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Ensino de História: etnicidade e relações raciais | Crítica Histórica | 2022
Sem Título, Maria Lídia Magliani | Foto: reprodução/Nonada
O dossiê intitulado Ensino de História: etnicidade e relações raciais apresenta um conjunto de textos que problematizam as práticas pedagógicas fomentadas pelas Leis 10.639/2003 e 11.645/2008. O ensino de história e cultura africana e afro-brasileira, bem como aquele sobre história indígena já demarcavam o artigo 26 A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996 (LDB). Mas o Brasil, bem indígena, afro e afro-indígena, ainda sofre com as mazelas geradas pelo eurocentrismo, racismo e pela mentalidade colonial. Esse conjunto de leis orientou o estudo da história e da cultura afrobrasileira e indígena em salas de aula em todo o país, assim como movimentou os currículos dos cursos de História. As pesquisas realizadas, antes das referidas legislações, apontaram que grande parte dos cursos, de base eurocêntrica, “não ofertavam aos futuros professores componentes curriculares relativos à história africana e indígena” (Guimarães, 2022, p. 10).
Em outras palavras, acreditamos que está na hora de realizarmos mudanças políticas substanciais na eleição dos sujeitos da narrativa histórica, mostrando as contribuições dos povos africanos e suas diásporas, bem como as contribuições dos povos indígenas para a história geral. Como responder às grandes questões sociais do mundo contemporâneo sem entender a história da África e da Ásia? Por outro lado, acreditamos também na atuação política dos professores que deveriam se dedicar mais ao mapeamento e criação de práticas educativas antirracistas, do que permanecer denunciando o racismo e afirmando a inexistência de materiais didáticos. Assim, a nossa intenção de discutir práticas pedagógicas antirracistas ainda se faz necessária, e urgente, em um país fortemente marcado por desigualdades sociais e defensor do mito da democracia racial brasileira. Leia Mais
Relações raciais nas diásporas africanas em perspectiva interseccional / Em Tempo de Histórias / 2020
O dossiê Dinâmicas das relações raciais nas diásporas africanas em perspectiva interseccional reúne trabalhos que abordam temas relacionados às dinâmicas interseccionais de relações de raça nas diásporas africanas nos diferentes espaços e níveis de sociabilidade. Frantz Fanon aponta que “o racismo é uma chaga da humanidade. Mas é preciso que não nos contentemos com essa frase. É preciso procurar incansavelmente as repercussões do racismo em todos os níveis de sociabilidade” (FANON, 1980, p. 40). Para esse autor, a superação do racismo somente ocorrerá no momento em que se experimentar um processo de descolonização a partir de uma práxis anticolonial e emancipadora que envolva tanto os aspectos objetivos quanto os subjetivos da existência humana.
É nesse sentido que os artigos aqui selecionados para comporem o dossiê apresentam um campo fértil de debate no âmbito das relações raciais, com estudos e análises que tem como enfoque trabalhos que dialogam entre si e que permite a nós, leitores/as, importantes reflexões. Tais artigos têm em suas bases pressupostos teóricos que partem de outros “locais de saberes”, que não o continente europeu, de lugares que possibilitam a demolição dos muros historicamente construídos do patriarcalismo branco heteronormativo, para estimular um “descolonizar de mentes” (HOOKS, 1995) e a construção de pontes para novas epistemes.
Sendo assim, agrupamos os artigos por série, respeitando suas propostas de discussões e reflexões. A primeira série contém artigos que buscam desvelar, por meio de diferentes temas, metodologias e fontes de análise, os aspectos religiosos que dialogam diretamente com questões étnico-raciais. O artigo que abre as propostas de reflexão é intitulado As irmandades negras na encruzilhada do “sincretismo”: leituras sobre o Catolicismo e as religiosidades afro-baianas nos séculos XIX e XX, de autoria de Mariana de Mesquita Santos, que objetiva apresentar aos/às leitores/as uma nova forma de se interpretar as religiosidades afro-baianas, numa tentativa de desconstrução de antigos discursos e análises calcados em interpretações preconceituosas e racistas em torno dessa religiosidade. Ainda dentro da mesma abordagem, o artigo de Jaciely Soares da Silva e Admilson Eustáquio Prates discute e apresenta o Ponto Cantado de Umbanda como fonte para o ensino de História, como também propõe, a partir da música, o debater sobre a religiosidade de matriz africana no espaço da sala de aula. Por fim, o artigo Congo, Congado, Congadas: tradição cultural afro-brasileira de resistência ao racismo e discriminação e os tempos de diásporas e escravidão, de Jeremias Brasileiro da Silva, discorre sobre questões inerentes à prática da Congada no município de Uberlândia-MG, problematizando como a permanência do racismo perpassa relações sociais, culturais e religiosas, nas relações de lazer, de trabalho e de poder.
Na segunda série, apresentamos um conjunto de artigos que tem como debate central o discurso de pensadores que, em tempos e espaços diferentes, abordam a presença negra no Brasil. Para iniciarmos, o artigo A política da morte nos projetos abolicionistas de Andrade Corvo e Joaquim Nabuco, de autoria de Gabriel Felipe Silva Bem, propôs discutir, a partir de leituras desses abolicionistas, como seus discursos carregavam um ideal colonial que perpassava o pressuposto de um projeto de eliminação de indivíduos negros em prol de uma idealização de um modelo de sociedade. Ainda seguindo uma linha de análise de pensadores, o artigo intitulado Raça: uma ferramenta de poder na construção das identidades e o pensamento de Geraldo Rocha, de Erica Naiara Ribeiro Borges e José Francisco dos Santos, problematiza esses escritos colocando-os no campo de análise da construção da identidade pós colonial no Brasil mediado por um discurso positivo de mestiçagem que, em tese, apresentava o apagamento de negros e mestiços na formação da sociedade.
A terceira série de artigos é composta por textos entrelaçados pela cultura negra nos Estados Unidos da América e no Brasil. O primeiro artigo desta série é Ideários Estéticos Afro-Atlânticos e Decolonialidade: Um estudo de caso em Jean-Michel Basquiat, de autoria de Hélio Ricardo Marino Rainho, no qual sugere um estudo sobre as proposições do artista afro-americano Jean-Michel Basquiat (1960-1988) para problematizar o campo artístico hegemonicamente branco, ao mesmo tempo em que coloca em debate o apagamento, a invisibilidade e o primitivismo a legados artísticos afro-atlânticos. No artigo seguinte, Black Arts Movement: “Expressar a verdade a partir dos oprimidos ou opressores?”, do autor João Gabriel do Nascimento Nganga, é proposto um debate sobre o Black Arts Movement que surgiu em meados de 1960, nos Estados Unidos da América, com o intuito de estabelecer e consolidar a presença e vozes negras nas artes, em especial, no teatro e na literatura, tendo a África e suas diásporas como ponto de partida para a inserção nessas artes de referenciais simbólicos ignorados. O terceiro artigo desta série, O Rap negro na cidade planejada: A música negra das periferias do Distrito Federal, de autoria de Eliane Cristina Brito de Oliveira, coloca em debate os espaços destinados aos negros e brancos na cidade de Brasília-DF e a relevância do RAP como resistência e importante aliado na construção da identidade negra da juventude das periferias do Distrito Federal. Em sequência, temos o artigo, A Autoavaliação e Autodefinição de Carolina Maria de Jesus na obra Quarto de Despejo: diário de uma favelada, da autora Cristiane da Rosa Elias, que analisa a obra “Quarto de Despejo” de 1960 de Carolina Maria de Jesus a partir de uma visão interseccional proposta pelo feminismo negro com o intuito de perceber como o olhar oposicional se faz presente na obra de Carolina de Jesus e como essa é uma das representações de mulheres negras nesse contexto histórico Os artigos selecionados para a quarta série trouxeram para o debate a mulher negra com suas diferentes experiências históricas e sociais. Iniciamos com o artigo intitulado Pelas ruas da cidade: cotidiano e trabalho de mulheres negras em Belém (1888-1900), autoria de David Durval Jesus Vieira, que aborda a experiência da mulher no pós-abolição da escravidão atravessada por enfrentamentos relacionados ao racismo e às questões de gênero, em meio ao momento histórico de crescimento econômico e remodelação que a cidade vivenciava. Já o artigo Raça, gênero e maternidade: as mulheres escravizadas na proposta de emancipação gradual de José Bonifácio, de Caroline Passarini Sousa, a partir de uma minuciosa leitura da Representação a Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a Escravatura”, escrita por José Bonifácio em 1823, coloca no centro de leitura a mulher negra escravizada numa proposta de compreender qual o seu lugar no projeto de sociedade do século XIX. O artigo Mulheres escravizadas e relacionamentos afetivos: pensando projetos amorosos e as masculinidades negras a partir da interseccionalidade (Cachoeira do Sul, século XIX), da autora Marina Camilo Haack, problematiza um tema ainda muito recente dentro dos estudos sobre a escravidão, que são os relacionamentos afetivos entre escravizados, no entanto a autora paira seu olhar detalhadamente nos espaços afetivos sobretudo das mulheres. O artigo Parda Liberta que Vive do Ofício de Meretriz: Gênero, raça e sexualidade em Goiás no século XIX, de Murilo Borges da Silva, propõe analisar como as práticas discursivas e não discursivas, legitimadas por relações de saber e poder, produziram historicamente corpos femininos negros, sendo que tais discursos entonavam em uma maior vigilância e controle sobre as mulheres negras e pobres, com o objetivo de torna-las dóceis, úteis e ordeiras. Por último, o artigo intitulado Corpos Fragmentados: a representação da raça e do corpo da mulher africana nos Cadernos Coloniais (1935-1941), de Rannyelle Rocha Teixeira, traz como proposta de análise as imagens e os textos sobre como a raça e os corpos femininos das mulheres africanas eram representados nesses cadernos, os quais estavam intimamente relacionados às manobras e estratégias de poder em prol do projeto colonialista português.
Na quinta série de artigos, os textos têm como tema central a educação. O artigo que abre esta série é o Relações étnico-raciais e integração curricular no ensino das Ciências Humanas, de autoria de Guilherme Babo Sedlacek e Rodolfo Denk Neto, que abordam a temática da História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena a partir da produção de material didático, de modo transversal e interseccional, nesta área para cursos de ensino médio técnico. No segundo artigo, temos o texto Ensino de História sob um olhar interseccional: considerações sobre relatos de estudantes negras do Sul do Pará, da autora Andreia Costa Souza e do autor Dernival Venâncio Ramos Júnior, que partem das discussões resultantes de uma pesquisa de mestrado no campo do Ensino de História, que teve estudantes negras como protagonistas, no qual o objetivo foi refletir sobre os sistemas de discriminação e opressão que estruturam a condição histórica da mulher negra, além de visibilizar vivências de estudantes negras a partir da perspectiva interseccional, para, assim, permitir uma maior aproximação da realidade das estudantes, a fim de criar futuras e novas narrativas na prática pedagógica do Ensino de História. Na sequência, o artigo Cenário de uma Educação Étnico-Racial em movimento para o Século XXI: ações afirmativas ou medidas compensatórias?, de autoria de Cairo Mohamad Ibrahim Katrib e Tadeu Pereira dos Santos, aborda as ações afirmativas, no tocante à inclusão e permanência dos ingressantes na educação superior, e problematiza os dados produzidos por órgãos públicos como Instituto Brasileiro de Geografia e Estática (IBGE), a Agência Brasil, o Ministério da Educação (MEC) e a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES). O quarto artigo, Movimentos políticos negros no Atlântico: análise de uma oficina pedagógica sob uma perspectiva antirracista e decolonial, da autora Clara Marques Souza, a partir de um aporte teórico decolonial, analisa a experiência da aplicação de uma oficina pedagógica de história no ensino básico, em duas turmas de oitavo ano do Ensino Fundamental II, sobre três movimentos políticos majoritariamente negros no Atlântico: a Conjuração Baiana (1798), a Revolução Haitiana (1791-1804) e a Conspiração de Aponte (1812). Em seguida, temos o artigo O que pode a cultura material enquanto fonte para o estudo da história afro-brasileira e africana nas escolas? Por um ensino de História pluriepistêmico, de autoria de Clarissa Adjuto Ulhoa, que defende que a cultura material, ao ser escolhida como fonte para o ensino da história e da cultura afrobrasileira e africana, tem o potencial de contribuir para práticas pautadas em pluriepistemologias. Em seguida, temos o artigo Os impactos da lei 10.639/03 nos cursos de Licenciatura em Letras da Universidade Federal de Catalão, das autoras Maria Helena de Paula e Carolina Faleiros Felício, que discute a aplicação da Lei 10.639/03 nos cursos de Licenciatura em Letras da Universidade Federal de Catalão, a partir da análise do Projeto Pedagógico dos cursos e dos horários semestrais de oferta de disciplinas, nos últimos dez anos. Fechando esta série de artigos, temos o texto O jogo Mancala como estratégia pedagógica Etnomatemática: relato de uma experiência numa turma de 2º ano do Ensino Fundamental da Escola Estadual Professor Elídio Duque no município de Salinas-MG, de autoria de Adriana Lúcia Brandão Diogenes e Graziele Santos Ferreira, que, em seu artigo, faz uma abordagem entre as características étnico-raciais com os conceitos matemáticos, procurando iniciar uma modificação do pensamento eurocêntrico no contexto escolar em que esse trabalho foi realizado, bem como olhar para a ciência matemática para além de números e cálculos, no qual buscou-se fazer um paralelo entre os conceitos matemáticos e a questão étnico-racial, demanda necessária em função da implementação da Lei 10.639/03.
A sexta série de artigos se inicia com o texto As famílias cativas capixabas entre 1850-1871: um comparativo entre as Regiões Sul e Central da província, de autoria de Laryssa da Silva Machado e Lucas da Silva Machado, que analisam a composição das famílias cativas do Espírito Santo entre os anos de 1850 e 1871, datas marcadas pela promulgação das leis abolicionistas Eusébio de Queirós e Lei do Ventre Livre. Em seguida, temos o artigo Decifrando as fugas escravas: narrativas, senhores e fujões na cidade do Rio de Janeiro (1840-1850), da autora Fernanda Cristina Puchinelli Ferreira, que aborda a fuga de escravizados, no sentido de analisar os significados e sentidos que uma fuga tinha para os escravizados, senhores outros segmentos sociais. O terceiro artigo, “Vá bater naquele negro que eu garanto”: marcadores raciais na Bahia (1940 – 1960), de autoria de Diego Lino Silva e Clóvis Frederico Ramaiana Moraes Oliveira, versa sobre a trajetória de populações negras na Bahia entre as décadas de 1940 e 1960, tomando como referência a região de Feira de Santana, no qual utilizam processos criminais para debater os indicadores do uso e negação da cor preta como instrumento de criminalização ou aceitação dos sujeitos pesquisados.
A sétima e última série de artigos selecionados contribuem com a discussão em torno do preconceito do racismo histórico e socialmente construído no Brasil. Para tanto, o artigo intitulado As desvantagens de ser invisível: uma reflexão sobre o racismo no Brasil, de Daiara Suellen Gabriel de Ávila, aborda como a diáspora africana e a escravidão nas Américas alicerçou a construção e manutenção do racismo estrutural. Nesse sentido, a autora propôs apresentar tanto as diversas faces do racismo durante a escravidão e no pósemancipação, como também as estratégias usadas pelos mesmos para manterem não só a humanidade diante do sistema, mas também a cultura viva, ainda que de forma modificada. Já o artigo A invisibilidade dos negros na história de Gramado/RS: levantamento preliminar, autoria de Alex Juarez Müller e Raimundo Nonato Wanderley de Souza Cavalcante, debatem sobre a quase inexistência de registros acerca da presença negra no Sul do Brasil, e, na busca construir uma história que rompa com essa invisibilidade da e na História, os autores recorrem a lugares de memória, livros de memorialistas, fotografias e paisagens nunca tentativa de trazer para o tempo presente material que possa problematizar a efetiva presença e importância afro-brasileira na formação tanto no Sul, como também do Brasil. O artigo intitulado Um feriado a Zumbi: a tentativa de reconhecimento do 20 de Novembro em Porto Alegre (2001-2003), de José Augusto Zorzi, traz como foco de problematização o dia 20 de Novembro, e como essa data, ao ser projetada como feriado municipal, desencadeou uma série de debates e disputas políticas que evidenciaram dois blocos de discussão: o poder das agências negras e os limites políticos e ideológicos para o reconhecimento. Na sequência, o artigo intitulado As ações afirmativas e o sistema de costas raciais: resgate histórico ou reparação das desigualdades sociais?, de Ana Amélia Aquino Brito, propôs analisar a utilização de políticas de ação afirmativa para implementação de cotas raciais, tendo como ponto de problematização e questionamento se as cotas se referem a um resgate histórico das injustiças cometidas aos afrodescendentes pelo passado escravista ou se trata-se da reparação das desigualdades sociais dos grupos minoritários de negros, pardos e afrodescendentes. Por último, o artigo Apontamentos sobre o apagamento da população negra no relatório da Comissão Nacional da Verdade – 2014, autoria de Tairane Ribeiro da Silva, traz para a discussão o processo de apagamento da população negra durante a ditadura-militar no Brasil. A autora, além de apresentar qual a situação em que tais indivíduos viviam no período, propõe também dar visibilidade aos mesmo abordando seus perfis, atuação profissional e organizações políticas as quais participavam.
Portanto esse dossiê agrega uma série de proposta de discussão que tem como objetivo problematizar as Dinâmicas das relações raciais nas diásporas africanas, com investigações, perspectivas de abordagem teórica e metodológica múltipla e diversificada.
A leitura dos artigos nos apresenta tanto a necessidade de romper e desnaturalizar o racismo, como também indica novos caminhos para o entendimento do tema. Boa leitura!
Prof. Dr. João Gabriel do Nascimento Nganga
Profa. Dra. Jaciely Soares da Silva
Organizadores
Direitos Humanos, Relações Raciais e História / Esboços / 2009
Em uma recente síntese sobre a história do conceito de Direitos Humanos, Lynn Hunt aponta a descontinuidade entre a Declaração da Independência dos Estados Unidos (1776), a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão proclamada durante a Revolução Francesa (1789) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pelas Nações Unidas em 1948. De fato, a historiadora norte-americana trabalha com a ideia de “invenção” dos Direitos Humanos, buscando em cada momento o lastro social e cultural para o que constituiu, essencialmente, um conjunto de transformações nas sensibilidades, na maneira de se ver o “outro”.1 Nos interessa aqui refletir sobre as exclusões. A declaração norte-americana, de que “todos os homens são criados iguais, que foram dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes se encontram a vida, a liberdade e a busca da felicidade” claramente se referia apenas às pessoas livres. George Washington, Thomas Jefferson e outros “pais fundadores” eram senhores de escravos, como sabemos, e não viam contradição entre seus discursos e sua prática. A declaração francesa de 1789, proclamou em seus primeiros artigos que “Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos” e que os direitos naturais e imprescritíveis do homem são “liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência contra a opressão”. A declaração de 1793, mais abrangente, manteve a idéia de liberdade individual porém pôs grande ênfase na igualdade. Previu a liberdade de culto, a liberdade de comércio e indústria, a liberdade de imprensa, de reunião, o direito à assistência pública, à instrução e o direito de petição. Em resposta às demandas e instabilidade vindas das colônias caribenhas, a escravidão foi abolida e os direitos estendidos a todos, agora considerados cidadãos da República Francesa. A gama de direitos considerados fundamentais estava, em princípio, reconhecida para todos, independente de cor, sexo ou religião.
O século XIX assistiu no mundo ocidental à constante expansão da idéia de soberania popular, à instituição de regimes constitucionais e a uma progressiva desnaturalização e condenação da escravidão. Mas também testemunhou uma crescente expansão colonial por territórios na Ásia, na África e na Oceania, além da expansão dentro das próprias fronteiras, por territórios de populações nativas. Esses dois movimentos resultaram na afirmação da superioridade dos valores ocidentais sobre os de outros povos, que foi formulada, aos poucos, através da afirmação de diferenças biológicas, cristalizadas no conceito de “raça”. Ao fim do século, a dominação e a exploração de outros povos era justificada com base na superioridade “do homem branco” e direitos diferenciados eram reconhecidos conforme a posição dos sujeitos na escala da civilização. A cidadania, tanto no sentido de nacionalidade e proteção dos direitos individuais por um Estado, quanto no sentido político de exercício do direito de expressão e de participação nos destinos da sociedade ficou subordinada à suposta escala de “civilização” e marcada pela exclusão de vários grupos, com base em argumentos racialistas.
Os textos que compõem o dossiê “Direitos Humanos, Relações Raciais e História” foram apresentados no seminário realizado no Programa de Pós-Graduação em História da UFSC em setembro de 2007. As discussões tecidas pelos autores convidados exploram diferentes vertentes da confluência entre direitos humanos e relações raciais, todas situadas no século XX, quando os paradigmas construídos no século anterior foram questionados. O artigo de James W. Walker, “Uma campanha por direitos iguais: a diáspora indiana e a cidadania canadense” trata das estratégias traçadas e das ações empreendidas pela comunidade de imigrantes asiáticos para ter direitos reconhecidos no Canadá. Walker procurou avaliar as condições positivas para que a opinião pública canadense passasse a apoiar as reivindicações das associações de imigrantes. A mesma preocupação teve Stephanie Bangarth, no artigo “A Segunda Guerra Mundial, os nipo-canadenses e a primeira fase do movimento pelos direitos humanos no Canadá” a respeito da campanha pelos direitos dos canadenses de origem japonesa. Sujeitos à deportação forçada durante a Segunda Guerra, não eram vistos como beneficiários dos direitos reconhecidos aos súditos do Império britânico até que uma campanha em sua defesa foi montada e obteve sucesso, no bojo da formulação mais abrangente de “direitos humanos”. Um fascinante paralelo ao caso do tratamento dos canadenses de origem japonesa no Canadá se encontra no artigo de Priscila Perazzo, “Prisioneiros, direitos e guerra no Brasil de Vargas” que aborda os direitos dos alemães, italianos e japoneses feitos prisioneiros no mesmo período no Brasil. Perazzo explora de forma hábil os debates internos havidos entre os diferentes setores do governo Vargas acerca dos direitos dos prisioneiros. O tratamento dado a esses estrangeiros em Santa Catarina é o tema do artigo de Marlene de Fáveri, “Tempos de intolerância: repressão aos estrangeiros durante a Segunda Guerra Mundial em Santa Catarina”. A autora discute a política de internamento brasileira e sua aplicação em Santa Catarina e explora em particular as marcas da intolerância na memória daqueles que foram presos, ou que tiveram suas práticas cotidianas cerceadas. O dossiê se completa com o artigo de Álvaro Andreucci intitulado “A resistência no discurso oficial de João Mangabeira”, em que explora a repressão à participação política de Mangabeira durante o início do Estado Novo e os debates jurídicos havidos no Supremo Tribunal Federal acerca de direitos políticos e liberdade. Os cinco textos dialogam com a crise do paradigma racialista que, exposta pela Segunda Guerra, culminou na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Considero que contribuem tanto para um diálogo comparativo quanto para uma análise multifacetada do protagonismo dos sujeitos e associações que, ao reivindicar direitos e expor as desigualdades, contribuíram para a formulação abrangente dos “Direitos Humanos”.
Notas
1 HUNT, Lynn. A Invenção dos Direitos Humanos: Uma História. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
Beatriz Gallotti Mamigonian – Professora do Departamento de História da UFSC. E-mail: bgmamigo@gmail.com.
Organizadora do dossiê