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In Search of the Amazon: Brazil, the United States, and the Nature of a Region – GARFIELD (RBH)
GARFIELD, Seth. In Search of the Amazon: Brazil, the United States, and the Nature of a Region. Durham: Duke University Press, 2014. 343p. Resenha de: DUARTE, Regina Horta. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.34 n.67, jan./jun. 2014.
Nas primeiras páginas de seu livro In Search of the Amazon, Seth Garfield evoca os antigos relatos de exploradores – narrativas emocionantes de jornadas hercúleas – para apresentar sua própria empreitada de anos de investigação sobre a Amazônia. As narrativas antigas de viagens às quais o autor alude, entretanto, representavam o meio tropical por meio de identidades bem estabelecidas e contrapostas ao mundo europeu, fundando mitos e firmando preconceitos. Diferentemente, estamos agora diante de uma refinada reflexão histórica que nos incita a questionar o que sabemos sobre a Amazônia. Com ele palmilhamos – página a página – as trilhas construídas no passado por diversos atores históricos, continuamente refeitas e redirecionadas no jogo dos enfrentamentos sociais e políticos. Munido de minuciosa pesquisa documental e disposto a trilhar territórios inexplorados, Garfield desmonta armadilhas de pretensas identidades, conceitos e representações arraigadas. Demonstra como a busca bem-sucedida de uma essência da Amazônia implica a conclusão de que ela não tem essência alguma, pois é lugar historicamente produzido em intricadas relações sociais de escalas locais, regionais, nacionais e globais. Com guia tão perspicaz, torna-se uma aventura intelectual estimulante adentrar a floresta. Garfield integra a melhor estirpe de historiadores, pois, como disse Marc Bloch (s.d., p.28), “onde fareja a carne humana, sabe que ali está sua caça”.
O tema da exploração da borracha na Amazônia brasileira no período do Estado Novo conduz o livro. A despeito de referenciar continuamente os tempos áureos dessa commodity no Brasil entre 1870 e 1910, e dedicar o epílogo às representações e práticas que delineiam a Amazônia desde os anos 1970 até os dias de hoje, o foco principal concentra-se nos anos da Segunda Guerra Mundial. O contrabando de sementes da Hevea brasiliensis, a seringueira, para o sudeste da Ásia, em 1876, e o sucesso das novas plantações nas primeiras décadas do século XX estabeleceram uma competição internacional na qual o Brasil saiu derrotado: no início dos anos 1930, a Amazônia produzia menos de 1% da borracha consumida no mundo.
Entretanto, com o lançamento da Marcha para o Oeste como projeto de integração nacional por Vargas e o avanço da conquista japonesa sobre o sudeste asiático em 1941, a Amazônia emergiu como local estratégico para o fornecimento dessa matéria-prima. In Search of the Amazon concentra-se na análise política, cultural e ambiental da região, acompanhando a produção de múltiplos sentidos para a Amazônia, no entrecruzamento de práticas sociais e disputas de poder.
A Amazônia é analisada como lugar instituído na temporalidade histórica por uma miríade de sujeitos que, por sua vez, enfrentam as condições do meio físico. Para tanto, Garfield dialoga com o geógrafo David Harvey, para quem os lugares são artefatos materiais e ecológicos construídos e experimentados no seio de intricadas redes de relações sociais, repletos de significados simbólicos e representações, produtos sociais de poderes políticos e econômicos. Com Bruno Latour, o autor argumenta que a “natureza” é inseparável das representações sociais, e que a sociedade resulta também de elementos não humanos. Com Roger Chartier, considera os conflitos sociais à luz das tensões entre a inventividade de indivíduos e as condições delineadas pelas normas e convenções de seu próprio tempo. Esses horizontes precisam ser avaliados na investigação do que homens e mulheres pensaram, fizeram e expressaram.
Garfield escarafunchou arquivos em Belém, Fortaleza, Manaus, Porto Velho, Rio Branco e Rio de Janeiro, como também nos Estados Unidos. Enfrentou condições diversas de conservação, organização e acesso aos acervos, nos quais encontrou jornais da época publicados em várias cidades, boletins e revistas de serviços ligados à borracha, programas de rádio, cinejornais, trabalhos científicos de diversas áreas do conhecimento, entrevistas com migrantes nordestinos, processos criminais e civis, relatórios diversos, correspondências pessoais de homens e mulheres envolvidos na saga dos “soldados da borracha” nos anos 1940, romances sobre a Amazônia, literatura de cordel e fotografias. As imagens são pedra de toque na caprichosa edição do livro. Vinte e oito fotografias – além de figuras e mapas – privilegiam aspectos urbanos de Ma-naus e Belém, cenas de trabalho e vida cotidiana, poses de autoridades políticas e técnicos, acampamentos de migrantes. O diálogo entre as análises do autor e as imagens é extremamente rico, mesmo que o leitor permaneça curioso sobre as condições de produção de algumas fotografias.
Desde a decadência da borracha em 1910, ruínas invadiram a paisagem amazônica, com cidades fantasmagóricas, retração demográfica e um rastro de miséria e doenças tropicais. Os ideólogos do Estado Novo elegeram a Amazônia como imperativo nacional, investindo-a de muitos significados: interior a ser desenvolvido pelo Estado centralizado, fronteira a ser delimitada e protegida, terra de promissão para os migrantes nordestinos, torrão natal e metonímia da nação. Vargas visitou Manaus em 1940, discursou, lançou financiamentos para migrantes, inaugurou serviços para incrementar o comércio da borracha, o abastecimento, condições sanitárias e transporte. Mas a invenção da Amazônia não seria urdida apenas “de cima”. Contou com outros atores e interesses: elites regionais, militares, médicos e sanitaristas, engenheiros, botânicos, agrônomos, geógrafos, literatos, cordelistas e migrantes.
A despeito do caráter espasmódico das articulações entre a Amazônia e o mercado internacional, a história investigada no livro é sobretudo uma história de conexões globais. As transformações tecnológicas colocavam a borracha – isolante, flexível, resistente e impermeável – entre os materiais mais estratégicos para as nações. Em 1931, Harvey Firestone Jr. gabou-se de como as coisas feitas de borracha se haviam tornado indispensáveis para o ser humano civilizado, desde o primeiro choro do recém-nascido até a lenta marcha para o túmulo. A borracha alimentou a cultura do automóvel na sociedade norte-americana e o crescimento da aviação por todo o mundo. Presente em milhares de produtos (como luvas cirúrgicas, sapatos, preservativos e pneus), a borracha revolucionou o cotidiano dos civis e a fabricação de artefatos militares. Evitando interpretações deterministas, o autor alerta para o fato de que as inovações tecnológicas e aplicações da borracha na indústria eram produtoras e produtos das mudanças políticas, econômicas e culturais resultantes de práticas dos agentes sociais (p.55).
Quando o ataque japonês à Malásia suspendeu o fornecimento de borracha, a atenção norte-americana se voltou para a Amazônia. Delinearam-se profundas divergências entre membros do governo de Franklin D. Roosevelt. Alguns, como o empresário e político Jesse Jones, viam a Amazônia como inferno verde e inelutavelmente bárbaro: uma vez que nenhuma ação poderia transformá-la, tratava-se de explorar a borracha da forma mais prática possível. Outros, como o vice-presidente Henry Wallace, apostaram na Amazônia como terra promissora, pedra fundamental da integração interamericana, defendendo projetos de saúde, melhorias e integração social. Ao delinear a ação norte-americana na Amazônia, o autor argumenta a multiplicidade de intenções e práticas dos Estados Unidos na região – resultantes paradoxais de enfrentamentos na política interna desse país – traçando uma análise complexa e original das relações entre o Brasil e os Estados Unidos naqueles anos.
O diálogo entre os norte-americanos defensores de projetos sociais paralelos à exploração da borracha e as autoridades nacionalistas do governo Vargas foi profícuo e gerou iniciativas conjuntas de formalização do trabalho e estabelecimento de condições mínimas de higiene, saúde e alimentação. Autoridades brasileiras e representantes norte-americanos se esforçaram pela presença efetiva do Estado brasileiro na Amazônia, com ações e estratégias para formação e controle da mão de obra. Todas essas práticas eram informadas por projetos políticos críticos da mera exploração descompromissada e inconsequente, embalados tanto pelos sonhos brasileiros de construção nacional como pelas aspirações dos Estados Unidos no sentido de estabelecer conexões interamericanas sob sua égide.
Os seringueiros, por sua vez, surgem nas páginas do livro como sujeitos sociais ativos. Garfield critica sua representação recorrente como vítimas passivas, fáceis de manipular, meros joguetes de campanhas pela borracha. Relatos orais transmitidos entre gerações acenavam com histórias pessoais de enriquecimento com a borracha. Signos de masculinidade abrilhantavam a aventura de partir para a Amazônia. O caráter sazonal, móvel e independente da atividade atraía muito mais que a perspectiva do trabalho nas fazendas de café do Sudeste. A informalidade e a mobilidade combatidas pelo Estado seduziram homens em busca de trabalho e com ganas de enriquecimento. A decisão de migrar foi fruto da seca e da falta de perspectivas nos locais de origem, mas também se baseou em cálculos informados por relações de parentesco, gênero e valores culturais.
Analisando as relações entre Brasil e Estados Unidos em torno da Amazônia em termos de interesses recíprocos, o autor afasta-se das interpretações do Brasil como país subdesenvolvido e vitimado pelo Tio Sam. Nem por isso desconsidera o legado impactante das políticas norte-americanas de guerra, que acirraram a competição em torno do acesso e uso dos recursos, representações divergentes da natureza e disputas pelo exercício do poder.
In Search of the Amazon encontrou também todos os indícios do sofrimento e miséria dos trabalhadores da borracha, e das tragédias de isolamento e abandono após o final da guerra. Entretanto, mostra como os seringueiros foram capazes de se reinventar nas décadas que se seguiram. Passaram de aventureiros desavisados a populações tradicionais e detentoras de saberes, de “soldados da borracha” a ambientalistas. Obtiveram apoio internacional para suas lutas e interesses na conservação da floresta. Investiram a Amazônia de novas significações e desafios. Explorando conexões regionais, nacionais e globais da saga da borracha no período da Segunda Guerra Mundial, Garfield problematiza a natureza da região, apresenta ao seu leitor um panorama instigante da Amazônia como lugar produzido socialmente, arena contínua de conflitos e lutas no jogo da história contemporânea, cenário de controvérsias garantidas dos tempos que virão.
Referências
BLOCH, Marc. Introdução à História. 4.ed. Lisboa: Publicações Europa-América, s.d. [ Links ]
DUARTE, Regina Horta.- Departamento de História, Universidade Federal de Minas Gerais. Pesquisadora CNPq. reginahorta duarte@gmail.com.
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Visões do Rio de Janeiro colonial: antologia de textos (1531-1800) – FRANÇA (HH)
FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Visões do Rio de Janeiro colonial: antologia de textos (1531-1800). Rio de Janeiro: José Olympio, 2008, 356 p. Resenha de: GANDELMAN, Luciana. A cidade e o mar: o olhar dos viajantes sobre o Rio de Janeiro e os circuitos marítimos entre os séculos XVI e XVIII. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 7, p.325-330, nov./dez. 2011.
Um soldado alemão rumando para a região do Rio da Prata a serviço da Coroa espanhola. Um piloto francês embarcado nos sonhos da França Antártica. Um capitão holandês de uma fragata corsária retornando de confrontos com portugueses no Golfo da Guiné. Dois irmãos galegos marinheiros em viagem à Terra do Fogo, a serviço da Coroa espanhola, comandando uma tripulação portuguesa. Um poeta e suposto religioso inglês vira-mundo que chega ao Rio de Janeiro na fragata do recém-nomeado governador português. Um marinheiro inglês que chega ao Rio de Janeiro em uma embarcação de comerciante londrino com 500 pipas de vinho. Um engenheiro francês vindo à América do Sul, a mando do rei da França, para estabelecer uma colônia-presídio no estreito de Magalhães. Um tipógrafo alemão a caminho de uma missão inglesa na Índia, carregado de 250 cópias do Evangelho de São Mateus em português. Um pastor alemão em rota para a Índia abordo de um navio inglês, repleto de adoentados e esfomeados, que ancora na Guanabara. Degredados seguindo para cumprirem suas penas na Oceania. Franceses e ingleses se aventurando na empreitada da circum-navegação. Essa é uma amostra da grande riqueza de trajetórias cujos testemunhos nos oferecem a cuidadosa pesquisa histórica e seleção de textos empreendida por Jean Marcel Carvalho França em sua antologia: Visões do Rio de Janeiro colonial.
A cidade que emerge desses testemunhos também é múltipla e em transformação. E isto torna-se bastante claro quando percorremos as descrições selecionadas pelo organizador da coletânea. Segundo o poeta Richard Flecknoe, escrevendo em 1649, A cidade antiga, como testemunham as ruínas das casas e igreja grande, fora construída sobre um morro. Contudo as exigências do comércio e do transporte de mercadorias fizeram com que ela fosse gradativamente transferida para a planície. Os edifícios são pouco elevados e as ruas, três ou quatro apenas, todas orientadas para o mar (FRANÇA 2008, p. 43).
Nas palavras do comandante inglês John Byron, escritas em 1764, por sua vez, podemos entrever a cidade enriquecida do período posterior ao auge do ouro e de seu estabelecimento como cabeça de governo e um dos portos predominantes sobre o Atlântico: O Rio de Janeiro está situado ao pé de várias montanhas […]. É dessas montanhas que, por meio de um aqueduto, vem a água que abastece a cidade. […] O palácio (do vice-.rei), além de ser uma suntuosa construção de pedra, é o único edifício da cidade que conta com janelas de vidro, pois as casas só dispõem de pequenas gelosias. […] As igrejas e os conventos locais são magníficos. […] As casas, quase todas de pedra e ornadas com grandes balcões, têm em geral três ou quatro andares (FRANÇA 2008, p. 148-149).
A cidade se modifica, portanto, não somente diante dos diferentes olhares que seus observadores lançam sobre ela, mas também em virtude das intensas transformações enfrentadas por este porto de crescente importância na América portuguesa ao longo de três séculos. Constante nas observações dos viajantes é a menção à existência de numerosa população de escravos e agregados familiares, fossem estes de origem africana ou nativos e mestiços. Igualmente predominantes são as observações acerca das manifestações religiosas e as descrições de igrejas e mosteiro, sendo essas observações previsíveis em um grupo de viajantes estrangeiros, muitos deles protestantes. Uma bibliografia bastante extensa, produzida não só por historiadores, estabeleceu e estabelece ainda um profícuo diálogo com a literatura de viagens, ainda que focada especialmente na dos viajantes do século XIX, e já discutiu as implicações e os desafios daqueles que buscam trabalhar com o olhar dos viajantes.1 Conforme referenciado pelo autor em seu texto de introdução à antologia, a obra apresenta 35 descrições da cidade do Rio de Janeiro elaboradas por viajantes de diversas procedências, cujas viagens respondiam igualmente aos mais variados propósitos, sendo a primeira datada de 1531 e a última de 1800.
Trata-se da seleção de trechos de livros, cartas e escritos que fazem algum tipo de referência ao Rio de Janeiro e seu entorno. Alguns destes trechos já haviam sido transcritos ou referenciados por historiadores e memorialistas, sem, no entanto, contar com um trabalho tão circunstanciado de contextualização e organização. Cada relato é precedido por um breve, porém bem elaborado, artigo de introdução onde são oferecidas notas biográficas do viajante em questão e explicações acerca da viagem na qual se insere o relato. Reside nesses textos explicativos uma parte da preciosidade do trabalho feito por Carvalho França e que possibilita ao leitor um aproveitamento dos testemunhos que não se limita à descrição da cidade do Rio de Janeiro, mas que oferece também, por exemplo, pistas acerca dos circuitos mercantis do período, da organização da navegação e da paulatina reestruturação dos impérios ultramarinos no período moderno.
A escolha das edições foi cuidadosa e deu preferência, como afirma o autor, sempre que possível, às primeiras edições ou edições consideradas mais completas e cuidadas das obras. Característica essa confere à antologia um caráter bastante útil, não somente para o leitor em geral, mas também para o público acadêmico. Houve por parte do autor um investimento e uma preocupação com a elaboração das versões para o português, uma vez que se trata na sua quase totalidade de textos publicados em língua estrangeira, havendo, como este reconhece na introdução, a modificação dos mesmos em nome da clareza da leitura. Isto significa que, se para o leitor em geral o texto ganha em facilidade de compreensão, para o especialista pode tornar necessário o cotejamento com os originais.
Organizados em ordem cronológica, os 35 testemunhos selecionados pelo autor podem ser divididos da seguinte maneira: 1) três são anteriores à União Ibérica e estão concentrados nas décadas de 1530-1550; 2) dois devem ser situados no período do domínio filipino; 3) dois são marcados pelo contexto dos conflitos da chamada Guerra de Restauração, entre 1640 e 1668; 4) um, pertencente a François Froger, diz respeito justamente à década das primeiras descobertas na região mineradora e aponta notícias, inclusive, sobre a região de São Paulo; 5) dois relatos são das primeiras décadas do século XVIII, sendo um deles testemunha da invasão francesa liderada pelo capitão Duguay-Trouin; 6) cinco testemunhos encerram a primeira década do século XVIII, incluindo os cruciais anos do governo de Gomes Freire de Andrade, 1º Conde de Bobadela, que se encerraria com a transformação da cidade em cabeça do governo geral do Estado do Brasil, já no governo de Antônio Álvares da Cunha; 7) vinte dos relatos dizem respeito à segunda metade do século XVIII e testemunham o definitivo adensamento da presença de reinos europeus, como a Inglaterra, na Ásia e na Oceania.
O espaço da resenha seria pequeno para tentarmos mapear devidamente os contextos aos quais pertencem todos esses depoimentos e suas respectivas implicações para esses mesmos relatos. Deve-se destacar, entretanto, a amplitude cronológica e histórica dos testemunhos reunidos.
Publicado pela primeira vez em 1999, e contando presentemente com a terceira edição de 2008,2 a antologia proposta por Jean Marcel Carvalho França tem por objetivo tirar as descrições do Rio de Janeiro da obscuridade e do desconhecimento. Os testemunhos selecionados, entretanto, como argumenta o próprio organizador, não se limitam a descrições acerca da cidade e seu cotidiano, muitas vezes nos dão indicações acerca da visão que esses europeus registraram da natureza circundante e do próprio continente americano de maneira mais ampla. Além disso, o leitor passa a conhecer bastante as características do porto da cidade e suas condições de navegação. Pode-se dizer que a obra cumpre seus objetivos e justifica, desta maneira, as reedições disponíveis, bem como as que futuramente sejam realizadas com o intuito de garantir aos leitores e pesquisadores acesso a esse rico acervo de testemunhos.
Para concluir, cabem alguns breves comentários suscitados pela própria fertilidade da antologia reunida na obra resenhada. França nos apresenta mais do que a riqueza das descrições da cidade do Rio de Janeiro e seu entorno, revela-nos igualmente um pouco das mudanças sofridas no papel da América dentro do Império colonial português e mesmo a transformação dos circuitos comerciais, da navegação e do papel desempenhado por outras nações europeias no desenvolvimento dos demais circuitos coloniais do período. Esse verdadeiro mosaico contradiz, de certa maneira, as próprias alegações de França quando este, na introdução, ressalta a política “ciumenta” da Coroa portuguesa e o consequente isolamento de sua colônia americana em relação a seus visitantes estrangeiros. Mesmo quando os testemunhos nos deixam entrever as cautelas e receios de governadores e representantes régios ou colonos em comercializar e permitir contato com navegadores e embarcação de súditos de outros 2 A antologia de França foi desdobrada ainda em outra importante seleção de relatos de viajantes, ver: FRANÇA 2000.
monarcas, a própria riqueza dos depoimentos e das circunstâncias que os envolvem nos permite pensar mais em conexões do que em isolamento.
Conexões, circulação, alianças, confrontos e compromissos, às vezes os mais improváveis, fizeram parte desse universo, como procuramos destacar no início deste texto. Entre o “ciúme mercantilista” e os entrecruzamentos de uma aventura ultramarina que se constrói por meio de diferentes níveis de interdependência e que se espalha concomitantemente nas mais diversas direções, encontramos, para retomarmos uma imagem de A. J. R. Russell-Wood, um mundo em movimento (RUSSELL-WOOD 2006). São justamente esses movimentos conectados, em alusão ao conceito de Sanjay Subrahmanyam, que aparecem belamente representados em Visões do Rio de Janeiro colonial (SUBRAHMANYAM 1999).
Referências
BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos viajantes. 3 vols. São Paulo: Metalivros, 1994.
FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Outras visões do Rio de Janeiro colonial: antologia de textos (1582-1808). Rio de Janeiro: José Olympio, 2000.
GALVÃO, Cristina Carrijo. A escravidão compartilhada: os relatos de viajantes e os intérpretes da sociedade brasileira. Dissertação de mestrado. Campinas: IFCH/ UNICAMP, 2001.
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
LEITE, Miriam L. Moreira. Livros de viagem (1803-1900). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.
LISBOA, Karen M. A nova Atlântida de Spix e Martius: natureza e civilização na viagem pelo Brasil (1817-1820). São Paulo: Hucitec, 1997.
MARTINS, Luciana de Lima O Rio de Janeiro dos viajantes: o olhar britânico (1800-1850). Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
RUSSELL-WOOD, A. J. R. Um mundo em movimento. Lisboa: DIFEL, 2006.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
SELA, Eneida Mercadante. Desvendando figurinhas: um olhar histórico para as aquarelas de Guillobel. Dissertação de mestrado. Campinas: IFCH/ UNICAMP, 2001.
______________________. Modos de ser, modos de ver: viajantes europeus e escravos africanos no Rio de Janeiro (1808-1850). Campinas: Ed. da UNICAMP, 2008.
SLENES, Robert W. A Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava – Brasil sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
SUBRAHMANYAM, Sanjay. Connected histories: notes towards a reconfiguration of Early Modern Eurasia. In: LIEBERMAN, Victor (ed.). Beyond binary histories: re-imagining Eurasia to c. 1830. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1999, p. 289-316.
VIANA, Larissa Moreira. As dimensões da cor: um estudo do olhar norte americano sobre as relações interétnicas, Rio de Janeiro, século XIX. Dissertação de mestrado. Niterói: UFF, 1998.
Notas
1 Gostaria de citar entre outros: BELLUZZO 1994; GALVÃO 2001; KARASCH 2000; LEITE 1997; LISBOA 1997; MARTINS 2001; SCHWARCZ 1993; SELA 2001; SELA 2008; SLENES, 1999; VIANA 1998.
Luciana Gandelman – Professora adjunta Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro lucianagandelman@yahoo.com.br Km 07 da BR 465 23890-000 – Seropédica – RJ Brasil Palavras-chave América portuguesa; Colônia; Relatos de viajantes.
Deleite do estrangeiro em tudo o que é espantoso e maravilhoso: estudo de um relato de viagem Bagdali – FARAH (EH)
FARAH, Paulo Daniel (org). Deleite do estrangeiro em tudo o que é espantoso e maravilhoso: estudo de um relato de viagem de Al-Baghdádi. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional; Argel: Bibliothèque Nationale d’Algérie; e Caracas: Biblioteca Nacional de Caracas, 2009. 476p. Resenha de: PINHEIRO, Cláudio Costa. Periferias históricas revisitadas. As leituras árabes-islâmicas de Al Baghdádi sobre o Brasil do século XIX. Estudos Históricos, v.23 n.45 Rio de Janeiro Jan./June 2010.
Impossível não se impressionar pela edição de Deleite do estrangeiro, publicado pela Bibliaspa (Biblioteca América do Sul & Países Árabes), apoiado pela parceria de três importantes bibliotecas nacionais, com a chancela dos Estados nacionais brasileiro, venezuelano e argelino, e graças à indústria do Dr. Paulo Daniel Farah. São quase quinhentas páginas centradas ao redor de um manuscrito, até então inédito, no qual o imã (autoridade religiosa muçulmana) iraquiano Al-Baghdádi narra sua viagem, acontecida na segunda metade do século XIX, desde sua partida de Istambul, em um navio do Império Otomano, até o regresso a Damasco, passando por sua chegada e estada durante quase três anos no Brasil.
O livro apresenta o fac-símile do manuscrito original em árabe do século XIX, com a bela caligrafia do imã, acompanhada de uma versão do mesmo em árabe modernizado, outra em português, e mais outra em espanhol.
A publicação inicia-se com textos dos chanceleres do Brasil, Venezuela e Argélia, dos diretores-presidentes das bibliotecas Nacional do Rio de Janeiro, de Ayacucho, Nacional da Argélia e do então ministro da Cultura do Brasil, Gilberto Gil. Tal rubrica indica uma alvissareira disposição pelo fomento a iniciativas que construam pontes culturais concretas entre contextos que a vulgata insiste em mostrar como distantes, antagônicos e desconectados.1
O primor da edição é visível na qualidade de sua proposta gráfica, mas também no cuidado refinado em situar seus leitores em relação ao universo do manuscrito. Nesse intuito o livro traz uma apresentação que inclui um prefácio de Paulo Farah, um texto de João José Reis – um dos primeiros historiadores brasileiros a investigar o culto islâmico entre escravos brasileiros e seu papel na criação de identidades locais e na organização de revoltas urbanas na Bahia – e um outro texto de Farah, no qual ele destrincha e comenta pormenorizadamente o manuscrito de Al-Baghdádi.
Esta apresentação à obra realiza um duplo esforço: o de situar o leitor sul-americano em relação a referências culturais e discursivas do mundo árabe e muçulmano do qual o imã é originário, bem como o de localizar o leitor da língua árabe às referências que Al-Baghdádi faz do que viu e ouviu no Brasil do século XIX. Nesse duplo movimento, Farah respeita a estrutura discursiva proposta pelo texto de Al-Baghdádi, sempre oscilando entre comparação, tradução e transliteração cultural dos conteúdos observados. A edição do manuscrito acompanha-se de 170 notas explicativas nas versões em português e espanhol, e 29 notas na versão em árabe moderno. Inclui, outrossim, um caderno de imagens (aquarelas, bicos-de-pena e fotografias – estas, aliás, entre as primeiras feitas no Brasil) que apresentam a paisagem natural e cultural com a qual imã se deparou no Novo Mundo.
Esta publicação precisa ser observada desde ângulos diversos, já que sua contribuição e valor para o campo da historiografia, ciências sociais e estudos culturais no Brasil podem ser consideradas dentro de chaves distintas.
A escrita da história do Brasil nos séculos XVIII e, sobretudo, XIX é bastante marcada pelo recurso às crônicas de viajantes estrangeiros como fontes documentais para-etnográficas da sociedade da época. Cientistas, artistas, botânicos ou exploradores europeus são figuras freqüentes na paisagem literária, histórica e historiográfica do Brasil dos Oitocentos (J. B. Debret, J. M. Rugendas, J. B. von Spix, Thomas Ewbank, entre tantos outros). Várias de suas narrativas foram publicadas à época e são incessantemente reeditadas até hoje. Relatos como o do imã iraquiano em línguas não-europeias sobre o Brasil colônia e império, são, entretanto, muito incomuns.2
Até onde se sabe, Al-Baghdádi foi o primeiro imã árabe a chegar ao Brasil, produziu o único registro do olhar árabe sobre o Novo Mundo no século XIX e marca a primeira chegada de um navio originário do Império Turco-Otomano em terras brasileiras, em 1866. A narrativa de sua viagem é, em si, interessante e complexa. Sua estada entre Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco durou cerca de três anos (1866-1869). Seu relato registra as impressões a partir de um estilo narrativo bastante rico e caracteristicamente árabe e muçulmano, a Rihla. Este gênero combina narrativa histórica, geográfica, etnográfica, sociológica e literária, misturando o fantástico e o verossímil e ajudando a mapear conexões complexas entre viagem, conhecimento e teoria. De fato, a associação entre viagem, experiência e conhecimento não é estranha ao contexto protestante anglo-saxão ou germânico, de onde se origina boa parte dos viajantes estrangeiros que circularam pelo Brasil do século XIX.3
Entretanto, a Rihla realiza esta perspectiva a partir de uma linguagem elaborada pela combinação de prosa e rima na observação do trópico escravocrata a partir da fé islâmica. O gênero da Rihla não deixa dúvidas de que Al-Baghdádi compreende esse mundo a partir de uma missão civilizadora (proselitista) e de um tom messiânico – que reforça o topos que associa o conhecimento do mundo, e do outro, ao auto-conhecimento, a partir da compreensão do não-familiar. Sua chegada, permanência e circulação entre diferentes cidades aconteceram por atenção ao chamado: dos homens e de Deus.
Al-Baghdádi descreve como chegou a terra; como conheceu a comunidade de muçulmanos do Rio de Janeiro; a paisagem natural (fauna e flora) do lugar; os tipos humanos (dedicando-se especialmente aos índios e escravos africanos); a religião católica tal como praticada ali; as dificuldades de comunicação e seus esforços por aprender o português e ensinar o árabe a comunidades muçulmanas locais; os acontecimentos que ele classificou como fantásticos; as saudades de sua terra e o périplo de regresso a Damasco. Seu texto traz ainda referências ao mundo onírico como instrumento de revelação divina, tão caro a culturas islâmicas.
Tendo convivido tanto tempo com comunidades de africanos (escravos e livres) muçulmanos na qualidade de líder espiritual, é natural que essa experiência tenha marcado intensamente a narrativa do imã. Seu texto presta-se, ademais, a uma memória dessas comunidades na segunda metade dos Oitocentos. Em um contexto em que a historiografia brasileira da escravidão negra tem se dedicado tão fortemente ao estudo de regras de sociabilidade construídas a partir de redes de convívio, ulteriormente organizadas desde as práticas religiosas (entre irmandades católicas ou religiões afro-brasileiras), o relato de Al-Baghdádi pode oferecer miradas diferentes sobre a organização de grupos politicamente minoritários do Brasil pós-colonial. Al-Baghdádi descreve, e participa ativamente, de disputas por autoridade e liderança dentro dessas comunidades e, ao mesmo tempo, esclarece suas estratégias pessoais de filiação política e deslinda os conflitos entre as práticas do Islã negro africano e as do Oriente Médio.
A disposição de Al-Baghdádi para compreender esse estranho mundo com o qual se depara sugere uma disponibilidade que a maioria dos viajantes europeus daquele período dificilmente conseguia ou preocupava-se em considerar: o aprendizado pleno das línguas locais. O relato desse viajante iraquiano é todo escrito em alfabeto árabe, entretanto povoado de palavras e trechos transliterados desde o turco otomano, grego, francês, tupi e português, além do próprio árabe. Ele investiu no estudo da língua portuguesa, foneticamente transliterada ao árabe da Síria, e permitiu-se desenvolver instrumentos lexicográficos e para-lexicográficos (gramáticas e vocabulários) que serviriam para compreendê-la e para ensinar o árabe. Afinal, como ressalta Farah – e como João Reis (1987) já havia discutido para o caso da Salvador da primeira metade dos Oitocentos –, a socialização dos convertidos na comunidade muçulmana se dava pelo aprendizado do idioma árabe. Sua obsessão era livrar-se de presença de um intérprete, percebido por ele como uma ameaça a uma compreensão correta (política e semântica) do diálogo com seus interlocutores, revela outra rica chave de leitura do livro do imã de Bagdá. De fato, Al-Baghdádi está inscrito em uma longa tradição árabe-islâmica de composição de narrativas que remontam ao teólogo e historiador tunisino Ibn Khaldhun (1332-1406).
A narrativa de Al-Baghdádi oferece a chance de matizar a perspectiva eurocêntrica que caracteriza o estudo da formação da identidade brasileira, como lembra Farah, ao mesmo tempo em que introduz um olhar não ocidental sobre a formação da sociedade brasileira. Importante lembrar, a título de comparação, que um dos textos mais paradigmáticos dos Oitocentos – Como se deve escrever a História do Brasil, publicado em 18454 – foi produzido exatamente por um viajante naturalista, o alemão Karl P. Von Martius, por ocasião da premiação oferecida pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro para ensaios sobre a escrita da história do Brasil. É bem verdade que, à diferença das crônicas produzidas por viajantes europeus do período, o texto de Martius atende a outros cânones discursivos e à necessidade de imaginar os contornos de algo que foi chamado de História do Brasil, percebida como um meio de “forjar a nacionalidade”.5 O texto de Martius ordena alguns dos temas que passam a compor a agenda da intelectualidade brasileira desde o século XIX até o presente.
A memória intelectual nacional guarda em lugar de destaque o texto de Von Martius, publicado 20 anos antes da chegada de Al-Baghdádi ao Brasil. Recuperar a relevância de figuras como a do imã iraquiano de Bagdá na escrita da história do Brasil do século XIX implica, novamente, em uma postura político-intelectual.
Desde o ponto de vista das políticas acadêmicas internacionais de circulação de conhecimento, há que se considerar que vários editoriais, fundações e universidades possuem linhas especificas de incentivo à edição de manuscritos, como forma de democratização do acesso a informação. É provável que boa parte da pesquisa sobre Antiguidade greco-romana e Idade Média européia talvez nem existisse, não fossem empresas desta natureza. Contudo, não podemos desconsiderar que esses incentivos estejam igualmente remetidos à manutenção de clivagens e hegemonias intelectuais na produção de conhecimento. É o que se assiste, por exemplo, no fomento à tradução e à edição de manuscritos indonésios para o holandês, árabes para o francês, turcos para o alemão, latinos para o inglês etc., facilitando o acesso de pesquisadores de centros hegemônicos a fontes de contextos pós-coloniais, sem a necessidade do aprendizado das línguas locais.
A publicação do Deleite do estrangeiro é uma empreitada distinta, já que cria transitividade entre o árabe, o português e o espanhol – línguas periféricas nos quadros internacionais de produção e circulação de conhecimento – e direcionam o livro ao contexto latino-americano e do mundo árabe falante. Tal postura “contribui para ampliar o diálogo entre regiões [que estão] mais próximas do que se imagina […] e que apresentam características comuns na produção transcultural de conhecimento”, como ressalta o texto do ministro Gil. Tal démarche também colabora, como salienta o prefácio de Farah, para atentar contra leituras monolíticas que opõem Islã e ocidente, já que sugere fronteiras permeáveis e menos sólidas e definidas do que se pretende imaginar.
Em um livro já clássico, o historiador indiano Dipesh Chakrabarty – Provincializing Europe, 2000 – chama a atenção para o processo a partir do qual práticas transculturais europeias terminaram transformando-se em categorias sociológicas. Essa é a mesma démarche ressaltada por Howard Becker (2007: 8) quando destaca que as ciências sociais produzem conhecimento invariavelmente provincializado, mesmo que a crença da disciplina não nos deixe ver isso.6
Essa perspectiva é bastante ressaltada por autores que lidam com o pensamento pós-colonial, preocupando-se tanto em analisar as agendas de pesquisa, como as políticas fomento, tradução e publicação nas ciências sociais, como parte de uma divisão internacional da produção intelectual (Alatas, S. F., 2003). A própria definição de genealogias míticas da disciplina remete-se a esta perspectiva. Howard Becker (1996: 177) lembra que em sua formação como estudante de antropologia da Universidade de Chicago, lia entre os próceres da disciplina Maquiavel e o Ibn Khaldhun.
Recuperar a figura e o texto de Al-Baghdádi na hagiografia das narrativas históricas do Brasil resulta em um movimento análogo ao que leituras pós-coloniais de sociologia vêm realizando ao reinscrever as formas narrativas desenvolvidas por Ibn Khaldhun dentro da história global da disciplina (Alatas, 2006 e Eriksen & Nielsen, 2007).
Surpreende que, em apenas seis anos de existência, a Bibliaspa tenha realizado tantos feitos. Nesse período organizou diversos seminários acadêmicos, editou, junto com o Deleite do estrangeiro, cerca de dez volumes (entre eles textos de Machado de Assis e Guimarães Rosa, traduzidos para o árabe), lançou a Revista Fikr de Estudos Árabes, Africanos e Sul-Americanos (que é tri-língue e encontra-se em seu terceiro número). Em março de 2010 inaugurou sua nova sede e coordenou a semana de cultura árabe da cidade de São Paulo.
Notas
1 A própria criação da Bibliaspa é outra testemunha desta aspiração.
2 Importante lembrar o entusiasmo com que a Revista Brasileira de História (v. 8, n. 16) publicava, em março de 1988, um pequeno artigo que informava a edição da Biografia de Mahommah G. Baquaqua, um africano trazido escravo para o Brasil na primeira metade do século XIX e que narrava sua vida desde a experiência de ser escravizado e seu esforço de alcançar a alforria.
3 De fato, a associação entre viagem, experiência e teoria também não eram estranhas ao mundo ibérico desde os séculos XV e XVI, cf. Pinheiro, 2008.
4 “Qualquer que se encarregar de escrever a História do Brasil, país que tanto promete, jamais deverá perder de vista quais os elementos que aí concorreram para o desenvolvimento do homem. São, porém, estes elementos de natureza muito diversa, tendo para a formação do homem convergido de um modo particular três raças, a saber: a de cor de cobre ou americana, a branca ou caucasiana, e enfim a preta ou etiópica. Do encontro dessas três raças, formou-se a atual população cuja história por isso mesmo tem um cunho muito particular.” (Martius, 1845: 381-382)
5 “Uma vez implantado o Estado Nacional, impunha-se como tarefa o delineamento de um perfil para a “Nação brasileira”, capaz de lhe garantir uma identidade própria no conjunto mais amplo das “Nações”, de acordo com os novos princípios organizadores da vida social do século XIX.” (Guimarães, 1988: 6). O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro operou como marco na formação da intelectualidade local, associada à própria formação de um Estado nacional brasileiro e caracterizou-se como a instituição por excelência ocupada em desvendar os postulados da nação e destinada a pensar uma História nacional, percebendo a História como um meio de “forjar a nacionalidade brasileira”.
6 “Talvez nossos conceitos sejam ainda mais provincianos que isso e estejam amarrados também a determinada classe social, a tal grupo profissional, tal grupo de gênero.”
Referências
ALATAS, Syed Farid. 2003. Academic Dependency and the Global Division of Labour in the Social Sciences. Current Sociology 2003; 51; 599 [ Links ]
_________. A Khaldunian Exemplar for a Historical Sociology for the South. In: Current Sociology 2006; 54; 397-411. 2006. [ Links ]
BECKER, Howard. Conferência: A escola de Chicago. In: MANA 2(2):177-188, 1996. [ Links ]
________. Segredos e truques de pesquisa. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. [ Links ]
ERIKSEN, Thomas Hylland & NIELSEN, Finn Sivert. História da antropologia. Petrópolis: Vozes, 2007. [ Links ]
LARA, Sílvia Hunold. Biografia de Mahommah G. Baquaqua. Revista Brasileira de História, v. 8, n.16, 269-284.1988 [ Links ]
PINHEIRO, Cláudio Costa. Língua e conquista. Formação de intérpretes e políticas imperiais portuguesas de comunicação em Ásia nos alvores da modernidade. In: Stolze Lima, Ivana & Carmo, Laura do (orgs.). História Social da Língua Nacional. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 2008, p. 29-64. [ Links ]
Von Martius, Carl Friedich Philipe. Como se deve escrever a história do Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 6 (24), p. 381-403. 1845 [ Links ]
Cláudio Costa Pinheiro – Faz estágio pós-doutoral no CPDOC e é professor da Escola Superior de Ciências Sociais e História da FGV (Claudio.Pinheiro@fgv.br).
Os Olhos do Império. Relatos de viagem e transculturação – PRATT (RBH)
PRATT, Mary Louise. Os Olhos do Império. Relatos de viagem e transculturação. Bauru, EDUSC, 1999, 394p. Resenha de MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.20 n.39, 2000.
O livro de Mary Louise Pratt, Imperial Eyes. Travel Writing and Transculturation. Londres/Nova Iorque, Routledge, 1992, que aparece agora em versão para o português, com o título de Os Olhos do Império. Relatos de Viagem e Transculturação, traduzido por Jézio Gutierre e com revisão técnica desta autora e de Carlos Valero, Bauru, EDUSC, 1999, é um trabalho de grande peso intelectual, que vem sendo profusamente discutido nas universidades norte-americanas, latino-americanas e, em menor escala, no meio acadêmico brasileiro. A presente tradução, facilitando o acesso ao livro, deve sanar esta lacuna.
Obra de grande impacto acadêmico, com discussões teóricas inovadoras e análise minuciosa de uma ampla gama de relatos de viagem, o livro de Mary Pratt encontra-se na intersecção da análise de texto e crítica ideológica. Procurando desvendar não apenas os mecanismos ideológicos e semânticos por meio dos quais os viajantes europeus, a partir de meados do século XVIII, criaram um novo campo discursivo, forjando uma consciência planetária a respeito do outro colonial e suas culturas, a autora associa estes escritos e seus tropos às diferentes fases do expansionismo capitalista e suas conquistas dos territórios interiores do mundo colonial. Neste sentido, é este livro hoje considerado fundamental para a reavaliação dos processos de constituição de um repertório semântico-cognitivo imperialista que se construiu a partir dos anos de 1750, entrelaçando as amplas dinâmicas da expansão do capitalismo em direção às áreas coloniais à produção de um saber que vai criativamente reinventar a realidade colonial, produzindo os novos paradigmas e o repertório de imagens por meio dos quais estas novas dinâmicas puderam ser efetivamente realizadas e implementadas.
Como nota a autora em sua introdução, este livro foi escrito no ambiente acadêmico norte-americano da década de 1980, como parte de um amplo esforço de resistência à onda conservadora que então se impunha, e como exercício de descolonização do conhecimento. Embora se encontre estruturado nos moldes dos estudos acadêmicos, neste trabalho Mary Pratt não se furta à discussão política em seu sentido mais profundo, estabelecendo alguns marcos teóricos para resistência intelectual às análises globalizantes. Conceitos largamente desprezados pelas análises de texto pós-modernas, como os de imperialismo e descolonização, aparecem neste livro contextualizados num recorte teórico afinado com as discussões mais atuais, tornando este um livro que se localiza numa perspectiva interdisciplinar, útil aos estudos da literatura, antropologia, história e outras disciplinas.
Valendo-se da análise de texto e da crítica ideológica, Mary Louise Pratt analisa a literatura de viagem relativa à África no momento em que os europeus lutavam por superar os obstáculos que se antepunham à conquista do território interior do continente, possibilitando o enraizamento dos interesses políticos e comerciais. A autora se volta igualmente para a análise da literatura de viagem sobre a América do Sul, com algumas incursões sobre o México, ressaltando exatamente sua coincidência com o que se convencionou denominar como crise do sistema colonial, eclosão dos movimentos de independência e rearticulação desta área à divisão internacional do trabalho da era imperialista. Neste empreendimento a autora vai propor uma nova visão das relações entre a metrópole e as áreas coloniais, entre o saber europeu e o saber nativo, entre visitantes e visitados, entre viajantes e viajados (neologismo que a autora lança mão para sublinhar o caráter interativo destes encontros). A dimensão da autora é global – mas não globalizante – e é, sobretudo, relacional e interativa, desprezando as análises unilaterais e pretensamente imparciais mas que tomam, por princípio, o olhar imperial e o ponto de vista difusionista como verdade neutra e marco zero analítico. Novos recortes temáticos, novos conceitos e releituras renovadas da literatura imperial permitem que a autora coloque literalmente de cabeça para baixo as interpretações clássicas deste tema, sempre por meio da desconstrução de um universo semântico aparentamente neutro e objetivo. Para tal, alguns conceitos são fundamentais e eu vou apenas nomeá-los rapidamente.
Primeiro o de transculturação, entendido como um fenômeno da zona de contato e que se refere às apropriações dos materiais nativos pelos europeus mas também à maneira pela qual os coloniais se apropriam dos estilos imperiais, construindo eles próprios modos de representação que, absorvidos pelo olhar imperial, constituem um universo cognitivo que passa a ser considerado como originariamente europeu. O termo transculturação foi criado na década de 40 por Fernando Ortiz em seu Contrapunteo Cubano del Tabaco y el Azúcar, e é lá correlacionado ao universo das trocas culturais. Este mesmo conceito foi, na década de 70, utilizado por Angel Rama nos estudos literários. No entanto, parece-me que o uso extensivo do conceito de transculturação em Olhos do Império reporta-se a um universo mais amplo, que é o da constituição de repertórios de símbolos, imagens e discursos que conformam um modo ou estilo cognitivo e um repertório semântico e imagético por meio do qual o outro colonial passa a ser abordado.
Outro conceito fundamental ao livro é o de zona de contato que é compreendido como sinônimo de fronteira cultural, enfatizando as dimensões interativas e improvisadas dos encontros coloniais, pondo em questão como os sujeitos coloniais são constituídos nas e pelas relações entre colonizadores e colonizados, ou viajantes e visitados, em termos de interação e trocas no interior de relações assimétricas de poder. Frente a esta dimensão a autora, invertendo os paradigmas analíticos da análise objetiva, racionalista e eurocentrada do olhar imperialista, faz a pergunta fundamental que, de fato, norteia sua abordagem: Em que medida as construções européias a respeito do outro subordinado teriam sido moldadas pelos próprios subordinados através da construção de si próprios e de seu ambiente tal como eles – os próprios coloniais – os apresentaram aos europeus? Refletindo sobre a constituição do paradigma imperialista, Pratt ressalta a importância da viagem e da literatura de viagem romântico-naturalista como experiência daquilo que se convencionou denominar de modernidade, propondo a crítica aos conceitos reificados que norteiam estas análises e que igualmente legitimam a utilização acrítica dos conceitos da pós-modernidade.
Marcadas por processos culturais complexos norteados pelo racionalismo, pela ciência, pelo romantismo, pela constituição de um self individualizado e pelas teorias raciais, a experiência da viagem e da literatura de viagem se apresentavam como espaço privilegiado para a articulação do novo paradigma imperial. Possibilitando, por meio do deslocamento, a que viajantes e seu público – as sociedades envolvidas com os desafios da modernidade – refletissem a respeito de si próprias, a literatura de viagem, ao mesmo tempo, abria espaço para a construção, por oposição, de um discurso sobre a alteridade e sobre o papel do ocidente no domínio, condução e absorção das sociedades não-ocidentais. Enquanto experiência individual do sujeito-viajante às portas da modernidade, a viagem para terras longínquas surgia claramente como metáfora da viagem interior, suportando experiências pioneiras de subjetividade e auto-conhecimento. Enquanto discurso auto-reflexivo do homem que, ao viajar, observa, reflete e cataloga terras estranhas e povos selvagens, a viagem realizava uma apropriação discursiva das áreas coloniais, dando origem a uma configuração nova, porém extremamente efetiva de conquista, que Mary Louise Pratt denominou de “anti-conquista”, em alusão ao caráter aparentemente pacífico e reflexivo do viajante-naturalista e às características abstratas da apropriação catalagadora por ele promovida.
A literatura de viagem naturalista – masculina, eurocêntrica, com traços edipianos, da dedicação dos filhos viajantes ao pai Lineu, ou mais tarde ao pai Humboldt, ou no caso do Brasil, a Martius – e seu objetivo de estabelecer uma posse intelectual e abstrata de um saber e da natureza, traços sugestivos da idealização e impotência do filho edipiano, expressa um desejo de posse a ser realizado sem violência, que caracterizaria a anti-conquista. Note-se que um dos objetivos explícitos de Olhos do Império é o de discutir as relações entre a viagem, sua literatura e a questão de gênero. Para tal Mary Pratt não apenas sublinhou o caráter androcêntrico da viagem naturalista como dedicou todo um capítulo às viagens realizadas e relatadas por mulheres, procurando determinar as particularidades do olhar feminino sobre as áreas coloniais, bem como sua inserção na construção de formas específicas e variadas da abordagem imperial.
Os estudos acadêmicos sobre o Iluminismo, fortemente eurocentrados, têm freqüentemente negligenciado o papel dos agressivos empreendimentos coloniais e comerciais europeus que funcionaram como modelo, inspiração e base de teste para formas de disciplina social que, re-importadas para a Europa nos finais século XVIII e inícios do XIX, tornaram-se importantes mecanismos sociais na construção da ordem burguesa. É preciso igualmente lembrar que a sistematização da natureza coincidiu com o apogeu do tráfico de escravos, com o sistema de plantation, com o genocídio colonial na América do Norte e na África do Sul, com as rebeliões de índios e escravos nos Andes, Caribe e América do Norte e noutras partes do globo. Na seqüência, Mary Pratt faz uma aproximação entre a célebre acumulação primitiva de capital e a sistematização da natureza que, nela inspirando-se, conduziu a idéia de acumulação a um extremo totalizante. Enquanto base de um gênero literário a literatura de viagem serviu para suprir as necessidades de cultura, educação e lazer das nascentes classes médias européias e norte-americanas, construindo, entre outras coisas, um repertório comum a respeito dos povos selvagens e um consenso sobre a necessidade da intervenção do homem branco no mundo pós-colonial que então se esboçava.
Por meio da crítica ideológica e da desconstrução dos textos naturalistas, a autora também reelabora o conceito de natureza. Segundo nota Mary Pratt, nos escritos de viagem do período, natureza significa antes de tudo regiões e ecossistemas não dominados por europeus, embora incluindo muitas regiões da entidade geográfica conhecida como Europa. A história natural impôs uma autoridade urbana, letrada e masculina sobre todo o planeta, elaborando um entendimento racionalizador, extrativo e dissociativo, que suprimiu as relações funcionais e experenciais entre as pessoas, plantas e animais. O resultado deste processo concretizou-se na prefiguração de uma certa forma de hegemonia global, que deu origem a um paradigma descritivo e uma apropriação do planeta aparentemente benigna e totalmente abstrata, produzindo uma visão utópica e inocente da autoridade mundial européia, a qual a autora se refere como a de anti-conquista.
Conforme sublinha Os Olhos do Império, a literatura de viagem anterior ao paradigma naturalista segue o modelo do antigo relato de viagem marítimo. Neste, o enredo gira em torno das narrativas de aventura e sobrevivência (catástrofes, naufrágios, lutas pela sobrevivência em terras estrangeiras) nas quais a perspectiva analítica é interativa e os nativos podem ainda ser inclusos no mesmo universo institucional dos europeus. Acrescente-se que nesta literatura o marco divisório a partir do qual o europeu julga e classifica a sociedade nativa é a escravidão que estabelece a divisão básica entre o eu e o outro, sendo os escravizados percebidos como brutais e inferiores, mesmo quando o observador, homem, europeu e branco, refere-se às sociedades africanas e à escravidão tradicional e doméstica nelas existente.
Por seu turno, a literatura de viagem que começa a se concretizar com a expedição do geógrafo Charles de la Condamine à América do Sul em 1735 e com as viagens realizadas também em meados do XVIII à África, reflete um empreendimento narrativo, de caráter cumulativo e organizacional, na qual a geografia é minuciosamente documentada e o mundo humano naturalizado. Aqui se reencena Adão no Jardim do Éden nomeando a natureza. A paisagem é descrita como inabitada, devoluta, sem história e desocupada, até mesmo pelo próprio viajante. A atividade de descrever a geografia e identificar a flora e a fauna estrutura uma narrativa a-social em que a presença européia ou nativa é absolutamente marginal, ainda que fosse este, evidentemente, um aspecto constante e essencial da viagem em si. Neste sentido, conforme aponta Mary Pratt, é fácil relacionar esta literatura e sua produção de um corpo sem discurso, desnudo e biologizado com a força de trabalho desenraizada, despojada e disponível criada pelo colonialismo. Nestas descrições, as mudanças são naturalizadas e descritas como lacunas, a historicidade das sociedades locais desaparece e o estado em que os viajantes encontram estas sociedades – muitas vezes já profundamente deterioradas pela influência colonial – é descrito como eterno e atemporal.
Em sua análise, a autora reflete sobre os princípios da anti-conquista mostrando a maneira pela qual esta se legitimava ideologicamente argumentando a existência de uma reciprocidade entre europeus e as sociedades coloniais, entre viajantes e viajados. Utilizando-se de conceitos derivados do discurso das nascentes ideologias liberais e capitalistas, porém contextualizado-os na análise de texto, a autora aponta para a falácia desta suposta troca, que legitimaria a intervenção classificatória do sábio europeu nas áreas coloniais, aqui denominada como zona de contato. Mary Pratt forja o conceito da mística da reciprocidade mostrando que a literatura de viajem naturalista assenta-se sobre as mesmas bases ideológicas e discursivas do capitalismo. Interessante notar que uma parcela do livro concentra-se no enfoque da literatura de viagem sobre a África, como a realizada por Mungo Park e relatada em seu livro Travels in the Interior of Africa, publicado em 1799 (por sinal, lido e citado por Southey quando escrevia a História do Brasil), bem como sobre muitas outras, que aparecem vinculadas aos interesses europeus comerciais e de conquista do interior da África. Entre estas destacam-se as que objetivavam delimitar o curso, direção, nascente e desaguadouro do Rio Niger, com vistas a estabelecer rota transcontinental mediterrânea, que atravessasse a África, supostamente desaguando no Nilo. Por meio da análise destes textos, constrói a autora uma taxionomia da literatura de viagem e das fases da conquista da África. Assim, o viajante naturalista que lança mão da ciência se associa ao aparato estatal e panóptico da vigilância, absorvendo as ambições territoriais dos impérios. Por seu turno, a viagem sentimental (associada às qualidades da domesticidade, interioridade e privacidade), alia-se aos ideais do comércio e da iniciativa privada. Conclui a autora que a mística da reciprocidade na literatura de viagem remonta à mística da reciprocidade das relações capitalistas, embora saiba-se que o capitalismo tem como base exatamente a negação deste princípo na própria base das relações sociais. Neste sentido, a viagem sentimental identifica-se com a fase de tentativa de conquista da África e seus autores com a missão civilizadora que é, em essência, o contrário ideológico e simbólico da reciprocidade
Numa operação ainda mais ousada, Mary Louise Pratt percebe nos conflitos entre raça, relações raciais e movimentos abolicionistas dos finais do XVIII e inícios do XIX nas Américas, os motivos de uma literatura de viagem sentimental, que em seus enredos e soluções narrativas estabelece as relações sentimentais entre homens brancos e mulheres nativas, com a óbvia submissão destas últimas, como codificadora de uma nova solução racial. Isto é, na realidade, as soluções narrativas desta literatura dão forma a uma proposta política reformista em ascensão nesta conjutura, que propõe uma saída humanitária ao problema da escravidão e da assimetria das raças, que seria o da abolição com a manutenção da subserviências das culturas nativas e afroamericanas ao homem branco. Seria o romantismo criação da zona de contato e expressão destas experiências inusitadas de encontros culturais assimétricos e, recambiado para a metrópole, seria apropriado como a mais pura expressão do espírito europeu?
Analisando a literatura de viagem sobre a América hispânica, a autora chama a atenção para a reivenção da América enquanto natureza, operação esta que se concretizou por meio da reatualização do deslumbramento dos primeiros cronistas, sobretudo de Colombo, como se três séculos de colonização não houvessem ocorrido. O grande inspirador desta vertente foi Alexander von Humboldt e, no caso do Brasil, este lugar foi ocupado por Martius. A autora aponta para a historicidade desta reinvenção, pois a América é reinventada como natureza primal e o espanto e deslumbramento inicial são reatualizados como ato histórico, embora a infraestrutura colonial a partir da qual os viajantes se valem para realizar a viagem esteja lá, bem presente, embora completamente eludida nos relatos de viagem. Assim, por exemplo, as solidões andinas, que constituem uma imagem extremamente valorizada por Humboldt, que as descreve em cenas carregadas de dramaticidade. No entanto, sabemos que é nesta mesma solidão que vive a maior parte da população indígena do Peru, tendo sido inclusive o centro de gravidade de grandes civilizações.
A autora descontrói o discurso naturalista, analisando a historicidade da produção do texto em todas as suas instâncias de produção, circulação e apropriação. Ao mesmo tempo, e este me parece é outro aspecto extremamente importante a ser ressaltado, é o fato de que o saber que os naturalistas produzem é na verdade fruto da apropriação do saber nativo. Mais ainda, as relações sociais estabelecidas entre o viajante e as populações coloniais, sejam elas compostas de índios, escravos, autoridades coloniais ou fazendeiros, apenas surgem no texto exercendo funções instrumentais, de informantes, guias ou hospedeiros do viajante. Desta maneira, como aponta Mary Pratt, as populações coloniais surgem no texto em um estado de disponibilidade, que é em si a essência das relacões coloniais. Assim, a natureza ahistórica, as populações instrumentalizadas e despersonalizadas e o processo histórico colonial elidido (e acrescente-se para o caso das antigas civilizações, do México e Peru, a arqueologização da cultura, que desconhece os elos entre aqueles índios decaídos que carregam as malas e os instrumentos e os produtores das maravilhas das antigas civilizações) forjam um saber que, vazado num estilo da ciência do XIX, conforma aquilo que convencionamos chamar de literatura de viagem ilustrada e naturalista. Refazendo estes circuito, Pratt pergunta-se se o romantismo foi, de fato, concebido na Europa e daí transplantado para a América ou na verdade foi ele um, entre tantos processos originais produzidos nas e pelas Américas e, transculturado para Europa, ali transformou-se na concretização mais sutil e sublime do espírito europeu.
Interessante sublinhar que a autora não pára aí, isto é, no desvelamento da historicidade e na crítica ideológica da escrita de viagem e do saber científico naturalista, mas refaz o circuito mostrando como a produção e publicação da literatura de viagem irá realimentar um sistema que tem como elo final a volta à América. Nela, esta mesma literatura será apropriada pelas elites crioulas do XIX, mas não de forma mecânica. Na verdade o que vai ocorrer é uma apropriação seletiva que vai justificar uma nova inserção da América no contexto imperial, no processo de descolonização e nos movimentos de independência. Movimentos novos e essencialmente americanos, como sublinharam Benedict Anderson e a própria autora (embora Pratt não pareça compartilhar da mesma concepção de comunidade imaginada de Anderson), estes serão apropriados pelas elites crioulas europeizantes em busca de sua auto-justificação e legitimidade. Todas estas idéias estão minuciosamente discutidas e analisadas no texto propondo novas formas de se pensar estas questões fundamentais para nossa história. Embora o Brasil não seja o tema deste livro, as interpretações e debates aqui discutidos têm para nós grande interesse.
Finalmente, chamo atenção para um erro que aparece na página 42 da tradução portuguesa, na qual Carl Linné é citado como “naturalista francês”, embora no livro Os Olhos do Império, em sua versão original, inglesa e na tradução em espanhol, ele apareça corretamente denominado como de origem sueca.
Maria Helena Pereira Toledo Machado – Universidade de São Paulo;
[IF]
O ponto onde estamos — Viagens e viajantes na história da expansão e da conquista – MICELI (VH)
MICELI, Paulo. O ponto onde estamos — Viagens e viajantes na história da expansão e da conquista. São Paulo: Scritta, 1994. Resenha de: VIDAL, Diana Gonçalves. As viagens são os viajantes. Varia História, Belo Horizonte, v.12, n.15, p. 203-204, mar., 1996.
Fascinante. Talvez o adjetivo que melhor qualifique o livro de Paulo Miceli. O ponto onde estamos — Viagens e viajantes na histeria da expansão e da conquista, adaptação de tese de doutorado, recentemente publicado pela Scritta. Livro de História e de histórias. Agrada aos que buscam o rigor do trabalho cientifico e aos que apenas desejam o deleite da leitura.
Nele, as viagens trágico-marítimas ganham vida. Deixam de ser “riscos coloridos que percorrem milhares de léguas, unindo os portos de saída aos de chegada”, como figuram nos mapas, na critica do autor, para assumir outra materialidade, a dos relatos de bordo. 0 cotidiano das embarcações nos é narrado numa linguagem fluida e convidativa. Embalados pela narrativa, ora nos deliciamos com os lazeres de bordo: encenação de peças teatrais escritas por padres, procissões religiosas e festas tradicionais — como a da coroação do imperador —; ora nos aturdinos com os reveses das viagens, ondas gigantescas governadas por “uma grande folia de vultos negros, que não podiam ser senão diabos”, epidemias e fome.
Na busca as razoes dos naufrágios, nos deparamos com explicações curiosas. Às vezes, a inepcia do piloto: o privilégio de dirigir a embarcação poderia ser atribuído a “homem desacostumado nesta carreira”, desde que o comprasse. Às vezes, o descuido na construção dos navios: madeiras verdes, furos de verruma não preenchidos por carpinteiros, falta de proporção nas medidas. Às vezes, o despreparo dos homens do mar: marinheiros de última hora — sapateiros, agricultores que não conheciam o linguajar de bordo, nem sabiam nadar. Às vezes, a ação das “peçonhas do diabo”, designação dada pelos padres as prostitutas que embarcadas, distraiam os homens de seus afazeres, deixando-os a merca da tuna do mar (sic). Às vezes, a cobiça: excesso de carga, má distribuição do peso.
Este relato de viagem(s) nos permite, ainda, conhecer a alimentação, a hierarquia social, os conflitos, as disputas, a medicina, as doenças, o proibido e o permitido a bordo dos navios nos séculos XV e XVI. Através dos escritos dos cronistas da época somos lançados neste universo, que para Miceli, ao contrário da sabedoria popular, não é um mundo à parte. Os termos portugueses, muitas vezes desconhecidos, destas crônicas nos são esclarecidos em notas.
O livro se divide em seis capítulos, em cada um deles o autor procura situar aspectos da história da expansão e da conquista portuguesa. Uma breve discussão histórica posiciona Miceli em relação ao seu objeto e a arte de narrar. O segundo capitulo leva-nos a um passeio pela Lisboa quinhentista: fome, doenças, guerras e catástrofes naturais. O capítulo III debruça-se sobre a arquitetura naval. Percorremos as várias etapas da feitura de um navio: projeto, modelo, produto final. Descobrimos carpinteiros e calafates como um poderoso grupo profissional. Percebemos mãos femininas auxiliando a construção de naus — desfazendo cabos de cordas de linho, velhos, e tornando a fiar em estopa de calafetar. Em Singradura, conhecemos a “gente do mar” e alguns de seus relatos de experiencias. Um convite a participar do cotidiano das viagens: festas, teatros, dietas e doenças, nos é realizado no quinto capitulo. Finalmente, em Passageiros do Acaso, o autor interroga-se sobre as raízes dos naufrágios. Falhas na construção, reparo e manutenção das embarcações, além de cobiça, são algumas das causas apontadas.
As notas no final de cada capitulo revelam um intenso trabalho de pesquisa em bibliotecas e arquivos portugueses. Mas indicam, também, o desejo do autor de interferir o menos possível na fluidez do texto, deixando o leitor a vontade para escolher entre entregar-se ao prazer de uma viagem descomprometida ou ao rigor da leitura acadêmica.
Do ponto onde estamos, dirigimos nosso olhar ao passado, tentando captá-lo, conhecê-lo, talvez, aprisioná-lo. Fica o alerta do autor, citando Fernando Pessoa: “As viagens são os viajantes. 0 que vemos não é o que vemos, senão o que somos”.
Diana Gonçalves Vidal – Doutora em História da Educação.
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