião, administração e justiça eclesiástica no Império Português (1514-1750) – ReligionAJE, em seu endereço eletrônico.

12. Veja-se as reflexões apresentadas em BETHENCOURT, Francisco. Rejeições e polémicas. In: MARQUES, João Francisco; GOUVEIA, António Camões. História Religiosa de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2000, Vol. 2, p. 49-94.

Belém, Teresina, Lisboa, 11 de setembro de 2020.

Antonio Otaviano Vieira Junior

Ferdinand Almeida de Moura Filho

Susana Bastos Mateus


VIEIRA JUNIOR, Antonio Otaviano; MOURA FILHO, Ferdinand Almeida de; MATEUS, Susana Bastos. Apresentação. Contraponto, Teresina, v. 9, n. 1, jan / jun, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Religiosidades e Intolerâncias: reflexões e problemáticas do mundo Moderno à contemporaneidade / Escritas do Tempo / 2019

O recente filme do italiano Alberto Fasulo traz à tona um dos personagens que melhor retratam o problema da intolerância nos primórdios da Modernidade: Menocchio (Itália e Romênia/2018), reconstrói pela linguagem cinematográfica o drama do moleiro Domenico Scandella, que viveu na vila de Montereale, região das colinas do Friuli no século XVI, preso e processado duas vezes pela Inquisição por conta da sua visão de mundo e crenças vistas como ameaça à pureza da Igreja Católica. Sua história foi divulgada por Carlo Ginzburg no magistral O Queijo e os Vermes, de 1976. Menocchio, por sinal, não foi o único a ler a cosmogonia com outros olhos: no Brasil do Setecentos, em épocas de mineração, um certo Pedro Rates de Ranequim também criou sua visão de um catolicismo mestiço, em que os elementos sagrados eram identificados um pouco por todo o lado no trópico, a ponto de eleger a banana como verdadeiro fruto proibido, ao invés da maçã bíblica que teria, segundo o Gênesis, levado Adão e Eva e todos os seus descendentes à desventura eterna.

Da maçã aos nossos dias, as relações do homem com a fé nunca foram as mesmas: Deus já foi entendido e apresentado como uma figura vingativa, impositor de dogmas, que castigava seus filhos pelos mais variados motivos, ou, no caminho oposto, como o que é pleno de misericórdia, definição estrita do mais puro amor. As religiões imputaram sua visão de sagrado, de pecado, de salvação. Para as ciências das religiões, pontua Dix Steffen (2007, p. 27), por não ser possível identificarmos grupos religiosos essencialmente fechados, a saída do pesquisador consistiria em partir para a interdisciplinaridade e, assim, “tornar legíveis as actividades ou os actos religiosos”. Assim, a sociologia, antropologia e a linguística possibilitam a ampliação dos caminhos para os pesquisadores compreenderem a história religiosa e as suas complexidades (JULIA, 1976, p. 117).

Ainda hoje mata-se (supostamente) em nome de Deus. Em vários países, os interesses religiosos se fizeram e fazem presentes em governos, em políticas de saúde, em justificativa de violências. Guerras são travadas, atentados são reivindicados pela disposição em destruir o outro, entendido como aquele que não crê igual. O desfile da Estação Primeira de Mangueira no Carnaval do Rio de Janeiro em 2020 mostra como, para o bem e para o mal, o Divino, as Igrejas e a crenças estão no olho do furacão do mundo caótico em que vivemos, justificando violências ou pedindo paz. É o que mostra a Mangueira quando apresenta um Jesus da Gente, negro, indígena, mulher, pobre, e afirma, numa clara referência ao triste desvelar dos autoritarismos no Brasil de hoje, que “Não tem futuro sem partilha / Nem Messias de arma na mão”. Religião como justificativa para tudo aquilo que, no âmago, ela não prega, seja qual delas for.

Este dossiê que aqui se apresenta tem como objetivo refletir sobre as religiões e religiosidade desde a Época Moderna aos tempos em que vivemos hoje. Neste sentido, reunimos aqui trabalhos que discutem estes temas em diferentes espaços, temporalidades e sentidos, partindo da tolerância ou mesmo da intolerância como chaves de leitura e análise. A Escritas do Tempo ratifica seu interesse em ouvir múltiplas vozes no intuito de procurar entender, sob a lente da História, o papel que o mundo religioso exerce sobre os homens e mulheres, e sobre como esses indivíduos reagem às estruturas da fé que, aliás, também demarcam as relações de poder.

Diante das inquietações aqui sublinhadas, bem como da crescente problemática referente ao binômio tolerância/intolerância no campo das religiões e religiosidades, a Escritas do Tempo, através dos seus organizadores, apresenta ao público leitor os 10 (dez) artigos que compõem esse número, além de 2 (duas) entrevistas que dialogam diretamente com a proposta em questão.

A historiadora Ana Margarida Pereira apresenta uma importante reflexão sobre a atuação histórica da Igreja Católica, desde os primórdios do cristianismo, acerca da escravidão. Seu artigo intitulado “A escravidão na doutrina da Igreja: temas e questões em debate da Antiguidade à época moderna” defende a ideia de que as discussões teológicas e doutrinárias encabeçadas pelos representantes do catolicismo foram conciliadas aos interesses econômicos e políticos dos próprios religiosos e dos Estados Nacionais ao longo da modernidade. Assim, sem questionar profundamente a estrutura escravista, muitas das reflexões produzidas pelos tratadistas do período foram resultado dessa conciliação em prol de articular os interesses materiais com a prática espiritual e religiosa da Igreja.

Também interessado em analisar os discursos religiosos presentes na Época Moderna, o trabalho de Bento Machado Mota, cujo título é “O além dos que estão alémmar: o problema da salvação dos índios em Francisco Suárez”, parte do conceito de ignorância invencível para discutir sobre a problemática da salvação dos gentios. Para isso, o foco das suas análises consiste na teologia construída por Francisco Suárez, jesuíta e, segundo o autor, “o maior expoente do pensamento jesuítico do século XVII”. Inserido no contexto da contrarreforma, o pensamento de Suárez influenciou largamente nas políticas de conversão realizadas no Novo Mundo, principalmente entre os religiosos interessados em ampliar os limites desse conceito.

O artigo de Luzia Tonon da Silva, “Cristianização e Inquisição em Goa: a confessionalização portuguesa e católica no Estado da Índia no século XVI” também está direcionado, de certo modo, ao contexto normativo referente à conversão. Nesse caso, o foco da autora consiste em avaliar a problemática da conversão ao catolicismo vivenciada por homens e mulheres asiáticos no Estado da Índia. Para isso, foram analisadas as provisões e documentos oficiais produzidos pelo Santo Ofício estabelecido em Goa, de modo a mapear a atuação das autoridades nesse espaço.

Igualmente situada nos primeiros momentos da Época Moderna, a historiadora portuguesa Isabel Drumond Braga, com o artigo intitulado “Religiosidade, cultura material e arte: para o estudo dos ex-votos portugueses da Época Moderna ao presente”, apresenta uma importante contribuição sobre a história religiosa de Portugal. Trata-se de um estudo interessado em compreender a importância do ex-voto na composição da religiosidade e da cultura material presentes nesse espaço.

O século XVII também foi contemplado neste dossiê, sendo alvo das reflexões propostas por Regina de Carvalho Ribeiro da Costa, além do trabalho conjunto de Daniela Cristina Nalon e Carla Maria Carvalho de Almeida. Em “Entre dois Manoéis, Moraes e Calado: o libelo dos sacerdotes no Brasil holandês”, as análises de Regina da Costa partem da tolerância como chave de leitura. Situada no período de dominação neerlandesa nas capitanias do Norte, a proposta da autora parte dos Cadernos do Promotor para examinar a atuação inquisitorial nesse espaço e a relação entre os holandeses e o clero católico presente na região. Já em “A trajetória dos cristãos-novos Diogo Correia do Vale e Luis Miguel Correia de Vila Real ao Auto da Fé de 6 de julho de 1732 (1670-1732)”, as historiadoras Daniela Nalon e Carla Almeida se enveredam pela ampla temática cristã-nova. Ao se debruçarem nos processos inquisitoriais de Diogo Correia do Vale e Luis Miguel Correia de Vila Real, ambas as autoras desvendam o cotidiano das Minas Gerais, as relações econômicas e políticas protagonizadas pelos cristãos-novos, sem desconsiderar o ambiente de intolerância religiosa cuja presença do Santo Ofício foi fundamental para a sua sustentação.

A problemática dos judeus convertidos forçadamente ao catolicismo em 1497, bem como dos seus descendentes, foi igualmente discutida no trabalho de João Antônio Lima. Em ““Não há pessoa alguma por pequena que seja que não saiba”: uma família e sua fama de “cristã-novice” no Maranhão setecentista”, o recorte do autor está inserido no Maranhão do século XVII, também ancorados nos estudos influenciados pela microhistória. Nesse caso, a trajetória analisada é a da família de Felipe Camello Brito, investigado pela Cúria diocesana e pelas autoridades inquisitoriais residentes no Maranhão. Também articulando os estudos sobre a Inquisição portuguesa aos pressupostos da micro-história italiana, o historiador Philippe Delfino Sartin, em ““Pera que os bons se nam contaminem com os maos costumes, e vida dos depravados”: o medo das bruxas em São João do Peso (Portugal, século XVIII)”, analisa o desenvolvimento da feitiçaria no bispado da Guarda, em Portugal.

O Pará é espaço de reflexões no artigo de Allan Azevedo de Andrade, intitulado “A evangelização dos “bárbaros da floresta”: D. José Afonso e a cristianização dos índios na diocese do Pará (1844-1857)”. Seu trabalho é uma importante contribuição, quando comparado aos demais trabalhos desse dossiê, pois indica como problema da evangelização das populações indígenas no Novo Mundo foi elemento sensível para as autoridades seculares e religiosas ao longo da Época Moderna. Situado na trajetória do bispo d. José Afonso, que atuou na diocese entre os anos de 1844 a 1857, o autor analisa o contexto dos embates entre os ultramontanos e a tentativa do Estado em submeter a vida religiosa aos seus próprios interesses.

Resultado das suas pesquisas realizadas entre o povo indígena Akwẽ-Xerente, o trabalho de Valéria Moreira Coelho de Melo, “Xamanismo e Cristianismo entre os Akwẽ-Xerente (TO)”, discute, como o próprio título indica, a presença do xamanismo indígena e as suas reelaborações a partir das relações com o cristianismo. De um lado, a autora percebe como o cristianismo possibilita “um meio de democratização” de uma série de atributos tradicionalmente vinculados aos xamãs. Por ouro lado, o xamanismo aparece diluído nas mais diversas práticas dos Akwẽ, não somente sob um caráter religioso, mas, também, na vida cotidiana e nas decisões políticas desse povo.

As manifestações religiosas na contemporaneidade também são abordadas por Ellen Cirilo e Manoel da Silva no trabalho intitulado “Entre batuques e bandeiras de luta: a juventude alagoana nos terreiros de axé”. A proposta do artigo consiste em analisar a formação política e religiosa de alguns adolescentes pertencentes à Juventude de Terreiro chamada “Àbúró N’ilê- RJT/AL”, cuja sede fica em Alagoas.

Na seção de entrevistas, os organizadores deste dossiê entrevistaram a historiadora Laura de Mello e Souza (Lettres Sorbonne Université), pioneira dos estudos sobre religiosidade no Brasil e uma das principais referências sobre o Império português e a sua atuação no Brasil. Trata-se não somente de um testemunho pessoal acerca da sua formação, das principais influências historiográficas, mas, também, uma importante reflexão sobre o ofício do historiador em tempos de intolerância. O historiador Ronaldo Vainfas (UFF) também gentilmente concedeu uma entrevista à Escritas do Tempo. Juntamente com Laura de Mello e Souza, os estudos de Vainfas têm sido desde a década de 1980 referências para a historiografia das religiosidades e das instituições no Brasil-Colônia.

Além do dossiê temático, o atual número da Escritas do Tempo também possui a seção de artigos que acolheu os trabalhos de Andrea Ciacchi e Igor Bruno Cavalcante dos Santos. O primeiro, em “Botânico, ma non solo: a viagem de Luigi Buscalioni na Amazônia em 1899”, se debruça na trajetória de Luigi Buscalioni, reconhecido médico e botânico italiano que, em 1899, foi responsável por uma viagem de pesquisa realizada na Amazônia. Já em “A História da Família como um campo plural de compreensões e de possibilidades na comarca do Rio das Velhas no século XVIII”, o historiador Igor dos Santos articula os pressupostos teóricos e metodológicos presentes no campo da História da Família para investigar a prática do concubinato na Comarca do Rio das Velhas.

Referências

DIX, Steffen. O que significa o estudo das religiões: uma ciência monolítica ou interdisciplinar? Revista lusófona de ciência das religiões, ano VI, n. 11, p. 11-31, 2007.

JULIA, Dominique. “A religião: História religiosa”. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre. História: novas abordagens. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora, 1976. p. 106-131.

Marcus Vinicius Reis – Docente da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa). Doutor em História pela UFMG. Editor da Revista Escritas do Tempo.

Angelo Adriano Faria de Assis – Docente da Universidade Federal de Viçosa (UFV). Doutor em História pela UFF.


REIS, Marcus Vinicius; ASSIS, Angelo Adriano Faria de. Apresentação. Escritas do Tempo, Pará, v.1, n.3, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Religiões e religiosidades no nordeste brasileiro: permanências e rupturas / Ponta de Lança/2019

A composição dos textos aqui constituídos parte dos pressupostos que as religiões e religiosidades são definidas pela transmissão e perpetuação da memória de um acontecimento fundador original através de uma “linhagem religiosa” ou “linha de crença”. Isso implica mobilizações de memórias coletivas nas quais o passado fica sendo simbolicamente como um todo imutável e situado “fora do tempo” no qual fazer memória desse passado dá sentido ao presente e ao futuro. Ao contrário da suposta continuidade da tradição religiosa, as instituições religiosas e seus respectivos agentes mascaram suas mudanças e rupturas (HERVIU-LÉGER,2005). Leia Mais

Religiões, religiosidades e biografias: indivíduos e crenças / Revista Brasileira de História das Religiões / 2016

Caro leitor,

A Chamada Temática, aqui publicada, consiste em estabelecer a importância dos estudos biográficos para o estudo das religiões, religiosidades e crenças. Enfatizamos a importância em investigar a trajetória do sujeito concreto, inserido na história, com capacidade de influenciar o meio no qual vive ou viveu. A partir do estudo de biografia e contexto (LEVI, 1998), destacamos a singularidade dessas trajetórias, relacionando o individual com o contexto histórico. Este indivíduo é / foi alguém atuante, pertence a uma crença instituída que lhe dá / deu suporte e permite / permitiu seu discurso e sua prática como tradução do grupo ao qual pertence / pertencia. Quando o indivíduo fala a partir de sua adesão religiosa o faz utilizando códigos referenciais, morais, comportamentais do grupo em que é elemento participante. Utilizar a biografia como documento implica relacionar a história do indivíduo ao seu papel enquanto agente histórico, de intermediário entre as crenças instituídas pelo grupo, do qual participa, e as práticas na sociedade em que vive. Nossa proposta foi materializada nos sete artigos que compõem a Temática.

Maria Betania Albuquerque e Dannyel Teles de Castro analisam a trajetória de vida e os saberes construídos por Rosalina, uma curadora da ilha de Colares, no Pará e como ocorrem os processos de construção e transmissão desses saberes. As práticas de cura realizadas por Rosalina englobavam elementos de diversas tradições (umbanda, esoterismo, Nova Era) configurando um hibridismo religioso e um constante processo de bricolagem de seus saberes.

André Leonardo Chevitarese e Rodrigo Pereira abordam a trajetória de vida de Joãozinho da Gomeia, dirigente de uma casa de candomblé fluminense de origem interétnica Angola que funcionou entre a década de 1940 até 1971, no Rio de Janeiro.

A biografia de Jacobina Maurer, conhecida como a principal liderança do movimento Mucker, do Rio Grande do Sul é abordada por Haike Roselane Kleber da Silva.

Edilece Souza Couto analisa a trajetória de Dom Jerônimo Tomé da Silva, segundo arcebispo do período republicano na Bahia (1893-1924) no contexto das mudanças socioeconômicas e religiosas da primeira república.

Magno Francisco de Jesus Santos discute a trajetória polissêmica do arcebispo Dom Luciano José Cabral Duarte, a partir de seu envolvimento com os camponeses da região da Cotinguiba, em Sergipe nas ações de reforma agrária na década de 1960 e suas relações com o Governo Militar.

O artigo de Elisangela Oliveira Ferreira apresenta a trajetória do missionário negro, João de Deus Penitente, que pregou em uma vasta região das capitanias de Minas Gerais, Bahia e Sergipe, no século XVII. Sua motivação era ensinar a doutrina cristã aos seus “irmãos pretos” que, de acordo com ele, viviam pelo interior do Brasil desamparados da fé católica.

Wilton Carlos Lima da Silva Lima Silva, Rogério de Carvalho Veras analisam e estabelecem analogias entre biografias protestantes e discurso hagiográfico de longa tradição na literatura cristã, a partir de três biografias de protestantes brasileiros publicadas entre 1935-1950.

Finalizando a edição temos artigos livres e resenha.

Agradecemos a todos os autores que enviaram suas contribuições e desejamos boa leitura!

Solange Ramos de Andrade

Renata Siuda-Ambroziak

Organizadoras


ANDRADE, Solange Ramos de; SIUDA-AMBROZIAK, Renata. Apresentação. Revista Brasileira de História das Religiões. Maringá, v.9, n.26, set. / dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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Religião e Religiosidades / Locus – Revista de História / 2015

O presente dossiê da Revista Locus reúne contribuições de dez diferentes especialistas no estudo das práticas e representações religiosas elaboradas no mundo católico, com ênfase nas regiões de colonização ibérica, entre os séculos XVI e XIX. A organização do número constitui um desdobramento das atividades do Grupo de Pesquisa Ecclesia que tem se debruçado sobre uma variedade temática, que pode ser encontrada, a título de exemplo, nos seguintes campos de investigação historiográfica: as manifestações sagradas dos fiéis e do clero, em consonância ou em tensão com as normas institucionais; as formas de ação coletiva dos fiéis no campo religioso, especialmente a partir das irmandades e ordens terceiras; as marcas deixadas pela sociedade escravista e de Antigo Regime na formação do clero e nas vivências devocionais; os mecanismos de imposição da disciplina social católica aos fiéis, por meio da ação do episcopado e do padroado; e as representações acerca da morte e da santidade.

Muitos dos referidos campos de investigação têm sido renovados por contribuições recentes da historiografia. No que diz respeito, por exemplo, à ação dos bispos e do clero secular, José Pedro Paiva, em particular, mostrou a variedade de papéis assumidos pelos bispos diocesanos, que ocupavam um papel chave na supervisão das práticas religiosas dos fiéis e do clero, complementando e auxiliando as atividades do Santo Ofício da Inquisição. Além disso, o episcopado se encontrava muito próximo da órbita do poder monárquico, que escolhia criteriosamente os candidatos às vagas nas dioceses. Nas áreas de colonização, onde a manutenção do culto e a escolha de sacerdotes e bispos se encontravam sob a jurisdição dos padroados ibéricos, identificou-se com clareza a ação complementar das autoridades régias e dos bispos. Quanto ao clero diocesano, a historiografia se abriu a uma pluralidade de investigações, que faz ressaltar o papel central ocupado pelo pároco em uma sociedade do Antigo Regime que tinha o catolicismo como religião oficial: os estudos e a formação; as atividades rituais e de instrução religiosa; a análise do meio familiar e das origens étnicas; o envolvimento do clero em práticas morais ilícitas e em crenças heterodoxas.

As devoções, as sensibilidades religiosas e as correntes de espiritualidade de fiéis e de membros do clero têm sido também contempladas e renovadas pela historiografia. O culto à Paixão de Cristo, à Sagrada Família e ao Menino Jesus, derivado da devotio moderna, difundiu-se enormemente ao longo do período, estimulado pelo clero e contando com a participação ativa de fiéis reunidos em irmandades e ordens terceiras. A devoção ao Santíssimo Sacramento e às Almas do Purgatório recebeu igualmente grande incremento. Os vínculos entre os fiéis e os santos de proteção continuaram sólidos, em uma aliança sustentada pela prática da promessa e pela realização dos milagres. Sob o impulso do Concílio de Trento, a Igreja passou a interferir mais de perto na referida relação, procurando fazer do santo um modelo de conduta para o fiel, apoiando-se para isso na ação do clero nos sermões e na difusão da literatura devocional. Um sinal da ação controladora do clero, particularmente do Santo Ofício, foi o crescimento das acusações de “falsa santidade” dirigidas a leigos.

A partir de alguns campos de investigação expostos acima, é possível identificar maiores afinidades entre os autores. Deve-se chamar inicialmente a atenção para os estudos dedicados à temática da morte, analisada sob diferentes perspectivas, reunidos neste dossiê. Obedecendo a uma sequência cronológica, situa-se em primeiro lugar o artigo de Adalgisa Arantes Campos, intitulado “A iconografia das Almas e do Purgatório: uma releitura bibliográfica e alguns exemplos (séculos XV ao XVIII)”. Em diálogo com as obras de Jacques Le Goff, Michell Vovelle e Flávio Gonçalves, entre outros autores, Campos escolhe três fontes iconográficas para trabalhar as representações das Almas do Purgatório: a Coroação da Virgem pela Santíssima Trindade de Engerand Quarton (século XV); o Julgamento das Almas atribuído a Gregório Lopes (século XVI); e a portada dedicada a São Miguel e Almas da Capela do Senhor Bom Jesus, em Ouro Preto (século XVIII). A partir de uma análise comparativa, a autora constata o descompasso existente entre a fixação da doutrina do Purgatório no século XIII e a lenta alteração das representações iconográficas, que resistiram em assimilar um terceiro lugar no post-mortem.

Em seguida, encontra-se o texto de Claudia Rodrigues, “Estratégias para a eternidade num contexto de mudanças terrenas: os testadores do Rio de Janeiro e os pedidos de sufrágios no século XVIII”. No artigo em pauta, Rodrigues dialoga com ampla produção especializada a respeito da temática da morte, da qual extraiu elementos para analisar as fontes básicas de sua pesquisa: os registros de óbito, os testamentos e as contas testamentárias correspondentes à Freguesia do Santíssimo Sacramento da Sé do Rio de Janeiro, que se encontram no Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. Em diálogo com a obra de João Fragoso e de Roberto Guedes, atentos aos efeitos socioeconômicos das doações testamentárias, a autora revela no contexto em foco o “domínio dos mortos sobre os vivos”, característica de uma economia da salvação marcada pelo acúmulo de encomendas de missas, gastos funerários e doações de caridade, em detrimento do benefício de parentes vivos. A situação começa a mudar após as restrições dos gastos pro anima estipulados na legislação pombalina da década de 1760 que procurou favorecer os interesses dos herdeiros vivos dos testadores. Nesta conjuntura, a autora identifica as diferentes respostas contidas nas declarações de últimas vontades, desde as mais conformadas com as limitações impostas pelas Leis Testamentárias até os subterfúgios encontrados pelos testadores para continuarem a privilegiar o objetivo soteriológico do testamento.

Utilizando uma amostra documental mais reduzida, constituída pelas contas testamentárias de irmãos terceiros franciscanos e carmelitas que tiveram suas últimas vontades fiscalizadas pelo Juízo Eclesiástico do Rio de Janeiro, William de Souza Martins chega a conclusões semelhantes às de Cláudia Rodrigues, no que diz respeito ao impacto da legislação pombalina na economia da salvação do período, no artigo intitulado “Os irmãos terceiros franciscanos e carmelitas e a Justiça Eclesiástica do Rio de Janeiro (c. 1720-1820)”. Não obstante, antes e depois das restrições oriundas das medidas de Pombal, o autor identificou testadores que possuíam grandes patrimônios, vinculados ao comércio de grosso trato, cujas doações a favor da salvação das almas ficavam em patamar inferior aos benefícios materiais concedidos à parentela, inclusive a parentes mais afastados. Paralelamente, o autor observou a existência de um forte espírito de corpo entre os irmãos terceiros, que tendiam a favorecer as próprias ordens e os frades carmelitas e franciscanos com diferentes tipos de doações e despesas funerárias.

Deixando o período colonial e adentrando o período da Independência e afirmação do Estado nacional, o artigo de Gabriela Alejandra Caretta, “Y el Cielo se tiñó de rojo… Muerte heroica y Más allá en las Provincias Des-Unidas del Río de la Plata (1820-1852)” analisa as conexões existentes entre os funerais extraordinários de líderes de facções em disputa na região do Rio da Prata e a História Política da região no pós-independência. Neste estudo, em que representações fúnebres assumiam uma função importante na fundação de determinadas memórias e narrativas políticas, a autora verificou, nos quatro estudos de caso que analisa, que houve uma atualização da tradição católica da “boa morte”, que passou a incluir temas não desenvolvidos no período colonial, como o discurso heroico do “enfrentamento da morte”.

Para além da temática da morte, das suas práticas e representações, o dossiê contempla também estudos que analisaram o modo como a difusão de narrativas piedosas contribuiu para moldar as práticas de determinados fiéis, assim como potencializou a veneração e o culto de indivíduos cuja fé era considerada heroica. Seguindo novamente a ordem cronológica, situa-se em primeiro lugar o artigo de Eliane Cristina Deckmann Fleck, intitulado “De Apóstolo do Brasil a santo: a consagração póstuma e a construção de uma memória sobre o padre jesuíta José de Anchieta (1534-1597)”. Partindo da análise de três narrativas de vida do jesuíta Anchieta, elaboradas nos séculos XVI e XVII por diferentes membros da Ordem, a autora constata o esforço crescente dos cronistas da Companhia de Jesus em apresentar testemunhos autênticos da fé e das virtudes heroicas de Anchieta, com vistas a favorecer a causa de beatificação, aberta em 1624. Devido à presença de componentes hagiográficos, tais narrativas não podem ser consideradas propriamente biográficas. A autora analisa também os inúmeros obstáculos ao longo do processo de beatificação de Anchieta, que somente foi concluído em 1980. Por fim, analisando diversos outros escritos sobre o jesuíta, publicados nos séculos XIX e XX, a autora também lança luz sobre diferentes apropriações da trajetória de Anchieta, aproximando-a, por exemplo, do projeto de afirmação da unidade nacional.

Inserido na mesma temporalidade do artigo acima, mas tratando do outro extremo do império português, situa-se o texto de Margareth de Almeida Gonçalves, intitulado “‘Despozorios divinos’ de mulheres em Goa na época moderna: eloquência e exemplaridade no púlpito do mosteiro de Santa Mônica (frei Diogo de Santa Anna, 1627)”. No texto em questão, a autora examina um sermão pregado pelo referido frade agostinho durante a inauguração do Mosteiro do ramo feminino da sua Ordem, na capital da Índia portuguesa. No sermão, frei Diogo de Santana aponta para as características exemplares das mulheres que haviam feito os votos solenes da vida religiosa e se tornado “esposas de Cristo”. A narrativa é construída a partir das convenções da oratória sagrada do período, particularmente de analogias retiradas das escrituras sagradas. Assim, o Mosteiro de Santa Mônica aproxima-se do antigo Templo de Salomão, em Jerusalém.

O texto de Célia Maia Borges, intitulado “Os leigos e a administração do sagrado: o irmão Lourenço de N. Sr.ª e a Irmandade Nossa Senhora Mãe dos Homens – Minas Gerais, século XVIII” apresenta a notável trajetória de um irmão da Ordem Terceira de São Francisco que abraça a vida eremítica, tornando-se um ermitão leigo na Serra do Caraça. Desconstruindo uma visão historiográfica tradicional, segundo a qual o irmão Lourenço era fugitivo das perseguições de Pombal, a autora aprofunda a análise das inclinações religiosas do ermitão, próximas das correntes da Devotio Moderna, representadas exemplarmente naquele contexto pelos missionários apostólicos varatojanos, os quais pretendeu atrair para a Serra do Caraça. Paralelamente, a autora analisa as tensões existentes no campo religioso, em que se opunham o projeto do ermitão e as desconfianças do bispo de Mariana, que acabou autorizando apenas a fundação de uma irmandade leiga na Serra do Caraça. Sem dúvida, o texto da autora contribui para preencher uma importante lacuna nos estudos sobre a atuação dos ermitães na América portuguesa, particularmente no que diz respeito ao envolvimento dos mesmos na gestão de lugares de culto.

Passando a tratar das questões atinentes ao clero secular, deve-se mencionar primeiramente o texto de Anderson José Machado de Oliveira, “A administração do sacramento da ordem aos negros na América portuguesa: entre práticas, normas e políticas episcopais (1702- 1745)”. No artigo em pauta, o autor apresenta novas análises a respeito da temática a qual vem se dedicando há alguns anos, a da habilitação à carreira sacerdotal de descendentes de africanos, a partir da pesquisa de centenas de processos existentes no Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. A permissão para que os negros tivessem acesso ao sacramento sacerdotal era rigidamente controlada pela hierarquia eclesiástica, representada pela própria Santa Sé, como também pelos bispos diocesanos, os quais recebiam do papa autorizações temporárias para as dispensas do “defeito da cor”. Conforme assinala o autor, a lógica casuística das dispensas, efetuadas caso a caso, e que levavam em conta as singularidades e qualidades dos ordinandos e das redes de sociabilidade que acionavam, funcionava como um mecanismo de reforço das hierarquias da sociedade escravista e de Antigo Regime. Vale a pena chamar a atenção também para o fato de que a concessão de dispensas variava conforme diferentes políticas episcopais, mais favoráveis a tais concessões no episcopado de D. Francisco de São Jerônimo, e mais raras nos bispados de D. Fr. Antônio de Guadalupe e D. Fr. João da Cruz.

Fundamental para compreender a projeção do poder episcopal sobre o clero secular e os fiéis no Antigo Regime, os juízos eclesiásticos dos bispados têm sido ainda pouco estudados pela historiografia, um hiato que tem sido corrigido pelas pesquisas de Pollyana Gouveia Mendonça Muniz. Em “O Juízo Eclesiástico do Maranhão colonial: crimes e sentenças”, o texto apresentado pela autora para o presente dossiê, Muniz revela a amplitude das esferas de atuação do tribunal diocesano, que incluíam a fiscalização sobre a realização de matrimônios; libelos de divórcio; investigação de delitos de natureza moral, como concubinato e incesto; autos de testamento, conforme foi também analisado nos textos de William de Souza Martins e Claudia Rodrigues, entre outras atividades. A autora mostra como a ação dos juízos eclesiásticos complementou, em cada diocese, o funcionamento do Santo Ofício da Inquisição, atuando como um mecanismo adicional de imposição da disciplina católica às populações do Antigo Regime.

Por fim, dedicando-se ao tema de sua maior especialidade, isto é, a análise das procissões e dos rituais religiosos no Antigo Regime, Beatriz Catão Cruz Santos apresenta o texto “Os ofícios mecânicos e a procissão de Corpus Christi no Arquivo Municipal de Lisboa – séculos XVII e XVIII”. A autora analisa diversos detalhes presentes na organização da procissão, de caráter oficial, do Corpo de Deus, como a convocação do Senado da Câmara de Lisboa e da Irmandade de São Jorge. Na medida em que revelava a aquisição de prestígio social, a participação de diferentes agentes era regulada na procissão por meio de um sistema de precedências, o que não impedia a existência regular de conflitos, cuja ocorrência era por vezes provocada pela manutenção de antigos costumes locais em oposição às normas escritas, conforme se mostrou na contenda entre os oficiais de ourives e o Cabido de Lisboa.

Acreditamos que a reunião destes artigos contribui significativamente para a compreensão das dimensões do catolicismo na América ibérica, entre os séculos XIV e XIX, ao trazer abordagens de questões ainda pouco investigadas, de arquivos e fontes ainda por explorar, demonstrando as potencialidades que a temática das práticas e representações católicas possui na historiografia ibero-americana.

William de Souza Martins

Claudia Rodrigues

Anderson Machado de Oliveira

Célia Maia Borges


MARTINS, William de Souza; RODRIGUES, Claudia; OLIVEIRA, Anderson Machado de; BORGUES, Célia Maia. Apresentação. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.21, n.2, 2015. Acessar publicação original [DR]

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Mídia, Religiões e Religiosidades / Revista Brasileira de História das Religiões / 2014

A vigésima edição da Revista Brasileira de História das Religiões conta com um Dossiê sobre Mídia, Religiões e Religiosidades.

Ao pensarmos nas formas de difusão de informações, visões de mundo, representações e ideias religiosas nos séculos XX e XXI, torna-se necessário lidar como outros tipos de suporte, tais como rádio, televisão, computador, cinema e ciberespaço. Torna-se, portanto, um desafio ao historiador refletir sobre os meios de expressão, adotados pelas religiões e religiosidades, intencionalmente ou não, para transmitir uma mensagem, seja por um canal específico ou por meios de comunicação de massa.

O dossiê Mídia, Religiões e Religiosidades, organizado por Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Filho, conta com seis contribuições. São elas: “Mediatización televisiva de los rituales religiosos: Las Mañanitas a la Virgen de Guadalupe” de Margarita Zires – que trata sobre o uso dos meios de comunicação e processos rituais no México; “Apocalipsis maya: una creencia posmoderna en la era de la información” de Renée de la Torre e Lizette Campechano – que analisam a importância das indústrias culturais e dos meios de comunicação e seu papel ante as profecias de fim dos tempos de 2012; “A representação do Ritual Romano de Exorcismos no filme O Exorcista (1973)” de Solange Ramos de Andrade e Michel Bossone – dedicados a compreender os meandros entre crenças e cinema com um etudo de caso; “Educação e produção de subjetividades da intolerância: As novas fronteiras da intolerância com a Umbanda” de Sidney Nilton de Oliveira – dedicado a analisar como grupos conservadores e fundamentalistas, em especial os neopentecostais, lidam com a umbanda; “Complexidades da religiosidade afro-brasileira no “terreiro” do ciberespaço” de Cristiana Tramonte – que se volta à análise de outras formas de organização e crença de grupos de religiosidade afro-brasileira; e “Ciberespaços para a crítica: Difusão e imagens da Igreja Universal pelo ciberespaço latino-americano” de Marcelo Tadvald – que analisa aprsença da IURD no espaço virtual.

Agradecemos a colaboração de Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Filho na organização do dossiê!

Em diálogo com a temática das Mídias, temos ainda duas comunicações: “Feições político-midiáticas da concorrência cristã brasileira” de André Ricardo de Souza, Giulliano Placeres e Vinicius Manduca e “Tradição oral e novas tecnologias no candomblé da metrópole” de Ivete Miranda Previtalli.

Na Seção “Artigos Livres”, que conta com 6 artigos, temos as contribuições de Eliane Cristina Deckmann Fleck e Mauro Dillmann, Fabio Augusto Scarpim, Beatriz Teixeira Weber e Renan Santos Mattos, Ronaldo de Oliveira Rodrigues, Andreia Martins e Gizele Zanotto.

Por fim, concluímos com as resenhas de Anna Maria Salustiano e Emerson Sena da Silveira, respectivamente sobre as obras Religiões e Religiosidades no (do) Ciberespaço e Religião e Juventude: os novos carismáticos.

Boa leitura!

Vanda Serafim

Gizele Zanotto


SERAFIM, Vanda; ZANOTTO, Gizele. Apresentação. Revista Brasileira de História das Religiões. Maringá, v.7, n.20, set.., 2014. Acessar publicação original [DR]

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Vida e Morte nas Religiões e nas Religiosidades / Revista Brasileira de História das Religiões / 2014

Caro leitor, é com imensa satisfação que apresentamos a edição de número 18, ano de 2014, da Revista Brasileira de História das Religiões!

Iniciamos o ano, apresentamos um Dossiê sobre Vida e Morte nas Religiões e nas Religiosidades!

Os artigos que compõem o Dossiê são resultados de conferências e mesas-redondas apresentadas durante o III Simpósio do GT História das Religiões e das Religiosidades da Associação Nacional de História (GTHRR-ANPUH) – Regional Sul, realizado na Universidade Estadual de Maringá (UEM), de 5 a 7 de novembro de 2013.

Vida e Morte nas Religiões e nas Religiosidades foi o tema desta edição do encontro, que oportunizou produtivas discussões, agregando significativas contribuições às nossas pesquisas e à nossa atuação docente.

O primeiro artigo, Viver e morrer entre irmãos: as irmandades e ordens terceiras de Salvador-BA, de Edilece Souza Couto, foi apresentado na conferência de encerramento do evento e trata da vivência religiosa dos católicos de Salvador nos séculos XVIII e XIX e como esta foi marcada pelas devoções leigas, em especial, as irmandades.

Versando sobre “Religião e Política: biografias, mitos e ritos”, têm-se o artigo O campo religioso sul rio-grandense e a politica de ressemantização da devoção Mariana escrito por Marta Rosa Borin. Ao estudar a devoção a Nossa Senhora Medianeira de Todas as Graças e como esta surgiu no Rio Grande do Sul a partir dos episódios político-militares de 1930, na cidade de Santa Maria, a autora analisa as estratégias do clero sul rio-grandense para consolidar essa devoção no Estado, bem como as motivações para a promoção desta invocação mariana à padroeira do Estado e dos operários.

O terceiro artigo, Vida, morte e ritos de iniciação nas crenças afro-brasileiras por meio de Nina Rodrigues, de Vanda Fortuna Serafim, aborda os “Ritos de Vida e Morte”, atentando as religiões afro-brasileiras por meio dos escritos de Nina Rodrigues. A atenção volta-se aos ritos iniciáticos e às práticas e ritos funerários afro-brasileiros.

O tema “Vida e Morte na Literatura e na História” conta com duas contribuições. A primeira delas, de Aline Dias da Silveira, intitula-se A Morte e a Iniciação Feminina nos Lais de Maria de França e analisa as representações do imaginário feminino sobre a morte na literatura medieval, especificamente, no a lai de Yonec de Maria de França (séc. XII), no qual é possível identificar uma estrutura narrativa mais antiga, de feições míticas. Salma Ferraz, por sua vez, trata da morte na teologia, na mitologia, entre os intelectuais, na arte tumular, na fotografia post mortem, na poesia e na literatura, no artigo A morte nas artes.

Por fim, apresentamos mais duas contribuições que se propõem a pensar “Espaços de Vida e Morte”. Em Prantear os mortos, celebrar a vida: repensando espaços, ritos e protagonistas na América colonial (séculos XVI e XVII), Eliane Cristina Deckmann Fleck, analisa as primeiras impressões que cronistas leigos e missionários formularam sobre as expressões de sensibilidade e de religiosidade dos indígenas Tupi-guarani, em especial, daquelas relacionadas ao festejar e aos lamentos fúnebres. Já Sylvio Fausto Gil Filho, em Conformação simbólica dos espaços da vida e da morte: uma aproximação teórica, a partir de uma aproximação teórica específica com a Filosofia das Formas Simbólicas de Ernst Cassirer (1874-1945), propõe a passagem da ontologia espacial imediata para uma epistemologia do espaço como modo de interpretação do mundo da cultura.

Há de destacar, neste Dossiê, o profícuo debate travado entre pesquisadores e professores das áreas de História, Literatura e Geografia, reiterando a proposta interdisciplinar do GT História das Religiões e Religiosidades –ANPUH. Na sessão Artigos Livres contamos, ainda, com mais quatro artigos inéditos!

O primeiro deles, O martírio no contexto da Companhia de Jesus: a parénese do padre Antônio Vieira, de Fernanda Santos, pretende mostrar como o padre Antônio Vieira consegue articular algumas concepções em sua sermonária, com a eloquência de seu raciocínio católico-cristão e a engenhosidade do seu discurso, sem deixar de ter em vista os objetivos e o ideário missionário e universalizante da Companhia de Jesus.

Ivana Guilherme Simili, em Memórias da dor e do luto: as indumentárias políticoreligiosas de Zuzu Angel, busca pensar as relações das mulheres com as roupas e com a moda política e religiosa por meio da trajetória da mãe e estilista Zuzu Angel. O enfoque privilegia como a cultura das mulheres, da moda e da religião foram apropriadas e significadas pela personagem, para simbolizar e expressar, por intermédio da costura e do bordado, a dor e o luto, em razão da morte do filho pela ditadura militar.

A terceira contribuição, Em nome do direito à vida: o aborto nos documentos pontifícios dos anos 1980, de Aline Roes Dalmolin, analisa as percepções sobre aborto em documentos oficiais católicos publicados nos anos 1980.

No último artigo desta edição, Mercado religioso e as denominações afro-brasileiras numa cidade catarinense, Gerson Machado apresenta reflexões sobre o processo de constituição do mercado religioso na Cidade de Joinville, Estado de Santa Catarina, no período compreendido entre os anos 1980 e 2000.

Encerrando o quadro da Revista, contamos com uma resenha da obra de Tracey Rowland, de 2013, A fé de Ratzinger – a teologia do Papa Bento XVI, enviada por Edison Minami.

Além da estrutura tradicional, nesta edição, a RBHR apresenta os Anais do III Simpósio do GT História das Religiões e das Religiosidades da Associação Nacional de História (GTHRR-ANPUH) – Regional Sul. Os textos são resultados das discussões e apresentações de trabalhos nas três tardes do evento por meio dos Simpósios Temáticos.

Desejamos a todos uma boa leitura!

Vanda Fortuna Serafim

Solange Ramos de Andrade


ANDRADE, Solange Ramos de; SERAFIM, Vanda Fortuna. Apresentação. Revista Brasileira de História das Religiões. Maringá, v.6, n.18, Jan., 2014. Acessar publicação original [DR]

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Memória e Narrativas nas Religiões e nas Religiosidades / Revista Brasileira de História das Religiões / 2013

Há cerca de dois anos, por ocasião do III Encontro do GT História das Religiões e das Religiosidades, que ocorreu em Florianópolis, surgiu a proposta de o IV Encontro se realizar na UNISINOS. O I, o II e o III encontros realizados em Maringá, Franca e Florianópolis trataram de temas como “Identidades Religiosas e História”, “Tolerância e Intolerância nas manifestações religiosas” e “Questões Teórico-metodológicas no estudo das religiões e religiosidades”. Já para o IV, o tema proposto foi “Memórias e narrativas nas religiões e religiosidades”.

O desafio lançado pela Coordenação do GT História das Religiões e das Religiosidades em outubro de 2010 foi aceito pelo Programa de Pós-Graduação em História da Unisinos, assim como pelos demais parceiros, que foram sendo agregados ao longo dos anos de 2011 e 2012.

Vale lembrar que em 2012, foram celebrados os 50 anos da realização do Concilio Vaticano II convocado em 1962, pelo Papa João XXIII, que representou uma atualização da Igreja Católica ao mundo moderno. Este evento teve suma importância na renovação da comunidade católica mundial e modificou a caminhada da mesma no Brasil. Dentre suas determinações destacam-se a legitimação do papel dos leigos na evangelização em áreas de difícil acesso e a substituição do latim pela língua vernácula tornaram a Igreja mais próxima do povo e mais atenta aos problemas sociais que a América Latina enfrentava nesse período. Em 2012, também foi comemorado o centenário da obra clássica de Emile Durkheim, “As Formas Elementares da Vida Religiosa”, livro que é um dos marcos fundadores dos estudos de Antropologia na Escola Francesa e das Ciências Sociais da religião.

Inserido neste contexto, o IV Encontro do GT ANPUH-Nacional História das Religiões e das Religiosidades, que ocorreu na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) de 07 a 09 de novembro de 2012, efetivamente, oportunizou aos pesquisadores e comunidade em geral um espaço de diálogo, aprendizado e troca de experiências e conhecimentos sobre as religiões e religiosidades, instigando-os a refletirem criticamente sobre as posturas de indivíduos e grupos religiosos em suas ações nos âmbitos religiosos, culturais, políticos e sociais. E ainda, sobre a importância de uma prática cidadã valorativa das diferenças sociais e políticas em nosso país para, desta forma, evidenciar a relevância de análises interdisciplinares sobre a temática das religiões e das religiosidades.

A quarta edição do GT História das Religiões e das Religiosidades – Memórias e Narrativas nas Religiões e Religiosidades reuniu pesquisadores de renome e jovens pesquisadores graduandos, pós-graduandos, mestres e doutores em História, Ciências Sociais, Filosofia, Teologia, Educação e Antropologia de várias regiões do Brasil (RS, SC, PR, SP, RJ, MG, BA, PE, PI, MA, AM e MS) e, pela primeira vez, de pesquisadores da Argentina, da Bolívia, do Uruguai e, inclusive, da Polônia, que, ao longo de três dias tiveram a oportunidade de compartilhar suas pesquisas, projetos de investigação e estudos mais consolidados.

Neste dossiê apresentamos 16 Artigos, 3 Comunicações e 1 Resenha, selecionados pelo Conselho Editorial da RBHR e que representam a importância dos encontros do GT e da publicação dos melhores trabalhos apresentados.

Boa Leitura!

Eliane Cristina Deckman Fleck

Solange Ramos de Andrade

Organizadoras do Dossiê

FLECK, Eliane Cristina Deckman; ANDRADE, Solange Ramos de. Editorial. Revista Brasileira de História das Religiões. Maringá, v.5, n.15, Jan., 2013. Acessar publicação original [DR]

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História das religiões e religiosidades / Fronteiras – Revista de História / 2010

Religião, um fato social

O estudo da relação do ser humano com o Sagrado é, por excelência, uma tarefa interdisciplinar na qual a História tem muito a contribuir. Ao pensar as formas como os grupos humanos interpretam a relação com a(s) divindade(s), transformando as crenças em sistemas normativo-vivenciais, a História assume a função de pensar as bases sociais, políticas e econômicas que orientam a produção do sentido religioso. Dessa maneira, ela é dessacralizadora do fenômeno religioso ao (re)construir os contextos que permitem explicar o surgimento, a disseminação, as permanências e mudanças ocorridas no interior das religiões / religiosidades.

Dado que cada cultura, a partir de suas necessidades, cria mecanismos próprios de relacionar-se com o mundo do sagrado, ao(à) historiador(a) é possível acercar-se tanto daquilo que fenomicamente é mostrado (rituais, organização de tempos sagrados e profanos, aparatos litúrgicos, fórmulas religiosas, piedades, teologias, livros / falas sagradas), quanto da intencionalidade religiosa (uso político, econômico e social das práticas e instituições religiosas). Esta dupla possibilidade é alcançada a partir do manejo das relações estabelecidas nas temporalidades curta, média e longa, fator que dá primazia ao(à) historiador(a) das Religiões e Religiosidades no entendimento das formas específicas que o Sagrado assume nas mais diversas ambiências, transformando-se em tradições religiosas. Para tanto, há que se estar aberto ao diálogo com a Antropologia, com a Sociologia, com a Filosofia das Religiões, exercício que o presente dossiê tem a satisfação de apresentar aos leitores. Todos os textos realizam suas análises tomando a religião com um fato social. Para facilitar a leitura, ordenamos cronologicamente os textos, opção que facilitará, em uma visão de conjunto, a percepção da heterogeneidade das percepções históricas acerca do Sagrado em épocas e locais que se cruzam. Leia Mais

História e Religiosidades / História (Unesp) / 2010

A revista História (São Paulo), periódico sob a responsabilidade dos Cursos de História e da Pós-graduação da Unesp de Assis e de Franca, no presente número, composto por Dossiê, artigos livres, resenhas e a tradução de uma Conferência, discute temas variados e de interesse atual.

O Dossiê “História e religiosidades” traz 13 artigos de pesquisadores vinculados a diferentes Instituições do país, das regiões Nordeste, Centro-oeste, Sudeste e Sul e abarcam questões variadas. Um deles aborda o pensamento católico acerca da homossexualidade em diferentes momentos históricos; outro o “complexo universo temático das disputas intelectuais contra o fanatismo religioso na Europa Moderna” por intermédio do pensamento de Swift, Montesquieu, Voltaire, Diderot e David Hume. Quatro trabalhos dedicam-se às práticas religiosas, incentivadas ou não pela Igreja: trata-se de artigo que toma como objeto de pesquisa a Sociedade São Vicente de Paula, de texto que revela os avanços e retrocessos da catequese entre negros da cidade de Salvador e seu Recôncavo, de estudo sobre a peregrinação e a memória de José de Anchieta, e de análise sobre as interpretações das práticas religiosas dos brasileiros na visão oficial e / ou nas descrições de viajantes britânicos e franceses.

As relações da Igreja com a afetividade, o gênero e a família, são discutidas em dois artigos. Um deles trata da educação feminina e a Igreja no século XIX; o outro estuda as relações de concubinato, seus significados e os diferentes tipos de famílias compostas por padres da Diocese de Goiás no século XIX, texto que tem debate localizado numa região específica do Brasil. Dentre os trabalhos com temática mais regionalizada o leitor tem a sua disposição ainda artigo acerca das distinções sociais constituídas no catolicismo na província de Sergipe, por meio da análise do processo de admissão de duas irmandades religiosas do local.

Há ainda trabalhos sobre a problemática da “conversão de espaços religiosos em lugares laicos”, a contribuição da Iconografia para a História da Igreja ou as diferentes formas de compreensão das pinturas sobre o Juízo Final no período medieval, e debate religioso entre cristãos arianos e cristãos nicenos nos anos 300 d.C.

Para além do Dossiê, os artigos livres enfocam as mais variadas temáticas: o pensamento de Gilberto Freyre, Hayden White, Afrânio Peixoto e Capistrano de Abreu; história e tempo, jornalismo e narrativa; imigrantes italianos, mulheres e Academia Brasileira de Letras; Centro Cultural Euclides da Cunha e a administração do Rio Grande do Sul; e formação profissional do SENAI no Brasil. Os autores são pesquisadores que pertencem a distintas universidades do país.

Soma-se ainda a esta edição três resenhas e uma tradução. A última refere-se à conferência do Prof. Dr. Jean-Michel Carrié, historiador e arqueólogo, Diretor de Pesquisas da École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, proferida por ocasia ão da abertura do XI CEAM e I GEAM / LEIR da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Campus Franca, em agosto de 2009. A grande procura pelo texto justifica esta publicação.

As editoras da Revista acreditam que os artigos do presente número, de um grupo variado de pesquisadores, propiciarão ao leitor um momento de prazer e reflexão.

Boa leitura,

Márcia Pereira da Silva – UNESP – Campus Franca, SP – Brasil.

Zélia Lopes da Silva – UNESP – Campus Assis, SP – Brasil.
Editoras


SILVA, Márcia Pereira da; SILVA, Zélia Lopes da. Apresentação. História (São Paulo), Franca, v.29, n.1, 2010. Acessar publicação original [DR]

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