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Relações Civis e Militares e Segurança Nacional / Varia História / 2012
Mais uma vez navegando na transdisciplinaridade, o atual dossiê “Relações Civis Militares e Segurança Nacional”, a exemplo do dossiê anterior, “História e Inteligência”, trafega em temas cujo estudo vem, paulatinamente, crescendo no país e na América Latina. A importância de pesquisas sobre temas vinculados à defesa, estudos estratégicos e segurança tem sido reconhecida em termos nacionais por meio do Ministério da Defesa, por exemplo, que vem ampliando o debate junto à sociedade civil, fomentando pesquisas por meio de editais e prêmios e abrindo interlocução com a CAPES e o CNPq, e no âmbito internacional, pela criação de instituições de pesquisa tais como a Red de Seguridad y Defensa de America Latina (RESDAL).
De uma análise sobre o comportamento dos militares e o uso da violência que remonta à década de 1970, realizada ainda por poucos pesquisadores, a exemplo do trabalho pioneiro de Eliézzer Rizzo de Oliveira, estas pesquisas passaram nos anos de 1980 e 1990 para um enfoque sobre as relações civis-militares, com destaque para a influência exercida por trabalhos como os de João Roberto Martins Filho, Jorge Zaverucha, e a trilogia produzida pelo Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas – CPDOC / FGV, sob responsabilidade de Maria Celina D´Araújo, Celso Castro e Gláucio Ary Dilon Soares. Atualmente, estas análises abarcam também as possibilidades de emprego da força e uso político das forças armadas, a exemplo de alguns artigos que se seguem.
De uma forma geral, trabalhar sobre o conceito de segurança nacional permite uma gama infinita de possibilidades pois, afinal de contas, o que podemos entender como segurança? A segurança implica uma situação percebida como livre de ameaças ou de quaisquer outros fatores conflitivos. Na presença de ameaças ou conflitos identificáveis, a segurança, do ponto de vista institucional das democracias, é percebida como a possibilidade de articulação de mecanismos institucionais capazes de neutralizar essas ameaças ou conflitos, a fim de se alcançar determinado ordenamento e assegurar o conjunto de garantias e direitos constitucionais, bem como de assegurar o funcionamento integral das instituições política.
No entanto, a segurança é interpretada e defendida tanto nas democracias como em regimes ditatoriais, e está relacionada às ameaças internas e externas e aos padrões de relação existente entre as instituições vinculadas ao poder coercitivo e à sociedade.
A segurança pode tanto estar relacionada às ameaças externas, que dizem respeito à própria existência do Estado, preservação de território, sobrevivência de sua população etc., quanto a aspectos internos da sociedade. Quanto mais fechado for o regime, maior será a propensão do governo a enfatizar a segurança interna e preocupar-se com a repressão política dentro do próprio território.
Durante os governos autoritários latino-americanos, o estabelecimento da “segurança nacional” foi a base para o desenvolvimento de uma série de desrespeito aos direitos individuais e humanos, e é possível que esta “herança maldita” desqualifique a utilização do conceito de segurança nacional para a resolução de conflitos em sociedades democráticas. Não obstante, Marco Cepik chama atenção para uma importante questão: embora o conceito de “segurança nacional” careça de legitimidade em um contexto democrático, é impraticável reduzir a segurança coletiva à segurança individual, o que impede o simples abandono do conceito de segurança nacional. Neste sentido, a Segurança Nacional implica um grau relativo de proteção individual e coletiva. Estar seguro significa viver em um Estado minimamente capaz de neutralizar ameaças através de negociações, de obter informações sobre capacidades e intenções dos interesses adversários através dos recursos que lhe estão disponíveis e legitimados pelo exercício soberano e exclusivo do monopólio da força física.
Portanto, considerando a elasticidade e ambiguidade do conceito, optamos por dividir o dossiê em três partes. Os três capítulos iniciais (Enrique Padrós, João Roberto Martins Filho, e Suzeley Mathias e Fabiana Andrade) abordam a segurança nacional a partir da perspectiva da violência e do sistema institucional de repressão. Os dois capítulos seguintes, elaborados por Alessandra Carvalho e Maria Celina de Araújo, abordam o tema da segurança nacional pela perspectiva política, seja no período da ditadura, seja no presente. Os dois capítulos finais (David Mares e David Pion-Berlin) enfatizam tanto as relações civis-militares e a questão da segurança nacional (agora a partir de uma nova lógica interpretativa, não mais vinculada à Doutrina de Segurança Nacional) que perpassam todos os textos, quanto às possibilidades de emprego e uso político dos militares. Neste caso, os dois autores, além de consideram o recente contexto histórico, fornecem sugestões sobre o aperfeiçoamento do emprego das forças armadas na América Latina.
De forma detalhada e abrindo os trabalhos, Enrique Padrós, no texto A ditadura civil-militar uruguaia: doutrina e segurança nacional, realiza uma análise da interpretação que os militares uruguaios fizeram da Doutrina de Segurança Nacional. Para o autor, a doutrina foi o fator basilar da política repressiva estatal que colocou a proteção da segurança nacional como premissa principal, justificadora e legitimadora da disseminação do chamado terrorismo de Estado (TDE). As interpretações sobre conceitos fundamentais da doutrina permitiram aos militares uruguaios instrumentalizar a atuação repressiva junto à sociedade civil.
João Roberto Martins Filho também elabora uma discussão relacionada à Doutrina de Segurança Nacional e procura identificar quais matizes teóricos teriam orientado a política de repressão brasileira durante a ditadura. Para o autor, ao contrário das premissas estabelecidas por vários autores brasileiros e por importantes latino-americanistas, de que os estadunidenses teriam ofertado a maior parte das orientações doutrinárias da nossa política repressiva, a doutrina de guerra revolucionária francesa teria sido ainda mais importante que a dos Estados Unidos em países como Brasil, Chile e Argentina. O trabalho procura acompanhar com detalhe a evolução e aplicação deste ideal no seio das Forças Armadas brasileiras entre 1959 e 1975.
Ainda pensando a política repressiva durante a recente ditadura brasileira, Suzeley Kallil Mathias e Fabiana de Oliveira Andrade, no texto O Serviço de Informações e a cultura do segredo, revisitam a literatura relacionada à criação e desenvolvimento dos serviços de informações brasileiros até o auge da repressão, entendido aqui como a primeira metade da década de 1970, momento de desarticulação da Guerrilha do Araguaia. As autoras analisam o contexto histórico de desarticulação da guerrilha a partir da terceira campanha, conhecida como Campanha Marajoara, e avaliam como a mudança de estratégia castrense no âmbito interno permitiu que a comunidade de informações agisse de forma paralela ao comando hierárquico, mas neste caso, em particular, sem mesmo o conhecimento e anuência dos comandantes regionais. Argumentam que a mudança do modus operandi, favorecida pela capacidade de adaptação à cultura do segredo, teria sido um fator decisivo para que os militares alcançassem, definitivamente, seus interesses.
Entrando na esfera da relação comportamento político e segurança nacional, Alessandra Carvalho. em “Democracia e desenvolvimento” versus “Segurança e desenvolvimento”: as eleições de 1974 e a construção de uma ação oposicionista pelo MDB na década de 1970, analisa a elaboração de uma ação oposicionista pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB) no decorrer da década de 1970, tendo como ponto de inflexão as eleições de 1974 para o poder legislativo federal. A autora avalia como que, para obter o crescimento e a projeção desejada e alcançar seus interesses, foi preciso elaborar um discurso que rompesse com a ênfase no binômio segurança e desenvolvimento defendida pela elite econômica e pelos militares, orientando o discurso para aspectos relacionados ao fortalecimento de instituições democráticas.
Já Maria Celina D´Araújo, em O estável poder de veto Forças Armadas sobre o tema da anistia política no Brasil, demonstra como há um determinado nível de continuum em relação ao poder político dos militares desde a ditadura. Neste sentido, a autora afirma que os militares brasileiros detém um poder estável de veto player, que vem sendo incisivamente aplicado em relação ao tema da anistia. Esta capacidade seria fruto da autonomia militar antes, durante e depois da ditadura, da permanência dos baixos níveis de respeito aos direitos humanos na sociedade brasileira, e do baixo interesse do Congresso e do governo em geral pelo tema das Forças Armadas.
Transitando do tema política e segurança nacional para o tema relações civis-militares e segurança nacional, David Mares, em seu artigo Por que os latino-americanos continuam a se ameaçar: o uso da força militar nas relações intra latino-americanas, analisa a recorrente presença do emprego de um baixo nível de força militar na resolução de tensões, no contexto histórico latino americano do século XX e início do século XXI. Contrariando a máxima observada de forma simplista, de que a América Latina é um continente de paz, o autor identifica a ocorrência da militarização dos países latino-americanos e o emprego das forças armadas não apenas na resolução de disputas inter-regionais, mas também no nível interno, no âmbito da segurança doméstica. Enfoque importante é dado à capacidade e interesse de intervenção na região nos últimos anos por parte dos organismos internacionais responsáveis por arbitrarem / mediarem estes conflitos. O argumento do autor é que, em relação à arquitetura de segurança da América Latina, tem havido um crescente incentivo para a militarização das ações, o que não lhes imprime, necessariamente, eficiência.
Por fim, também no âmbito da temática segurança nacional e relações civis-militares, David Pion-Berlin, em Cumprimento de missões militares na América Latina, ao analisar a correlação de forças e interesses entre poder político e militares na América Latina nos últimos anos, identifica questões que, historicamente, têm provocado o cumprimento ou não-cumprimento dos militares em relação às missões que lhes tem sido atribuídas. Fatores como natureza da missão, experiência, treinamento e compatibilidade de funções, associados aos incentivos e desincentivos morais para sua ação, têm pesado como questões fundamentais para a decisão dos militares de aceitarem tais tarefas. A atuação em torno das ações de manutenção da paz, de ação cívica e de missões de destruição de drogas têm sido historicamente mais aceitas do que as missões anti-crimes e de manutenção da ordem pública, com algum grau de possibilidade de negociação no que tange às ações de contra-insurgência.
Agradecendo cada um dos autores pelas generosas contribuições, e certa de que com este segundo Dossiê Vária História 2012 estamos contribuindo para as pesquisa sobre os temas de segurança, defesa e inteligência no país, convido a todos a desfrutar da leitura.
Notas
[Numeração indisponível no corpo do texto original]1.OLIVEIRA, Eliézzer Rizzo de. Forças Armadas, política e ideologia no Brasil, 1964-1969. Petrópolis, RJ: Vozes, 1976. [ Links ]
2. MARTINS FILHO, João Roberto. O palácio e a caserna, 1964-1969. São Carlos, SP: Editora da UFSCar, 1995. [ Links ]
3. ZAVERUCHA, Jorge. Rumor de sabres: controle civil ou tutela militar? Estudo comparativo das transições democráticas no Brasil, na Argentina e na Espanha. São Paulo: Ática, 1994. [ Links ]
4. D´ARAÚJO, Maria Celina, CASTRO, Celso e SOARES Gláucio Ary Dilon. Visões do golpe: a memória militar sobre 1964. Rio de Janeiro: Relume Dumara, 1994; [ Links ] SOARES Gláucio Ary Dilon, D´ARAÚJO, Maria Celina e CASTRO, Celso. [ Links ] Os anos de chumbo: a memória militar sobre a repressão. Rio de Janeiro: Relume Dumara, 1994; SOARES Gláucio Ary Dilon, D´ARAÚJO, Maria Celina e CASTRO, Celso. [ Links ] A volta aos quartéis: a memória militar sobre a abertura. Rio de Janeiro: Relume Dumara, 1995.
5. BRANDÃO, Priscila. Serviços secretos e democracia no Cone Sul. Niterói: Editora Impetus, 2010, p.23. [ Links ]
6. CEPIK, Marco. Espionagem e democracia. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 2003, p.63. [ Links ]
Priscila Brandão – Organizadora. Departamento de História, UFMG. E-mail: priscilahis@gmail.com
BRANDÃO, Priscila. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.28, n.48, jul. / dez., 2012. Acessar publicação original [DR]