Regulação de conflitos na Idade Média / Tempo / 2020

Entre poderes: jurisdições e regulação de conflitos na Idade Média. Séculos V ao XV

Nas últimas duas décadas, as pesquisas referentes a estudos sobre a Idade Média experimentaram um vertiginoso e consistente crescimento na historiografia produzida por pesquisadores brasileiros. Neste caso, não se trata apenas do aumento no número de publicações na área, sejam em livros, artigos ou anais de eventos científicos. Para além disso, destacamos que as pesquisas sobre o período medieval vêm experimentando um reconhecimento nacional e internacional, verificado através do surgimento de novos laboratórios e grupos de pesquisa, fortalecimento dos trabalhos em rede com historiadores e universidades estrangeiras, e pela “democratização” do acesso a uma bibliografia atualizada e fontes documentais, fruto dos constantes processos de digitalização e disponibilização on-line do material de pesquisa em História Medieval.

O resultado do fortalecimento da área dos estudos medievais apresenta ainda outra consequência extremamente positiva: a diversificação nas temáticas de pesquisa. Atualmente, encontramos pesquisas que se localizam nos mais diversos recortes temporais, geográficos, temáticos, o que permite o fortalecimento do diálogo com outras ciências, como Arqueologia, Ciência Política, Direito, Literatura, Artes e Antropologia.

Devido a esse cenário de transformações e fortalecimento da área junto aos estudos de História no Brasil, hoje em dia não caberia uma proposta de dossiê junto a um periódico apenas pautado pelo título de “História Medieval” ou “Idade Média”. Por isso, este dossiê não é recortado apenas por balizas cronológicas amplas em comparação com outros períodos da História (Moderna, Contemporânea, Colonial, do Tempo Presente, entre outros). Mais do que isso, trazemos aqui artigos que lidam de maneira mais específica com questões relacionadas ao recurso à Justiça e suas formas específicas de ação, legitimação e atuação, bem como a compreensão sobre sua função de intermediar e promover a resolução de conflitos no período medieval.

Atualmente, o termo jurisdictio designa, de forma relativamente precisa, a instituição do Judiciário, ou seja, o poder de julgar e, por extensão, o limite desse poder. Esta compreensão se desenvolveu, sobretudo, a partir do século XVIII. No final da Idade Média, a etimologia da palavra jurisdictio refletia sua íntima ligação com determinadas práticas legais. Associados a ela, encontramos ainda os termos edictum (editar) e dictum, “o que ele diz”, recorrente nos inquéritos e procedimentos judiciais em geral. (Billorè; Mathieu, 2012)

Todavia, quando recuamos alguns séculos no tempo, percebemos que a concepção medieval de jurisdictio deve boa parte de sua significação à estruturação institucional da Igreja. A ausência de uma definição estrita de jurisdictio, longe de levar apenas à confusão em sua compreensão, multiplicava as possibilidades de extensão dos usos do poder da justiça. Dessa forma, era por meio de uma malha de superposições jurisdicionais que muitos conflitos eram regulados no período medieval (Guillot; Rigaudière, 1999).

Nesta perspectiva, o que este dossiê pretende é apresentar um panorama da problemática sobre a Justiça e o exercício do poder em diferentes contextos de resolução de conflitos, contribuindo para o fortalecimento de um debate importante no âmbito da historiografia do Direito e suas aplicações no estudo das sociedades medievais. Acreditamos que os artigos aqui apresentados possibilitarão ao leitor o contato e algumas reflexões com abordagens historiográficas atualizadas sobre o tema. Além da aproximação com a área do Direito e da Ciência Política, o dossiê Entre poderes: jurisdições e regulação de conflitos na Idade Média. Séculos V ao XV também propõe um diálogo mais próximo com outras áreas da História, como a História Moderna, na medida em que a questão do estudo das jurisdições é temática recorrente em ambas as áreas.

Assim sendo, o dossiê se inicia com o artigo de Marcelo Cândido da Silva, “Valor e cálculo econômico na Alta Idade Média”, trazendo uma reflexão sobre a presença do cálculo econômico na definição dos preços dos gêneros alimentícios, partindo da análise da relação entre avaliação dos produtos e definição de seus preços. O autor trabalhou com documentos oriundos da Gália e da Península Itálica.

Na sequência, dois artigos que tratam do mundo anglo-saxônico e anglo-normando, a partir de recortes cronológicos e documentais distintos. No trabalho intitulado “Propriedade fundiária na Nortúmbria anglo-saxônica: jurisdição, conflito e confluências (século VIII)”, Renato R. da Silva discute, a partir da análise da questão fundiária na Inglaterra anglo-saxônica, como se davam as redefinições, discussões e conflitos presentes sobre esta questão, uma vez que a jurisdição sobre os regimes de propriedades ainda não se apresentava plenamente constituída e uniformemente aceita nesta sociedade. Já José Manuel Cerda propõe uma análise sobre a distinção dos conselhos gerais e do conselho privado e cerimonial durante o período de governo de Henrique II, na segunda metade do século XII. Percebendo uma ampliação das grandes assembleias, Cerda verifica que Henrique II e sua corte teriam introduzido um grande número de reformas e medidas, apoiadas pelo consentimento baronial. Suas reflexões estão presentes no artigo “King Henry Plantagenet in the midst of his barons: public and territorial consultation at great assemblies in England (1155-1188)”.

Os dois últimos artigos deste dossiê lidam com análises localizadas na Península Ibérica, concentrando-se no estudo da atuação do poder real, não restrito exclusivamente à figura do monarca. No artigo “Inquirir em nome de Afonso II: a jurisdição régia a serviço da aristocracia cristã (Portugal, século XIII)”, Maria Filomena Coelho coloca em discussão certa naturalidade presente nas análises sobre as iniciativas régias do governo de Afonso II em Portugal. A autora propõe uma relativização sobre a visão dessa centralização do poder real que permite ampliar os estudos das inquirições, ligando-as a um cenário político mais amplo e menos centrado na figura do monarca.

Por fim, encerrando este dossiê, no artigo “Jurisdições das rainhas medievais portuguesas: uma análise de queenship”, Mirian Coser propõe uma análise a respeito de como os domínios da rainha de Portugal sobre determinadas propriedades conferiam a ela não apenas recursos econômicos, mas também o exercício da Justiça. Por meio da pesquisa sobre as crônicas do reino, a autora aponta para o fato de os recursos econômicos e exercício de uma Justiça por parte da rainha constituírem um espaço de poder legítimo que se relaciona não apenas com o matrimônio, a linhagem e a maternidade, mas também com o patrocínio, a piedade religiosa e a intercessão junto ao rei, inclusive nos assuntos da guerra.

Portanto, tendo como eixo os estudos sobre a Justiça e o exercício do poder na Idade Média, o dossiê Entre poderes: jurisdições e regulação de conflitos na Idade Média. Séculos V ao XV apresenta cinco artigos que mantêm o foco no tema proposto, mas diversificam a análise tanto no que diz respeito às balizas temporais, com trabalhos que tratam desde a Alta até a Baixa Idade Média, como também nos recortes geográficos, apresentando reflexões sobre a Gália, a Península Itálica, a Inglaterra anglo-saxã, a Inglaterra anglo-normanda e o mundo Ibérico. Acreditamos que os trabalhos aqui reunidos representam, em diferentes medidas, os impactos recentes das reflexões propostas por uma Nova História Política e pela Nova História Cultural.

Referências

BILLORÈ, Maitre; MATHIEU, Isabelle; AVINGNON, Carole. La justice dans la France Médiévale. VIIe-XVe siècle. Paris, Armand Colin, 2012. [ Links ]

GUILLOT, Olivier; RIGAUDIÈRE, Albert; SASSIER, Yves. Pouvoirs et institutions das la France médievale: des origines à l’époque féodale. Tome 1. 3 ed. Paris, Armand Collin, 1999. [ Links ]

Fabiano Fernandes – Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), campus Guarulhos (SP), Brasil. E-mail: fabfer2007@hotmail.com http: / / orcid.org / 0000-0002-1384-9156

Renato Viana Boy – Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), campus Chapecó (SC), Brasil. E-mail: renatoboymedieval@gmail.com http: / / orcid.org / 0000-0001-5500-6256


FERNANDES, Fabiano; BOY, Renato Viana. Apresentação. Tempo. Niterói, v.26, n.1, jan. / abr., 2020. Acessar publicação original [DR]

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