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Religiões no Mundo Antigo / Hélade / 2016
As grandes religiões atuais são fenômenos antigos. Isso é válido para o judaísmo, presente em várias cidades em torno do Mediterrâneo, e para o cristianismo em suas variedades. É também válido para o islamismo, uma religião oriunda do criticismo dos antigos politeísmos e de vertentes regionais judaicas e cristãs que, como o judaísmo e o cristianismo, também incorporou material clássico em sua cultura religiosa-intelectual. E além do enquadramento estrito do Mediterrâneo, as grandes tradições religiosas atuais são também “antigas” – o hinduísmo, o budismo, ou o confucionismo, e.g.
Estudar as religiões da antiguidade, contudo, é um desafio em vários sentidos e, talvez, um dos mais graves seja o fato de que, mesmo nas universidades, o estudo das sociedades antigas não é (ainda) uma prioridade no Brasil. Tal estudo nos leva a olhar para além das nossas fronteiras nacionais, culturais etc., ao passo que nos permite um acesso a um patrimônio cultural comum a vários povos atuais. É certo que esse patrimônio foi – e ainda é – objeto de disputas e conflitos identitários e, desde pelo menos o século XIX, o patrimônio histórico e as religiões foram vinculados à identidade dos Estados e das nações, que projetaram em seus mitos fundadores aquilo que definiram como sendo sua essência. Nessa busca de essências, monumentos e documentos foram investidos de funções muito importantes – às vezes, muito perigosas – para a vida em comum.
O estudo das sociedades da antiguidade nos fornece ferramentas e instrumentos cognitivos para compreender, dentre outras, afirmações concernentes a identidades – dos outros e de nós mesmos. E o estudo das religiões desempenha um papel destacado nessa compreensão. Ele nos permite opor aos discursos sectários as “armas” da história, da filologia, da arqueologia etc., desconstruindo os mitos modernos. Permite-nos abandonar os fantasmas das origens, dos passados imaginários, desmontando interpretações tendenciosas sobre o passado. Com ele, podemos contestar e superar equívocos modernos – intencionais ou não – sobre o “milagre grego”, o “gênio romano” e coisas do tipo, bem como superar a dialética hegeliana e seus herdeiros que viam as religiões na história tendendo ao monoteísmo de tipo cristão. Os antigos gregos, romanos, judeus, cristãos etc. são tão distantes de nós quanto os aborígenes australianos atuais, e conhecê-los nos ajuda a desmontar os panos de fundo ideológicos de sua absoluta proximidade.
É certo que cada geração escreve sua própria história, e a história antiga de hoje é diferente das várias histórias antigas do passado. Paul Veyne, há quarenta anos, em sua Aula Inaugural no Collège de France, disse que a história só existe em relação às questões que nós lhe colocamos, e se perguntava quais seriam as questões que convinha fazer ao passado.2 Sigamos Paul Veyne neste ponto, dada sua frequência em bibliografias de cursos de História no Brasil e, mais ainda, pela atualidade de suas declarações: para ele, o ofício do historiador comporta dois aspectos, a erudição e a conceptualização. A pesquisa em história antiga exige que lancemos mão de vários recursos da erudição antes que possa ser formulado um novo questionamento, uma nova problemática. A história tem em Jano bifronte seu patrono: de um lado, o trabalho metódico com a documentação; de outro, o questionamento desses documentos. De um lado, a lide com a documentação; de outro, a problemática. Manejar as técnicas de pesquisa e os conceitos, e então a antiguidade se torna cada vez menos familiar e mais estranha, fazendo-nos rever preconceitos arraigados sobre a universalidade das ideias e dos comportamentos que, lamentavelmente, ainda são frequentes, permanecendo em uso e ativos, sendo propalados nos mass media, nas redes sociais, em campanhas políticas, em escolas, em universidades, no momento em que assistimos a uma exacerbação da religiosidade e de conflitos de base religiosa, que ressurgem como a fênix, com um vigor renovado.
Estudos sobre os discursos e as práticas religiosas da antiguidade vêm revelando aspectos antes insuspeitados das sociedades, e as religiões demonstraram ser um objeto de pesquisa de fundamental importância para a compreensão da experiência humana no tempo e no espaço. A pesquisa antiquista já ultrapassou uma ideia de “religião” compreendida como uma “essência trans-histórica”, existindo como um fenômeno eterno e unitário. Ao contrário, as religiões mudam com o tempo e as circunstâncias, e também muda aquilo que as pessoas entendem como sendo “religião”. As religiões, portanto, não são fixas, nem unitárias, e nem mesmo coerentes, e estão invariavelmente mudando, adaptando-se, recriando-se em realidades intersubjetivas. São fenômenos inerentemente sociais, criando experiências e significados compartilhados, práticas e imagens que são comunicadas e ensinadas. As pesquisas sobre as religiões antigas vêm se sucedendo em um ritmo acelerado nas últimas décadas graças, principalmente, ao diálogo interdisciplinar, o que permitiu a ampliação dos corpora documentais e, sobretudo, a reavaliação de dados e conclusões baseadas em documentos da tradição manuscrita e outros a partir de novas premissas, renovando a compreensão de temas já explorados pela historiografia sobre a antiguidade. As religiões antigas surgem sob novas luzes como elementos centrais na pesquisa e na compreensão, por exemplo, dos sistemas culturais, políticos, intelectuais e institucionais das sociedades do passado.
Ainda assim, as religiões da antiguidade formam um tema de estudo complexo per se, pois, seguindo-se uma das religiões atuais ou não, todos nós fomos formados – ou deformados – por dezesseis séculos de monoteísmo, e não é possível abandonar nosso mundo de compreensão e saltar simplesmente para outro. Desse modo, os contrassensos são vários e persistentes. Mas, não apenas no que tange à religião, como também em relação a outras manifestações culturais da antiguidade, é preciso ultrapassar o enquadramento do pensamento judaico-cristão. É certo que muitos estudos nos habituaram, nos últimos anos, à observação da alteridade. Mas a reiteração da necessidade da observação das categorias discursivas, religiosas e ideológicas das sociedades antigas merece ser feita, posto que o próprio desenvolvimento dos estudos sobre as práticas e os discursos religiosos da antiguidade ainda se dá pleno de ideias fundadas em “premissas monoteístas” que agem como pano de fundo de boa parte da pesquisa sobre a religião, analisando-a a partir de categorias religiosas judaico-cristãs.
Este dossiê congrega artigos de estudiosos brasileiros e estrangeiros que lidam com práticas e crenças religiosas da antiguidade, observando aspectos religiosos cruciais para a compreensão das sociedades analisadas, bem como lidam com a transformação de práticas e crenças religiosas que levaram à formação de novas fronteiras e novos conhecimentos para os grupos humanos. As religiões antigas são aqui entendidas como um spectrum de ações, crenças, experiências, conhecimentos e comunicações com seres e agentes super-humanos, incluindo, mas não se limitando a “deuses”, “demônios”, “anjos”, “heróis” e outras personagens transcendentes. A ritualização e as elaboradas formas de representação e apresentação dessas ações e experiências e desses seres e agentes são um tema de pesquisa atual para diversos ramos especializados em regiões, épocas, tradições e corpora documentais particulares.
A institucionalização da religião, assim como os papéis religiosos; a construção da religião como conhecimento; os rituais como produtos de contextos históricos e sujeitos à mudança, como testemunhos de tensões sincrônicas e / ou diacrônicas; os espaços das experiências religiosas, compartilhados por indivíduos ou grupos em santuários públicos ou privados, ou o espaço móvel dos festivais e procissões; o espaço religioso virtual da comunicação literária e os discursos intelectuais sobre a religião; os diferentes modos de apropriação das religiões, de comunicação com o “outro” invisível, representado ou epifânico; rituais e performances e sua relação com o corpo, em que movimentos e gestos são elementos fundamentais na percepção e estruturação de mundos religiosos; as imagens de deuses e de rituais e a criação de sentimentos e conhecimentos compartilhados, criando regimes de visualidade, são temas caros aos estudos sobre as religiões antigas, permitindo a análise de culturas religiosas criadas pelas interações interpessoais e intergrupais, pela imitação, apropriação de gestos, imagens e conhecimentos que criam comunidades fundamentadas em memórias compartilhadas, sempre sujeitas a mudanças. A intenção de reunir “religiões” diversas, especialistas, disciplinas e enfoques variados visa ao cruzamento ou à redefinição de fronteiras disciplinares e convida ao engajamento com discussões contemporâneas nos campos da pesquisa e do ensino das religiões, da história antiga, e das ciências humanas e sociais em geral.
Claudia Beltrão da Rosa – Professora Associada de História Antiga da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO.
ROSA, Claudia Beltrão da. Editorial. Hélade. Rio de Janeiro, v.,2, n.2, out., 2016. Acessar publicação original [DR]