Direitos Humanos, Religião e Democracia/Revista Brasileira de História das Religiões/2022

A dignidade humana é fundamento do Estado Democrático de Direito, com fulcro no artigo 1º, inciso III da Constituição da República Federativa do Brasil. Para a consolidação e fortalecimento da democracia, constitui essencial a promoção da dignidade humana, que também é fundamento dos direitos humanos. Nesse contexto, a religião desempenha papel fundamental, razão pela qual, a presente chamada temática da Revista Brasileira de História das Religiões traz como tema Direitos Humanos, Religião e Democracia. Leia Mais

Religião e Sociedade | Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade | 2021

A Revista Eletrônica Cordis está publicando seu Volume 1, número 26, primeiro semestre de 2021. Esta é uma Edição Especial da revista por se tratar de uma temática debatida no “I Simpósio Internacional de Estudos Pós-Graduados em História das Religiões: Estado e Igreja em Debate, realizado no segundo semestre de 2020 de forma virtual, uma iniciativa da pós-graduação lato sensu da Universidade Cruzeiro do Sul e sua Diretoria de Ensino a Distância (DEA), em parceria com o Núcleo de Estudos de História Social da Cidade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (NEHSC da PUC-SP). Os artigos, pesquisas e resenha deste número está em sintonia com as inquietações que esta temática vem provocando na sociedade, portanto o título para esta edição é Religião e Sociedade.

Os docentes e pesquisadores que enviaram seus artigos atuam em Instituições de Ensino Superior e Núcleos de Pesquisa do Brasil e do Estrangeiro (Argentina, Chile e Polônia), acumulando experiências em pesquisas e debates com participação em eventos nacionais e internacionais em seus países. Os autores tem formação em diferentes cursos de graduação e pós-graduação, no Brasil e no Estrangeiro, sendo especialistas nas áreas de Ciências Humanas e Sociais, atuantes em suas áreas de especialidade: História, Antropologia, Ciências Sociais e Teologia, o que contribuirá bastante para o debate/conhecimento sobre a temática proposta para esta edição da Cordis, pois Religião e Sociedade foram analisadas em suas múltiplas faces, percorrendo caminhos que passam pela religiosidade popular, pela arte, pela política e pelas teorias e metodologias da História das Religiões, ou seja, as abordagens teóricas, os métodos e as fontes são bastante amplas e colaboram para problematizar nossa proposta temática, e que são também pertinentes aos objetos de estudos dos pesquisadores aqui reunidos com suas reflexões consistentes e instigantes. Leia Mais

Religião e Indústria Cultural | Ponta de Lança | 2021

GOSPEL PRIME Religião e Indústria Cultural
Tela inicial do site Gospel Prime, 27 jul. 2021

Diversas pesquisas no âmbito das ciências humanas têm constatado que no campo religioso (BOURDIEU, 1998) brasileiro evidencia-se ampla concorrência entre seus agentes, o que os tem levado cada vez mais a criar novas estratégias e bens simbólicos de salvação plausível, aqueles que garantam às instituições religiosas forças na luta pelo monopólio da gestão desses bens, pela manutenção ou ampliação do seu capital social. Nessas disputas, os meios de comunicação têm desempenhado um papel primordial, principalmente com a mediação da cultura moderna, onde foram plasmadas as maneiras como as formas simbólicas são produzidas, transmitidas e recebidas nas sociedades modernas, bem como as maneiras como as pessoas experimentaram as ações e acontecimentos que se dão em contextos dos quais estão distanciados, tanto no espaço como no tempo (THOMPSON, 1995).

Num mundo marcado pelos meios de comunicação, as tradições se tornaram mais e mais dependentes de formas simbólicas mediadas. Elas foram desalojadas de lugares particulares e reimplantadas na vida social de novas maneiras. Mas o deslocamento e a nova ancoragem das tradições não se tornam necessariamente inautênticas, nem foram condenadas à extinção. Com o avanço dos meios de comunicação, o papel das tradições orais, por exemplo, não foi eliminado, mas foi suplementado e reconstituído pela difusão dos produtos da mídia (THOMPSON, 2002). Leia Mais

Os cristãos e a política no Brasil contemporâneo: laicidade em disputa, Estado em colapso, religião em efervescência / Revista Brasileira de História das Religiões / 2021

O presente dossiê teve contribuição de treze excelentes textos que nos ajudam a contribuir a atuação intercessão entre cristãos e a política brasileira mais recente. Pode-se dizer que política e religião a cada momento, a cada nova configuração governamental se relacionam de forma distintas tal como narram Judith Butler e Gayatri Spivak (2007) sobre a arena dos diferentes estados nacionais. Agora, nos diferentes estados acaba que se tornou em alguns aspectos, caracterizado pelo questionamento da laicidade por seus atravessamentos.

1 A laicidade e o esboço de suas formas

Assim, uma questão da hora que se coloca sobre as desventuras de religião e política é sobre o aparato caraterizado como “laicidade” no âmbito dos Estados, sobretudo, nas questões da abstenção da religião. Esse sentido e grau de abstenção envolve no âmbito da sociedade uma infinidade de “embates de interpretações envolvidos sobretudo nos nichos promotores e suas diferentes apreensões religiosas” (RICOEUR, 1995, p.313). Esse curto-circuito de intensos conflitos foram apontados em linhas gerais em importante entrevista de Paul Ricoeur de 1995 – um dos raros textos que tratou dessa topografia teórico-social.

A definição de laicidade, as conexões de religião e política no âmbito dos Estados, é primeiro uma variável da conjuntura da gestão governamental do estado. Paul Ricoeur (1995) admite sobre isso que a noção de laicidade é diferente no Egito, na França, Portugal, Gabão e Inglaterra, nisso se alinha com teóricos com Nicos Poullantzas (1976), Judith Butler e Gayatri Spivak (2007) que a interpelação nos estados é uma variável local dependente de cada história social da religião oficial e do conjunto de forças hegemônicas. Por exemplo, Poullantzas (1976) indica que a Inglaterra respeita seu processo de laicidade respaldando os conflitos religiosos internos, mesmo assumindo, a partir a figura da rainha como liderança rainha e dirigente anglicanismo. A laicidade inglesa é descrita por Christian Smith (2003) vai designar de aberta para experiencias de fé, mesmo dando a primazia para o cristianismo de Westminster.

De igual forma Smith (2003) escreve sobre a França emergida no ambiente da Revolução Francesa, prorrogou um critério de laicidade, de retirada de símbolos e expressões religiosas dentro dos gabinetes até o ano de 2018. Por isso, Smith (2003) vai chamar o estado francês de “fechado” as discussões, diálogos e embates das expressões de fé. A partir de 2013, com uma série de campanhas e levantes mulçumanos e de migrantes acarretou na revisão da noção francesa de abolição de símbolos religiosos, até porque ocorriam cobranças das populações mulçumanas por conta das rezas diárias que se fazem na direção de Meca. Essa revisão de décadas da laicidade francesa se deu como uma série de acusações das populações emigradas que se referiram “o racionalismo europeu como racista” (PORTIER, 2019).

2 Laicidade no âmbito da sociedade

A noção de laicidade brasileira é ligada a laicidade portuguesa, uma forma mista das operações dos ambientes ingleses e franceses. Por isso Smith (2003) utiliza a expressão laicidades “mistas”, o que se torna mais desafiadora para as análises, pois admite internamente duplicidades de narrativas e aparentes contradições de argumentos.

Só por isso, afirma-se a importância desta edição da Revista Brasileira de Histórias das Religiões/ANPUH, com a discussão sobre cristãos e política em tempos difíceis.

Ao olhar mais o panorama da sociedade, ainda que sobre as sinalizações dos teóricos franceses, Phillip Portier (2011, p.190-195) indica-se que exista “há a laicidade do Estado, que pode ser referida com uma palavra: abstenção, com conotações restritiva e negativa”. O “Estado laico deve assumir papel de neutralidade em relação à religião e, consequentemente, às instituições religiosas” (PORTIER, 2011, p.195). Logo, seus representantes e estatutos não deveriam privilegiar ou posicionar-se de maneira agressiva em relação a nenhuma manifestação religiosa, o que para Paul Ricoeur (1995) esse caminho seria de uma espécie de “agnosticismo estatal”. Nesse sintagma a separação entre Estado e religião não implica simples ignorância de um em relação ao outro, mas, “há o intento de delimitar de maneira adequada o papel de cada um, de maneira que a religião seja reconhecida pelo Estado como entidade, com regimentos, registro e estatuto público, submetida às leis que regem os demais grupos e agremiações sociais” (RICOEUR, 1997, p.81).

Em termos jurídicos as instituições religiosas não têm o poder centralizador, configurando-se como mais uma associação dentre as outras, portanto, a religião não é “todo o estado, mas parte dele” (PORTIER, 2011, p.196). Paul Ricoeur (1995 p. 181), está convencido de que este conceito de laicização se mostra mais normativo do que efetivo, quando diz: “creio que é preciso ter mais sentido histórico e menos ideológico, para abordar os problemas ligados à laicidade”. O que se quer esmiuçar: os diversos Estados-nação, a partir de sua formação histórica peculiar, há mobilizações próprias sobre as religiões e as instituições estatais.

Junto a esse conceito de laicidade existe outro mais dinâmico. Quando se analisa no âmbito da sociedade civil, a laicidade coloca-se como embate de posicionamentos distintos, como pluralidade e diversidade de perspectivas. Esses conflitos de posicionamentos pressupõe uma sociedade marcada pelo pluralismo de concepções de mundo, de crenças, de ideias, de ideologias, de interpretações e de convicções. Em uma sociedade marcada por esta diversidade, a laicidade assume caráter dinâmico em razão do campo de disputas que se instaura. Esse “conflito de interpretações” não tem por objetivo a harmonização, um consenso. Mas, antes, assume-se que, em muitas questões, a impossibilidade de um acordo é patente. O que não é negativo, desde que se preserve as partes em desacordo. O conflito das interpretações, desde que se preserve os atores e seus argumentos, é uma forma de preservação das liberdades e dos conjuntos.

3 Tensões e questões da laicidade em disputa no Brasil

No Brasil atual, em que cada vez mais se aumentam os atravessamentos entre religião e política, deve-se lembrar que os conflitos de interpretações religiosas são inerentes a formação do Estado republicano (1889) que se mantém neutro, ao menos oficialmente, em relação a instituições religiosas, ou então, deveria ser mantido. Com esses dados sobre religião e política no Brasil podemos vislumbrar incursões dos atores religiosos, em especial católicos e evangélicos, na construção de uma patrulha ideológica nos postos do Estado brasileiro e sua ocupação efetiva, e, todos os níveis, local, regional e federal e se espraiando pelos três poderes. Daí a importância desse dossiê, e sobretudo, que a laicidade brasileira não seja um conceito dado, fixo, mas se encontra em disputa.

É o que se pode perceber, quando o atual Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, afirmou em 2019 no maior evento evangélico do país, a Marcha para Jesus: “O país é laico, mas eu sou cristão”. Está ocorrendo um claro deslocamento da neutralidade do estado, e o se preservando as partes nos conflitos religiosos internos a nossa sociedade (PY, 2020). Por outro lado, isso sempre foi uma ponta de disputa, como por exemplo, com o advento do Estado de 1892, na primeira Carta Constitucional da República, tratou-se sobre a laicidade brasileira, e por conta dela o clero viram a necessidade de tentar “recatolicizar”, e passaram a investir nas novas instituições republicanas, buscando influenciar decisões políticas e sociais por meio da formação de uma elite intelectual católica (SILVEIRA, 2019).

Um dos marcos desse início e reação católica foi a promulgação, em 1916, da Carta Pastoral de Dom Sebastião Leme, arcebispo de Olinda e Recife, tornou-se, mais tarde, arcebispo e cardeal do Rio de Janeiro pelas mãos do Papa Pio XI (SILVEIRA, 2019). A Carta Pastoral fazia parte de um momento que se delineava desde a origem da República Brasileira, quando a Igreja Católica reuniu suas forças para consolidar reformas internas, como o recrutamento de novos membros estrangeiros para as ordens religiosas, a criação de novas dioceses e a consolidação de um discurso e de uma ação mais homogêneos (SILVEIRA, 2019). Assim, o dossiê apresentará uma série de reflexões teóricas e de objetos empíricos, construtos de seus autores e autoras, na forma de treze artigos que brindam os leitores e pesquisadores dos temas do Brasil contemporâneo.

4 Os artigos do dossiê

Logo em seguida, o trabalho intitulado “Pela “família tradicional”: campanha de candidatos evangélicos para a ALEP nas eleições de 2018”, escrito pelos pesquisadores Frank Antonio Mezzomo, Lucas Alves da Silva, Cristina Satiê de Oliveira Pátaro, discutem a partir do material de campanha (coletado nas redes sociais e sites) de alguns candidatos a deputados estaduais no estado do Paraná, seus posicionamentos políticos. Os temas centrais encontrados em geral foram: a defesa da escola sem partido, a luta contra a ideologia de gênero, e debates sobre a reprodução da vida. A preocupação destes candidatos é em geral com temas religiosos e morais.

A pesquisadora-docente Dora Deise Stephan Moreira contribui com o artigo denominado “A trajetória de Marcelo Crivella: de cantor gospel a prefeito da segunda maior cidade brasileira em 2016”. O texto discute as ações adotadas pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), para eleger inicialmente para o cargo de senador o bispo licenciado Marcelo Crivella, e depois, ao cargo a prefeitura do Rio de Janeiro que foi eleito em 2012. A dança entre a imagem religiosa e a imagem política se complexifica e é utilizada por Crivella de forma instrumental, ao sabor das circunstâncias políticas-eleitorais. Em todas as campanhas disputadas por Marcelo Crivella houve a vinculação da sua imagem com o projeto Nordeste. Projeto este desenvolvido pela IURD para fins sociais. Percebeu-se a associação do referido político com a questão midiática, assistencial, religiosa e moralista.

O próximo texto a ser apresentado e de autoria do docente da Universidade do Estado do Pará Saulo Baptista. O título do seu trabalho é “Os Evangélicos e o Processo Republicano Brasileiro”. No início do seu trabalho, o autor faz uma recapitulação histórica da chegada dos protestantes em terras brasileiras e sua presença pública em contraponto a hegemonia católica. Logo em seguida, contextualiza o surgimento e o desenvolvimento dos pentecostais e dos neopentecostais na política brasileira. O texto termina com uma eximia reflexão a respeito da presença dos evangélicos na atual conjuntura política nacional.

O docente Aldimar Jacinto Duarte e Seabra Vinicius contribuem com este número com o texto chamado “O campo político e o campo religioso a partir dos jovens ligados a International Fellowship of Evangelical Students (IFES) na América Latina”. Muito interessante a reflexão desenvolvida a respeito da postura, aparentemente, apolítica do grupo do IFES. Para chegar a esta conclusão foram aplicados questionário via Google-Forms em vinte países da América Latina, obtendo 228 respostas. A análise dos dados foi feita a partir dos conceitos da teoria de Pierre Bourdieu. Tal grupo é majoritariamente formado por jovens universitários.

Os pesquisadores Ricardo Ramos Shiota e Michelli de Souza Possmozer escreveram o texto denominado “O Brasil cristão da Frente Parlamentar Evangélica: luta pela hegemonia e revolução passiva”, que discute a partir das informações contidas no Facebook da Frente Parlamentar Evangélica (FPE), criada em abril de 2019. Sabemos que a FPE é entusiasta apoiadora do governo Jair Bolsonaro (sem partido), sobretudo pelo alinhamento ideológico na defesa das pautas de costume ou morais, fundamentalismo religioso e defesa de postura vinculadas aos expecto ideológico de extrema direita. Foram analisadas 209 publicações, entre 01 de abril e 31 de outubro de 2019. A teoria escolhida para analisar os dados foram os conceitos desenvolvidos por Gramsci.

Os autores Cézar de Alencar Arnaut de Toledo e William Robson Cazavechia adotaram como título do texto, “As Formas de Adaptabilidade do Neopentecostalismo Brasileiro à Mídia” e discutem a presença do conservadorismo religioso neopentecostal na mídia brasileira. Historicamente os evangélicos tiveram concessão de rádio, tv, criaram páginas de internet, e o uso das redes sociais com o intuito de posicionarem a respeito dos mais variados temas nacionais na perspectiva do fundamentalismo cristão. O texto é instigante e nos mostra como a mídia é bem trabalhada por este grupo religioso no Brasil.

O texto publicado foi de autoria dos autores Fabio Lanza, Luiz Ernesto Guimarães, José Neves Jr. e Raíssa Rodrigues, cujo título é “Engajamento político e Renovação Carismática Católica em Londrina-PR (2014-2016)”. O texto discute os posicionamentos políticos dos grupos católicos carismáticos (RCC) na cidade de Londrina inteiro de São Paulo. A partir de visitas de campo e entrevistas semiestruturadas, os autores conseguiram perceber a visão de mundo das lideranças deste universo religioso sobre o atual momento político brasileiro, Em geral, os representantes ou postulantes da RCC a cargo para o poder legislativa ou executivo, defendem pautas conservadoras, são fundamentalistas religiosos e benefícios institucionais para organismos de inspiração carismática católica e outros segmentos da Igreja Católica no Brasil.

Ao discutir o governo Bolsonaro na relação religião e política, a união entre católicos e evangélicos tem evidenciado de forma rotineira. O texto “Entre a articulação e a desproporcionalidade: relações do Governo Bolsonaro com as forças conservadoras católicas e evangélicas” escrito por Marcelo Ayres Camurça Lima e Paulo Victor Zaquieu-Higino tenta compreender se esta aproximação pode ser caracterizada como uma ação ecumênica de extrema-direita, num contramovimento do que no passado caracterizou as tentativas de aproximação entre os diferentes grupos cristãos em torno, por exemplo, da Teologia da Libertação e das lutas sociais na América Latina. Uma forte indagação é feita e discutida ao longo do texto: nessa trama religioso-política de extrema-direita, o catolicismo estaria sendo “eclipsado” e o pentecostalismo destacado? Não tenha dúvida que o atual governo aciona a religião para fundamentar suas ações e visões de mundo na política.

O próximo trabalho a ser apresentado traz como título “Guerras culturais e a relação entre religião e política no Brasil contemporâneo” escrito pelos pesquisadores Roberto Dutra e Karine Pessôa. O texto versa da presença da moralidade na política, provocada pela religião nas eleições de 2018. Os autores recorrem as categorias da sociologia política sistêmica de Niklas Luhmann para analisar o fenômeno religião e política na eleição referida.

O artigo chamado “A ‘governabilidade’ petista” escrito pela pesquisadora Amanda Mendonça é bem interessante e supre lacuna na literatura a cerca religião e política, que versa sobre a relação do Partido dos Trabalhadores (PT) com os pentecostais e os católicos, no período que esteve à frente da presidência do Brasil. A autora mostra que evangélicos e católicos uniram-se em torno da defesa de pautas conservadoras e, ainda que dando alguma sustentação político-partidária, causaram conflitos com a gestão petistas por entenderem que a “essência” do governo era contrária ao seu ideário religioso. Por outro lado, os governos petistas ofereceram alianças, cargos e apoio direto e indireto – subvenção de comunidades terapêuticas religiosas para o tratamento de drogadições, concessões de rádio e TV por exemplo – aos grupos cristãos em nome da governabilidade, essa geringonça feita de modos heteróclitos e que em 2018 entrou em um novo patamar de crise.

Os pesquisadores do campo das relações internacionais Anna Carletti e Fábio Nobre com o texto intitulado “A Religião Global no contexto da pandemia de Covid-19 e as implicações político-religiosas no Brasil”, nos mostra como líderes religiosos no Brasil e no mundo reagiram a pandemia Covid-19. Os pesquisadores André Ricardo de Souza e Breno Minelli Batista contribuem com o trabalho intitulado “Os efeitos políticos no Brasil dos sete anos iniciais do Papa Francisco”, tentando compreender as relações políticas e religiosas do Papa Francisco com o governo Jair Bolsonaro (sem partido). Sabemos que o Papa Francisco assume o papado em 2013, logo após, a renúncia do atual Papa Emérito Papa Bento XVI.

E por fim, o docente Graham McGeoch com o trabalho “Field Notes from Brazil: We don’t believe in Democracy”, faz uma interessante reflexão da presença dos elementos religiosos na atual conjuntura política brasileira, elegendo a eleição e o governo Bolsonaro como tema de análise. Daí, extraímos algumas perguntas: Que tipo de democracia é esta que temos e o porquê ela se enredou em uma trama político-religiosa de extrema-direita? É possível acreditar nesse tipo de democracia? E, por fim, que outra democracia podemos sonhar para sairmos uma relação disfuncional, inflamada e perversa entre cristianismo reacionário e política estatal (um estado de sítio) que a democracia liberal-representativa permitiu vir à luz.

Referências

BUTLER, Judith; SPIVAK, Gayatri. Who sings the Nation-State? Language, Politics, Belonging. New York: Seagull. 2007

POULANTZAS, Nicos (Org.), La Crise de l’État. Paris : Presses Universitaires de France, 1979.

PY, Fábio. Pandemia cristofascista. São Paulo: Recriar, 2020.

RICOEUR, Paul. Phenomenology and the social sciences. In: KOREBAUM, M. (Org.). Annals of Phenomenological Sociology, Ohio: Wright State University, 1977.

RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações. Ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro: Imago, 1978.

RICOEUR, P. Leituras 1. Em torno ao Político. São Paulo: Edições Loyola, 1995.

SMITH, Christian. The secular revolution: power, interests, and conflict in the secularization of American public life. Berkeley: University of California Press, 2003.

SILVEIRA, Emerson. J. S. Padres conservadores em armas: o discurso público da guerra cultural entre católicos. Reflexão, PUCCAMPINAS, v. 43, 2019, p. 289-309.

Fábio Py – Professor do Programa de Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Riveiro. E-mail: pymurta@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7634-8615.

Emerson Sena da Silveira –  Doutor em Ciência da Religião, antropólogo, professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, MG. E-mail: emerson.pesquisa@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5407-596X.

Marcos Vinicius Reis Freitas – Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Docente do Curso de Pós-Graduação em História Social pela UNIFAP, Docente do Curso de Pós-Graduação em Ensino de História (PROFHISTORIA). (CEPRES-UNIFAP/CNPq). E-mail para contato: marcosvinicius5@yahoo.com.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0380-3007.


PY, Fábio; SILVEIRA, Emerson Sena da; FREITAS, Marcos Reis. Apresentação – Os cristãos e a política no Brasil contemporâneo: laicidade em disputa, Estado em colapso, religião em efervescência. Revista Brasileira de História das Religiões. Marigá, v.13, n.39, p.5-12, jan. / abr. 2021. Acessar publicação original [IF].

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Iglesia, religión e independencias en Hispanoamérica | Historia y Espacio | 2021

Las independencias de las excolonias europeas en América, sobre todo las que pertenecieron a España, es uno de los temas historiográficamente hablando, que más se han trabajado. Los primeros estudios sobre el momento de ruptura del orden colonial dieron pie a las que se han denominado historias nacionales, preocupadas ellas por construir un relato casi oficial sobre cómo nacieron las nuevas repúblicas hispanoamericanas. Desde un principio, los variados relatos que se elaboraron sobre las independencias enfatizaron en diversos aspectos que consideraron relevantes, por ejemplo las ideas políticas que supuestamente influyeron en el constructo ideológico revolucionario; las campañas militares que condujeron a las derrotas de los ejércitos realistas en múltiples campos de batalla, lo que significó el enaltecimiento de los “héroes que nos dieron patria”, como reza una frase muy conocida en la región; el papel que desempeñaron potencias europeas, especialmente Gran Bretaña, en el patrocinio del proceso emancipador; y el papel que tanto la Iglesia católica, como institución, como la religión, jugaron en la independencia como proceso histórico.

Sobre ese aspecto, el del papel que jugaron tanto la Iglesia católica como institución, y la religión católica, hay abundante bibliografía, proveniente de diversas corrientes de pensamiento y escuelas historiográficas. En esa bibliografía observamos que no hay posiciones dominantes o hegemónicas, por el contrario, con el paso del tiempo, son diversas las conclusiones y los resultados que se muestran sobre cómo incidieron la iglesia y la religión católicas en el proceso emancipador. De esta forma, si hablamos de la Iglesia como institución observamos que se dice, por ejemplo, que fue baluarte de la defensa de la monarquía en la crisis que padecía desde la invasión napoleónica a la Península Ibérica en 1808. Y en ese sentido la defendió cuando en sus colonias americanas se despertó el espíritu autonomista y después el independentista. Se afirma también que sectores de esa institución, sobre todo criollos y de baja importancia, apoyaron el gradual desprendimiento de las colonias americanas hasta desembocar en la Independencia llegando, incluso, a emplear mecanismos como catecismos y sermones para justificar lo que, sobre el papel, era una clara ruptura del orden natural. También se indica que, con el paso de los años, y sobre todo después de las derrotas realistas en tierras americanas, los eclesiásticos, incluso peninsulares, que aún permanecían en el continente americano decidieron, por bien de la iglesia y de la religión católicas alinearse no sólo con la Independencia sino también con el sistema republicano. A partir de ese momento, el de dar su aprobación a la Independencia, la iglesia ayudó a los gobiernos de las nacientes repúblicas a buscar que esa aprobación también fuera dada desde el centro del catolicismo, esto es Roma, lo que a la postre comenzó a pasar desde mediados de la década de 1830. La aceptación del Papa de la ruptura del orden colonial, y la formación de nuevas realidades, por ejemplo la republicana, condujeron a la reconfiguración de las relaciones con el pontificado por parte de las repúblicas hispanoamericanas y el imperio brasileño. De esta forma puede verse el ocaso del patronato real y el fracaso, por así llamarlo, del patronato republicano. Leia Mais

Religião e política no mundo contemporâneo / Revista Brasileira de História das Religiões / 2020

Os cristãos e a política no Brasil contemporâneo: laicidade em disputa, Estado em colapso, religião em efervescência

O presente dossiê teve contribuição de treze excelentes textos que nos ajudam a contribuir a atuação intercessão entre cristãos e a política brasileira mais recente. Pode-se dizer que política e religião a cada momento, a cada nova configuração governamental se relacionam de forma distintas tal como narram Judith Butler e Gayatri Spivak (2007) sobre a arena dos diferentes estados nacionais. Agora, nos diferentes estados acaba que se tornou em alguns aspectos, caracterizado pelo questionamento da laicidade por seus atravessamentos.

1 A laicidade e o esboço de suas formas

Assim, uma questão da hora que se coloca sobre as desventuras de religião e política é sobre o aparato caraterizado como “laicidade” no âmbito dos Estados, sobretudo, nas questões da abstenção da religião. Esse sentido e grau de abstenção envolve no âmbito da sociedade uma infinidade de “embates de interpretações envolvidos sobretudo nos nichos promotores e suas diferentes apreensões religiosas” (RICOEUR, 1995, p.313). Esse curto-circuito de intensos conflitos foram apontados em linhas gerais em importante entrevista de Paul Ricoeur de 1995 – um dos raros textos que tratou dessa topografia teórico-social.

A definição de laicidade, as conexões de religião e política no âmbito dos Estados, é primeiro uma variável da conjuntura da gestão governamental do estado. Paul Ricoeur (1995) admite sobre isso que a noção de laicidade é diferente no Egito, na França, Portugal, Gabão e Inglaterra, nisso se alinha com teóricos com Nicos Poullantzas (1976), Judith Butler e Gayatri Spivak (2007) que a interpelação nos estados é uma variável local dependente de cada história social da religião oficial e do conjunto de forças hegemônicas. Por exemplo, Poullantzas (1976) indica que a Inglaterra respeita seu processo de laicidade respaldando os conflitos religiosos internos, mesmo assumindo, a partir a figura da rainha como liderança rainha e dirigente anglicanismo. A laicidade inglesa é descrita por Christian Smith (2003) vai designar de aberta para experiencias de fé, mesmo dando a primazia para o cristianismo de Westminster.

De igual forma Smith (2003) escreve sobre a França emergida no ambiente da Revolução Francesa, prorrogou um critério de laicidade, de retirada de símbolos e expressões religiosas dentro dos gabinetes até o ano de 2018. Por isso, Smith (2003) vai chamar o estado francês de “fechado” as discussões, diálogos e embates das expressões de fé. A partir de 2013, com uma série de campanhas e levantes mulçumanos e de migrantes acarretou na revisão da noção francesa de abolição de símbolos religiosos, até porque ocorriam cobranças das populações mulçumanas por conta das rezas diárias que se fazem na direção de Meca. Essa revisão de décadas da laicidade francesa se deu como uma série de acusações das populações emigradas que se referiram “o racionalismo europeu como racista” (PORTIER, 2019).

2 Laicidade no âmbito da sociedade

A noção de laicidade brasileira é ligada a laicidade portuguesa, uma forma mista das operações dos ambientes ingleses e franceses. Por isso Smith (2003) utiliza a expressão laicidades “mistas”, o que se torna mais desafiadora para as análises, pois admite internamente duplicidades de narrativas e aparentes contradições de argumentos. Revista Brasileira de História das Religiões. Só por isso, afirma-se a importância desta edição da Revista Brasileira de Histórias das Religiões / ANPUH, com a discussão sobre cristãos e política em tempos difíceis.

Ao olhar mais o panorama da sociedade, ainda que sobre as sinalizações dos teóricos franceses, Phillip Portier (2011, p.190-195) indica-se que exista “há a laicidade do Estado, que pode ser referida com uma palavra: abstenção, com conotações restritiva e negativa”. O “Estado laico deve assumir papel de neutralidade em relação à religião e, consequentemente, às instituições religiosas” (PORTIER, 2011, p.195). Logo, seus representantes e estatutos não deveriam privilegiar ou posicionar-se de maneira agressiva em relação a nenhuma manifestação religiosa, o que para Paul Ricoeur (1995) esse caminho seria de uma espécie de “agnosticismo estatal”. Nesse sintagma a separação entre Estado e religião não implica simples ignorância de um em relação ao outro, mas, “há o intento de delimitar de maneira adequada o papel de cada um, de maneira que a religião seja reconhecida pelo Estado como entidade, com regimentos, registro e estatuto público, submetida às leis que regem os demais grupos e agremiações sociais” (RICOEUR, 1997, p.81).

Em termos jurídicos as instituições religiosas não têm o poder centralizador, configurando-se como mais uma associação dentre as outras, portanto, a religião não é “todo o estado, mas parte dele” (PORTIER, 2011, p.196). Paul Ricoeur (1995 p. 181), está convencido de que este conceito de laicização se mostra mais normativo do que efetivo, quando diz: “creio que é preciso ter mais sentido histórico e menos ideológico, para abordar os problemas ligados à laicidade”. O que se quer esmiuçar: os diversos Estados-nação, a partir de sua formação histórica peculiar, há mobilizações próprias sobre as religiões e as instituições estatais.

Junto a esse conceito de laicidade existe outro mais dinâmico. Quando se analisa no âmbito da sociedade civil, a laicidade coloca-se como embate de posicionamentos distintos, como pluralidade e diversidade de perspectivas. Esses conflitos de posicionamentos pressupõe uma sociedade marcada pelo pluralismo de concepções de mundo, de crenças, de ideias, de ideologias, de interpretações e de convicções. Em uma sociedade marcada por esta diversidade, a laicidade assume caráter dinâmico em razão do campo de disputas que se instaura. Esse “conflito de interpretações” não tem por objetivo a harmonização, um consenso. Mas, antes, assume-se que, em muitas questões, a impossibilidade de um acordo é patente. O que não é negativo, desde que se preserve as partes em desacordo. O conflito das interpretações, desde que se preserve os atores e seus argumentos, é uma forma de preservação das liberdades e dos conjuntos.

3 Tensões e questões da laicidade em disputa no Brasil

No Brasil atual, em que cada vez mais se aumentam os atravessamentos entre religião e política, deve-se lembrar que os conflitos de interpretações religiosas são inerentes a formação do Estado republicano (1889) que se mantém neutro, ao menos oficialmente, em relação a instituições religiosas, ou então, deveria ser mantido. Com esses dados sobre religião e política no Brasil podemos vislumbrar incursões dos atores religiosos, em especial católicos e evangélicos, na construção de uma patrulha ideológica nos postos do Estado brasileiro e sua ocupação efetiva, e, todos os níveis, local, regional e federal e se espraiando pelos três poderes. Daí a importância desse dossiê, e sobretudo, que a laicidade brasileira não seja um conceito dado, fixo, mas se encontra em disputa.

É o que se pode perceber, quando o atual Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, afirmou em 2019 no maior evento evangélico do país, a Marcha para Jesus: “O país é laico, mas eu sou cristão”. Está ocorrendo um claro deslocamento da neutralidade do estado, e o se preservando as partes nos conflitos religiosos internos a nossa sociedade (PY, 2020). Por outro lado, isso sempre foi uma ponta de disputa, como por exemplo, com o advento do Estado de 1892, na primeira Carta Constitucional da República, tratou-se sobre a laicidade brasileira, e por conta dela o clero viram a necessidade de tentar “recatolicizar”, e passaram a investir nas novas instituições republicanas, buscando influenciar decisões políticas e sociais por meio da formação de uma elite intelectual católica (SILVEIRA, 2019).

Um dos marcos desse início e reação católica foi a promulgação, em 1916, da Carta Pastoral de Dom Sebastião Leme, arcebispo de Olinda e Recife, tornou-se, mais tarde, arcebispo e cardeal do Rio de Janeiro pelas mãos do Papa Pio XI (SILVEIRA, 2019). A Carta Pastoral fazia parte de um momento que se delineava desde a origem da República Brasileira, quando a Igreja Católica reuniu suas forças para consolidar reformas internas, como o recrutamento de novos membros estrangeiros para as ordens religiosas, a criação de novas dioceses e a consolidação de um discurso e de uma ação mais homogêneos (SILVEIRA, 2019). Assim, o dossiê apresentará uma série de reflexões teóricas e de objetos empíricos, construtos de seus autores e autoras, na forma de treze artigos que brindam os leitores e pesquisadores dos temas do Brasil contemporâneo.

4 Os artigos do dossiê

Logo em seguida, o trabalho intitulado “Pela “família tradicional”: campanha de candidatos evangélicos para a ALEP nas eleições de 2018”, escrito pelos pesquisadores Frank Antonio Mezzomo, Lucas Alves da Silva, Cristina Satiê de Oliveira Pátaro, discutem a partir do material de campanha (coletado nas redes sociais e sites) de alguns candidatos a deputados estaduais no estado do Paraná, seus posicionamentos políticos. Os temas centrais encontrados em geral foram: a defesa da escola sem partido, a luta contra a ideologia de gênero, e debates sobre a reprodução da vida. A preocupação destes candidatos é em geral com temas religiosos e morais.

A pesquisadora-docente Dora Deise Stephan Moreira contribui com o artigo denominado “A trajetória de Marcelo Crivella: de cantor gospel a prefeito da segunda maior cidade brasileira em 2016”. O texto discute as ações adotadas pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), para eleger inicialmente para o cargo de senador o bispo licenciado Marcelo Crivella, e depois, ao cargo a prefeitura do Rio de Janeiro que foi eleito em 2012. A dança entre a imagem religiosa e a imagem política se complexifica e é utilizada por Crivella de forma instrumental, ao sabor das circunstâncias políticas-eleitorais. Em todas as campanhas disputadas por Marcelo Crivella houve a vinculação da sua imagem com o projeto Nordeste. Projeto este desenvolvido pela IURD para fins sociais. Percebeu-se a associação do referido político com a questão midiática, assistencial, religiosa e moralista.

O próximo texto a ser apresentado e de autoria do docente da Universidade do Estado do Pará Saulo Baptista. O título do seu trabalho é “Os Evangélicos e o Processo Republicano Brasileiro”. No início do seu trabalho, o autor faz uma recapitulação histórica da chegada dos protestantes em terras brasileiras e sua presença pública em contraponto a hegemonia católica. Logo em seguida, contextualiza o surgimento e o desenvolvimento dos pentecostais e dos neopentecostais na política brasileira. O texto termina com uma eximia reflexão a respeito da presença dos evangélicos na atual conjuntura política nacional.

O docente Aldimar Jacinto Duarte e Seabra Vinicius contribuem com este número com o texto chamado “O campo político e o campo religioso a partir dos jovens ligados a International Fellowship of Evangelical Students (IFES) na América Latina”. Muito interessante a reflexão desenvolvida a respeito da postura, aparentemente, apolítica do grupo do IFES. Para chegar a esta conclusão foram aplicados questionário via GoogleForms em vinte países da América Latina, obtendo 228 respostas. A análise dos dados foi feita a partir dos conceitos da teoria de Pierre Bourdieu. Tal grupo é majoritariamente formado por jovens universitários.

Os pesquisadores Ricardo Ramos Shiota e Michelli de Souza Possmozer escreveram o texto denominado “O Brasil cristão da Frente Parlamentar Evangélica: luta pela hegemonia e revolução passiva”, que discute a partir das informações contidas no Facebook da Frente Parlamentar Evangélica (FPE), criada em abril de 2019. Sabemos que a FPE é entusiasta apoiadora do governo Jair Bolsonaro (sem partido), sobretudo pelo alinhamento ideológico na defesa das pautas de costume ou morais, fundamentalismo religioso e defesa de postura vinculadas aos expecto ideológico de extrema direita. Foram analisadas 209 publicações, entre 01 de abril e 31 de outubro de 2019. A teoria escolhida para analisar os dados foram os conceitos desenvolvidos por Gramsci.

Os autores Cézar de Alencar Arnaut de Toledo e William Robson Cazavechia adotaram como título do texto, “As Formas de Adaptabilidade do Neopentecostalismo Brasileiro à Mídia” e discutem a presença do conservadorismo religioso neopentecostal na mídia brasileira. Historicamente os evangélicos tiveram concessão de rádio, tv, criaram páginas de internet, e o uso das redes sociais com o intuito de posicionarem a respeito dos mais variados temas nacionais na perspectiva do fundamentalismo cristão. O texto é instigante e nos mostra como a mídia é bem trabalhada por este grupo religioso no Brasil.

O texto publicado foi de autoria dos autores Fabio Lanza, Luiz Ernesto Guimarães, José Neves Jr. e Raíssa Rodrigues, cujo título é “Engajamento político e Renovação Carismática Católica em Londrina-PR (2014-2016)”. O texto discute os posicionamentos políticos dos grupos católicos carismáticos (RCC) na cidade de Londrina inteiro de São Paulo. A partir de visitas de campo e entrevistas semiestruturadas, os autores conseguiram perceber a visão de mundo das lideranças deste universo religioso sobre o atual momento político brasileiro, Em geral, os representantes ou postulantes da RCC a cargo para o poder legislativa ou executivo, defendem pautas conservadoras, são fundamentalistas religiosos e benefícios institucionais para organismos de inspiração carismática católica e outros segmentos da Igreja Católica no Brasil.

Ao discutir o governo Bolsonaro na relação religião e política, a união entre católicos e evangélicos tem evidenciado de forma rotineira. O texto “Entre a articulação e a desproporcionalidade: relações do Governo Bolsonaro com as forças conservadoras católicas e evangélicas” escrito por Marcelo Ayres Camurça Lima e Paulo Victor Zaquieu-Higino tenta compreender se esta aproximação pode ser caracterizada como uma ação ecumênica de extrema-direita, num contramovimento do que no passado caracterizou as tentativas de aproximação entre os diferentes grupos cristãos em torno, por exemplo, da Teologia da Libertação e das lutas sociais na América Latina. Uma forte indagação é feita e discutida ao longo do texto: nessa trama religioso-política de extrema-direita, o catolicismo estaria sendo “eclipsado” e o pentecostalismo destacado? Não tenha dúvida que o atual governo aciona a religião para fundamentar suas ações e visões de mundo na política.

O próximo trabalho a ser apresentado traz como título “Guerras culturais e a relação entre religião e política no Brasil contemporâneo” escrito pelos pesquisadores Roberto Dutra e Karine Pessôa. O texto versa da presença da moralidade na política, provocada pela religião nas eleições de 2018. Os autores recorrem as categorias da sociologia política sistêmica de Niklas Luhmann para analisar o fenômeno religião e política na eleição referida.

O artigo chamado “A ‘governabilidade’ petista” escrito pela pesquisadora Amanda Mendonça é bem interessante e supre lacuna na literatura a cerca religião e política, que versa sobre a relação do Partido dos Trabalhadores (PT) com os pentecostais e os católicos, no período que esteve à frente da presidência do Brasil. A autora mostra que evangélicos e católicos uniram-se em torno da defesa de pautas conservadoras e, ainda que dando alguma sustentação político-partidária, causaram conflitos com a gestão petistas por entenderem que a “essência” do governo era contrária ao seu ideário religioso. Por outro lado, os governos petistas ofereceram alianças, cargos e apoio direto e indireto – subvenção de comunidades terapêuticas religiosas para o tratamento de drogadições, concessões de rádio e TV por exemplo – aos grupos cristãos em nome da governabilidade, essa geringonça feita de modos heteróclitos e que em 2018 entrou em um novo patamar de crise.

Os pesquisadores do campo das relações internacionais Anna Carletti e Fábio Nobre com o texto intitulado “A Religião Global no contexto da pandemia de Covid-19 e as implicações político-religiosas no Brasil”, nos mostra como líderes religiosos no Brasil e no mundo reagiram a pandemia Covid-19. Os pesquisadores André Ricardo de Souza e Breno Minelli Batista contribuem com o trabalho intitulado “Os efeitos políticos no Brasil dos sete anos iniciais do Papa Francisco”, tentando compreender as relações políticas e religiosas do Papa Francisco com o governo Jair Bolsonaro (sem partido). Sabemos que o Papa Francisco assume o papado em 2013, logo após, a renúncia do atual Papa Emérito Papa Bento XVI.

E por fim, o docente Graham McGeoch com o trabalho “Field Notes from Brazil: We don’t believe in Democracy”, faz uma interessante reflexão da presença dos elementos religiosos na atual conjuntura política brasileira, elegendo a eleição e o governo Bolsonaro como tema de análise. Daí, extraímos algumas perguntas: Que tipo de democracia é esta que temos e o porquê ela se enredou em uma trama político-religiosa de extrema-direita? É possível acreditar nesse tipo de democracia? E, por fim, que outra democracia podemos sonhar para sairmos uma relação disfuncional, inflamada e perversa entre cristianismo reacionário e política estatal (um estado de sítio) que a democracia liberal-representativa permitiu vir à luz.

Referências

BUTLER, Judith; SPIVAK, Gayatri. Who sings the Nation-State? Language, Politics, Belonging. New York: Seagull. 2007.

POULANTZAS, Nicos (Org.), La Crise de l’État. Paris : Presses Universitaires de France, 1979.

PY, Fábio. Pandemia cristofascista. São Paulo: Recriar, 2020.

RICOEUR, Paul. Phenomenology and the social sciences. In: KOREBAUM, M. (Org.). Annals of Phenomenological Sociology, Ohio: Wright State University, 1977.

RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações. Ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro: Imago, 1978.

RICOEUR, P. Leituras 1. Em torno ao Político. São Paulo: Edições Loyola, 1995.

SMITH, Christian. The secular revolution: power, interests, and conflict in the secularization of American public life. Berkeley: University of California Press, 2003.

SILVEIRA, Emerson. J. S. Padres conservadores em armas: o discurso público da guerra cultural entre católicos. Reflexão, PUCCAMPINAS, v. 43, 2019, p. 289-309.

Fábio Py – Professor do Programa de Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. E-mail: pymurta@gmail.com ORCID: https: / / orcid.org / 0000-0002-7634-8615

Emerson Sena da Silveira – Doutor em Ciência da Religião, antropólogo, professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, MG. E-mail: emerson.pesquisa@gmail.com ORCID: https: / / orcid.org / 0000-0002-5407-596X

Marcos Vinicius Reis Freitas – Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Docente do Curso de Pós-Graduação em História Social pela UNIFAP, Docente do Curso de Pós-Graduação em Ensino de História (PROFHISTORIA). (CEPRES-UNIFAP / CNPq). E-mail: marcosvinicius5@yahoo.com.br ORCID: https: / / orcid.org / 0000-0002-0380-3007


PY, Fábio; SILVEIRA, Emerson Sena da; FREITAS, Marcos Vinicius Reis. Apresentação. Revista Brasileira de História das Religiões. Maringá, v.13, n.39, jan. / abr. 2020. Acessar publicação original [DR]

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Religião, cultura e relações sociais na Península Ibérica / História Revista / 2020

A disciplina História Ibérica ficou por muito tempo relegada a um plano secundário, praticamente inexistente, tanto no ensino básico brasileiro quanto no superior. Poucas universidades brasileiras apresentam essa disciplina nos currículos de seus cursos, e sua presença nos livros didáticos consegue ser ainda menor.

Diante desse quadro, e na tentativa de contribuir para a superação dessa lacuna existente no ensino brasileiro, foi criado e instituído o Programa de Pós Graduação em História Ibérica (PPGHI) na Universidade Federal de Alfenas (Unifal-MG). Trata-se de um Programa de Mestrado Profissional que tem o objetivo de integrar professores de História do ensino fundamental e do ensino médio no processo de formação continuada, qualificando-os para o desenvolvimento de práticas de ensino e de pesquisas que venham a contribuir para o avanço do processo de conhecimento, ensino e aprendizado da História Ibérica. Neste Programa foi criada a linha de pesquisa Cultura, Poder e Religião, de forma a agregar especialistas das áreas de História e afins (https: / / www.unifalmg.edu.br / ppghi / node / 56 , visualizado em 20 jun. 2020).

Buscando ampliar o debate que mantemos no âmbito do PPGHI / Unifal, e em parceria com História Revista da Universidade Federal de Goiás, propusemos o presente dossiê, convidando especialistas e estudiosos a submeterem artigos, contribuindo assim para a valorização dos estudos ibéricos no meio educacional de nosso país. Para a nossa alegria, recebemos artigos de reconhecidos especialistas, a quem agradecemos de antemão tanto pelas submissões como pela receptividade e atenção às observações realizadas durante o processo de revisão cega por pares.

Dessa forma, iniciamos o dossiê com o artigo de Sérgio Feldman, professor da Universidade Federal do Espírito Santo, que há muitos anos atua nas pesquisas sobre judaísmo na Hispânia Romana e Visigótica e que vem dedicando muito dos seus estudos aos textos de Isidoro de Sevilha (560 – 636). No artigo intitulado O cerco em torno a uma minoria. As legislações antijudaicas na Hispânia Romana e visigótica, Feldman apresenta, de forma clara e aprofundada, as legislações antijudaicas, fortalecidas na Península Ibérica com a dominação visigoda.

Dentro dessa mesma linha de pesquisa se encontra o artigo da professora Roberta Alexandrina da Silva, da Universidade Federal do Pará. O artigo intitulado Do oppidum à capital de província: algumas considerações sobre a especificidade de Bracara Augusta e sua integração ao mundo romano (séculos I-IV) destaca a importância econômica, religiosa e política, tanto para os romanos quanto para os suevos e visigodos, de Bracara Augusta, atual Braga, em Portugal. O artigo da autora reflete parte das pesquisas por ela realizada durante estágio pós-doutoral na Universidade Federal do Espírito Santo, supervisionado pelo professor Gilvan Ventura, quando estagiou na Universidade do Minho, atuando com a professora Maria Manuela Martins na análise e pesquisa de materiais arqueológicos sobre Bracara romana.

O artigo Por que estudar a antiguidade da Península Ibérica no Brasil? apresenta as reflexões e o diálogo mantido entre dois especialistas em antiguidade: o renomado arqueólogo e Professor Titular de História Antiga da Unicamp, Pedro Paulo Abreu Funari, e o doutorando em História pela Unicamp, Filipe Silva, que realizou estágio de doutorado no Centro para El Estudio de la Interdependencia Provincial en la Antigüedad Clásica (CEIPAC), dirigido pelo professor José Remesal, Universidade de Barcelona / Espanha. O artigo demonstra, de forma clara e profunda, a importância dos estudos sobre a antiguidade ibérica no Brasil.

Por último, mas não mesmo importante, o artigo produzido pelo professor de História Medieval, idealizador e coordenador do Programa de Pós-Graduação em História Ibérica da Universidade Federal de Alfenas, Adailson José Rui. No artigo intitulado Abd al Rahman III: a implantação do califado e a construção de Medinat-al-Zahra como centro de poder em al Andalus, o professor apresenta uma discussão atualizada sobre a vida política na Andaluzia do século X, analisando tanto os motivos que levaram à auto proclamação do califa Abd al Rahman III como os que induziram esse califa a mandar construir Medina al Zahra.

Esperamos que esse dossiê seja mais um estímulo para pesquisas e estudos sobre a História Ibérica.

Desejamos a todas e todos uma ótima leitura!

Referências

Site do Programa de Pós Graduação em História Ibérica, da Unifal-MG, https: / / www.unifalmg.edu.br / ppghi / node / 56 , visualizado em 20 jun. 2020.

CARLAN, Cláudio Umpierre (org,). A renovação do ensino de história ibérica, contribuições do mestrado profissional da Unifal-MG. Alfenas: editora da Unifal-MG, 2020.

Cláudio Umpierre Carlan – Unifal-MG / PPGHI. E-mail: carlanclaudio@gmail.com


CARLAN, Cláudio Umpierre. Apresentação. História Revista. Goiânia, v. 25, n. 1, jan. / abr., 2020. Acessar publicação original [DR]

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Inquisição, justiça eclesiástica, religião e religiosidades na Época Moderna / Contraponto / 2020

O presente dossiê teve como ponto de partida uma reflexão sobre a atualidade dos estudos tocantes a Inquisição e aplicação da justiça eclesiástica ao longo da Época Moderna. Na proposta que apresentamos, com o título “Inquisição, justiça eclesiástica, religião e religiosidades na Época Moderna”, procuramos também que se integrassem estudos sobre formas de religiosidade consideradas, na época, heterodoxas e trajetórias dissidentes, bem como os mecanismos utilizados para as controlar e “disciplinar”. A adesão ao dossiê foi significativa e a diversidade de artigos recebidos espelha, em nosso entender, dois aspectos que merecem ser sublinhados. Em primeiro lugar, os contributos aqui congregados são representativos de diferentes momentos do percurso de investigação, correspondendo a primeiros esforços de reflexão no início de uma pós-graduação, até trabalhos elaborados no âmbito de investigações de doutorado e de pós-doutorado. Nesse sentido, a conclusão que podemos retirar é a de que as investigações nestas temáticas estão ativas e que os próximos anos serão de continuidade e até mesmo de renovação dos contributos.

Em segundo lugar, este dossiê contou com um vasto corpo de avaliadores externos – cerca de 65 – oriundos de múltiplas universidades americanas e europeias. A versão final dos trabalhos beneficiou, assim, de um profundo diálogo entre autores, editores e avaliadores. Parece-nos que esse aspecto deva ser sublinhado no contexto global em que nos encontramos. O processo de montagem e de elaboração coincidiu com o duro golpe que a pandemia trouxe para as nossas vidas. O diálogo contínuo e enriquecedor entre todos os envolvidos neste processo, bem como a persistência para superar os condicionamentos provocados por um mundo que, subitamente, se fechou, permitiu-nos chegar até aqui. Por essa razão estamos muito gratos a todos os autores, avaliadores e ao pessoal da Revista Contraponto, que possibilitaram fechar este dossiê.

Um dos blocos centrais do conjunto de artigos aqui apresentados é, sem dúvida, a ação da Inquisição no Mundo Moderno, em diferentes vertentes e perspectivas. Os estudos sobre a temática inquisitorial têm tido, ao longo das últimas décadas, muitas contribuições e novas leituras o que se traduz num amplo manancial de trabalhos académicos editados em vários países [1]. Os agentes do tribunal, a sua atuação nas sociedades extra europeias, os alvos da ação repressiva dos inquisidores, entre outros temas, têm despertado a análise dos investigadores [2]. Os artigos aqui reunidos mostram bem a importância da Inquisição Portuguesa enquanto instituição de vigilância e de punição em Portugal e nos territórios imperiais [3].

O primeiro texto deste dossiê apresenta uma reflexão sobre a atuação inquisitorial num dos seus espaços ultramarinos, os territórios africanos nos quais não se estabeleceu um tribunal, mas onde vários agentes do Santo Ofício, ou instituições eclesiásticas que com ele se associaram, procederam a um controlo e vigilância de todo o tipo de comportamentos que podiam ser considerados como delitos que se enquadravam dentro da jurisdição inquisitorial. A autora do artigo, Sonia Siqueira, apresenta-nos neste ensaio mais uma reflexão dentro da sua vasta e importante obra historiográfica. Os muitos textos que Siqueira foi publicando ao longo da sua trajetória acadêmica contribuíram para um melhor conhecimento das formas de atuação do Santo Ofício nos espaços coloniais [4], dando uma grande atenção aos aspectos jurídicos e aos procedimentos [5] do tribunal, mas também ao seu quadro de oficiais[6].

Como já referimos, os estudos que compõem este dossiê são diversificados, como se demonstra através do elenco dos mesmos. Gabriel Cardoso Bom apresenta uma reflexão sobre o contributo da historiografia italiana para os estudos sobre Inquisição, expondo as propostas metodológicas de Paolo Prodi e de Adriano Prosperi, as quais foram significativas para os avanços da temática. Depois desta primeira reflexão historiográfico-metodológica, Alécio Nunes Fernandes transporta-nos, com um olhar renovado, para os meandros da primeira visitação ao Brasil. O autor analisa, auxiliado pela elaboração de uma tabela de categorias delitivas, as circunstâncias que podiam servir de atenuantes no momento de se decretar uma sentença. Ainda dentro da análise do enquadramento jurídico do Santo Ofício, Isabela Miranda Corby analisa, no âmbito do seu projeto de doutoramento, as denúncias por crimes de feitiçaria que se conservam nos Cadernos do Promotor e referentes à região de Minas Gerais no século XVIII.

Os seguintes artigos focam-se na diversidade de delitos que caiam sob a alçada do Santo Ofício. Marcus Vinicius Reis explora o fascinante caso de Joana de Jesus, analisando, à luz da proposta teórica dos estudos de género, o processo inquisitorial que lhe foi movido pela Inquisição de Goa. Por seu turno, Monique Marques Nogueira Lima detém-se no universo dos escravos e nos “malefícios” que lhes eram atribuídos pela sociedade envolvente e pelo Santo Ofício e seus oficiais. O delito de proposições heréticas é abordado por Isabel Andrade dos Reis Valentim, através da revisitação do conhecido caso de Pedro de Rates Henequim. Por fim, Elaine da Silva Santos apresenta o percurso de um cristão-novo dos sertões do São Francisco às prisões do Santo Ofício.

Os agentes do tribunal são também objeto de análise neste dossiê. Ana Paula Sena Gomide dedica-se a recriar a carreira do inquisidor Jorge Ferreira ao serviço do Santo Ofício de Goa. Luiz Fernando Lopes, através do estudo do rico fundo documental das habilitações do Santo Ofício, apresenta-nos uma proposta analítica e metodológica de estudo de processos de habilitação aprovados e rejeitados. As relações entre Inquisição e política são destacadas por Afrânio Jácome, através da figura do cardeal D. Nuno da Cunha de Ataíde, que chegou a ser Inquisidor-Geral. Por sua vez, Yllan de Mattos, traz-nos o detalhado estudo das intrincadas malhas que se tecem entre as administrações das estruturas diocesanas e a Inquisição [7], seguindo a trajectória de Giraldo José de Abranches na Amazônia colonial, o que permite fazer uma transição para um segundo bloco temático que compõe o nosso dossiê.

É bastante corrente a afirmação de que a historiografia que versa sobre o Império Português tenha dado pouca atenção aos estudos da Igreja [8] e, sobretudo, em nível de diocese, ao funcionamento jurídico-processual dos Auditórios Eclesiásticos (Tribunal Episcopal ou Juízo Eclesiástico), seja do ponto de vista institucional, seja no trato dos indivíduos que foram, direta ou indiretamente, atravessados por esta instituição. Tamanha afirmação se torna mais latente se a compararmos com as investigações que versam sobre Santo Ofício. Justifica-se, comumente, a dificuldade em localizar suas documentações produzidas e o acesso extremamente restrito, vinculados, ora sob a posse de arquivos privados, ora sob a posse das cúrias metropolitanas.

No entanto, apesar destas dificuldades, que, pouco a pouco, estão sendo transpostas, como bem sinalizou Jaime Gouveia [9], é notável o vertiginoso crescimento das pesquisas acerca desta temática. Uma prova disto é o projeto, em curso (2017 – 2021), Religião, administração e justiça eclesiástica no Império Português (1514- 1750) – ReligionAJE [10], coordenado pelo português José Pedro Paiva. Constituído por dezenas de historiadores africanos, americanos e europeus, numa interessante e profícua mescla entre novos e consagrados historiadores, cujo “[…] objetivo final é uma interpretação em escala global do impacto do episcopado no império”, amparados a partir das propostas metodológicas da connected history. Atrelados a este grandioso projeto, vários eventos e publicações foram e serão realizadas durante sua vigência, forjando, assim, um impacto indelével aos futuros investigadores. Ambicionados a revitalizar um campo de estudo que tem sido praticamente abandonado [11], a sua vitalidade, ainda que neste curto espaço de tempo, já pode ser sentida neste dossiê que ora apresentamos, mostrando que várias pesquisas sobre a temática se encontram em curso.

João Antônio Fonseca Lacerda Lima é quem assina o artigo: Cura das almas, da fé e de suas lavouras: A trajetória do Pe. Caetano Eleutério de Bastos nos bispados do Maranhão Grão-Pará (1694-1763). Propõe-se investigar a trajetória do Pe. Caetano Eleutério de Bastos enquanto clérigo e comissário do Santo Ofício nos bispados do Maranhão e Grão-Pará do século XVIII.

Pedrina Nunes Araújo em seu artigo, Todo sertão tem a Igreja que Deus (rei) dá: O Bispado do Maranhão e as ações eclesiásticas no Piauí do século XVIII, discute, balizada por uma documentação até então inédita, a dinâmica e o funcionamento da Igreja nos primórdios da anexação do Piauí à administração espiritual do bispado do Maranhão, tratando, por conseguinte, dos conflitos jurisdicionais com o bispado de Pernambuco – diocese que até então era responsável pela região do Piauí -, evidenciando, assim, o papel fundamental do bispo Dom Frei Manuel da Cruz na resolução das contendas e na consolidação desta região aos ímpetos maranhense. Temática essa que, ainda que tangencialmente discutida por Pollyanna Gouveia, sobretudo, em sua tese de doutoramento, permanece praticamente inexplorada.

Nas trilhas das investigações sobre o clero regular, as autoras Marcia Eliane de Souza e Mello e Rozane Barbosa Mesquisa, tratam da conflituosa relação entre as ordens regulares e o episcopado de Dom Bartolomeu do Pilar (1724 – 1733) – primeiro bispo do recém-criado bispado do Pará. A investigação que ora é apresentada, assenta-se na disputa jurisdicional acerca da realização de visitas pastorais em regiões de missões indígenas. As tensões entre as ordens regulares, capitaneadas pela Companhia de Jesus, e o mitra Dom Bartolomeu do Pilar, trazem ao relevo motivações e interpretações de diferentes matrizes dos sujeitos ávidos em alterar, ou permanecer, prerrogativas jurídicas há muito assentadas em prol de seus interesses e perceções.

No seu artigo, Patrícia Ferreira dos Santos analisa o Tribunal Eclesiástico de Mariana, do qual é especialista. A autora apresenta-nos os meios de administração, organização e funcionamento jurídico-processual desta diocese que, como as demais administrações eclesiásticas que constituíam o Império Português, estava inserida dentro da lógica do direito de padroado régio. Assim, busca-se apresentar, através do exercício cotidiano das querelas (exclusiva para eclesiásticos, pois possuíam imunidade de foro) e queixas (denúncias especificas), o espaço de ação exclusiva do Tribunal Episcopal que atuavam como dispositivos de identificação, e, por conseguinte, punição espiritual à dissensão através, geralmente, da excomunhão. Punição essa temida por todos, ou, pelo menos, por quase todos.

Por fim, Gilian Evaristo França Silva se propõe apresentar as práticas fúnebres e caritativas das irmandades religiosas inseridas na Prelazia de Cuiabá – capitania de Mato Grosso –, durante o século XVIII. A criação da administração eclesiástica de Cuiabá, assim como a prelazia de Goiás e as dioceses de Mariana e São Paulo, em meados do século XVIII, revela como essas instituições religiosas foram fundamentais para o disciplinamento social contra a dissensão e, principalmente para a expansão e delimitação de fronteiras no Império Português.

O último bloco de textos que compõem este dossiê diz respeito à temática das religiosidades e sensibilidades religiosas, em sentido lato, muitas delas consideradas como expressões heterodoxas no mundo pós-tridentino [12]. Em primeiro lugar encontramos dois artigos que se reportam a identidades religiosas fluídas. Regina Carvalho Ribeiro da Costa dedica-se ao período do Brasil holandês para apresentar o que designa por “disjuntivas judaicas”, pensando nas alianças que se podem criar num espaço multicultural, as quais superam, muitas vezes, as divergências da fé. Também o artigo de Jadson Ramos de Queiroz nos fala de uma trajetória de vida pouco linear, entre duas fés, neste caso o percurso do calvinista que chega ao território brasileiro, onde se converte ao catolicismo e acaba por ser batizado duas vezes. Transforma-se assim, num arquétipo de herege, caindo nas malhas punitivas da justiça eclesiástica e da inquisitorial.

Karina Fonseca Soares Resende apresenta um artigo de revisão historiográfica sobre um panfleto do século XVII, da autoria do pregador puritano Samuel Petto, e a imagem que nele é apresentada da figura da bruxa.

O texto seguinte, da autoria de Bruno Kawai Souto Maior de Melo, centra-se no movimento conhecido como “Jacobeia”, analisando as suas características e dinâmicas, ao longo do século XVIII, e prestando também uma atenção detalhada às trajetórias de alguns dos seus membros.

Fredson Pedro Martins aborda o problema do cruzamento do movimento de evangelização na região andina de inícios da Conquista com as concepções cosmológicas indígenas, através do estudo do conteúdo do Manuscrito de Huarochirí.

Por fim, o artigo de Daniel Sepúlveda oferece uma reflexão sobre o conceito de confessionalização, articulando com as formas de implementação da ortodoxia católica na Modernidade, bem como com os mecanismos de segregação e de racismo que se desenvolveram ao longo da Época Moderna.

Como podemos ver, trata-se de um dossiê plural, rico em investigações de arquivo e em balanços e reinterpretações historiográficas, um bom exemplo de que os investigadores continuam ativos e produzindo conhecimento, mesmo em “tempos sombrios” – para utilizar uma expressão cara a filósofa Hanna Arendt – e desafiantes.

Notas

1. Uma síntese da produção historiográfica sobre Inquisição publicada no Brasil, com uma contabilização de teses e dissertações, pode ser encontrada em: ASSIS, Angelo Adriano Faria de. “No interior do labirinto, o olho do vulcão: Revisitar os estudos inquisitoriais no Brasil e vislumbrar o futuro que tecemos”, Revista Ultramares, Alagoas, vol. 1, nº 7, p. 10-33, 2015.

2. Não é este o espaço para elencar os múltiplos contributos que têm surgido sobre a temática nos últimos anos. No tocante à Inquisição portuguesa, veja-se, por exemplo a análise de: MARCOCCI, Giuseppe. “Toward a history of Portuguese Inquisition: Trends in Modern Historiography”, Revue de l’histoire des religions, Paris, vol. 3, p. 355-393, 2010.

3. Sobre a atuação da Inquisição em contexto colonial veja-se: MARCOCCI, Giuseppe. “A fé de um império: a Inquisição no mundo português de Quinhentos”, Revista de História, São Paulo, nº 164, p. 65-100, 2011. Para compreender o funcionamento da Inquisição Portuguesa numa perspectiva diacrónica é fundamental a síntese de: MARCOCCI, Giuseppe; PAIVA, José Pedro. História da Inquisição Portuguesa, 1536-1821, Lisboa: A Esfera dos Livros, 2013. Um estudo que trouxe uma visão comparada da instituição e que marcou a historiografia posterior é o de: BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália – Séculos XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

4. Veja-se, neste particular, o estudo pioneiro que apresentava um estimulante quadro da inserção da Inquisição no Brasil Colônia: SIQUEIRA, Sonia Aparecida. A Inquisição Portuguesa e a Sociedade Colonial, São Paulo, Ática, 1978.

5. Para este conhecimento contribuiu a publicação por Sonia Siqueira dos textos dos regimentos do Santo Ofício português. Sobre isso, consultar: SIQUEIRA, Sonia Aparecida. Os Regimentos da Inquisição. In. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, n. º392, p. 495-1020, 1992.

6. O resultado da sua tese de doutoramento, defendida na USP em finais dos anos 60 do século XX, acabou por ser publicado apenas em 2013, materializando como um grande afresco do pensamento da autora sobre o Santo Ofício. SIQUEIRA, Sonia Aparecida. O Momento da Inquisição. João Pessoa: Editora Universitária, 2013.

7. Temática que tem sido destacada por vários autores e que tem, sem dúvida, nas obras de José Pedro Paiva um contributo de notável importância. Veja-se, por exemplo: PAIVA, José Pedro. Baluartes da fé e da disciplina. O enlace entre a Inquisição e os bispos em Portugal (1536-1750), Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011.

8. Referimos as investigações de pesquisas regionais que trazem uma visão mais especifica do objeto. Tendo em vista que as extensões territoriais “[…] foram, sem dúvida, um elemento importante a exigir adaptações em relação às formas tradicionais do exercício da governação eclesiástica”. Sobre a consideração acerca dos trabalhos que trazem visões genéricas da história da Igreja na colônia. MUNIZ, Pollyanna Gouveia Mendonça. Parochos imperfeitos: Justiça Eclesiástica e desvio do clero no Maranhão Colonial. Tese. Programa de Pós-graduação em História. Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, 2011, p. 20. A respeito da citação: SOUZA, Evergton Sales. Estruturas eclesiásticas da monarquia portuguesa. A igreja diocesana. In: XAVIER, Ângela Barreto; PALOMO, Frederico; STUMPF, Roberta. Monarquias ibéricas em perspectiva comparada (Sécs. XVI-XVIII). Lisboa: ICS, 2018, p. 516.

9. “A ideia dominante é a de que a maior parte desses fundos documentais se perdeu, pouco ou nada existindo que permita reconstituir a ação dos dispositivos judiciais de parte significativa das dioceses de Portugal e de seu império ultramarino. Há de reconhecer, todavia, que a natureza privada dos arquivos onde foram depositados esses espólios, a deficiente e, na maior parte dos casos, inexistente, catalogação dos documentos, faz crer que o panorama não seja tão sombrio e que parte das fontes cujo paradeiro, até hoje, se desconhece, seja dada a conhecer no futuro”. GOUVEIA, Jaime. “O Tribunal Episcopal de Portalegre, 1780 – 1835”. Boletim do Arquivo da Universidade de Coimbra, Coimbra, vol.31, 1, p. 61-102, 2018, p. 61.

10. Projeto PTDC / HAR-HIS / 28719 / 2017. https: / / www.uc.pt / fluc / religionAJE

11. Para ficarmos com as próprias palavras postas na apresentação do projeto Religião, administração e justiça eclesiástica no Império Português (1514-1750) – ReligionAJE, em seu endereço eletrônico.

12. Veja-se as reflexões apresentadas em BETHENCOURT, Francisco. Rejeições e polémicas. In: MARQUES, João Francisco; GOUVEIA, António Camões. História Religiosa de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2000, Vol. 2, p. 49-94.

Belém, Teresina, Lisboa, 11 de setembro de 2020.

Antonio Otaviano Vieira Junior

Ferdinand Almeida de Moura Filho

Susana Bastos Mateus


VIEIRA JUNIOR, Antonio Otaviano; MOURA FILHO, Ferdinand Almeida de; MATEUS, Susana Bastos. Apresentação. Contraponto, Teresina, v. 9, n. 1, jan / jun, 2020. Acessar publicação original [DR]

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História, literatura e religião | Fênix – Revista de História e Estudos Culturais | 2019

A reunião de um grupo de historiadores para discutir das relações entre literatura e religião, ou as múltiplas possibilidades envolvidas na presença referente da religião na literatura afirma-se como uma possibilidade importante para pensarmos o métier do historiador nos dias de hoje.

A história não se contenta mais com as divisões estanques do passado, nas quais a sociedade, a economia e as relações de poder ocupavam lugar proeminente, capazes de relativizar a importância das religiões/religiosidades enquanto motivações de pesquisa. A religião passa hoje por uma revisão qualitativa do seu papel na estrutura social, em oposição ao ranço objetivista e materialista do passado, o qual mesmo quando reconhecia o seu papel operativo na sociedade, a subordinava a critérios de validade, que muitas vezes a depreciavam ou a negavam simplesmente. Leia Mais

Religião e mudança social / Revista Transversos / 2019

“Deus está morto”, declarou Friedrich Nietzsche em A Gaia Ciência, “Deus permanece morto. E nós o matamos” (2011, p.148). Esse célebre atestado filosófico de óbito, enunciado em 1882, já não soa tão convincente em 2019. Sim, a modernidade avançou ainda mais, o panorama religioso não é mais o mesmo, as igrejas tradicionais perderam muito da influência que tinham sobre a opinião pública. Mas, apesar dos prodígios da ciência e da tecnologia, e das profecias de alguns filósofos, a razão iluminista não foi capaz de destituir completamente as divindades de seus postos. Neste início do terceiro milênio, a fé em forças transcendentes continua sendo um fator importante em diversos aspectos da vida social.

Não obstante essa relevância, o fenômeno religioso ainda é menos compreendido do que deveria. Ainda é comum, mesmo entre estudiosos de Ciências Humanas, a crença em mitos criados no século XIX para denunciar uma suposta oposição intrínseca entre religião e ciência (STARK, 2016; NUMBERS, 2010). Paralelamente, a tese weberiana do desencantamento do mundo — outro corolário da confiança iluminista na razão — ainda é vista, não raramente, como um processo natural e inevitável em um mundo em que viagens interplanetárias, aceleradores de partículas e terapia genética se tornaram parte da rotina. Isso apesar de pesquisas indicando que as crenças religiosas estão se tornando mais comuns, e não menos — ainda que nem sempre se trate de religiões tradicionais e institucionalizadas, como a Igreja Católica ou o protestantismo histórico (SHERWOOD, 2018).

No Brasil, um país marcado pela fé e pelo mágico desde os primórdios, modernidade e fé parecem conviver muito bem. Em plena capital federal, em 1904, João do Rio (2006) já mostrava a grande variedade de manifestações religiosas, que incluía dos swedenborguianos, maronitas e espíritas aos positivistas, evangélicos, judeus e “orixás”1, entre outros. Pouco tempo depois, a esse panorama seriam acrescentados umbandistas e evangélicos pentecostais, para citar apenas duas das correntes mais reconhecidas da religiosidade nacional. Saindo das capitais e rumando para o interior, esse conjunto se tornava ainda mais complexo, em parte graças à considerável flexibilidade do catolicismo popular brasileiro, sempre pronto a mesclas de toda ordem com simpatias, rezas fortes, peregrinações, santos declarados ao arrepio das autoridades eclesiásticas, adivinhações e sincretismos com tradições indígenas, africanas ou de outras origens.

A religiosidade, no entanto, é muito mais que uma peculiaridade antropológica. No Brasil e noutras partes, a religião tem sido também uma lente com a qual questões sociais e políticas são examinadas e enfrentadas, e um catalisador para propostas de mudança, tanto no sentido de um aprofundamento dos modernos valores democráticos e humanistas, como também, ao contrário, de sua rejeição. Para citar alguns exemplos muito notórios, era uma profunda religiosidade que movia líderes como Mohandas Gandhi e Martin Luther King em suas respectivas lutas por independência nacional e igualdade racial — como também o era a que inspirou o Aiatolá Khomeini na Revolução Iraniana e sua rejeição ao modelo de democracia liberal. Mais recentemente, tanto no Brasil quanto em países tão diversos quanto os EUA e os da África, igrejas cristãs têm sido atores de peso na definição de políticas públicas ligadas à educação, à saúde e aos direitos civis de mulheres e segmentos LGBTQIA+, e mesmo em áreas que, em princípio, não teriam relação direta com questões de moralidade e costumes — como na atuação da chamada “bancada evangélica” no Brasil, cuja influência tem crescido a cada eleição (DIP, 2018). Seja no campo mais conservador ou no mais reformista — e uma mesma denominação pode estar presente em ambos —, a religião informa, para dizer o mínimo, parte importante do debate público de boa parte das maiores democracias.

Nesta edição da TransVersos, apresentamos um mosaico de pesquisas sobre a influência religiosa na sociedade moderna, com destaque para sua relação com processos de contestação ou alteração da ordem social estabelecida, seja no plano individual ou na forma de movimentos organizados, sejam eles políticos ou intelectuais.

Abrimos com o artigo de João Felippe Cury Marinho Mathias, Estado laico e não secularizado no Brasil: uma reflexão à luz da história do protestantismo. O tema dialoga diretamente com o atual momento político brasileiro, notadamente a atuação da chamada bancada evangélica e a crescente visibilidade e influência das igrejas, as pentecostais e neopentecostais em particular, no cenário político nacional. Além disso, o autor discute dois conceitos fundamentais para o entendimento do papel das religiões nas sociedades contemporâneas: secularismo e laicidade, alvos frequentes de confusões semânticas e incompreensões políticas.

Em seguida, e ainda tratando do campo evangélico, Alexandre Cruz e Flávio Trovão assinam A educação entre a religião e a política: conservadorismo cristão e o homeschooling. Eles abordam as disputas em torno do ensino domiciliar nos EUA, no contexto das “guerras culturais” da década de 1980 — que hoje servem de inspiração para segmentos importantes da nova direita brasileira. Que papel os valores religiosos desempenharam numa causa que frequentemente envolve a contraposição entre direitos individuais, valores familiares e a legislação vigente sobre os direitos das crianças e jovens à educação? Neste momento em que as primeiras discussões sobre essa modalidade de ensino já despontam não apenas na sociedade civil brasileira, mas também na agenda do governo federal (PEREIRA, 2019), é uma leitura de grande interesse.

O terceiro artigo é A recepção da Gaudium et Spes pela Igreja no Maranhão: a libertação dos pobres como “horizonte de expectativas” em anos de repressão, de Sérgio Ricardo Coutinho. O artigo resgata um momento interessante do catolicismo brasileiro, em que, já sob o regime autoritário de 1964, a Igreja maranhense reinterpretou um documento conciliar à luz do entendimento de que a instituição deveria ter um papel no combate à miséria e às injustiças sociais que grassavam em um dos estados mais pobres do país. É um estudo de caso que não se furta a um produtivo debate teórico com o pensamento de um dos grandes filósofos do século XX, Jürgen Habermas.

O artigo seguinte trata das tradições indígenas. Mbyá Guarani em busca do Yvy Marãe”Y: múltiplos horizontes, diferentes perspectivas territoriais, trilhando sonhos e esperanças, de Rosalvo Ivarra Ortiz e Almires Martins Machado, apresenta a cosmologia Mbyá e sua utopia de uma “terra sem males”, que pode ter influenciado as migrações desse povo desde antes da chegada dos portugueses ao Brasil. Mais que isso, o artigo apresenta também uma discussão metodológica sobre o tratamento dado anteriormente ao tema, levantando questões sobre o uso de etnologias do século XX para preencher lacunas no conhecimento de séculos anteriores. Trata-se, pois, de uma contribuição de duplo alcance, tanto para especialistas nos estudos sobre as populações ameríndias quanto para os leigos interessados em conhecer melhor suas cosmologias, que historicamente sofreram tentativas de apagamento.

Em O caminho interior delas: Yoga, gênero e transformação social no Brasil, Maria Lúcia Abaurre Gnerre e Gustavo César Ojeda Baez resgatam a implantação e popularização dessa prática indiana ao país, nas décadas de 1960 e 70, apresentando-a como um meio de empoderamento das mulheres praticantes. Analisando os materiais de ensino do Yoga e as representações da mulher na iconografia que os ilustrava, bem como os depoimentos de algumas adeptas de relevo, o artigo apresenta uma interessante combinação de história religiosa do Brasil recente com um estudo sobre representações de gênero.

As várias faces da “guerra santa”: uma análise comparada da concepção de jihad do islã político ao jihadismo, de Dilton C.S Maynard e Ketty Cristina Lima Sá, é um estudo minucioso de um conceito que tem gerado discussões acaloradas no Ocidente, e mesmo no mundo islâmico, especialmente depois dos atentados de 11 de setembro de 2001 e a subsequente “Guerra ao Terror”. Partindo do entendimento mais antigo acerca da jihad até os líderes intelectuais e políticos do que se costuma chamar de “fundamentalismo islâmico”, “islã político” ou simplesmente “islamismo” — tomado aqui não como a religião muçulmana, mas a ideia de que esta deve ser o supremo princípio organizador da sociedade —, o artigo apresenta uma história do conceito e de seus usos como instrumento político, da Irmandade Muçulmana nos anos 1920 à Al-Qaeda de Osama bin Laden. Trata-se, pois, de um tema fundamental para se entender a política internacional deste início de milênio.

Finalmente, encerrando o dossiê, Cecília da Silva Azevedo revisita o importante papel da religião nos protestos contra a Guerra do Vietnã, em Dissenso religioso nos EUA: experiências missionárias e o caso de Catonsville. Antes de focar em uma personagem específica, a freira Marjorie Melville, a autora dá um panorama do papel da religião na história norte-americana e da importância do dissenso religioso em particular. Logo após, acompanhando a história de Melville, ela passa pela Revolução Guatemalteca e o contexto da Guerra na América Latina para então chegar à onda de manifestações e campanhas de desobediência civil contra a intervenção dos EUA no Vietnã, incluindo aí a presença dos vários movimentos de contestação que floresceram nos anos 60. A história de Melville, portanto, acaba sendo o fio condutor de uma breve e intensa exploração por um dos períodos mais turbulentos da história da América Latina e dos EUA no século XX.

Na seção de artigos livres, Perspectivas da Lei 11.645-08 – origens, avanços e problemas, de Maria de Fátima Barbosa Pires, trata também de uma trajetória, mas, neste caso, de uma lei — a que estabelece a obrigatoriedade do ensino da temática indígena nas escolas brasileiras. A pesquisa apresenta a relevância da atuação dos movimentos sociais para que a lei viesse à luz.

Poetas de Escola: espaço de empoderamentos, territórios e identidades, de Leonardo Torres, Luiz Claudio Espírito Santo de Oliveira, Renato J. P. Restier Junior e Valquíria Farias, examina uma experiência educativa numa escola do subúrbio do Rio de Janeiro. Trata-se de um estudo sobre as experiências cognitivas e as percepções dos alunos durante uma atividade semanal envolvendo poesia — e também uma partilha de experiência preciosa para educadores.

Ramiro Ladeiro Monteiro e os musseques de Luanda: a antropologia a serviço do colonialismo português, de Rogerio da Silva Guimarães, aborda uma questão delicada: a relação entre a produção do conhecimento antropológico e o poder oficial que muitas vezes o patrocinou. No caso, trata-se do Império Português em Angola, representado por um antropólogo a serviço da metrópole, e as representações que construiu. Mais do que um caso particular, no entanto, trata-se de uma olhar interessante sobre a história da evolução da Antropologia ao longo do século XX.

Em História, polifonia e verdade em obras selecionadas de Svetlana Aleksiévitch, de Daniel da Silva Klein, trata da literatura da ganhadora do Prêmio Nobel de 2015 e seu uso da técnica da polifonia, criada por como Dostoiévski no século XIX e como ela dialoga com a historiografia e mesmo a teoria social ao dar aos personagens uma profundidade e uma autonomia incomuns. Assim, a fronteira entre ficção e realidade se tornam mais tênues diante da exploração das perspectivas de cada personagem.

Em Criando uma guerra à pobreza nos Estados Unidos: discussões preliminares no governo John Kennedy (1961-1963), Barbara Mitchell analisa os inícios de um dos marcos na história das políticas públicas norte-americanas no século XX: a Guerra à Pobreza de Lyndon Johnson (1963-1969), provavelmente a mais ousada tentativa de implementação de programas sociais que esse país conheceu. O artigo não se prende apenas a programas e políticos, no entanto, mas também explora as ideias que circulavam à época sobre a questão da pobreza e como ela poderia ser melhor combatida — recorte de um debate que, naturalmente, continua relevante, tanto nos EUA quanto fora dele. Uma contribuição importante para os estudos dos EUA no Brasil, e sobre os anos 1960 em particular.

Uma última palavra: iniciar a preparação de um novo número para uma revista acadêmica é sempre uma incógnita. Ao propormos o tema para o dossiê e ao abrirmos submissões de temática livre, nunca sabemos ao certo para onde o volume caminhará. Esse elemento surpresa é das coisas mais gratificantes nesse trabalho: a cada vez percebemos a força e a diversidade com que a pesquisa floresce no Brasil. Ao apresentarmos este número gostaríamos de agradecer à Revista TransVersos pelo convite, bem como às autoras e aos autores que se dispuseram a contribuir com seus artigos e, assim, a fazer parte desse projeto. Às leitoras e aos leitores da TransVersos oferecemos o resultado desse trabalho coletivo. Esperamos que o desfrutem tanto quanto nós ao prepara-lo.

Nota

  1. Termo que o autor utiliza para os seguidores do candomblé.

Referências

DIP, Andreia. Em nome de quem? A bancada evangélica e seu projeto de poder. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.

DO RIO, João. As religiões no Rio. Apresentação de João Carlos Rodrigues. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006. (Sabor literário.)

NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia da Letras, 2011. p. 148.

NUMBERS, Ronald L. Galileo goes to jail and other myths about science and religion. Harvard University Press, 2010.

PEREIRA, Larissa. O que é homeschooling e o que considerar antes de decidir educar o filho em casa. Último Segundo. 27 / 02 / 2019. Disponível em: https: / / ultimosegundo.ig.com.br / educacao / 2019-02-27 / educacao-domiciliarbrasil-mp.html. Acesso em: 10 / 12 / 2019.

SHERWOOD, Harriet. Religion: why faith is becoming more and more popular. The Guardian. 27 / 8 / 2018. Disponível em: https: / / www.theguardian.com / news / 2018 / aug / 27 / religion-why-is-faithgrowing-and-what-happens-next . Acesso em: 10 / 12 / 2019.

STARK, Rodney. Bearing false witness: debunking centuries of anti-Catholic history. Templeton Press, 2016.

Rodrigo Farias de Sousa

Augusto Cesar Dias de Araujo

Rio de Janeiro, 15 de dezembro de 2019


SOUSA, Rodrigo Farias de; ARAUJO, Augusto Cesar Dias de. Apresentação. Revista Transversos, Rio de Janeiro, n.17, set. / dez., 2019. Acessar publicação original [DR]

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Mundo Luso-brasileiro: relações de poder e religião / Revista Eletrônica História em Reflexão / 2019

Com o propósito de contribuir para uma maior discussão sobre temáticas atinentes às relações de poder e religião na construção do mundo luso americano, lançamos esse Dossiê trazendo quatro artigos reflexivos sobre a imposição dos padrões de comportamento e da mentalidade católica sobre povos conquistados, especificamente indígenas da América portuguesa e africanos escravizados em diáspora pelo mundo atlântico, seja mediante a desterritorialização ou a catequese geridas pelos jesuítas, ou por administradores dos interesses políticos da Coroa.

Os quatro artigos compositores deste Dossiê recobriram os séculos de colonização da América portuguesa, tratando especificamente de relações de dominação que tiveram lugar no Rio Grande do Norte e Ceará, bem como a rota diaspórica de africanos escravizados pelos portugueses.

Os dois primeiros artigos abordam a política de desterritorialização indígena no Nordeste, sendo que um deles tratando das chamadas guerras justas, no século XVI, mostra-nos o avanço e a dominação lusitana no sertão; o outro, situado temporalmente mais à frente, analisa a mesma estratégia da Coroa, ao transformar antigos aldeamentos missionários jesuítas em vilas, a partir da implantação do chamado Diretório pombalino.

No sentido também da submissão aos conquistadores, porém com um pano de fundo mais ideológico catolicizante, os outros dois artigos abordam o papel da Igreja, seja mediante a educação jesuítica com as Casas de Bê-á-bá ou a pedagogia do medo praticada pelo Santo Ofício na conversão de africanos escravizados submetidos ao poder de senhores seja em Portugal, seja na América portuguesa.

Com esses artigos inéditos, fruto do trabalho de pesquisa de historiadores de excelência, constatamos os mecanismos de destruição de povos, etnias em nome de uma supremacia religiosa e um poder político impositivo.

Esperamos que a leitura seja leve, fluida e, sobretudo, construtora de um conhecimento humanista indispensável na edificação de um mundo melhor.

Suzana Maria de Sousa Santos Severs – Professora Doutora

Marco Antônio Nunes da Silva – Professor Doutor


SEVERS, Suzana Maria de Sousa Santos; SILVA, Marco Antônio Nunes da. Apresentação. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v. 13, n. 25, jan. / jun., 2019. Acessar publicação original [DR]

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História e Multidisciplinariedade nos estudos da religião e religiosidades / Tempo Amazônico / 2019

O campo dos estudos da religião no Brasil tem crescido e se organizado nas últimas décadas, como demonstram a autonomização da área de Teologia e Estudos da Religião e o fortalecimento de programas de pós-graduação, de associações e de revistas diretamente ligadas às pesquisas sobre religiões e religiosidades. Os mais importantes autores, que subsidiam as discussões em nível internacional, já foram ou estão sendo traduzidos e o acumulado de reflexão já nos permite incluir autores brasileiros como referências em vários debates atuais.

Durante um bom tempo, a História (como disciplina) esteve a reboque desses avanços, com abordagens, métodos e fontes ainda muito tradicionais. Hoje, mais francamente abertos às construções interdisciplinares, os historiadores têm se integrado nesse debate e, com eles, muitas Revistas de História (das mais diferentes instituições e colorações) têm dado suas contribuições, especialmente através de dossiês. Interessante, porque nesses casos, mais do que atrair leitores e autores de outras áreas, temos, nós mesmos, nos aproximado das epistemologias e metodologias das humanidades, das artes, da comunicação. Daí termos optado aqui pelo termo multidisciplinaridade, já que ele sugere que cada qual, do seu ponto de vista disciplinar, pode colaborar para a construção de olhares sempre mais perspicazes sobre um determinado objeto – nesse caso, as religiões e religiosidades.

Uma prática ecumênica, que parte tanto da crítica da compartimentação do saber científico quanto das possíveis recomposições em curso, no sentido de produzir inclusive pesquisas com maior relevância acadêmica e social. Um convite à reflexão e ao diálogo, que agrega mais sabor e inventividade à produção do conhecimento histórico.

Foi nessa perspectiva que propusemos esse dossiê e que acolhemos, com alegria, os textos que o compõem. Eles foram organizados de modo que, no todo, o leitor caminhe de discussões mais teóricas para os trabalhos mais empíricos. E entre esses últimos há uma ordem cronológica. Isso não impede, é claro, que se leia apenas um artigo ou que eles sejam lidos aleatoriamente.

O primeiro artigo, de autoria de Alexsandro Melo Medeiros, trata de como Henri Bergson elabora, em sua obra, “o misticismo como uma forma de abordar, experimentalmente, o problema da existência de Deus”. É uma contribuição do campo da filosofia, mas que tem tudo a ver com os debates atuais sobre história da espiritualidade. Como aponta o autor “a teoria evolucionista bergsoniana, que encontramos amplamente esboçada em sua obra A Evolução Criadora é retomada em sua obra As Duas Fontes da Moral e da Religião que amplia a aprofunda a concepção do filósofo a respeito de como o homem pode se colocar em contato com a energia criadora da vida através da experiência religiosa testemunhada pelos místicos das mais diferentes religiões”.

Em seguida, Paulo Vitor Giraldi Pires nos traz um olhar sobre “a religião como interdisciplinaridade da comunicação”, apresentando algumas “aproximações teóricas” possíveis, sobretudo a partir da análise do caso da Igreja Católica nos anos pós-conciliares. O artigo discute um momento no qual a religião entrou em diálogo cada vez mais estreito com o mundo moderno, o que no campo da comunicação implicou em uma aproximação (interdisciplinar) dos estudos científicos sobre os temas comunicacionais, seja com finalidades pastorais ou mesmo acadêmicas.

Um debate entre dois autores bastante atuais – Pierre Bourdieu e Boaventura de Sousa Santos – emerge no artigo de Vitor Hugo Rinaldini Guidotti, intitulado “Teologia hegemônica e contra-hegemônica no campo religioso: breve reflexão sobre as (im)possibilidades em Direitos Humanos”. Ao explorar tanto o conceito de campo religioso do primeiro quanto a leitura crítica da universalidade dos Direitos Humanos do segundo, o autor nos apresenta as possibilidades de que “teologias progressistas, mesmo que colocadas num campo religioso fortemente hostil, podem contribuir para a elaboração de uma nova concepção de direitos humanos, excluindo da base epistemológica desse conceito os interesses econômicos neoliberais, a arrogância científica e a influência das religiões dominantes e reelaborando a partir de uma composição múltipla de saberes, sejam eles seculares ou religiosos”.

Na mesma perspectiva, Diego Omar da Silveira aponta as interconexões possíveis entre “História, Antropologia e Sociologia na compreensão das dinâmicas sociorreligiosas contemporâneas no médio-baixo Amazonas”. Partindo dos estudos culturais, e debruçando-se sobre a contribuição de três autores que são presenças constantes em cursos de teoria antropológica (Erving Goffman, Pierre Bourdieu e Arjun Appadurai), o texto discute a validades dos conceitos operados por esses clássicos (alguns bastante recentes) para analisar as relações entre a religião, a sociedade e a cultura. Longe de uma aplicação automática, o que se propõe é que os conceitos sejam tomados como chaves que permitem problematizar as relações e transformações atuais, ativando assim diferentes fontes e modalidade de olhar para um campo que não cessa de se modificar.

O artigo de Karla D. Martins – “O Apóstolo da Amazônia: D. Macedo Costa e uma versão do ultramontanismo na Província do Pará entre 1861 e 1890” – está mais estritamente no campo da História e disseca, na medida do possível, o quanto esse eclesiástico, que se tornou marcante em seu tempo, foi um homem que “amou, sofreu, irritou-se e se entregou ao trabalho missionário na vasta região amazônica onde viveu a maior parte de sua vida”. As várias dimensões do bispo (“devoto, erudito e leitor de clássicos”) servem assim para elucidar seus “projetos sociais e religiosos”.

João Everton da Cruz, por sua vez, propõe uma leitura transversal do Conselheiro, numa linhagem inaugurada pelo padre Ibiapina e que se estende até o monge Marcelo Barros – “Um Conselheiro do nosso tempo”. Os traços em comum emergiriam da fé popular em um “orientador, mestre e guia, (…) pessoa aonde residiria muita sabedoria. Não somente a sabedoria familiar, transmitida de geração em geração, mas também a sabedoria dos ancestrais, à qual poucas pessoas têm acesso”.

Por fim, Eduardo Gusmão de Quadros e Leksel Nazareno Resende nos trazem uma muito sugestiva análise das imbricações entre “Juventude protestante e musicalidade” por meio de “um estudo sobre os modos de apropriação da MPB durante o final da década de setenta”. O grupo a que se referem é o “Vencedores por Cristo, criado pelo missionário norte-americano Jaime Kemp, em 1968” e que, para além dos hinários tradicionais, encabeçaram uma “proposta radical de musicalidade cristã: usar ritmos e temas brasileiros para dialogar mais profundamente com a cultura brasileira”. Segundo os autores, “a ousadia teve forte oposição dos mais conservadores dentro das instituições, contrabalanceada pela boa aceitação entre a juventude evangélica que passou a produzir e a consumir tal repertório. Muitos que dedicaram a vida a tal proposta acabaram por alterar o jeito de ser evangélico no Brasil”.

Para além do dossiê, a revista traz, ainda, as contribuições de temática livre, fruto de diferentes pesquisas de pós-graduação e que muito têm colaborado para o tipo de trabalho que temos realizado na Tempo Amazônico, qual seja o de estimular o debate acadêmico e historiográfico de forma mais ampla possível, possibilitando a divulgação de pesquisas originais sobre diferentes temas e assuntos, sobretudo os amazônicos.

Desejamos a todos uma boa leitura.

Diego Omar da Silveira (Universidade do Estado do Amazonas)


SILVEIRA, Diego Omar da. Apresentação. Tempo Amazônico, Macapá, v.6, n.2, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Múltiplos olhares sobre política e religião / Faces de Clio / 2019

Com muita satisfação, a Revista Faces de Clio lança o dossiê Múltiplos olhares sobre política e religião (Janeiro – Junho de 2019). O arquivo é composto de trabalhos que observam os limites entre os espaços públicos e privados, assim como as fronteiras entre as experiências religiosas e as atuações políticas. Contamos, nesta edição, com artigos que transitam sobre diversos períodos da história, desde a “Grécia antiga” ao Brasil contemporâneo.

Visando facilitar a difusão dos nossos artigos, damos início à uma nova fase da Revista, que agora se integra ao novo Portal de Periódicos da Universidade Federal de Juiz de Fora. Com nosso novo site (OJS 3), teremos todo o fluxo editorial administrado na plataforma, facilitando a comunicação entre autores, editores, pareceristas e leitores.

Iniciamos este número com um artigo de Thales Moreira Maia Silva, no qual a semântica do conceito de “experiência religiosa” é explorada a partir de fontes da Grécia antiga e de um diálogo com a historiografia. O fio condutor do trabalho é a relação com o contexto político das “religiões de mistério” helenísticas.

Ainda sobre História Antiga, Eduardo Belleza traz a sua contribuição com o artigo “Os Césares” de Juliano como construção de uma propaganda política. Recorrendo à sátira intitulada “Os Césares”, demonstra as tentativas do imperador Juliano (361 – 363 d.C.) para difundir uma propaganda política e religiosa no intuito de promover a sua imagem e reestabelecer os antigos cultos romanos em oposição ao avanço do cristianismo.

No artigo O príncipe indômito: uma análise das políticas praticadas nas vidas de São Hermenegildo para a construção hagiográfica do príncipe mártir visigodo, a historiadora Luanna Klíscia explora as implicações políticas das vidas do príncipe visigodo São Hermenegildo (564 – 585 d.C., considerado mártir da Igreja espanhola), sobretudo na disputa contra o rei Leovigildo (seu pai, que adotava em seu reino uma perspectiva ariana do cristianismo).

Recorrendo como fonte aos jornais A República e O Apologista Christão Brasileiro, o historiador João Gabriel Moraes de Souza trata das tensões presentes no processo de laicização da República Federativa do Brasil a partir da polêmica em torno ao casamento civil no Belém do Pará. A problemática envolve o missionário metodista Justus Nelson, os católicos e os republicanos entre os anos de 1890 e 1893.

Nilciana Alves explora o olhar de Emma Goldman sobre o puritanismo, sobretudo no que se refere às relações estabelecidas entre mulher, política e religião. Para tanto, a autora, além de explorar o artigo “The Hypocrisy of Puritanism” (1910), analisa os livros “La palavra como arma”, “O indivíduo, a sociedade e o Estado, e outros ensaios” e “Vivendo minha Vida”.

Karina Fonsceca Soares Rezende apresenta uma reflexão histórica acerca da teologia política que orientou Dietrich Bonhoeffer (teólogo conhecido por sua atuação contra o nazismo), tendo como fio condutor a análise do conceito de “comunhão”, dado sua importância para a articulação de uma ideia de responsabilidade cristã em relação aos problemas de ordem pública. Além disso, a historiadora traça um paralelo entre o referido termo e o conceito de “amizade política”, desenvolvido por Hanna Arendt no livro “As origens do totalitarismo”e as ideias de Bonhoeffer.

Em relação ao envolvimento dos evangélicos na política, o historiador Vinícius Rodrigues Dias propõe uma análise das eleições para deputados estaduais de Rondônia em 1982, as primeiras depois da criação do Estado, com ênfase nas trajetórias de Amizael Silva do PDS e de Sadraque Muniz filiado do PMDB. Para isso, o estudioso recorre à fontes orais, jornais e cartas.

Adentrando no século XXI, Aline Beatriz Coutinho investiga as disputas em torno à questão do aborto na Câmara dos Deputados por parte dos movimentos feministas, dos deputados federais pentecostais e do poder executivo. Coutinho explora o impacto da temática a partir das eleições de 2014 e observa em que medida a discussão é pautada no âmbito da moralidade e da religião e no contexto da saúde pública.

Sobre os eventos políticos recentes da História do Brasil, o prof. Dr. Emanuel Freitas da Silva (Universidade Estadual do Ceará) aborta as tensões entre os parlamentares evangélicos o governo de Dilma Rousseff. Além de discutir o conceito de modernidade e secularização aplicados aos eventos recentes da história política do Brasil, o sociólogo apresenta brevemente a constituição da bancada evangélica desde 1988 ao governo Dilma. Por fim, expõe sete cenas, como o debate sobre o conceito de família, que marcaram os debates entre o governo e a bancada evangélica.

O historiador Marcelo Noriega reflete acerca dos desafios no Ensino de História no combate à intolerância religiosa. Pautado na abordagem da Educação Histórica, tendo como fundamento às contribuições da Jorn Rusen, o autor demonstra a importância de desenvolvermos, além dos aspectos cognitivos, as capacidades dos estudantes se posicionarem como cidadãos autônomos aptos a conviverem numa sociedade plural.

Enceramos esta edição com uma resenha produzida por Edson Silva de Lima sobre o livro Bram Stoker e a Questão Racial. Literatura de horror e degenerescência no final do século XIX.

Agradecemos a todos (as) membros da equipe editorial, ao conselho consultivo, aos pareceristas, aos autores(as), que participaram ativamente da construção deste dossiê, e aos leitores que prestigiarão o nosso trabalho.

Ana Paula Dutra Bôscaro – Doutoranda em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: anapaulaboscaro@gmail.com

Bárbara Ferreira Fernandes – Doutoranda em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: barbaraffernandes@outlook.com

Jorge William Falcão Junior – Doutorando em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: williamfalcaojr@gmail.com


BÔSCARO, Ana Paula Dutra; FERNANDES, Bárbara Ferreira; FALCÃO JUNIOR, Jorge William. Editorial. Faces de Clio, Juiz de Fora, v.5, n.9, jan / jun, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Poder e religião no Egito Antigo / Hélade / 2018

Poder e religião no Egito

É muito raro encontrar uma pesquisa acerca da sociedade egípcia que não envolva de alguma forma o fenômeno religioso e sua interligação com o poder. Isso se deve ao fato de que a concepção de mundo para os antigos egípcios mesclava todas as esferas que atualmente insistimos em analisar separadamente: religião, poder, cultura, sociedade, economia, etc. A estrutura do poder faraônico estava solidamente baseada em preceitos cosmogônicos e cosmológicos, de forma que todos os habitantes do Egito compunham a parte de um todo ordenado pela concepção de Maat, princípio que regia o equilíbrio cósmico do mundo (BAINES, 2002, p. 200).

O faraó era o responsável pela manutenção de Maat através das práticas diárias de culto aos deuses, preservação de templos, conservação do ciclo natural do Rio Nilo. O surgimento de situações de caos significava que Maat não tinha sido devidamente respeitada. No entanto, não só o faraó tinha um papel importante no afastamento do caos, mas sim todos os egípcios que, por meio de seus respectivos papeis na vida social, auxiliavam no funcionamento próspero do Egito, desde um camponês que realizava a colheita de alimentos até um sacerdote iniciado nos mistérios dos deuses que executava rituais templários.

Existe uma complexidade inerente ao esforço de lidar analiticamente com uma sociedade tão distante espaço-temporalmente da nossa. No entanto, ao fazê-lo, verificamos não apenas que as estruturas de poder e as formas de agência se modificaram ao longo de mais de cinco mil anos, mas também permitiram uma continuidade que por vezes nos faz olhar para o Egito Antigo não com total estranhamento, mas com certa identificação. Assmann, historiador e egiptólogo alemão, afirma: “O Egito é o lugar clássico da experiência do tempo” (ASSMANN, 2005, p. 21). Tal afirmação caracteriza uma tendência nacional e internacional das pesquisas sobre o Egito Antigo e é a partir dessa premissa que as diversas pesquisas presentes neste dossiê foram desenvolvidas.

O primeiro artigo que compõe o nosso dossiê é de autoria do Prof. Dr. José das Candeias Sales, da Universidade Autônoma de Lisboa, e tem como objetivo traçar paralelos entre as narrativas cosmogônicas egípcias, mais especificamente as de Hermópolis e Mênfis, e o relato bíblico do Gênesis. O autor inova ao procurar diálogos intertextuais entre as narrativas egípcias e a hebraica, uma vez que grande parte dos pesquisadores tende a analisar o Gênesis à luz dos textos mesopotâmicos.

A segunda contribuição, de autoria do Prof. Dr. Mariano Bonanno, da Universidade de Buenos Aires, analisa o Sarcófago de Amenirdis (XXVI Dinastia) sob a luz dos conceitos de agência e mirada. Bonanno operacionaliza as diversas facetas do sarcófago, desde sua materialidade até sua iconografia, para demonstrar como um agente da não-elite mobilizou um objeto que, de forma limitada, conferiu-o certo status na sociedade egípcia. Segundo o autor, o sarcófago era um objeto de poder, tendo em vista o seu significado religioso e sociocultural.

O Prof. Dr. Pablo Martín Rosell, da Universidade de La Plata, analisa as fórmulas abidianas presentes nas estelas votivas do Reino Médio com o intuito de compreender o seu significado para o mundo social e religioso, e, ainda, demonstrar sua relação com os festivais em honra ao deus Osíris – o Mistério de Osíris. Rosell afirma que a análise da construção de capelas e estelas votivas em Abidos por parte das elites egípcias que peregrinavam anualmente para participar do festival auxiliam no entendimento da hierarquia social egípcia e nas formas de diferenciações sociais que tais elites procuravam elucidar através destas materialidade.

O artigo de Profa. Ms. Keidy Matias, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, adota o conceito de Espaço Absoluto do filósofo francês Henri Lefebvre para entender a relação entre os humanos e a natureza como uma forma de produção social do espaço. A autora objetiva compreender de que forma a expressão herodoteana “O Egito é uma dádiva do Nilo” encontra eco na prática social do espaço e da natureza no Egito Antigo.

A sexta contribuição que compõe o nosso dossiê é de autoria do Prof. Ms. Thiago Ribeiro, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, e tem como objeto de estudo o conceito de magia no Egito Antigo e a sua relação com a religião egípcia. O autor delineia que é comum que os estudiosos da área entendam magia e religião como fenômenos distintos. No entanto, através da análise da documentação escolhida, Ribeiro demonstra que para os egípcios, religião e magia eram indissociáveis, constituindo em duas faces da mesma moeda.

Por fim, o artigo do Prof. Dr. Juan José Castillos, do Instituto Uruguaio de Egiptologia, versa sobre as primeiras formações institucionais da estrutura de poder faraônica através da análise da transição de uma situação de ausência de poder institucionalizado para o surgimento de chefes hereditário que posteriormente tornar-se-iam os faraós de um Egito unificado. Castillos afirma que a religião em construção no período pré-dinástico foi crucial para a justificação e validação desta nova ‘realidade social, política e econômica’.

Convidamos todos(as) a lerem o nosso dossiê Poder e Religião no Egito Antigo, composto por importantes pesquisas nacionais e internacionais que caracterizam o gradual crescimento dos estudos egiptólogos no Brasil, assim como a sua sintonia com o cenário internacional, especialmente na América Latina.

Boa leitura.

Referências

ASSMANN, Jan. Egipto: Historia de um sentido. Madrid: Abada Editores, 2005.

BAINES, John. Sociedade, Moralidade e Práticas Religiosas. In: SHAFER, Byron E. (org.). As Religiões no Egito Antigo. São Paulo: Editora Nova Alexandria Ltda, 2002.

Beatriz Moreira da Costa – Doutoranda em História pelo PPGH-UFF. Pesquisadora vinculada ao NEREIDA-UFF, LHIA-UFRJ e Coordenadora do Grupo de Estudos GEKmet. E-mail: beatrizmoreira190@ hotmail.com


COSTA, Beatriz Moreira da. Editorial. Hélade. Rio de Janeiro, v.,4, n.2, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Religião: artes e vozes | Ciências da Religião | 2016

Esta edição da revista Ciências da Religião: história e sociedade reúne textos provenientes das reflexões do 1º Primeiro Congresso Internacional de Ciências da Religião (Coincire), que ocorreu entre os dias 7 e 8 de novembro de 2016, na Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM).

A temática abordada nos textos é “Religião: artes e vozes” e, por meio da leitura dos artigos, o leitor perceberá que o tema geral congrega pesquisas do fenômeno religioso sob diversas perspectivas, possibilitando, assim, o diálogo entre saberes e o compartilhamento de seus respectivos conhecimentos. Leia Mais

Religião, migração e cultura. Imagens da fé / Domínios da Imagem / 2016

Com o termo bastante genérico de “religião”, costuma-se circunscrever um âmbito particular da vida social, feito de crenças míticas, práticas rituais, comunidades de fé e, sobretudo, da experiência do sagrado. Os cientistas humanos, definindo um “fenómeno religioso” como constituído pelos epifenômenos sobreditos, colocaram as bases para uma análise comparada de crenças e práticas culturalmente heterogêneas e geograficamente distantes, identificando, deste modo, um tipo cultural universalmente presente.

Frequentemente, nas descrições dos etnógrafos, a vida religiosa tem sido envelopada pelo ordinário, sendo associada a visões cosmológicas, instituições políticas, categorias identitárias e posturas éticas estáticas ou, pelo menos, homeostáticas. A primeira vista, efetivamente, o diálogo iconográfico aqui proposto, entre religião e mobilidade humana, poderia parecer anómalo, dirigido ao estudo de uma situação extraordinária: a vivência, por exemplo, dos migrantes, dominada pela experiência desconcertante da multiculturalidade. Os protagonistas da maioria dos casos apresentados neste dossiê se encontraram na situação desconfortável de aplicar os próprios “saberes” religiosos a novos contextos; frequentemente, pouco permeados por eles. Em outros casos, o sentido desta relação se inverterá e encontraremos convertidos que tentarão aplicar novos “saberes” religiosos aos seus antigos contextos.

Entretanto – como poderemos apreciar por meio de todos esses trabalhos – é justamente nos contextos de mobilidade e mudança que se revelam com mais claridade as implicações socioculturais das práticas religiosas. Isto porque a relação dos migrantes e dos convertidos com a religião não é a de crentes com uma cosmovisão imutável, etnicamente conotada, nem com uma ordem de preceitos morais, emanação natural das categorias sociais que regem um grupo determinado. A relação destes crentes errantes, fisicamente ou culturalmente, é a de animais simbólicos penetrando situações carentes de sentido com um modo particular de “pensar”, o mitológico.

Por meio do discurso mítico, os crentes, todos, produzem relações de sentido entre os acontecimentos contingentes que vivem e um universo significante que tende sempre a transcendê-los. A história mítica não informa por si mesma, não contém uma verdade absoluta, encapsulada nela; ela adquire valor, ante os olhos dos crentes, somente se demostra-se apta a permear sua história, transformando-a. Os significados extraídos das expressões religiosas, como as imagens aqui analisadas, não são dados, mas constituem o produto de uma síntese simbólica que define, contextualmente, história humana e história mítica – duas realidades que se definem reciprocamente, fusionando-se em um único objeto simbólico, denominado “mito”. O mito faz sentido enquanto proporciona sentido a uma realidade concreta, e vice-versa.

Esta visão simbólica do mito, presente em todos os textos que compõem o dossiê, leva-nos a uma concepção dinâmica e dialética de uma vida religiosa que, analiticamente, não pode ser nunca desvinculada de sua referência prática e histórica. O crente não sofre passivamente o mito, mas interage com ele e com suas representações materiais, utilizando-o como uma articulação simbólica por meio da qual ligar, semioticamente, a sua contingência a um determinado universo significante. O fenômeno religioso, portanto, adquire relevância analítica, além de significância cosmológica, quando apreciado dentro destes processos culturais de construção social da realidade. Neste sentido, o objeto de estudo religioso se oferece tanto a uma abordagem antropológica, como à historiográfica – especialmente, a um enfoque que integre ferramentas, questões e sensibilidades de ambas estas áreas do conhecimento. Não é por acaso que história e antropologia representam as vozes dominantes deste dossiê interdisciplinar.

As diferentes imagens religiosas analisadas no presente dossiê têm algo em comum: todas elas materializam aquela espécie de istmo cognitivo que, segundo Lewis (2008, p. 56), representaria o mito, com a sua capacidade de conectar a península do pensamento humano (e das suas verdades abstratas) ao vasto continente que habita (por meio de uma experiência direta, sempre ligada ao particular). Se o mito dialoga sempre com situações particulares e vividas diretamente, incorporando-as nas próprias formas simbólicas (SAHLINS, 1990), parece redutivo considerar os contextos de mobilidade como anómalos, cenários de experiências religiosas extraordinárias. Pelo contrário, os textos deste dossiê nos mostram que a vida religiosa dos migrantes e dos convertidos pode representar também um observatório privilegiado para estudar e entender a experiência religiosa ordinária. A prática religiosa é sempre um ato parcialmente criativo, representando uma imparável atividade imaginativa, dirigida à construção de imagens sensatas de uma realidade intrinsecamente instável e mutável.

Estas complexas imagens cosmológicas, sempre in fieri, são frequentemente contidas em, veiculadas por, e manipuladas através de imagens materiais. Refiro-me, em particular, às representações vivificadas das entidades e forças míticas, expressões de uma linguagem metafórica e analógica, isto é, simbólica. As transcendências dos fatos religiosos, as contingências dos fatos humanos e as imagens míticas em que primeiras e segundas encontram-se e sintetizam-se constituem os três pilares deste dossiê; o “trípode délfico” do qual os filhos do homem que não têm “onde reclinar a cabeça” (Lucas, 9,58) extraem suas próprias respostas. A indissociabilidade destes três pilares da vida religiosa atravessa todos os textos que compõem este dossiê.

No texto do historiador Paulo Augusto Tamanini, este trípode assume as formas hieráticas, preciosamente estilizadas, das Nossas Senhoras da iconografia bizantina da comunidade ucraniana de Curitiba. Nem sequer a tradição milenar e os cânones antinaturalistas que dominam esta expressividade religiosa podem encurralar os crentes no domínio da abstração sobrenatural, pois inclusive as suas formas “desmaterializadas” revelam-se sensíveis ao ambiente que as circunda. Tamanini descreve o ícone bizantino dos curitibanos como uma “obra pictórica que ainda está em andamento”. No entanto, de certo modo, esta nunca chega a cumprimento, como pode revelar uma análise historiográfica desta arte imagética, cujas formas, sendo reproduzidas, acabam integrando elementos novos, próprios do lugar, lato sensu, em que o ícone está inserido.

O processo de produção destas imagens representa, para Tamanini, o momento crucial desta maneira expressiva religiosa. As orações, os jejuns, os momentos de contemplação que precedem a feitura de um ícone levam os seus artífices a um novo encontro, localizado, com a divindade e com as suas verdades. A encarnação de Deus no ventre de Maria, representada no ícone da Virgem Orante, não se limita a celebrar o tempo mítico em que o humano e o divino se uniram, senão que convida artífices e devotos da imagem a viver novamente esta união, partindo da própria humanidade e da própria história. Neste sentido, é bastante significativo que em outro ícone aparece a imagem de Maria Odigitura, isto é, daquela que mostra o caminho. Do mesmo modo que a catedral curitubense de São Demétrio dialoga com os novos elementos do panorama urbano que a circunda, os ícones que esta contém abrem-se necessariamente às interpretações e às manipulações físicas e simbólicas de uma humanidade em movimento.

Também no artigo de Daniel Luciano Gevehr e Aline Nandi, as imagens sacras – ocultadas, no texto, pelas quatro pequenas casinhas de santos da comunidade ítalo-riograndense da Boa Esperança que as guardam – mediam as relações entre cosmologia religiosa e espaço físico. Foi graças à instalação, neles, de estátuas de santos católicos, que os sobreditos capitéis – construídos entre 1945 e 1960 pela chamada “segunda geração” – tornaram-se centros sagrados de refundação cosmológica da realidade. São centros periféricos, de tipo familiar, que, dialogando entre eles e com o centro principal da igreja matriz (dedicada à, também italiana, Nossa Senhora de Caravaggio), constituíam coordenadas geográficas importantes, através das quais mapear geograficamente e culturalmente espaços ainda novos e enigmáticos. Por meio destes oratórios, localizados nas margens das estradas da colônia, aqueles católicos italianos estabeleciam uma relação dotada de sentido com um mundo e uma vida novos.

Na imagem do santo familiar, os Boniatti, os Scalcon, os Taufer, os Cambruzzi e os outros moradores de aquelas localidades rurais encontravam um caminho para religar a região existencial das próprias situações críticas ao plano transcendente das soluções míticas. Esta ligação era ativada por meio das promessas, com os seus pedidos e os seus pagamentos. Gevehr e Nandi nos informam que na atualidade estes lugares da devoção desempenham uma função um pouco diferente, tendo sido ressignificados pelas gerações posteriores. Parece, efetivamente, que os capitéis e os seus santos moradores afastaram-se dos grandes e pequenos casos do dia a dia, para tornar-se instrumentos de uma memória coletiva que é cultivada e atualizada declinando, conjuntamente, identidade religiosa e identidade étnico-nacional. Os capitéis da Boa Esperança estão transformando-se: de lugares de oposição mitológica às doenças, às calamidades naturais e a toda adversidade, a lugar de reafirmação de uma identidade, a católicoitaliana, que se redescobre a medida em que se afasta de si mesma – passando do domínio dos atos naturais e inconscientes da cultura viva ao das tradições transmitidas e comemoradas do folclore.

As imagens católicas de um coletivo migrante estão no centro também da contribuição de Sidney Antônio da Silva, antropólogo que estuda há anos a migração boliviana em São Paulo. No texto de Silva, analogamente ao visto nos primeiros dois artigos, as imagens católicas deste coletivo nacional destacam-se pela sua capacidade de representar um centro de agregação étnico, embora transnacional, dentro de um espaço estranho. De fato, nos lugares paulistanos aonde chegaram a Virgem de Copacabana e a Virgem de Urkupiña, além de aparecerem pratos nacionais, produtos típicos daquela região andina e objetos e costumes étnicos, afirmou-se um modo particular de criar sentimentos comunitários e de tecer redes de solidariedade. Silva nos mostra como a imagem sagrada boliviana, por meio da instituição cerimonial do Presterío e do dobro principio de reciprocidade que a rege – o, vertical, que governa as relações entre devoto e divindade e o, horizontal, que sustenta a comunidade de devotos –, continua representando, em terras brasileiras, um importante centro de construção social da realidade.

A festa, em particular, representaria o “fato social total” (MAUSS, 1974) que, por meio daquele poderoso símbolo identitário que é a Virgem regional, agrega, aglutina, organiza e recompõe as humanidades desfiadas e fragmentadas pela contingência migratória. Aqui também, a Virgem não constitui um elemento étnico inerte. Pelo contrário, como simboliza bem o costume para-litúrgico dos cargamentos, ela – ao igual que o Ekeko, seu concorrente/colega “pagão”, na festa de alasitas – carrega-se periodicamente dos novos desejos dos seus devotos, socializando-os e significando-os. Silva conta-nos como foi, justamente, a aspiração da senhora Juanita Trigo de comprar uma casa o que, no final dos anos ’80 do século passado, deu início ao ciclo de festas devocionais na comunidade boliviana de São Paulo.

O antropólogo italiano Riccardo Cruzzolin, em seu artigo, partindo da ideia de iconografia religiosa como espaço cultural e político de imaginação da realidade, analisa o culto que o coletivo peruano de Perúgia (Itália) rende ao limenho Señor de los Milagros. Uma das caraterísticas principais deste espaço é, segundo Cruzzolin, remeter a um imaginário que não é nunca fechado, nem invariável, e que, sobretudo, não leva jamais a visões unânimes da realidade. Pelo contrário, a imagem religiosa desperta e veicula percursos imaginativos diferentes e, frequentemente, discordantes. Isto porque a imagem, embora aspire a evocar mitos atemporais, princípios universais e verdades transcendentes, não se libera nunca dos referentes práticos e imanentes dos que a ela se dirigem. A imaginação religiosa, a despeito da sua natureza social, é sempre parcialmente faciosa. Consequentemente, a imagem religiosa, com o seu poder imagético politicamente legitimador, representa sempre um espaço em certa medida contendido. A imagem, pintada no século XVII, deste Cristo crucificado pode ser sempre cuidada, adornada e enriquecida de objetos que a tornam mais preciosa; e, certamente, preenchida pelas instâncias particulares dos autores destes gestos devocionais.

A imagem do Señor de los Milagros, depois de ter resistido aos terríveis terremotos que sacudiram Lima, parece aguentar também as turbulências da vicissitude migratória; representando para os peruanos perugini o mesmo que representou para os seus primeiros devotos ameríndios e africanos: uma poderosa forma simbólica por meio da qual construir imagens coerentes da realidade vivida, com todas as suas contradições. A imagem é usada pelos seus cargadores emigrados para reconstruir aquela presenza demartiniana (DE MARTINO, 1958) – o Ser-aí-no-mundo heideggeriano – que, embora seja expressada sempre culturalmente, radica-se nas questões existenciais mais profundas do indivíduo; sendo, por isto, constantemente posta em risco pelas incertezas das situações contingentes vividas, como as produzidas pela experiência migratória.

O texto da antropóloga Joana Bahia põe luz a outras duas questões importantes, inerentes ao fenômeno religioso: o seu caráter intrinsecamente transnacional e a inevitável mitificação – entendida como aquisição de qualidades míticas – daqueles seres humanos, normalmente sacerdotes (lato sensu), que se aproximam muito ao mito e à sua essência sagrada, tornando-se eles mesmos efígies do universo religioso. Com respeito à primeira questão, Bahia analisa a expansão da umbanda e do candomblé em terras alemãs, austríacas e suíças. Em particular, o foco do seu estudo é representado pela relação extremamente dinâmica e fluida que, neste cenário (des)localizado das crenças afro-brasileiras, dá-se entre campo étnico e campo religioso. Em todos os terreiros analisados por Bahia na Suíça e na Alemanha, emerge a grande capacidade das religiões afro-brasileiras de dialogar, simultaneamente, com diferentes contextos étnicos e culturais, incorporando-os e deixando-se incorporar por eles.

Tais diálogos e outras relações entre estados, planos e universos diferentes são interpretados, principalmente, pelos pais e as mães de santo ativos em terras alemãs. Por meio de uma leitura mítica das respetivas trajetórias migratórias, existenciais e espirituais, eles tornaram-se formas vivas de um universo significante e, consequentemente, como nos diz Bahia, viraram “construtores de histórias e ideologias sobre o grupo”. As narrativas autobiográficas da “suíça” Mãe Habiba, e dos berlinenses Mãe Dalva e Pai Murah confundem-se continuamente com as histórias míticas dos terreiros que dirigem. Em um tipo de tradição religiosa fortemente ritualista e que funciona pelo princípio da incorporação – que vai bem além do transe mediúnico –, estes personagens desempenham um importante papel simbólico, veiculando com o próprio corpo processos de construção mítica da realidade. Eles transformam-se, de facto, em imagens religiosas vivas, capazes de evocar imaginários coletivos e de impulsar processos imagéticos.

A possibilidade do ser humano encarnar o mito é tão concreta no artigo do historiador Alexandre Karsburg, que se transforma no principal obstáculo da sua pesquisa historiográfica. Karsburg desloca-se de um lugar para outro do planalto meridional do Brasil, para seguir o rastro do venerado monge João Maria. Em particular, ele está interessado em desvendar as pessoas reais que, entre meados do século XIX e o início do século XX, foram identificadas com ele; a começar do primeiro destes estranhos personagens, o italiano João Maria de Agostini. Seguindo diferentes percursos historiográficos, alguns dos quais pouco frequentados, Karsburg reconstrói com certa precisão o itinerário deste primeiro monge andarilho. Embora a vicissitude analisada neste texto comece com um movimento “migratório”, a relação aqui descrita entre religião e mobilidade é atípica e inversa à que costumamos encontrar: o deslocamento deste “monge” não constitui uma incômoda condição a ser resolvida miticamente, mas, pelo contrário, um caminho místico regenerador, por meio do qual sair dos pântanos mortíferos da vida mundana.

Curiosamente, o “desaparecimento”, em 1852, do homem João Maria coincide com a afirmação do seu mito, interpretado por uma quantidade indefinida de andarilhos penitentes percorrendo o extenso território sulino desde 1855. O texto de Karsburg ajuda-nos a entender que quando um homem aproxima-se demais do mito, tentando permanecer dentro do seu âmbito sagrado e procurando viver conforme seu modelo, ele mesmo torna-se uma imagem vivente da realidade mítica. A trajetória brasileira (documentada) de Giovanni Maria de Agostini é relativamente curta, durando menos de um decênio. Contudo, desde o começo, pelo seu estilo de vida hierático e solitário, inspirado na figura de Santo Antão Abade, o Anacoreta, ele chamou a atenção dos que cruzavam o seu misterioso caminho, excitando a imaginação deles e transformando-se em um modelo a seguir. Na medida em que lhe eram reconhecidos atributos míticos, construía-se um lugar da imaginação mitológica, ao passo que os confins espaciais, temporais e até mesmo somáticos da sua trajetória existencial ofuscavam-se e dilatavam-se; para receber e englobar, como um rio com os seus afluentes, as peregrinações de dezenas de outros “monges” – como João Maria de Jesus e José Maria de Santo Agostinho (que participou da Guerra do Contestado) – que procuraram imitarlhe a vida penitente e de rejeição dos valores mundanos. Também estes últimos, fundindo-se com o primeiro e com o imaginário por este inaugurado, de imitadores viraram imitados, imagens vivas de um “pensamento”, o mítico, que, como sabemos, é homeopático e contaminante por definição.

Também no texto da antropóloga Maria Raquel da Cruz Duran, a questão da mobilidade na experiência religiosa não está diretamente relacionada ao fenômeno migratório, mas a um processo de evangelização, pelo qual estão passando os membros de um povo indígena do Mato Grosso do Sul. Quando, nos anos ’60 do século passado, um missionário evangélico alemão chegou a Alves de Barros, “capital” dos Kadiwéu, encontrou um povo cuja vida religiosa fundamentava-se em uma mistura de pajelança e catolicismo popular, vivido essencialmente por meio do culto às imagens. A autora analisa, por meio de um emblemático depoimento, como a entrada exitosa dos protestantes na vida deste povo mudou a percepção dos seus membros para com as imagens sacras.

Duran explica-nos como a devoção da sua interlocutora baseava-se na percepção de uma coincidência ontológica entre uma entidade divina, real e um sentimento piedoso, radicado no mais fundo do seu ser. Tal devota teria tomado consciência dessa duplicidade justamente quando experimentou a sua ruptura: “descobrindo” que aquela suposta entidade real era um pedaço de madeira esculpido por homens e que o próprio sentimento religioso era sustentado por uma ilusão. Este “descobrimento”, evidentemente, foi propiciado pelo discurso iconoclasta protestante e pela sua desmitificação das representações iconográficas como lugar de encontro com a divindade. Contudo, paradoxalmente, a rejeição das imagens católicas, no depoimento recolhido pela autora, corresponde também a uma demonização das mesmas, isto é, à sua revitalização, embora em chave demoníaca.

O último texto representa uma contribuição minha, de caráter antropológico, dirigida à compreensão da natureza do poder sedutor que as imagens religiosas exercem sobre os seus devotos. Especificamente, interesso-me em compreender qual é a força que, cada fim de semana, leva dezenas de equatorianos a deslocar-se de diferentes distritos de Nova Iorque e, inclusive, de outros estados contíguos, para a igreja de Saint Veronica, no Lower Manhattan. O fato de que lá é guardada uma imagem da Virgen del Quinche – muito venerada no norte do pais andino – poderia sugerir uma resposta que aponte para um processo de “retribalização” em terras estrangeiras. Contudo, a opção da compreensão daquela imagem como mero símbolo étnico, ao qual os equatorianos locais acorreriam para não esquecer quem são, representa um atalho que, apesar de ser extremamente cómodo e atraente, afasta-nos de um entendimento mais profundo do fenômeno observado.

Certamente, os quitenhos de Nova Iorque que se dirigem a Saint Veronica fazem-no porque vivem um sentimento de proximidade com a Nossa Senhora lá representada. Entretanto, essa proximidade não é de um tipo transcendente ou essencial – como normalmente é entendida a étnica –, mas apresenta um forte caráter contextual e experiencial. Eles consideram e veneram aquela Virgen porque por meio dela veem – no sentido cognitivo do termo – a própria história e a própria vida. Em particular, ao longo deste texto, tento demostrar como a capacidade sedutora desta imagem deriva do seu grande poder simbólico. Este poder, por sua vez, repousa sobre a síntese de duas propriedades fundamentais, que os devotos reconhecem nela: a de representar a história mítica e as categorias culturais que esta veicula; a de fazer novamente presente, nas próprias histórias, a entidade mítica e o universo de sentido ao qual ela dá acesso. Os equatorianos que, todos os domingos, atravessam Nova Iorque para alcançar Saint Veronica e o tesouro devocional que esta contém, não o fazem porque lá encontram representações culturais e estruturas sociais determinadas a priori pelo gênio étnico, mas porque lá encontram as ferramentas simbólicas para construí-las dia após dia.

Além dos textos que compõem o dossiê, este número conta com o artigo da sociológa Iael de Souza que, a partir da análise do filme “Entre les murs” (do diretor Laurent Cantet, de 2008) como recurso mimético, busca compreender os problemas educacionais enquanto manifestações da totalidade das relações sociais e de produção capitalista. Assim, para Souza, “entre os muros” de uma escola pública parisiense pode ir além dos muros, pois é reflexo estético dos problemas sociais enfrentados pela sociedade atual.

Por fim, temos o artigo do historiador Gustavo Silva de Moura que discute as relações entre a juventude e a sociedade, analisando como se dá sua composição social e cultural na “cena” Rock/Metal de Parnaíba-Piauí. Dessa forma, Moura aborda a importância das mídias (rádio, televisão, jornais, revistas), na propagação do Rock e Heavy Metal na cidade de Parnaíba-PI, nas décadas de 1980 e 1990, considerando a visão da sociedade sobre essa nova prática que estava em ascensão no Brasil e em várias localidades do Nordeste.

Referências

A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Editora Paulus, 2003.

DE MARTINO, Ernesto. Morte e pianto rituale nel mondo antico: dal lamento pagano al pianto di Maria. Torino: Boringhieri, 1958.

LEWIS, Clive Staples. Dios en banquillo. Madrid: Rialp, 2008.

MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. V. I e II. São Paulo: EPU-EDUSP, 1974.

SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.

Francesco Romizi


ROMIZI, Francesco. Apresentação. Domínios da Imagem, Londrina-  PR, v.10, n.18, jan/jul, 2016. Acessar publicação original [DR]

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Religião e Religiosidades / Locus – Revista de História / 2015

O presente dossiê da Revista Locus reúne contribuições de dez diferentes especialistas no estudo das práticas e representações religiosas elaboradas no mundo católico, com ênfase nas regiões de colonização ibérica, entre os séculos XVI e XIX. A organização do número constitui um desdobramento das atividades do Grupo de Pesquisa Ecclesia que tem se debruçado sobre uma variedade temática, que pode ser encontrada, a título de exemplo, nos seguintes campos de investigação historiográfica: as manifestações sagradas dos fiéis e do clero, em consonância ou em tensão com as normas institucionais; as formas de ação coletiva dos fiéis no campo religioso, especialmente a partir das irmandades e ordens terceiras; as marcas deixadas pela sociedade escravista e de Antigo Regime na formação do clero e nas vivências devocionais; os mecanismos de imposição da disciplina social católica aos fiéis, por meio da ação do episcopado e do padroado; e as representações acerca da morte e da santidade.

Muitos dos referidos campos de investigação têm sido renovados por contribuições recentes da historiografia. No que diz respeito, por exemplo, à ação dos bispos e do clero secular, José Pedro Paiva, em particular, mostrou a variedade de papéis assumidos pelos bispos diocesanos, que ocupavam um papel chave na supervisão das práticas religiosas dos fiéis e do clero, complementando e auxiliando as atividades do Santo Ofício da Inquisição. Além disso, o episcopado se encontrava muito próximo da órbita do poder monárquico, que escolhia criteriosamente os candidatos às vagas nas dioceses. Nas áreas de colonização, onde a manutenção do culto e a escolha de sacerdotes e bispos se encontravam sob a jurisdição dos padroados ibéricos, identificou-se com clareza a ação complementar das autoridades régias e dos bispos. Quanto ao clero diocesano, a historiografia se abriu a uma pluralidade de investigações, que faz ressaltar o papel central ocupado pelo pároco em uma sociedade do Antigo Regime que tinha o catolicismo como religião oficial: os estudos e a formação; as atividades rituais e de instrução religiosa; a análise do meio familiar e das origens étnicas; o envolvimento do clero em práticas morais ilícitas e em crenças heterodoxas.

As devoções, as sensibilidades religiosas e as correntes de espiritualidade de fiéis e de membros do clero têm sido também contempladas e renovadas pela historiografia. O culto à Paixão de Cristo, à Sagrada Família e ao Menino Jesus, derivado da devotio moderna, difundiu-se enormemente ao longo do período, estimulado pelo clero e contando com a participação ativa de fiéis reunidos em irmandades e ordens terceiras. A devoção ao Santíssimo Sacramento e às Almas do Purgatório recebeu igualmente grande incremento. Os vínculos entre os fiéis e os santos de proteção continuaram sólidos, em uma aliança sustentada pela prática da promessa e pela realização dos milagres. Sob o impulso do Concílio de Trento, a Igreja passou a interferir mais de perto na referida relação, procurando fazer do santo um modelo de conduta para o fiel, apoiando-se para isso na ação do clero nos sermões e na difusão da literatura devocional. Um sinal da ação controladora do clero, particularmente do Santo Ofício, foi o crescimento das acusações de “falsa santidade” dirigidas a leigos.

A partir de alguns campos de investigação expostos acima, é possível identificar maiores afinidades entre os autores. Deve-se chamar inicialmente a atenção para os estudos dedicados à temática da morte, analisada sob diferentes perspectivas, reunidos neste dossiê. Obedecendo a uma sequência cronológica, situa-se em primeiro lugar o artigo de Adalgisa Arantes Campos, intitulado “A iconografia das Almas e do Purgatório: uma releitura bibliográfica e alguns exemplos (séculos XV ao XVIII)”. Em diálogo com as obras de Jacques Le Goff, Michell Vovelle e Flávio Gonçalves, entre outros autores, Campos escolhe três fontes iconográficas para trabalhar as representações das Almas do Purgatório: a Coroação da Virgem pela Santíssima Trindade de Engerand Quarton (século XV); o Julgamento das Almas atribuído a Gregório Lopes (século XVI); e a portada dedicada a São Miguel e Almas da Capela do Senhor Bom Jesus, em Ouro Preto (século XVIII). A partir de uma análise comparativa, a autora constata o descompasso existente entre a fixação da doutrina do Purgatório no século XIII e a lenta alteração das representações iconográficas, que resistiram em assimilar um terceiro lugar no post-mortem.

Em seguida, encontra-se o texto de Claudia Rodrigues, “Estratégias para a eternidade num contexto de mudanças terrenas: os testadores do Rio de Janeiro e os pedidos de sufrágios no século XVIII”. No artigo em pauta, Rodrigues dialoga com ampla produção especializada a respeito da temática da morte, da qual extraiu elementos para analisar as fontes básicas de sua pesquisa: os registros de óbito, os testamentos e as contas testamentárias correspondentes à Freguesia do Santíssimo Sacramento da Sé do Rio de Janeiro, que se encontram no Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. Em diálogo com a obra de João Fragoso e de Roberto Guedes, atentos aos efeitos socioeconômicos das doações testamentárias, a autora revela no contexto em foco o “domínio dos mortos sobre os vivos”, característica de uma economia da salvação marcada pelo acúmulo de encomendas de missas, gastos funerários e doações de caridade, em detrimento do benefício de parentes vivos. A situação começa a mudar após as restrições dos gastos pro anima estipulados na legislação pombalina da década de 1760 que procurou favorecer os interesses dos herdeiros vivos dos testadores. Nesta conjuntura, a autora identifica as diferentes respostas contidas nas declarações de últimas vontades, desde as mais conformadas com as limitações impostas pelas Leis Testamentárias até os subterfúgios encontrados pelos testadores para continuarem a privilegiar o objetivo soteriológico do testamento.

Utilizando uma amostra documental mais reduzida, constituída pelas contas testamentárias de irmãos terceiros franciscanos e carmelitas que tiveram suas últimas vontades fiscalizadas pelo Juízo Eclesiástico do Rio de Janeiro, William de Souza Martins chega a conclusões semelhantes às de Cláudia Rodrigues, no que diz respeito ao impacto da legislação pombalina na economia da salvação do período, no artigo intitulado “Os irmãos terceiros franciscanos e carmelitas e a Justiça Eclesiástica do Rio de Janeiro (c. 1720-1820)”. Não obstante, antes e depois das restrições oriundas das medidas de Pombal, o autor identificou testadores que possuíam grandes patrimônios, vinculados ao comércio de grosso trato, cujas doações a favor da salvação das almas ficavam em patamar inferior aos benefícios materiais concedidos à parentela, inclusive a parentes mais afastados. Paralelamente, o autor observou a existência de um forte espírito de corpo entre os irmãos terceiros, que tendiam a favorecer as próprias ordens e os frades carmelitas e franciscanos com diferentes tipos de doações e despesas funerárias.

Deixando o período colonial e adentrando o período da Independência e afirmação do Estado nacional, o artigo de Gabriela Alejandra Caretta, “Y el Cielo se tiñó de rojo… Muerte heroica y Más allá en las Provincias Des-Unidas del Río de la Plata (1820-1852)” analisa as conexões existentes entre os funerais extraordinários de líderes de facções em disputa na região do Rio da Prata e a História Política da região no pós-independência. Neste estudo, em que representações fúnebres assumiam uma função importante na fundação de determinadas memórias e narrativas políticas, a autora verificou, nos quatro estudos de caso que analisa, que houve uma atualização da tradição católica da “boa morte”, que passou a incluir temas não desenvolvidos no período colonial, como o discurso heroico do “enfrentamento da morte”.

Para além da temática da morte, das suas práticas e representações, o dossiê contempla também estudos que analisaram o modo como a difusão de narrativas piedosas contribuiu para moldar as práticas de determinados fiéis, assim como potencializou a veneração e o culto de indivíduos cuja fé era considerada heroica. Seguindo novamente a ordem cronológica, situa-se em primeiro lugar o artigo de Eliane Cristina Deckmann Fleck, intitulado “De Apóstolo do Brasil a santo: a consagração póstuma e a construção de uma memória sobre o padre jesuíta José de Anchieta (1534-1597)”. Partindo da análise de três narrativas de vida do jesuíta Anchieta, elaboradas nos séculos XVI e XVII por diferentes membros da Ordem, a autora constata o esforço crescente dos cronistas da Companhia de Jesus em apresentar testemunhos autênticos da fé e das virtudes heroicas de Anchieta, com vistas a favorecer a causa de beatificação, aberta em 1624. Devido à presença de componentes hagiográficos, tais narrativas não podem ser consideradas propriamente biográficas. A autora analisa também os inúmeros obstáculos ao longo do processo de beatificação de Anchieta, que somente foi concluído em 1980. Por fim, analisando diversos outros escritos sobre o jesuíta, publicados nos séculos XIX e XX, a autora também lança luz sobre diferentes apropriações da trajetória de Anchieta, aproximando-a, por exemplo, do projeto de afirmação da unidade nacional.

Inserido na mesma temporalidade do artigo acima, mas tratando do outro extremo do império português, situa-se o texto de Margareth de Almeida Gonçalves, intitulado “‘Despozorios divinos’ de mulheres em Goa na época moderna: eloquência e exemplaridade no púlpito do mosteiro de Santa Mônica (frei Diogo de Santa Anna, 1627)”. No texto em questão, a autora examina um sermão pregado pelo referido frade agostinho durante a inauguração do Mosteiro do ramo feminino da sua Ordem, na capital da Índia portuguesa. No sermão, frei Diogo de Santana aponta para as características exemplares das mulheres que haviam feito os votos solenes da vida religiosa e se tornado “esposas de Cristo”. A narrativa é construída a partir das convenções da oratória sagrada do período, particularmente de analogias retiradas das escrituras sagradas. Assim, o Mosteiro de Santa Mônica aproxima-se do antigo Templo de Salomão, em Jerusalém.

O texto de Célia Maia Borges, intitulado “Os leigos e a administração do sagrado: o irmão Lourenço de N. Sr.ª e a Irmandade Nossa Senhora Mãe dos Homens – Minas Gerais, século XVIII” apresenta a notável trajetória de um irmão da Ordem Terceira de São Francisco que abraça a vida eremítica, tornando-se um ermitão leigo na Serra do Caraça. Desconstruindo uma visão historiográfica tradicional, segundo a qual o irmão Lourenço era fugitivo das perseguições de Pombal, a autora aprofunda a análise das inclinações religiosas do ermitão, próximas das correntes da Devotio Moderna, representadas exemplarmente naquele contexto pelos missionários apostólicos varatojanos, os quais pretendeu atrair para a Serra do Caraça. Paralelamente, a autora analisa as tensões existentes no campo religioso, em que se opunham o projeto do ermitão e as desconfianças do bispo de Mariana, que acabou autorizando apenas a fundação de uma irmandade leiga na Serra do Caraça. Sem dúvida, o texto da autora contribui para preencher uma importante lacuna nos estudos sobre a atuação dos ermitães na América portuguesa, particularmente no que diz respeito ao envolvimento dos mesmos na gestão de lugares de culto.

Passando a tratar das questões atinentes ao clero secular, deve-se mencionar primeiramente o texto de Anderson José Machado de Oliveira, “A administração do sacramento da ordem aos negros na América portuguesa: entre práticas, normas e políticas episcopais (1702- 1745)”. No artigo em pauta, o autor apresenta novas análises a respeito da temática a qual vem se dedicando há alguns anos, a da habilitação à carreira sacerdotal de descendentes de africanos, a partir da pesquisa de centenas de processos existentes no Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. A permissão para que os negros tivessem acesso ao sacramento sacerdotal era rigidamente controlada pela hierarquia eclesiástica, representada pela própria Santa Sé, como também pelos bispos diocesanos, os quais recebiam do papa autorizações temporárias para as dispensas do “defeito da cor”. Conforme assinala o autor, a lógica casuística das dispensas, efetuadas caso a caso, e que levavam em conta as singularidades e qualidades dos ordinandos e das redes de sociabilidade que acionavam, funcionava como um mecanismo de reforço das hierarquias da sociedade escravista e de Antigo Regime. Vale a pena chamar a atenção também para o fato de que a concessão de dispensas variava conforme diferentes políticas episcopais, mais favoráveis a tais concessões no episcopado de D. Francisco de São Jerônimo, e mais raras nos bispados de D. Fr. Antônio de Guadalupe e D. Fr. João da Cruz.

Fundamental para compreender a projeção do poder episcopal sobre o clero secular e os fiéis no Antigo Regime, os juízos eclesiásticos dos bispados têm sido ainda pouco estudados pela historiografia, um hiato que tem sido corrigido pelas pesquisas de Pollyana Gouveia Mendonça Muniz. Em “O Juízo Eclesiástico do Maranhão colonial: crimes e sentenças”, o texto apresentado pela autora para o presente dossiê, Muniz revela a amplitude das esferas de atuação do tribunal diocesano, que incluíam a fiscalização sobre a realização de matrimônios; libelos de divórcio; investigação de delitos de natureza moral, como concubinato e incesto; autos de testamento, conforme foi também analisado nos textos de William de Souza Martins e Claudia Rodrigues, entre outras atividades. A autora mostra como a ação dos juízos eclesiásticos complementou, em cada diocese, o funcionamento do Santo Ofício da Inquisição, atuando como um mecanismo adicional de imposição da disciplina católica às populações do Antigo Regime.

Por fim, dedicando-se ao tema de sua maior especialidade, isto é, a análise das procissões e dos rituais religiosos no Antigo Regime, Beatriz Catão Cruz Santos apresenta o texto “Os ofícios mecânicos e a procissão de Corpus Christi no Arquivo Municipal de Lisboa – séculos XVII e XVIII”. A autora analisa diversos detalhes presentes na organização da procissão, de caráter oficial, do Corpo de Deus, como a convocação do Senado da Câmara de Lisboa e da Irmandade de São Jorge. Na medida em que revelava a aquisição de prestígio social, a participação de diferentes agentes era regulada na procissão por meio de um sistema de precedências, o que não impedia a existência regular de conflitos, cuja ocorrência era por vezes provocada pela manutenção de antigos costumes locais em oposição às normas escritas, conforme se mostrou na contenda entre os oficiais de ourives e o Cabido de Lisboa.

Acreditamos que a reunião destes artigos contribui significativamente para a compreensão das dimensões do catolicismo na América ibérica, entre os séculos XIV e XIX, ao trazer abordagens de questões ainda pouco investigadas, de arquivos e fontes ainda por explorar, demonstrando as potencialidades que a temática das práticas e representações católicas possui na historiografia ibero-americana.

William de Souza Martins

Claudia Rodrigues

Anderson Machado de Oliveira

Célia Maia Borges


MARTINS, William de Souza; RODRIGUES, Claudia; OLIVEIRA, Anderson Machado de; BORGUES, Célia Maia. Apresentação. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.21, n.2, 2015. Acessar publicação original [DR]

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A religião vai à escola pública | Ciências da Religião | 2015

Em 2015, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Roberto Barroso convocou uma audiência pública para discutir o ensino religioso em escolas públicas. Com isso, ele pretendia amparar o parecer que emitiria a respeito da ação direta de inconstitucionalidade (ADI) n. 4.439 pro‑ posta em 2010 pela então vice‑procuradora da República Debora Duprat, visando ao reconhecimento da natureza não confessional do ensino religioso. De acordo com a petição inicial da Procuradoria‑Geral da República (PGR), o ensino religioso deve ser garantido conforme o disposto no artigo 33, parágrafos 1º e 2º, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LBD – Lei n. 9.394/96), e no artigo 11 do anexo do Decreto n. 7.107/2010 (que estabeleceu acordo entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé1 ); não pode, contudo, ser vinculado a uma religião específica, de‑ vendo ser “histórico e doutrinário, com a exposição neutra de todas as principais religiões”. Leia Mais

Políticas católicas: educação, arte e religião / Revista Brasileira de História da Educação / 2015

Os textos apresentados no presente dossiê resultam mais diretamente de pesquisas empíricas e dos debates ocorridos por ocasião do I Colóquio Internacional: Congregações Católicas, Educação e Estado Nacional. Examinam o lugar das políticas católicas na formação cultural de importantes segmentos da população brasileira e se articulam em torno do debate sobre a dinâmica que animou a Igreja Católica na direção de determinado projeto para a modernidade. Nesse sentido, o principal objetivo que alinhava os trabalhos escolhidos para compor este conjunto é a análise de temáticas e hipóteses que perpassam a complexa rede de indivíduos e instituições que constroem e reconstroem, em contextos e temporalidades diversas, as relações entre educação, Igreja Católica e Estado Nacional.

Nestes artigos, os autores aprofundam o debate, enfrentando conceitos polissêmicos como educação, política, arte e religião, de forma a expor aos leitores diferentes olhares sobre as dimensões nas quais se engajaram e se articularam religiosos e militantes católicos comprometidos com a formação de uma república católica. As análises da atuação dos agentes, seja em colégios, seja por meio de obras artísticas ou, ainda, em organizações profissionais e no exercício político dentro e fora da Igreja, dão sentido à unidade de propósitos desenvolvida.

O Brasil conta com mais de 500 anos de catolicismo e este pode ser considerado um dos temas mais estudados no campo das Ciências Humanas. De um largo espaço de atuação nos tempos da colônia, passando pelo padroado controlado pelo Imperador, a Igreja Católica alcança o período republicano com suas Ordens envelhecidas, seus seminários esvaziados e suas ações inibidas, numa sociedade com milhares de pobres e analfabetos.

Na Europa, os tempos são de conflito aberto entre a modernidade e a Igreja, entre o Estado em processo de secularização e a moral cristã inscrita na escola pública. Os dois contextos favoreceram a política do Vaticano para a América Latina. O resultado foi a intensa migração regional de Congregações e Ordens no interior da própria Europa e a imigração para a América Latina, especialmente para o Brasil. Essa circulação internacional traz um considerável contingente de religiosos que reposiciona a Igreja em relação aos estados nacionais. Trata-se de intelectuais – pregadores, escritores, professores, editores, poetas, artistas, políticos, sensores – cujo objetivo maior é a educação das elites e a recristianização de futuros quadros do Estado republicano. Entender os percursos e as ações decorrentes desse movimento na construção da cultura republicana é o objetivo de distintos estudos contemplados no presente dossiê. Nessas trilhas se encontram e confluem novas e antigas possibilidades de análise e ângulos de leitura sobre conceitos e processos, constantemente revisitados.

José Maria de Paiva desenvolve seu artigo, instigado pelas perguntas: que educação se faz hoje e que proposta de sociedade perseguimos? Vai buscar no passado, na ação dos jesuítas, os elementos para alimentar os estudos contemporâneos. Seu artigo, Estado e educação – A Companhia de Jesus: Brasil, 1549-1600, abre o debate, desafiando o leitor à discussão sobre o significado da relação entre educação, religião e Estado nos primórdios da sociedade brasileira. O Brasil quinhentista é abordado nas dimensões teológica, social e política que traduzem, assim, os múltiplos aspectos de um modelo de sociedade fundado em concepções que conformavam a ordem como unidade: o corpo, desenhando a sociedade, e a presença divina, conduziam os entendimentos. O autor considera, nesse aspecto, as atuações e representações que moldam o agir humano.

Para discutir como essa dinâmica se desenvolveu em distintas esferas da convivência social, José Maria de Paiva busca suas causas e fundamentos na releitura das relações entre os jesuítas, a Coroa Portuguesa e as populações que habitaram as terras brasilis. Para tanto, situa a Companhia de Jesus no âmbito dos interesses do Estado Português. Na visão do autor, a divisão político-territorial portuguesa favorecia a legitimação e o predomínio do poder real junto aos senhores de terras, fazendo valer tanto as representações corporativas quanto os interesses mercantis que ditavam as regras do desenvolvimento econômico europeu naquele momento.

Na busca da gênese da tensa relação entre Estado, Igreja e educação, o autor convida o leitor a refletir sobre o predomínio do indivíduo como elemento chave na constituição do Estado moderno. Nesse sentido, sustenta a tese de que o Estado português preserva o entendimento de corpo social numa gestão da sociedade repleta de linguagens afetivas e mercantis. Afirma que esse é o modelo instaurado no Brasil e que é nas relações entre o interesse mercantil e a tradição do senhorio que se deve pensar a educação.

No esforço de demonstrar como o conceito de educação se encontra imbricado às visões de mundo definidoras do lugar a ser ocupado pelos grupos na sociedade colonial, o autor analisa as implicações da missão de evangelizar e cultivar a fé católica no Brasil. A Companhia de Jesus se inscrevia no trabalho de evangelização do índio, na missão de criar um ambiente harmonioso entre os habitantes das terras conquistadas e na formação instituída pelos colégios. Estes últimos, expressão ativa da educação que permaneceu, embora os estudos ocupassem uma posição menor nessa sociedade e fossem um dos instrumentos do plano mais geral da evangelização, serviam ao pleno desenvolvimento das relações mercantis. Ou seja, os colégios tinham função social mais ampla que a dinâmica escolar, entendida no sentido de uma simples formação acadêmica. Nessa reflexão, desloca-se o foco da discussão da forma da organização escolar para a educação e ‘seu objeto: significado religioso, divino’, naquela sociedade quase estática.

No texto Instrução do povo sob a proteção do catolicismo, militância docente e a expansão da escolarização em São Paulo, Ana Regina Pinheiro está atenta às estratégias empregadas pela Igreja para propagar o catolicismo em espaços de formação docente. Para tanto, problematiza a relação da Liga do Professorado Católico de São Paulo – antiga Liga das Professoras Católicas – com a Escola Normal e a Diretoria de Instrução Pública, na década de 1920. Baseada nos resultados parciais de seu estudo, desenha um cenário no qual a religião encontra-se imbricada à política e às reformas educacionais nas primeiras décadas da República.

A autora persegue as permanências presentes no discurso que enaltecia o modelo escolar paulista e idealizava o pioneirismo da escola republicana. No diálogo com a historiografia, assinala que esse discurso foi um dos fatores que alicerçou as estratégias do movimento docente, em São Paulo, na Associação Beneficente do Professorado Paulista (1902- 1918) e, mais tarde, na Liga do Professorado Católico (criada em 1919). Analisa tais anseios como mediações que favoreceram o alinhamento da categoria às diretrizes da Igreja romanizada. Militantes dos movimentos sociais e indivíduos responsáveis pela elaboração de políticas para a área de educação usam discursos e práticas, frutos de habitus construídos nas igrejas e sacristias.

Coerente com essa abordagem, debate o lugar dos educadores católicos na construção da escola pública, no período de laicização do Estado brasileiro. Por meio da leitura da documentação histórica vinculada à Liga, a autora demonstra que setores da Igreja associavam a busca das meninas pelo magistério ao movimento feminista nascente. Sendo assim, para enfrentar o desafio que representava a crescente profissionalização das mulheres, a Liga visava à atrair, para seu quadro de associadas, professoras que fossem católicas praticantes e que exercessem a catequese. O foco de tal exigência era a difusão do catolicismo na escola pública, local onde as ideias laicas ameaçavam a tradição. Analisa, assim, a permeabilidade do discurso católico no processo de escolarização.

Esse contexto de mudanças exigia a proposição de um programa formativo que fora delegado a essa associação. Nesse sentido, advogados, juristas, médicos e professores de reconhecida competência profissional e com forte ligação com o catolicismo eram frequentemente convidados pelos fundadores ou pelo diretor espiritual para atuar como orientadores das associadas em diversas áreas, promovendo, assim, o acesso das professoras à filosofia e moral católicas. Essas manifestações, ao contrário de reforçar a recusa às mudanças advindas do mundo moderno, indicam que a Igreja se mostrava capaz de conduzir o projeto da modernidade.

Na Espanha, como no Brasil e em Portugal, as relações entre a Igreja Católica e o Estado estão tensionadas em torno da disputa pelo direito de fazer a escola. Maria Fernanda Piñero Sampayo, em Evolución y desarrollo de los colegios religiosos femeninos en España, problematiza a ampla articulação política da Igreja a partir da segunda metade do século XIX, em um estudo que revisita a histórica presença dessa instituição na educação. A autora refere-se ao duplo movimento: o processo de fundação e expansão de colégios para a formação de moças e a circulação internacional das Congregações Católicas, ambos favorecidos pelas políticas e pelos acordos de Estado. Ressalta, por outro lado, que a participação majoritária da Igreja no processo educacional se deveu, sobretudo, aos anseios de uma sociedade cujo amparo espiritual e referência moral eram reconhecidamente católicos.

Em seu texto, o lugar da Igreja Católica na educação é tratado como um fenômeno presente desde a fundação das universidades medievais e potencializado pelas Ordens Religiosas que se estabeleceram no território espanhol nos séculos XVI e XVII, tais como a Companhia de Jesus, os Escolapios, as Ursulinas ou a Companhia de Maria. Situação que se manteve inalterada até a primeira metade do século XIX, quando a corrente política anticlerical acirrou o processo de implantação de políticas voltadas à secularização do Estado e da sociedade. Em várias partes da Europa, a Igreja foi forçada a adotar medidas que a recolocariam na liderança nesse novo cenário político e social. A circulação internacional dessas Congregações pelo continente europeu é tratada pela autora ao focalizar o caso da Espanha, que recebeu as congêneres francesas a partir de 1881. A circulação internacional, analisada pelo lado espanhol, confirma hipóteses sobre a política de imigração de Congregações para o Brasil.

A estratégia da Igreja desencadeou uma série de políticas que confluíram para o desenvolvimento de um modelo de ensino organizado para as meninas de classe média. Dentre elas, a Concordata de 1851, permitindo à Igreja se renovar e fundar novas Congregações em território espanhol. Em distintas áreas da sociedade, sobretudo na educação secundária, a Igreja viu-se em situação de quase monopólio. Ao reforçar os termos da aliança dessa instituição com as forças políticas laicas, a autora aborda os conflitos e as contradições que levaram o Estado espanhol a se autoproclamar católico, na Constituição de 1876, e por meio de outras leis, implementadas nesse mesmo período.

Múltiplos fatores que teriam favorecido o desenvolvimento do ensino secundário são explorados no texto, de forma a demonstrar que esse segmento ficou a cargo do investimento privado, primordialmente confessional, enquanto o ensino primário permanecia sob a responsabilidade do poder público. Nesse sentido, foi a demanda social pela formação escolar das moças que favoreceu o surgimento de colégios, em sua maioria, fundados por Congregações de longa tradição, como a Companhia de Maria ou as Ursulinas, dentre outras, de criação mais recente. Essas Congregações tiveram um surto de crescimento entre os anos 1820-1878 e 1883-1905. No geral, eram colégios com várias modalidades de ensino, cujo modelo de educação integral englobava educação moral e conhecimentos práticos adequados às atividades domésticas.

Os textos até aqui apresentados oferecem pistas para se pensar a educação para além dos muros da escola. Ela faz sentido, como se pode ver no texto de Paiva quando conforma um tipo de sociedade desejada, por isso, ela se processa em todos os espaços da cultura. Ela se dá pela educação do olhar feita pelas artes plásticas, pela educação do ouvido por meio da música ou grava-se na memória ao longo da trajetória de vida.

Em Um pintor na Ordem de São Gregório, Godiva Accioly situa o leitor na história e na arte do pintor Carlos Oswald, quando convida a conhecer as incursões desse artista no mundo das artes sacras, fruto de uma formação erudita, conquistada pela circulação em espaços cosmopolitas.

Filho de pai brasileiro, nascido em Florença, Carlos Oswald passou sua infância na cidade natal, conhecido polo cultural para onde convergiam artistas de todas as artes. Nesse contexto favorável, os pintores que cita como grandes influências de sua arte são Pedro Américo, Rodolfo Amoedo, os irmãos Bernadelli, Antonio Parreiras e José Mariano. A autora ressalta que, na fase de formação, o jovem artista foi marcado pela fé cristã. Em suas idas e vindas ao Brasil, se mostrou determinado a continuar no mundo das artes, reafirmando seus laços com o catolicismo. Além de acompanhar regularmente os rituais da fé ao longo de sua trajetória, Carlos Oswald fez parte de várias associações e grupos católicos e ingressou na Ordem Terceira dos Franciscanos em Petrópolis; foi nomeado, ainda, ‘Comendador da Ordem de São Gregório Magno’ pelo Papa Pio XII. Foi escritor e literato, escreveu em várias revistas e jornais. Presidiu a Sociedade Brasileira de Arte Cristã, criada no momento em que as elites católicas buscavam assegurar seu espaço na cultura brasileira, cuja afirmação girava em torno da Semana de Arte de 1922.

Graças aos registros encontrados em cadernos do pintor, onde aparecem suas leituras e aspirações artísticas, religiosas e filosóficas, e aos depoimentos de seus familiares e pessoas de seu convívio, a autora identificou facetas instigantes de suas atividades artísticas, dando significado à sua produção na arte sacra. Examina as relações desse artista com a hierarquia da Igreja Católica e as nuances presentes na conversão da arte em expressão religiosa. Conhecer as dimensões educacionais e políticas da trajetória do pintor Carlos Oswald significa, para a autora, adentrar os conflitos e as inquietações de foro religioso, explicitados em sua disposição apostólica e no conhecimento teológico, que o tornavam um homem de fé.

Nesse sentido, a autora optou por um tom ‘narrativo’, devido ao teor das fontes que principiam e embasam o desenvolvimento dessa reflexão, sendo elas a autobiografia do artista e uma biografia relativa a ele, de autoria de sua filha. Intentou, por meio dessa escolha, a transposição da essência dessas narrativas ao próprio artigo, buscando imprimir a tais fontes a categoria documental necessária à análise histórica, como potenciais fontes de memória.

O vínculo entre a história de vida do artista, assim como do alcance de seu trabalho artístico, e a reflexão acerca da constituição de uma orientação católica sobre as relações entre a arte sacra, cultura e educação brasileiras vem estabelecido na seleção crítica de pontos considerados centrais em meio a tais fontes. Assim, são aspectos da formação e direcionamentos da obra do artista, resultando, dessa maneira, em um determinado tratamento das ‘memórias’ como fontes.

As contradições de um indivíduo que pautou sua vida pela ortodoxia católica, comprometendo-se com o grupo cristão ortodoxo do fim do século XIX e começo do século XX permeiam o artigo. Em 1915, ao pintar os murais da ‘Sala dos Párocos’ do Palácio São Joaquim no Rio de Janeiro – marco de acervo considerável na Arte Sacra no Brasil e no exterior, o pintor inicia seu engajamento na arte cívico-religiosa. Considerava aproximar o católico da fé cristã. Nesse sentido, ressaltava os fins pedagógicos da obra de arte, atento para os atos do Concílio de Trento. Esses elos, que não estão explícitos nos registros, mas são demonstrados com competência pela autora, colocam em discussão a função pedagógica da arte sacra.

No texto Circulação Internacional, Politização e Redefinições do Papel Religioso, Wheriston Silva Neris e Ernesto Seidl analisam as transformações da natureza e das modalidades da ação pública dos Missionários Combonianos do Coração de Jesus – Instituto religioso de origem italiana, que imigrou para o interior do Estado do Maranhão, em 1952. Os autores buscam abordar os efeitos da constituição de uma rede internacional de religiosos missionários para a construção da sociedade moderna. No processo de expansão dessa rede, destacam a delicada adequação da política e dos métodos do empreendimento missionário às condições de acolhimento encontradas no Brasil, bem como os impactos causados na vida política das cidades.

Os autores iniciam problematizando o conceito de missão, empregado no século XVI com o sentido de envio de religiosos para a conversão de povos não cristãos, e culminam, no século XX, apresentando, pelo menos, três sentidos do conceito: o medieval, que nos remete às cruzadas de evangelização ou da conquista; o da missão moderna, que representa a função da Igreja em ‘instruir, cuidar e construir’; e, por último, a concepção de que a Igreja deve difundir a fé em nome da salvação, deslocando o foco do sentido de evangelização ou conversão.

Para os autores, o missionário que atua no Brasil é um mediador e sua experiência constitui-se em expressão da memória, da identidade e das relações de forças locais. O artigo revela que os Combonianos do Coração de Jesus operam um modelo de missão que atua nas fronteiras da evangelização e se organiza em distintos espaços. Passaram por várias transformações desde o século XIX e sua ação correspondia à estratégia de expansão da Igreja, que estendia suas instituições pelos países da África, da Europa e do Continente Americano. O braço feminino dessa congregação também se expandiu na África, na América Latina e no Oriente Médio entre os anos 1930 e 1960.

Nessa perspectiva, os combonianos começaram a se espalhar pelas cidades brasileiras em 1939, sendo São Paulo, Espírito Santo e Maranhão regiões pilares do engajamento missionário. Dados sobre sua atuação demonstram que era incipiente a presença da Igreja Católica na região do Maranhão, restringindo-se, praticamente, à atuação dos Capuchinhos. Além disso, era recorrente o emprego da desobriga, que mobilizava padres a levar a liturgia aos lugares mais afastados onde a instituição ainda não estava organizada. Os contrastes sociais e as péssimas condições de infraestrutura das cidades localizadas no sertão causaram estranhamento aos missionários, principalmente, os contornos peculiares do desenvolvimento no Maranhão, cujo elemento central eram as disputas políticas em torno da propriedade da terra. A distância que percebiam entre as referências europeias e essas condições singulares proporcionou uma experiência religiosa distante dos dogmas do catolicismo romanizado e repleta de referências à religiosidade popular.

As iniciativas dos Combonianos no Nordeste, no que tange à educação e assistência social, na década de 1960, indicam expansão institucional com aquisição de terrenos, investimentos em escolas e projetos educacionais. Estava no horizonte dessa expansão o enfrentamento do analfabetismo, da ausência de cuidados médicos e da insuficiência de instrumentos agrícolas nas mãos dos sertanejos. Condições que atribuem sentido mais amplo ao processo de educação exercido por professoras catequistas que viajavam para as vilas mais populosas, a fim de instruir as mentes e orientar a alma dos homens da roça, ocupando o lugar do Estado na oferta de serviços básicos aos brasileiros.

Finalizando, este dossiê foi organizado para os leitores que buscam a discussão relativa às várias frentes de atuação de religiosos e leigos católicos na sociedade moderna e contemporânea. Pretende ser útil aos pesquisadores que investigam as políticas e práticas da Igreja, sua capacidade de se reinventar a cada novo obstáculo. Situa-se, porém, longe da pretensão de abranger todas as relações, dimensões, contextos que a política católica e as práticas religiosas representam na busca de construção de uma cultura cristianizada. Os artigos aqui apresentados trazem pistas, detalhes, indagações que provocam o leitor a estender seu olhar para além das ações institucionalizadas, revelando brechas documentais, metodológicas e conceituais que poderão ser aproveitadas em futuras pesquisas.

Ana Regina Pinheiro – Unicamp

Agueda Bernardete Bittencourt – Unicamp


PINHEIRO, Ana Regina; BITTENCOURT, Agueda Bernardete. Apresentação. Revista Brasileira de História da Educação. Maringá, v. 15, n. 2, maio / ago., 2015. Acessar publicação original [DR]

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Religião / Estudos Históricos / 2015

Esta edição de Estudos Históricos preenche uma lacuna. Nos 27 anos de publicação da revista, o tema Religião, interdisciplinar por excelência, nunca foi tratado. Campo de investimento intelectual de historiadores, antropólogos e sociólogos – para não citar os teólogos –, religião e religiosidade são áreas de pesquisa que se impõem em contextos nacionais marcados pela colonização, diversidade e sincretismo. No caso do Brasil, um dos caminhos investigativos mais férteis por meio dos quais é possível aceder ao debate sobre identidade e nação passa pela religião – das relações entre Igreja e Estado às distintas matrizes religiosas que conformam nossa identidade cultural, o tema tem sido explorado e revisitado a partir de diversas perspectivas.

O presente número reúne historiadores e cientistas sociais que se debruçaram sobre diferentes objetos, compondo um panorama de análises vasto e multifacetado. A ordem dos artigos revela uma lógica histórica, que vai da Colônia à devoção popular contemporânea, tema do artigo “No sertão e na capital, salve Aparecida: peregrinações em Sergipe do tempo presente”. Em termos geográficos, a maioria dos artigos aborda a realidade nacional, com exceção de duas contribuições – “‘Morta de amor por Deus’: a vida exemplar de Dona Thomázia, uma mulher letrada e devota, que morreu em Lisboa, no ano do terremoto (1755)”, que analisa a produção literária de um frei beneditino lisboeta, e “Disputando a moral pública: a Ação Católica durante o primeiro governo Perón (Tucamán, Argentina, 1946-1955)”.

O tema das missões religiosas é tratado em dois artigos, “Os apóstolos dos sertões brasileiros: uma análise sobre os métodos e os resultados das missões religiosas dos capuchinhos italianos no século XIX” e “Uma Igreja distante de Roma: circulação internacional e gerações de missionários no Maranhão”, enquanto outros dois se dedicam ao vasto campo das religiões afro-brasileiras, ainda que suas abordagens em nada se assemelhem: “A religião dos bantos: leituras sobre o calundu no Brasil Colonial” e “Macumba surrealista: observações de Benjamin Péret em terreiros cariocas nos anos 1930”.

“Cultura confessional e luta por direitos no mundo do trabalho: Belo Horizonte, 1909- 1921” adota a perspectiva de uma história social do trabalho, enquanto “Pensando o Brasil: discurso religioso e prática social segundo Zilda Arns” pode ser lido na chave das análises históricas que tomam a biografia como fio condutor por meio do qual se desvelam práticas e representações sociais. Por fim, “Da tolerância à caridade: sobre religião, laicidade e pluralismo na atualidade” propõe uma discussão conceitual à luz das reflexões do filósofo Gianni Vattimo. Longe de esgotar as possibilidades abertas pelo tema Religião, os dez artigos que ora publicamos nos parecem representativos tanto da tradição desse campo de estudos como de suas fronteiras.

Uma última palavra para apresentar aos leitores duas novidades. Esta edição traz pela primeira vez a seção Colaboração Especial, inaugurada de forma primorosa pelo artigo de José Reginaldo Santos Gonçalves, “O mal-estar no patrimônio: identidade, tempo e destruição”, tema da aula inaugural proferida no Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais do CPDOC. Por fim, apresentamos o novo layout da revista, viabilizado por recursos do Edital de Apoio à Publicação de Periódicos Científicos e Tecnológicos Institucionais, da Faperj. É a segunda vez, desde que foi lançada, que Estudos Históricos passa por uma renovação gráfica. Sem abrir mão da sua identidade visual, o objetivo foi tornar a leitura mais agradável e estimulante. Esperamos que apreciem as novidades!

Luciana Heymann Quillet – Professora da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV).

Marco Aurélio Vannucchi Leme de Mattos – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV).

Paulo Fontes – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV).

Os editores


HEYMANN, Luciana Quillet; MATTOS, Marco Aurélio Vannucchi Leme de; FONTES, Paulo. Editorial. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.28, n.55, jan. / jun. 2015. Acessar publicação original [DR]

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Discurso religioso e seu referente / Revista Mosaico / 2014

A revista Mosaico retoma sua edição com um dossiê temático acerca do discurso religioso e seu referente. O núcleo deste dossiê advém de trabalhos apresentados no mini simpósio acerca da questão no VIII Simpósio Nacional de História e Historiografia, realizado na Universidade Federal de Ouro Preto em 2014.

Não é fácil pensar acerca desta problemática. O antigo positivismo que possuía uma ideia, basicamente, reflexiva da realidade – na qual a mente reproduz fielmente os dados externos – há muito tempo foi colocado em xeque. Contudo, após a crise dos paradigmas dos anos setenta e oitenta, as soluções enquadradas no epiteto “epistemologia pós-moderna” não criaram caminhos profícuos para o conhecimento histórico.

No caso particular dos que investigam a historia religiosa, nenhuma das correntes acima citadas é conveniente. Na primeira, a referência dos discursos e das práticas dos sujeitos religiosos é anulada como algo não pertinente aos métodos científicos de investigação. Por outro lado, as teorias que apontaram a importância do elemento discursivo como constituinte do saber defenderam a elipse do aspecto referencial deste conhecimento.

Portanto, a tendência tem sido avançar por caminhos menos radicalizados e mais plurais de acercamento dos fenômenos religiosos. Se o domínio da realidade e / ou divindade escapa por entre as palavras, não se deve afirmar dogmaticamente sua mudez e / ou inexistência. Afinal, esta força denominada de “sagrado” continua a movimentar as pessoas por todo o globo, sustenta diversas instituições, faz surgir movimentos políticos e modifica intermitentemente a sociedade.

O dossiê inicia abordando um mestre do discurso, aquele que é considerado o maior pregador da língua portuguesa: o padre Antônio Vieira. O artigo de Milton Moura demonstra as estratégias utilizadas pelo sacerdote para ressignificar as experiências temporais e como, para isso, ele se apropria de textos sagrados.

Para o cristianismo, os textos considerados mais sagrados são os Evangelhos, fonte do conhecimento acerca de Jesus. Na liturgia católica, ainda hoje, a assembleia se coloca de pé em reverência para escutá-los. O segundo artigo do dossiê, escrito por Andre Caes e Wesley Alves, trata destes livros, mas não dos que foram incorporados na tradição e passaram a compor a Bíblia Sagrada. O estudo aborda o imaginário criado sobre os evangelhos “apócrifos”, fazendo inclusive uma pesquisa de campo para captar as representações sociais que se projetam sobre tais textos.

Outro trabalho que articula o conhecimento histórico com a realidade contemporânea é o estudo sobre o Caminho de Santiago. Fruto de uma grande pesquisa internacional e interdisciplinar, o artigo aponta a importância dos saberes religiosos, bem como do conhecimento histórico, para os peregrinos que durante todo o ano afluem para aquela cidade espanhola.

O artigo seguinte aborda um limite discursivo, o silêncio e as vozes sobre o morrer no Goiás oitocentista. A pesquisa de Deuzair José da Silva aprofunda nos aspectos simbólicos dos rituais que visam exercer algum tipo de controle sobre o destino da alma. Demonstra como eram importantes os gestos, as falas, o mover das crenças diante da proximidade inelutável do fim.

Os pecados deviam ser confessados periodicamente para que se obtivesse o perdão. Para facilitar, a igreja fez uma lista dos mais comuns, classificando-os em veniais, mortais e capitais. Contudo, sugere Albert Drummond, alguns deles foram transformados em virtudes pela sociedade capitalista. O autor analisa historicamente o tema da preguiça, os valores que lhe foram atribuídos, suas características básicas conforme cada época, concluindo com o que chama de “paradoxo”: na sociedade que coloca o trabalho como centro da vida, a preguiça tornou-se extremamente valorizada.

Ainda abordando aspectos do mundo moderno, o último texto do dossiê dialoga com a teologia ao tratar dos sentidos da palavra deus no pensamento de Paul Tillich. A “morte de Deus” decretada pelo Zaratustra nietzschiano pode ser aceita, sem necessariamente acabar com a vida religiosa, defende o autor Otávio B. Rodrigues da Costa. Portanto, o artigo retrabalha historicamente as noções de secularização e de laicidade, de modo a averiguar as condições de sustentabilidade do discurso teológico nos dias atuais.

Os artigos livres inseridos neste numero tratam de tema bem distintos. O primeiro faz uma introdução à semiótica proposta por Charles Pierce. A meta principal dos autores, Alessandro Aguiar e Eduardo Quadros, é romper com certo medo dos historiadores em dialogar com ciência dos signos e, ao mesmo tempo, demonstrar que esta perspectiva é bem mais “historicizável” que a tradição europeia proveniente de Saussure. O artigo aprofunda a aplicação das categorias piercianas para a análise das fontes fotográficas.

O artigo seguinte aborda o poder dos discursos médicos sobre o corpo das mães. Para Georgiane G. Heil Vázquez, as concepções religiosas acerca da maternidade foram readaptadas aos saberes médicos, fonte importante de poder e controle no século XX, gerando princípios dogmáticos sobre o que seria o normal / saudável e o que seria desviante / doentio. A autora demonstrará, inclusive, que a simples ação de parir será relacionada ideologicamente ao progresso da nação brasileira.

Por fim, a pesquisadora Heliane Prudente estuda a questão do emprego e do desemprego no Brasil atual, enfatizando a problemática situação da juventude goiana para a entrada no mercado de trabalho. O artigo apresenta, com diversos dados, uma série de desafios para construção de nosso futuro, de modo a conscientizar acerca da nefasta herança histórica que deverá ser superada.

A comissão editorial


Comissão editorial. Editorial. Revista Mosaico. Goiânia, v.7, n.1, jan. / jun., 2014. Acessar publicação original [DR]

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Religião, política e religiosidade na Idade Média / História Revista / 2012

A História Revista traz ao público o seu mais recente número, composto por três seções: Dossiê, Artigos e Resenhas. O dossiê Religião, política e religiosidade na Idade Média reúne quatro artigos escritos por pesquisadores vinculados a diferentes Centros de Pesquisas e Universidades brasileiras e argentinas. O artigo de Ruy de Oliveira Andrade Filho, professor e pesquisador na Unesp-Assis, abre o dossiê. Como informa o próprio autor, o artigo intitulado O reino visigodo: catolicismo e permanências pagãs, resgata e amplia algumas reflexões apresentadas no primeiro capítulo de seu recentíssimo livro: Imagem e Reflexo. Religiosidade e Monarquia no Reino Visigodo de Toledo (séculos VI-VIII), publicado pela Edusp, em 2012. Andrade Filho apresenta uma atenta leitura das fontes e destaca a distinção entre “religião” e “religiosidade” ao discutir a convivência do cristianismo com as manifestações do chamado “paganismo” no reino visigodo. O segundo artigo do dossiê, Trabajando para el pueblo de Dios: palabra, ley y clero en el pensamiento de Isidoro de Sevilha (600- 636) é de autoria de Eleonora Dell’ Elicine, doutora em História, docente e pesquisadora na Universidad de Buenos Aires e na Universidad Nacional de General Sarmiento. A partir de uma rigorosa análise das fontes, a medievalista argentina busca, em seu texto, discutir como um programa linguístico se relaciona com uma eclesiología e um plano de governo cristão no pensamento de Isidoro de Sevilha. O terceiro artigo, Épica, memoria e historia. Como los carolingios escriben el mundo, é de autoria do professor da Universidad Nacional de Mar del Plata e da Universidad Nacional del Sur, Gerardo Rodríguez. Em seu artigo, Gerardo Rodríguez apresenta reflexões sobre a construção de uma tradição franco-carolíngia, a partir da análise das relações entre literatura e história, sustentadas em uma profunda discussão teórica e historiográfica. Fechando o dossiê, o artigo O culto a São Tiago e a legitimação da Reconquista espanhola, de Adaílson José Rui, analisa a construção do mito de São Tiago como protetor dos cristãos contra os muçulmanos. O professor da Universidade Federal de Alfenas utiliza ampla documentação e bibliografia para enfatizar as transformações do Apóstolo em guerreiro – em matamoros – e do seu culto, vindo a servir aos propósitos da monarquia castelhana que tinha a Reconquista como uma missão régia.

A seção Artigos, como espaço plural, apresenta uma interessante diversidade de temas e abordagens. Abre a seção, o artigo de Alex Degan, A polêmica entre Yosef ben Mattitiahou ha-Cohen e Titus Flavius Josephus. O professor da Universidade Federal do Triângulo Mineiro e membro do Laboratório de Estudos Sobre o Império Romano (LEIR), revela, na construção do seu texto, uma cuidadosa interpretação das fontes. Em seu artigo, Degan oferece uma leitura da sociedade judaica da Palestina do século I por meio de uma análise da vida e das obras do historiador judeu Flávio Josefo. Em seguida, a seção traz uma contribuição vinda do sul do país: A formação social e cultural no sul do Brasil: a “mancha loira” como um contraponto ao Brasil “mestiço e mulato”, de Maria Julieta Weber Cordova, professora Adjunta do Departamento de Educação da Universidade Estadual de Ponta Grossa. A autora destaca o discurso sobre a “mancha loira” presente na obra de Bento Munhoz da Rocha Netto, Presença do Brasil, como contraponto ao discurso do Brasil “mestiço e mulato”, caracterizado em Casa Grande & Senzala por Gilberto Freyre. Na sequência, Daniela Pereira Versieux, Mestre em Educação Tecnológica pelo CEFET / MG e professora da Fundação de Ensino de Contagem / MG, oferece uma contribuição aos estudos sobre Minas Gerais. Em A fazenda Escola de Florestal: apontamentos sobre a inserção de Minas Gerais na modernidade capitalista, Versieux enfoca a relação da Fazenda Escola de Florestal, fundada no então distrito de Florestal, município de Pará de Minas, em 1939, com o processo de modernização de Minas Gerais. O artigo de Fernando Lobo Lemes, Espera, morte e incerteza: a instalação dos Julgados nas minas de Goiás, explica que a instalação dos Julgados, passo inicial em direção a um ordenamento institucional mais sólido, aparece como estratégia provisória de organização das ações coordenadas por Lisboa nas minas de Goiás. Doutor em História, Lobo Lemes aprofunda os estudos das fontes para propor “uma leitura possível sobre a criação de Vila Boa”.

A seção Resenhas, por fim, traz uma novidade. Pela primeira vez, a História Revista publica uma resenha de Dissertação de Mestrado. Eduardo Sugizaki apresenta a dissertação de Paulo Henrique Costa Mattos, O trabalho escravo contemporâneo: a degradação do humano e o avanço do agronegócio na região Araguaia-Tocantins, defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Eduardo Sugizaki, doutor em História pela UFG e em Filosofia pela Universidade da Picardia Júlio Verne, analisa a dissertação, enfatizando a sua relação com a literatura existente sobre o tema e os métodos empregados por seu autor. Em outra resenha, Rafael Sancho Carvalho da Silva, Mestre em História pela Universidade Federal da Bahia, discute a obra de Luiz Bernardo Pericás, Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica. Rafael Sancho Carvalho da Silva avalia a produção sobre o cangaço para destacar que na obra resenhada o tema foi descrito “sem o peso romântico de outras descrições”.

A História Revista espera estar contribuindo para o debate de ideias, para a circulação do conhecimento e para a congregação de pesquisadores. Que a leitura seja profícua e prazerosa para todos!

 Adriana Vidotte – Editora


VIDOTTE, Adriana. Apresentação. História Revista. Goiânia, v. 17, n. 2, jul. / dez., 2012. Acessar publicação original [DR]

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Religião / Mnemosine Revista / 2011

Afasta-se o tempo em que as percepções mais estreitas das relações sociais e das sociabilidades se animaram por banir ou enclausurar os estudos das histórias religiosas, atribuindo-lhes adjetivos que depunham contra os próprios enunciadores, sobretudo, no contexto de vários cursos de História, quando se manifesta entre os discentes crescentes interesses pelos temas religiosos.

Lembra Gomes (2002), ao referir a emergência da História Cultural como não –sinônimo da expropriação de outras construções dos saberes históricos, que a nova história religiosa que postula a nítida distinção e a inequívoca articulação dos dois campos parece a tendência mais promissora, sem entender articulação como “mixagens semânticas e instrumentalizações indevidas…” e reconhece que a nova história religiosa tenta responder as novas questões colocadas pelos renovados campos da história, multiplicando, desta forma, novos objetos, novas problemáticas, novas abordagens, novas temáticas.

A compreensão de que a grande inovação atribuída à história religiosa, sobretudo, a partir dos anos 80 “está na onipresença, nos novos objetos, nas novas problemáticas, nas novas abordagens para as antigas questões” parece não permitir outra constatação senão a de uma exigência de re-elaborações metodológicas calcadas em uma problematização do objeto mais precisa, cuja agenda mais emergente aponta para a questão da superação dos apriorismos / reducionismos; a possibilidade / impossibilidade de descrições e compreensões valorativas, da significação das autonomias e singularidades da religião, que forja novas identidades a partir de uma compreensão da chamada “função social e cultural” da religião.

Este fato ganha realce, principalmente, se lembramos com Ignasi Saborit que o “… Brasil, onde a religião é protagonista de destaque nas mudanças e conflitos sociais” (SABORIT, 1991, p. 9) [1] , não é compreensível aos seus investigadores sem que se visite “ caserna e a sacristia”. São estas constatações sumariamente descritas aqui que se propôs o aproveitamento de alguns trabalhos elaborados no curso de Pós-Graduação em História, na disciplina História das Religiões e manifestações Culturais no Brasil no Brasil, e de outros pesquisadores que contribuíram com este número da Revista.

Manteve-se o caráter diverso e eclético das contribuições, como indicativo da abrangência do fenômeno religiosose das possibilidades múltiplas no seu tratamento, que vieram desde a visitação ao período da América Portuguesa, até a fé em simbiose com turismo religioso nas múltiplas traduções das religiosidades que circularam entre irmandades religiosas católicas, jesuítas em trânsito, até um olhar anglicano sobre o Brasil oitocentista que nascia.

Nota

1. SABORIT, Ignasi Terradas. Religiosidade na Revolução Francesa. Rio de Janeiro: Imago, 1983.

João Marcos Leitão Santos


SANTOS, João Marcos Leitão. Apresentação. Mnemosine Revista. Campina Grande, v.2, n.2, jul. / dez., 2011. Acessar publicação original [DR]

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Poder e religião na Antiguidade Tardia / Dimensões / 2010

Ao longo das duas últimas décadas, tem-se observado, nos meios acadêmicos brasileiros, um notável aumento do interesse pelos estudos de Antiguidade e Idade Média, como se pode constatar por intermédio da quantidade crescente de artigos, teses e dissertações dedicados à reflexão científica de objetos atinentes às sociedades antigas e medievais, com destaque para as civilizações grega e latina, embora o foco já esteja se deslocando para outras realidades menos estudadas entre nós, como é o caso da egípcia, mesopotâmica, celta, judaica e bizantina. Dentre as razões desse “despertar”, uma das mais importantes é a atuação aguerrida de um conjunto de pesquisadores oriundos de diversas áreas, a exemplo da História, Arqueologia, Letras, Filosofia e Pedagogia, que tem levado a cabo – e com sucesso, poderíamos acrescentar – a tarefa de formar profissionais especializados em uma modalidade de História que, se não espelha a história nacional, posto que a terra brasilis nunca fez parte do Império Romano ou se organizou em termos feudais, como sugeriram, no passado, alguns autores, nem por isso deixa de ser relevante ou significativa pelo simples fato de nos permitir ter acesso a experiências milenares que, embora constituam matrizes quase arquetípicas da História do Ocidente, com a qual muitas vezes gostamos de ser identificados, são diferentes o bastante dos usos e costumes contemporâneos para nos afrontar, confrontar e desinstalar, obrigando-nos a reconhecer que, conforme propôs certa feita Paul Veyne com a sua habitual perspicácia, o estudo da História não implica, a princípio, uma operação de reconhecimento do Eu, pois se assim o fosse bastaria escrevermos a nossa própria biografia para nos apoderarmos do código que rege o presente, o passado e o futuro. Pelo contrário, a História é antes a busca por aquilo que não somos, pela diferença que torna tão interessante as investigações que tem ao mesmo tempo os homens como os seus agentes e pacientes. Leia Mais

História e Religião / Revista Mosaico / 2009

Há muito tempo alguém escreveu que a característica básica do mundo religioso é a presença do sagrado. Este seria meio indefinível, fugaz, mais emocional que racional, algo que ficaria contido nas profundezas subjetivas da fé. As Ciências Humanas, desde os grandes clássicos, tem adotado outra postura, na tentativa de explicar esses mistérios que tanto fascinam os povos.

A história cultural tem renovado o campo dos estudos religiosos. Busca-se o enfoque mais na experiência que nas regras, mais nos sujeitos que nas instituições. Este número da revista Mosaico traz em sua seção Dossiê um conjunto de sete textos enfatizando as possíveis relações entre História e Religião.

No primeiro artigo, Considerações sobre a trajetória inicial da arqueologia bíblica, Gabriella Barbosa Rodrigues e Pedro Paulo A. Funari procuram descrever como os inícios da arqueologia bíblica estão marcados por uma mistura de interesses políticos, econômicos, científicos e apologéticos, que demarcaram a investigação.

No texto Nas catacumbas de Roma: uma ‘história da morte’ para reconstruir vidas, Ivoni Richter Reimer procura mostrar como as imagens e inscrições das catacumbas de Roma preservam a memória de mulheres e crianças e como o uso de referenciais da ‘história da morte’ e da intertextualidade habilita ao entendimento do imaginário, revelando parte da vida destas pessoas no contexto familiar e eclesial.

Wilhelm Wachholz, em seu texto Identidades forjadas na interdependência: o caso católico e protestante no Brasil do século XIX, procura mostrar como a inserção e o estabelecimento do protestantismo no século XIX forjou uma nova identidade religiosa no Brasil. Esta foi construída, basicamente, em embates com o catolicismo romano. Foi, portanto, na différance, que delimita as fronteiras simbólicas de cada um, através de discursos de oposição ao outro.

No artigo Ciência e religião: a relação entre médicos e religiosos no instituto de psiquiatria do HCUSP, Luiza Maria de Assunção busca perseguir a pergunta acerca do nível em que se dá a relação entre ciência e religião na atualidade, por meio de pesquisas sobre a relação da medicina psiquiátrica e com a capelania religiosa do Instituto de Psiquiatria do HCUSP, composta pelo serviço religioso católico e evangélico.

Com o texto Sacerdotisas do Sertão: histórias religiosas, Jocyléia Santana Dos Santos busca narrar a história de mulheres que implantaram a religiosidade da denominação batista entre o final da década de 1930 até o início dos anos 1980 na região norte do estado de Goiás.

Lourival Andrade Junior, em seu texto Acendam seus Cigarros: cigana Sebinca Christo e a religiosidade não oficial, busca como se dá a constituição da religiosidade não oficial no contexto da cidade de Lages, em Santa Catarina, analisando a trajetória da cigana Sebinca Christo e a reverência que ela desperta, principalmente, post mortem.

Por fim, André Luiz Caes, em A “Orientalização do Ocidente”: elementos reflexivos para a compreensão da interação e integração entre os valores religiosos orientais e ocidentais, busca mostrar como no campo de estudo das chamadas Ciências da Religião, nas últimas décadas, a interação entre os valores religiosos ocidentais e orientais tem sido um tema de grande interesse. Ele reflete sobre a tese da “orientalização do Ocidente”, a qual propõe que as crenças e valores religiosos do Ocidente estão em processo de substituição pelas crenças e valores religiosos característicos das religiões orientais.

Na seção Artigos figuram dois textos. No primeiro, “Em busca do tempo perdido”: contribuição ao estudo da cidade contemporânea, Eda Goes aborda a questão da violência, no âmbito dos estudos sobre a cidade contemporânea, buscando demonstrar a importância dos estudos históricos entre as pesquisas interdisciplinares necessárias ao enfretamento da complexidade que caracteriza o urbano. Utilizando principalmente entrevistas, a autora volta sua atenção às representações sociais da violência e a sua expressão, material e simbólica, nas realidades não metropolitanas do Estado de São Paulo.

O segundo texto, de Jales Guedes Coelho Mendonça, intitulado A queda de Bonfim e a escolha prévia de Campinas, aborda também a história urbana. Estuda como foi a tomada de decisão acerca do local para a construção, do que seria, a nova capital do Estado de Goiás.

Na seção de Resenhas, trazemos uma análise da obra Cristianismos no Brasil Central (Editora da UCG, 2008), escrita por Raquel Miranda.

Por fim, na seção Resumos de dissertações, são apresentados os resumos de duas dissertações defendidas no segundo semestre de 2009 no Programa de Pós-Graduação stricto sensu em História na Pontifícia Universidade Católica de Goiás.

Agradecemos a ajuda do academico de direito Cassius Dunk Dalosto pela ajuda na leitura e formatacao dos textos, bem como ao doutorando Claude Detienne pela traducao dos resumos ao inglês.

Desejamos bom proveito na leitura!

Eduardo Quadros – Professor da Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica de Goiás.

Haroldo Reimer – Professor da Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica de Goiás


QUADROS, Eduardo; REIMER, Haroldo. Editorial. Revista Mosaico. Goiânia, v.2, n.2, jul. / dez., 2009. Acessar publicação original [DR]

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Religião e Religiosidade / Outros Tempos / 2008

A Revista Outros Tempos inaugura nesta edição sua nova periodicidade: a semestral. Seguimos publicando artigos referentes a pesquisas desenvolvidas na conclusão de cursos de graduação, ao longo de pós-graduações e na prática cotidiana de professores de IES.

Dando continuidade aos Dossiês Temáticos, apresentamos ao público leitor o Dossiê Religião e Religiosidade que engloba desde artigos que discutem teoricamente o conceito de campo religioso em Bourdieu ; passando por pesquisas de cunho comparativo acerca das concepções de morte no medievo e na atualidade; abordagem do Regulamento das Aldeias; linguagem carnavalesca ou burlesca nos sermões do Padre Antônio Vieira, na América Portuguesa; religião e religiosidades indígenas; até a análise dos usos e funções das imagens na perspectiva da Igreja Católica.

Artigos versando sobre temáticas variadas também compõem este volume: relação entre Irmandades Religiosas e práticas higienistas no Oitocentos; trabalho de rua no Maranhão da virada do século XIX para o XX; condição feminina e prisão na cidade de Fortaleza (1850-1889); diálogos entre História e Literatura na obra da escritora baiana Anna Ribeiro de Araújo Góes Bittencourt; estudo de crises do petróleo no final do século XX; e relação entre Hip Hop e resistência da juventude de periferia na São Luís contemporânea.

Na seção de Documentos publicamos um catálogo de referências acerca da História do Brasil Colonial e História do Maranhão Colonial disponível nos acervos da Universidade Estadual do Maranhão e da Universidade Federal do Maranhão, elaborado a partir de proposta de trabalho desenvolvida em Monitoria de Disciplinas do Curso de Graduação em História da Universidade Estadual do Maranhão. Inauguramos também a Seção de Entrevistas e, aproveitando o clima de discussão advindo dos 170 anos de deflagração da Balaiada, registramos o diálogo com o renomado historiador Mathias Röhrig Assunção, conhecedor profundo da temática em questão.

Boa leitura!

José Henrique de Paula Borralho

Márcia Milena Galdez Ferreira


BORRALHO, José Henrique de Paula; FERREIRA, Márcia Milena Galdez. Editorial. Outros Tempos, Maranhão, v. 5, n. 6, 2008. Acessar publicação original [DR]

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História e Religiões / Projeto História / 2008

Nos anos 80 a historiografia brasileira assistiu à emergência do interesse dos historiadores por temáticas relacionadas com igreja, catolicismo e com as práticas e crenças religiosas tanto no passado colonial como no século XIX e XX. Rompia-se assim com certo desinteresse dos historiadores e historiadoras leigos de formação acadêmica com respeito ao religioso, constituindo uma alternativa à abordagem representada por uma historiografia de caráter eclesiástico (por vezes mais identificada com a instituição, por vezes crítica como a CEHILA), gerada ao interior das igrejas católica, metodista, luterana, baptista.

Tal interesse de novas gerações de historiadores se configurou claramente no levantamento feito pela ANPUH sobre a produção dos programas de pós-graduação na segunda metade dos anos 80 e na primeira metade dos anos 90, onde se constou um número expressivo de dissertações e teses sobre a temática religiosa. Embora se abordasse outras igrejas além da católica e outros aspectos além dos eclesiásticos, ainda se tratava de uma historiografia definida pelo estudo do cristianismo, em particular da igreja católica e de forma especial as relações desta com o Estado. Também essa primeira historiografia acadêmica se esforçava por localizar as igrejas no seu contexto histórico e por abordá-las a partir das relações travadas ao interior dos diversos grupos sociais.

Nesse início do século XXI a produção historiográfica a respeito do religioso não apenas se manteve, mas vem se ampliando regionalmente e diversificando seus temas, recortes e períodos. Expressivas revistas de História, como a Revista Brasileira de História, editada pela ANHPU ou a revista Tempo, da Universidade Federal Fluminense, só para mencionar algumas, dedicaram no início dos anos 2000 números centrados em temáticas relacionadas com religião. Em 2008 foi fundada a revista eletrônica, Revista Brasileira de História das Religiões, que tem editado três números por ano.

Na procura de espaços próprios para discutir a pesquisa, surgiu em 1999, por iniciativa de historiadores de diversas universidades, a Associação Brasileira de História das Religiões, associada à International Association for History of Religions, que até agora constitui um importante espaço de apresentação de pesquisas que envolvem o tema, abordadas desde a História, a Sociologia, a Antropologia e as Ciências da Religião.

Finalmente, em 2005 foi constituído ao interior de ANPUH o GT História das Religiões e das Religiosidades que tem-se reunido todos os anos com um número sempre crescente de comunicações sobre aspectos religiosos desde uma perspectiva histórica. Ainda, desde 2003 se realiza em Mato Grosso do Sul, a cada três anos, um Simpósio Internacional sobre Religiões, Religiosidades e Cultura, onde a presença de historiadores é expressiva.

Para o simpósio de ANPUH de 2009 em Fortaleza, foram aprovados seis simpósios centrados em análises sobre religiosidades, nos quais deverão ser apresentados mais de cem trabalhos que, além dos temas já conhecidos, devem incluir comunicações sobre religiões de origem africana, espiritismo, pentecostalismo, outras e novas práticas religiosas. Todas as regiões de Brasil aparecem através de trabalhos, que apontam para grupos consolidados, que há tempo participam dos simpósios das regionais de ANPUH. Também os períodos estudados se diversificam acontecendo o mesmo com as abordagens teóricas e metodológicas. Em grande parte essas comunicações serão apresentadas por jovens historiadores, homens e mulheres, sendo que muitos deles não seguem em termos de fé as tradições religiosas que estudam. Se isto pode ser explicado como decorrência da criação de mais cursos de pós-graduação em História nas diferentes regiões do Brasil, aponta também para o que vimos insistindo: a manutenção do interesse pela temática religiosa nas novas gerações de historiadores e historiadoras, independente de crenças ou seguimentos religiosos.

Outro fator que pode explicar o interesse crescente dos pesquisadores sobre a área é a aparente contradição entre a diminuição gradativa do que poderíamos denominar religiões tradicionais no Brasil – o catolicismo, o luteranismo e a umbanda –, conforme veem apontando todos os censos realizados nos últimos anos, e o vertiginoso crescimento do sentimento de religiosidade expresso na busca pelo sagrado, pelo divino, pela espiritualidade. Tal fenômeno, afirmam os estudiosos, não se expressa apenas no Brasil, configurando-se como um fenômeno mundial. Daí a questão: constitui tal religiosidade um contraponto a um mundo cada vez mais racionalmente explicado, o fenômeno do “desencantamento do mundo” explicado por Max Weber, ou expressa uma insegurança ante a dimensão do ainda incognoscível? Ou do irracionalismo em suas formas mundanas que atravessa a crise estrutural da sociabilidade do capital? Confunde-se com a busca de um mundo mais humanista, ante a desagregação das relações societárias, ou trata-se da manifestação de uma espiritualidade inerente à condição humana?

Pois no mundo de hoje tal ressignificação do campo do religioso, cujo entendimento a pesquisa busca, se expressa em crenças, conceitos, valores e práticas cujas denominações são tanto difusas, quanto novas ou remontam à tempos muito remotos. Se no século XIX a perspectiva da separação entre o mundo privado e o público levou a institucionalidade religiosa a se confrontar com o Estado que se pretendia laico, naquele mesmo momento, já apontava o autor, tal perspectiva se punha como um falso teorema, pois o Estado era inerentemente religioso, se a população se mantivesse crente.

Tantos e tais dilemas são os que confrontam os analistas e, cuja produção, aqui no Brasil, nos remete a uma outra ordem de questões: há no Brasil um campo de produção do conhecimento que possa ser nomeado de História das Religiões? A produção historiográfica destes 20 anos aponta para um método que se possa diferenciar do utilizado na produção da História Cultural ou das abordagens feitas pelas Ciências da Religião? Os historiadores que trabalhamos com religião teríamos condições de apontar para especificidades que caracterizariam os percursos históricos das religiões entre nós? Interessa para os historiadores que pesquisamos sobre religiões no Brasil nos inscrevermos numa das tradições que se definem como História das Religiões?

Estas indagações, perseguidas a cada ano no contexto da disciplina História das Religiões no Brasil e na América Latina, no Programa de Pós-Graduação das Ciências da Religião da PUC, originaram, entre outras idéias, a de propor aos editores da Revista Projeto História, do programa de pós-graduação em História da PUC-SP, um número com o eixo História e Religiões. Estas perguntas a propósito de nosso campo historiográfico guiaram também a organização do Dossiê, adotando-se três critérios para selecionar os artigos: artigos gestados a partir de pesquisa ou reflexão teórica e metodológica de caráter historiográfico; artigos com reflexões teórico metodológicas que reflitam os diversos entendimentos que existem entre nós do que supõe fazer história das religiões; artigos que contemplem diversas religiões no Brasil, diversos períodos e diversas regiões.

Assim, no primeiro bloco deste número da Revista Projeto História reunimos quatro artigos com preocupações teórico metodológicas que apontam para duas tradições ou formas de abordar a História das religiões na Europa. Os artigos de Luiz Alberto Sciamarella Santanna, Virgínia A. Castro Buarque, Antonio Paulo Benatte, dialogam com autores franceses, em grande parte conhecidos dos historiadores brasileiros. Já, Adone Agnolin, examina as contribuições para o estudo das religiões da chamada escola de Roma ou escola italiana da História das Religiões, que muito pouco conhecida entre nós. Para auxiliar no entendimento desta história das religiões italiana, realizamos também uma entrevista (que abre o número) com Nicola Gasbarro, professor da Universidade de Udine e um dos atuais maiores expoentes dessa escola. Esperamos que estas contribuições possam auxiliar na reflexão teórica a propósito da História das religiões e se juntem a outros materiais já existentes.

Dando seqüência, outro conjunto de artigos foi escolhido por demonstrar como os historiadores estão trabalhando as diversas religiões e em distintos períodos. Dois deles, o de Juarez Donizete Ambires e o de Lina Gorenstein, se localizam no período colonial, o primeiro analisando as práticas e representações da sociedade na América Portuguesa no final do século XVII, através dos textos de dois jesuítas, padre Vieira e padre Antonil. Já Lina Gorenstein, examina, praticamente no mesmo período, a situação do criptojudaismo feminino no Rio de Janeiro. A seguir se encontra um conjunto de artigos sobre o século XIX e o início do século XX. O primeiro de Vanessa Ribeiro Simon Cavalcanti e Bárbara Maria Santos Caldeira que, servindo-se da imprensa, recuperam a visão que se tinha da procissão do Senhor Morto na Bahia do século XIX. Depois Roberto di Estefano, desde uma perspectiva ibero-americana, examina as dissidências religiosas e a secularização no século XIX. Ainda, Lyndon de Araújo Santos, também na perspectiva da América Latina, dá continuidade ao artigo anterior avançando no tempo, ao examinar os usos e sentidos conferidos ao protestantismo e a modernidade na transição do século XIX para o XX.

No artigo seguinte Arhur Cezar Isaia, trabalhando com fontes relativas à Umbanda, aponta para as relações ali evidenciadas entre ética e religião. Outros dois artigos abordam aspectos do catolicismo contemporâneo: o de Marcos Cezar de Freitas se refere à presença da religião na configuração do campo religioso brasileiro e o da Solange Ramos de Andrade trata da dimensão martiríal das recentes devoções populares. Finalmente José Otávio Aguiar e Rodrigo Wolff Apolloni, trabalhando também com o século XX, introduzem a consideração de outra expressão religiosa presente entre nós: o budismo, considerado através da influência nas artes marciais da tradição do mosteiro de Shaolin no Brasil.

Pretendemos suprir carências de artigos sobre religiões como o Candomblé e outros importantes universos religiosos, com as comunicações de pesquisa e as resenhas. Esperamos assim estar, pois, contribuindo para a consolidação e o fortalecimento da pesquisa em História das Religiões.

Fernando Torres-Londoño

(Organização)


TORRES-LONDOÑO, Fernando. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 37, 2008. Acessar publicação original [DR]

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Religião, poder, civilização e etnia na cidade colonial / Urbana / 2006

Durante muito tempo, a cidade colonial foi vista pela historiografia como espaço da desordem, do desleixo e da anomia. Para muitos também a cidade era uma exceção no espaço da América portuguesa, eminentemente rural, ou dominada pela natureza selvagem do continente. A partir da década de 1980, todo um debate se constituiu em torno da ordem ou desordem dos núcleos urbanos portugueses na América, com a contribuição de historiadores, geógrafos, arquitetos, antropólogos etc. Trabalhos importantes demonstraram como estas imagens, carregadas de preconceitos em alguns casos, não podiam ser estendidas a todas as cidades portuguesas de ultramar, sobretudo a partir do século XVIII, com o governo pombalino. A reconstrução de Lisboa após o terremoto de 1755, a construção de novas cidades planejadas no reino, como Vila Nova de Santo Antônio, ou no Brasil, como na Amazônia ou no Mato Grosso, por exemplo, demonstram como normas de construção ordenadas e preocupações com simetria, higiene, localização dos sítios urbanos não eram desconhecidas nem desprezadas pelos lusitanos.

Como o objetivo da Revista Urbana é tematizar a cidade nos diversos campos do conhecimento, sobretudo na História, escolhemos justamente a cidade colonial como tema de nosso primeiro número. Com o dossiê Religião, civilidade e etnia na cidade colonial, mais do que limitar a temática das contribuições, pretendemos justamente demonstrar a multiplicidade das pesquisas atuais com relação a esta cidade, que refletem exatamente a multiplicidade de registros e experiências presentes numa cidade construída em contexto colonial, na qual conviviam diversas etnias, com diferentes formas de vida e civilização, estatutos jurídicos e sociais próprios, homens livres e escravos, além dos libertos, uma administração dividida entre poderes laicos e religiosos, que por vezes trabalham juntos, por outras passam por importantes conflitos. Sem esquecer de que estas cidades são, muitas vezes, instrumentos de conquista nas quais determinados povos e homens deveriam ser dominados e inseridos na cultura da Metrópole mas também das elites locais que efetivamente administravam-nas. Nesse sentido, tanto a religião como a civilidade, tão importante sobretudo para os administradores ilustrados do século XVIII, são entendidas aqui como instrumentos de enquadramento e controle destas populações de índios, africanos, mestiços e livres pobres.

Nestas cidades, a aparente desordem, que tanto chamou a atenção quer dos governadores portugueses, quer dos viajantes ou da historiografia, indica a presença destas formas de dominação e controle e, também, das resistências a elas. Portanto, com este dossiê, pretendemos ir um pouco além do debate ordem / desordem, buscando estas formas de ordenamento jurídico, social, espacial etc., que não têm relação ainda com uma racionalidade urbanística criada apenas no século XIX.


TORRÃO FILHO, Amilcar. Apresentação. Urbana. Campinas, v.1, n.1, 2006. Acessar publicação original [DR]

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Religião e sociedade: o espaço do sagrado no século XXI / História – Questões & Debates / 2005

Desde 2003, um grupo de pesquisadores, cujo tema central era a religião, as religiosidades e as instituições religiosas em suas mais diversas modalidades, começou a se reunir aos sábados para trocar informações, discutir teorias, abordar metodologias e explorar fontes e análises sobre o tema. No começo andávamos pela UFPR, pela PUC e por outros espaços sem nos incomodarmos com o conforto do lugar. Alguns se agregavam, outros abandonavam o grupo, até que no dia 20 de maio de 2004, num sábado pela manhã, resolvemos fundar o NÚCLEO PARANAENSE DE PESQUISA EM RELIGIÃO – NUPPER.

Com o objetivo de congregar pesquisadores para estudos e pesquisas multidisciplinares e multitemáticas em religião e suas derivações, o Nupper estabelecia uma programação composta de leituras, apresentação de trabalhos, realização de seminários, publicação de textos, entre outras atividades. Sua característica central é a pesquisa e a discussão de temáticas ligadas às instituições religiosas, religião e manifestações de religiosidades.

Ainda em 2004 realizamos o I Seminário Nacional sobre “Religião e Sociedade: o espaço do sagrado no século XXI”, com sessões de estudo e relatos de pesquisa que se estenderam por quatro meses, alternando terças-feiras no período da noite. Na continuidade, em 2005, organizamos o II seminário com o mesmo tema, concentrando suas atividades numa sexta-feira à noite e num sábado em período integral. Sentindo a demanda dos participantes e o anseio por um espaço para apresentação de pesquisas, neste ano de 2006 o III Seminário prevê a possibilidade de que um público maior apresente suas pesquisas.

Parte do resultado dessas pesquisas e das discussões está sendo agora apresentado neste dossiê. Como se pode observar, preserva-se o caráter abrangente dos temas, os quais, além das abordagens teóricas, revelam também as opções metodológicas de seus autores.

Doze pesquisadores em nove artigos nos instigam a pensar e a refletir sobre a historicidade das questões da religião e da religiosidade e suas permanências na contemporaneidade. Perpassa por estas temáticas um conceito central: O SAGRADO. Moojan Momen, no seu texto, parte da tese de que os seres humanos criam a realidade socialmente e de forma comunal, e que a estrutura social organizada hierarquicamente tem sido o padrão para os seres humanos, em especial os que vivem nas cidades. Examina as tentativas da comunidade bahá’í para mudar esta realidade e como os seus ensinamentos criticam este padrão, considerando-o responsável pela competição e agressão que atualmente afligem o mundo com doenças como guerras (devido à competição entre nações), degradação do meio ambiente (devido à competição empresarial), o domínio das elites sociais e as agressões em relação às mulheres, classes sociais inferiores e minorias étnicas. Euclides Marchi resgata algumas concepções de sagrado e procura verificar como elas se articulam com a prática da religiosidade. Ressalta que, apesar dos avanços e das conquistas da ciência, o sagrado e a religiosidade continuam presentes e se afirmam como formas de vivenciar a religião para significativa parcela da população humana. Uipirangi e Edilson mostram as diferentes abordagens sobre o protestantismo no Brasil, em especial quanto às peculiaridades de sua relação com o sagrado. Para isso, trabalham com o diálogo entre a História e as Ciências da Religião, privilegiando a abordagem de uma sociologia compreensiva, fundamentando suas idéias nas teorias de Maurice Halbwachs e Paulo Barreira. Vera Irene aborda algumas questões do universo das práticas religiosas tidas como populares e suas representações simbólicas do sagrado, dando destaque para o trânsito contínuo e intenso entre o institucional e o desclericalizado. Usa como exemplo as Folias de Reis, a Festa do Divino Espírito Santo e o Círio de Nazaré, as quais, além de revelarem um rico campo de investigação, também permitem perceber nela uma forma de expressão da fé. Roseli Boschilia elucida a aposta feita pela Igreja Católica na juventude como a camada social capaz de viabilizar o projeto reformista e como a educação constitui um mecanismo eficiente para frear os avanços da modernidade. Reflete sobre a política implementada pela Igreja Católica ultramontana na construção de um discurso em que o jovem aparece como o depositário das esperanças de sedimentação de valores e costumes, elegendo-o como um dos elementos capazes de evitar as mudanças e manter a tradição. Sylvio Gil e Sérgio Junqueira discutem, a partir de uma perspectiva histórica, a crise epistemológica do ensino religioso no contexto educacional do Brasil. Explorando o debate recente e o redimensionamento do objeto da disciplina “Ensino Religioso”, apresentam a discussão do pensamento e a análise do discurso religioso mostrando que a escola é um espaço privilegiado para a compreensão do sagrado em nossa sociedade. Agemir Carvalho e Valdinei Ferreira trazem sua contribuição por meio de um estudo que tem como objetivo identificar as raízes da cooperação entre as igrejas evangélicas de Curitiba, as quais remontam às missões norte-americanas e ao movimento unionista. Usam como exemplos desta cooperação a Sociedade Evangélica Beneficente e a Campanha Pró-Hospital Evangélico, cuja construção e sucesso no trabalho voltado para a sociedade são considerados como aspectos da identidade evangélica e como a face filantrópica e moderna dos evangélicos paranaenses. Victor Augustus nos apresenta a análise dos efeitos de sentido do discurso “Admoestações”, de Francisco de Assis, ressaltando o contexto sócio-religioso por ele vivido, o esforço para transformá-lo e o novo mundo que almejava construir na sociedade urbana medieval de sua época. Busca compreender a atualidade de Francisco, homem do século XIII, considerando-o como fundador de um discurso e como exemplo de perfeição cristã a partir de um modo de vida de pobreza voluntária e de serviço aos excluídos sociais. Névio Campos analisa a trajetória, os debates e os projetos dos intelectuais católicos leigos em torno da temática educativa à luz do contexto histórico paranaense entre os anos de 1920 e 1930. Mostra o processo de constituição do grupo, as suas interlocuções com as vertentes teóricas e filosóficas, as suas idéias e intervenções culturais, suas relações com o Estado e com os grupos políticos no cenário paranaense. Apoiando-se nos periódicos escritos e dirigidos pelo grupo, ressalta as contribuições do laicato ao projeto romanizador da Igreja Católica.

Cabe um agradecimento especial aos demais companheiros do Nupper, que colaboram para que o núcleo continue crescendo e se consolide como um espaço de pesquisa, discussão e troca de experiências. Àqueles que, embora participando ativamente de todas as atividades, não estão relacionados neste dossiê, gostaríamos de ressaltar que sua ausência é mera circunstância do acaso. Não faltarão oportunidades para que apresentem seus trabalhos.

Euclides Marchi – Membro do NUPPER


MARCHI, Euclides. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.43, n.2, jul./dez., 2005. Acessar publicação original [DR]

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Tempos do Sagrado / Revista Brasileira de História / 2002

O dossiê Tempos do Sagrado que a Revista Brasileira de História ora publica responde ao crescente interesse demonstrado pelos historiadores por temas relacionados à religião e religiosidade. Prova disto é o fato de duas importantes revistas da área — Tempo e Estudos de História — terem organizado recentemente edições em torno dessas questões. A contribuição de nossa revista se apresenta marcada por uma particularidade: as temáticas abordadas, sempre baseadas em pesquisas originais se estendem por diversos tempos históricos, entre os séculos XIII e XX.

Os três primeiros artigos formam um grupo dedicado a pensar os conflituosos encontros entre, de um lado, europeus católicos e, de outro, indígenas, negros e judeus. Fernando Torres Londoño analisando as cartas escritas pelos missionários a seus superiores, no eixo formado por Portugal, Itália, Índia e Brasil, mostra como foi construído e definido o projeto jesuítico missionário para a evangelização dos indígenas, com base nos escritos de Santo Inácio de Loyola. O texto de Alisson Eugênio discute as vivências culturais de negros que se associavam em irmandades religiosas em Minas Gerais do século XVIII, desvendando as tensas relações entre a Igreja e as irmandades negras, atravessadas por uma complexa gama de práticas, que iam das negociações às ameaças, especialmente no referente aos recursos financeiros para as festas. O artigo de Ângelo Adriano Faria de Assis, tomando a Visitação do Santo Ofício, entre 1591 e 1595, pesquisa as resistências judaicas no Brasil colonial do século XVI. Demonstra como, entre os neoconversos, as mulheres — tornadas guardiãs das tradições religiosas após a proibição do exercício público do culto judaico — foram as principais acusadas pela Inquisição.

Segue-se o estudo de Néri de Almeida Souza que analisa a Legenda aurea (coletânea de 182 legendas baseadas em vidas de santos e em mistérios do ano litúrgico cristão), organizada a partir de diversas fontes pelo dominicano Jacopo de Varazze, no século XIII. A autora enfatiza as diferenças entre a cultura religiosa erudita escrita pelos grandes teólogos e seus leitores muito menos instruídos, situando Jacopo de Varazze no quadro dessas disputas. Fechando o dossiê, Etiane C. B. de Souza e Marion B. de Magalhães apresentam os movimentos pentecostais latino-americanos na atualidade. Indicam como tais movimentos exerceram forte atração sobre as camadas mais pobres da população, de forma a inaugurar uma prática religiosa singular. Também discutem as relações particulares entre os pentecostais e o mundo da política institucionalizada.

Cinco outros artigos sobre temáticas diversas e originais completam esta edição. O estudo de Hendrik Kraay analisa o recrutamento de escravos e de homens de cor livres ou libertos para fazer parte das forças que lutaram contra os portugueses na Bahia, em 1822 e 1823. O artigo também apresenta a participação desses soldados negros no Levante dos Periquitos, em 1824, e a repressão por parte do governo imperial. O texto de Johnni Langer refere-se à construção do mito da cidade perdida da Bahia, a mais conhecida fábula arqueológica do Brasil. Esta se inicia com a entrega ao IHGB de um manuscrito encontrado por Manuel Ferreira Lagos, na Livraria Pública da Corte, em 1839, que discorria sobre a descoberta de minas de prata no interior da Bahia, no século XVI. O artigo de Vânia Maria Losada Moreira estuda o impacto da Lei de Terras de 1850 sobre os direitos territoriais indígenas. Trabalhando com o Espírito Santo, mostra como a Lei propicia a expulsão das populações de índios de suas terras, fechando-lhes praticamente todas as alternativas de acesso à propriedade. O artigo de Micol Seigel e Tiago de Melo Gomes trata do desalojamento, em 1889, de uma quitandeira, a Sabina das Laranjas, da porta da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, lugar em que costumava trabalhar. Apresentando a reação em favor da mulher por parte dos estudantes, os autores discutem as práticas cotidianas raciais e de gênero. O artigo de Luis Fernando Cerri está centrado nas relações entre propaganda, política e ensino de História. Escolhendo peças publicitárias de instituições públicas e privadas durante a ditadura militar brasileira, particularmente durante o chamado “milagre econômico”, o autor analisa esses anúncios e os toma como ponto de partida para ouvir pessoas comuns em torno da questão da identidade nacional. Este número traz, ainda, um conjunto de resenhas que, sem dúvida, serão do interesse do leitor.

Um mea culpa se faz necessário. No último número da RBH, por razões técnicas, foram omitidos, na relação dos nomes que compõem nosso Conselho Consultivo, os dos professores Luís Reis Torgal e Serge Gruzinski que, no entanto, continuam a nos honrar com seu apoio. Erro corrigido nesta edição.

Finalmente agradecemos, mais uma vez, ao CNPq pelo auxílio recebido, sem o qual esta publicação não seria possível.

Conselho Editorial


Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.22, n.43, 2002. Acessar publicação original [DR]

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História e Religião / História Social / 2000

Com este sétimo número, a revista História Social, dirigida e editada pelos alunos do Programa de Pós-graduação em História da Unicamp, apresenta algumas importantes alterações que já tinham sido propostas em números anteriores: um novo Conselho Editorial, renovado anualmente, maior abertura à colaboração externa, ou seja, a publicação de artigos de alunos e de profissionais de outras instituições acadêmicas e não apenas daqueles ligados ao programa da Unicamp, bem como a abertura para novos e instigantes temas, além dos normalmente privilegiados pela revista.

Como em outros números, o principal objetivo deste foi o de divulgar, cada vez mais, trabalhos inéditos e de qualidade, que se inserem no debate historiográfico brasileiro. Com esse intuito, trazemos em torno do dossiê História e Religião importantes questões teóricas e metodológicas para o debate não só das relações entre a(s) História(s) e as Religiões, como inquietações de historiadores que se preocupam com a religiosidade brasileira, com as experiências de vários sujeitos históricos e com os discursos que produzem diversas — e muitas vezes contraditórias — realidades a serem analisadas e desconstruídas. Como se poderá ver neste número e nos seguintes, História Social, sensível aos novos temas e aos novos olhares, apresenta objetos, fontes, desafios e reflexões que se esforçam em oxigenar o debate e abrir perspectivas de pesquisa e escrita ao historiador.

No Dossiê História e Religião, Renata Cardoso Beleboni apresenta sua entrevista com Jean-Pierre Vernant sobre o homem grego e seu espírito livre. Anderson J. Machado de Oliveira propõe uma reflexão sobre o papel da Festa da Glória como elemento de resistência cultural no Segundo Reinado, na cidade do Rio de Janeiro. Anna Paola P. Baptista expõe e analisa as novas interpretações aos valores espirituais, tradicionalmente compartilhados pelo catolicismo ocidental, oferecidas pelas obras de arte sacra na primeira metade do século XX. Gláucia Regina Silveira, inspirada pela oposição entre o racionalismo e o espiritualismo no século XIX, mostra a aliança estabelecida entre a prática médica e o mundo fora da matéria. Marcia Janete Espig aborda aspectos do Milenarismo, próprio ao movimento do Contestado (1912- 1916), relacionando-o a elementos importantes de seu imaginário. Marilda Santana da Silva discute o envolvimento de algumas mulheres das freguesias de Minas Gerais colonial com o Tribunal Eclesiástico, ali instalado em 1745 com a criação do Bispado de Mariana. Marta Rosa Borin, para problematizar alguns dogmas católicos e algumas práticas que a Igreja, após o Concílio Vaticano II, queria esquecer, mas que o movimento de Schoenstatt insistia em manter vivas, analisa a perseguição a João Luiz Pozzobon.

Na seção “Artigos”, Eliana Almeida de Souza Rezende discute as concepções de higiene, cidade e indivíduo, em voga no começo do século XX em São Paulo, a partir de imagens produzidas pelo doutor Geraldo Horácio de Paula. John D. French utiliza o método de estudo de comunidade para investigar a participação feminina de base na política e na mobilização da classe operária após a Segunda Guerra Mundial, na região da Grande São Paulo. João Fábio Bertonha apresenta aspectos da vida e do pensamento de Francesco Frola e sua importância dentro do movimento antifacista italiano mundial e, especialmente, no Brasil. Silvia Helena Zamirato faz uma reflexão sobre as mudanças que a cidade de São Paulo experimentou no período de 1930 / 1940, quando novos personagens fizeram-se presentes em suas ruas, engrossando as fileiras da miséria urbana.

Este número conta ainda com a apresentação dos arquivos do poder legislativo por Dainis Karepavs, além de resenhas e comentários de livros recentemente lançados que discutem variados temas da historiografia brasileira. Finalizando, recebe destaque a relação de dissertações e teses defendidas no Programa de Pós-graduação em História da Unicamp e os resumos e abstracts dos artigos apresentados pela revista.

Agradecemos a todos que participaram conosco deste sétimo número da Revista História Social.

O Conselho Editorial

Conselho Editorial. Apresentação. História Social. Campinas, n.7, 2000. Acessar dossiê [DR]

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