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Os bispos e a ditadura militar brasileira (1971-1980): a visão da espionagem | Paulo César Gomes
Paulo César Gomes | Imagem: Jornal Opção
Com a expansão dos Programas de Pós-Graduação em História no Brasil, especialmente a partir da década de 1990, dezenas de novos objetos, abordagens, temáticas e problemas passaram a ser privilegiados. Segundo o historiador Carlos Fico (2004, p. 21), nesse período, a produção histórica brasileira deu uma verdadeira “guinada”: a predominância de estudos que recaía sobre o período colonial deslocou-se para a fase republicana.
Nessa dinamização dos cursos de pós-graduação, um objeto que deu uma considerável alavancada foi o estudo da ditadura militar brasileira. A partir dos anos 1990, inúmeros trabalhos foram realizados sobre esse tema enfocando diversos prismas, olhares, agentes, recortes e espaços. Entre os inúmeros assuntos abordados dentro da grande temática ditadura militar, que vão de planos econômicos a organizações clandestinas, destaca-se o estudo sobre a Igreja Católica. Engana-se quem pensa que as pesquisas sobre esse assunto se esgotaram ou que não é mais possível originalidade e avanço sobre ele. Em relação à Igreja Católica, embora hoje sejam bastante conhecidos, notadamente, dois aspectos, o papel dos grupos católicos conservadores nas “Marchas da Família com Deus pela Liberdade” durante o pré-golpe de 1964 e a atuação da ala “progressista” na oposição à ditadura e em defesa dos direitos humanos entre os anos 1970-80, importa dizer que ainda há muito a ser descoberto, analisado, (re) discutido e revelado. A obra de Paulo César Gomes, Os bispos católicos e a ditadura militar brasileira é uma prova disso. Leia Mais
A História vai ao Cinema: vinte filmes brasileiros comentados por historiadores | Jorge Ferreira e Maria de C. Soares
Para os irmãos Lumiére, o cinema seria uma curiosidade passageira. Reza a lenda que um dos inventores do cinematógrafo (1895), ou o pai dele, chegara a proferir: “o cinema é uma invenção sem futuro”. O palpite não vingou e, em pleno alvorecer do século XXI, a captação de imagens em movimento sobrevive muito bem, seja em fotogramas, seja nos seus avatares em novas tecnologias (do vídeo analógico aos processos digitais).
E o cinema não apenas teria um futuro, mas ainda deixaria, em sua secular existência, um rastro imensurável de registros desse próprio tempo, bem como de tempos mais ou menos remotos, bem ou mal reinterpretados em celulóide. Presentificando outras etapas da história, o cinem também tornou-se uma invenção com o olho (câmera) no passado. O problema é que os historiadores, em princípio, não perceberam isso. Leia Mais
A verdade sobre a tragédia dos Romanov | Marc Ferro
O livro de Marc Ferro, A verdade sobre a tragédia dos Romanov2, já é provocativo pelo título. Em História, nos anos iniciais de formação, se aprende que a “verdade” não existe em estado puro, ou seja, ela é fruto de uma série de condicionantes que podem variar conforme a “lente” do pesquisador é manejada. A “verdade”, na pesquisa histórica, é sempre um juízo de algo a partir de um conjunto de fontes. No caso da obra de Marc Ferro, o termo ganha mais destaque se levarmos em conta que durante décadas se acreditou ou se divulgou, que toda a família do tzar Nicolau II, teria sido executada pelos bolcheviques e, de repente, surge a possibilidade de alguns de seus membros terem sido poupados. As filhas do tzar russo, Olga (22 anos), Tatiana (21 anos), Maria (19 anos) e Anastasia (17 anos), teriam sido poupadas do fuzilamento em julho de 1918.
As controvérsias a respeito do destino dos Romanov nos Urais começaram imediatamente após a divulgação da execução de Nicolau II. Em 23 de julho de 1918, os próprios bolcheviques, parte deles ao menos, noticiaram a morte do tzar no jornal Ouralski Rabotchi, no referido periódico o texto era claro ao dizer que o ex-soberano foi morto, sendo a esposa e os filhos levados para local seguro.3 Porém, em um documento atribuído a Trotski, Comissário da Guerra, este teria questionado Iankel Sverdlov4 sobre a família Romanov e foi informado de que todos estavam mortos. Leia Mais
Os bispos católicos e a ditadura militar brasileira: a visão da espionagem | Pulo César Gomes
Passados mais de cinquenta anos do golpe civil-militar que inaugurou no Brasil os 21 anos de seu segundo regime autoritário, a historiografia, dentro das diversas temáticas relacionadas ao período, vive um momento de revisão e análise das versões produzidas, das categorias utilizadas e do papel exercido pela memória na constituição dos trabalhos acadêmicos e na formação do senso comum sobre a ditadura. Certamente, os marcos cronológicos – um deles acima destacado –, ensejaram essa iniciativa através da publicação de trabalhos de renomados historiadores e sociólogos como os de Rodrigo Patto Sá Motta, Marcelo Ridenti, Daniel Aarão Reis, Marcos Napolitano entre tantos outros. Também não se pode deixar de mencionar a importante contribuição dos debates suscitados pela iniciativa do governo brasileiro de criar a Comissão Nacional da Verdade, no ano de 2012.
O trabalho de Paulo César Gomes, “Os bispos católicos e a ditadura militar no Brasil”, expressa claramente este desejo de parte da historiografia de, através de novas pesquisas e fontes, revisar categorias e concepções consagradas nos meios acadêmicos e interiorizadas pelas camadas não especializadas. Leia Mais
Moçambique, o Brasil é aqui: uma investigação sobre os negócios brasileiros na África | Amanda Rossi
Dividido em 21 sessões e um apêndice de peso, com entrevistas do escritor moçambicano Mia Couto e do ex-presidente brasileiro Lula, o livro Moçambique, o Brasil é aqui: Uma investigação sobre os negócios brasileiros na África extrapola a ideia de reportagem e propõe um deslocamento histórico e espacial pelo território moçambicano no qual, Amanda Rossi, a julgar por seus agradecimentos, parece ter construído visíveis laços de afeto.
Instigada pela presença cultural, religiosa e pelo crescente interesse econômico do Brasil em Moçambique, a obra contextualiza as relações históricas entre os dois países até chegar ao tempo presente. Para tanto, a jovem jornalista percorreu de trem, machimbombo, chapa e tchopela grande parte do território moçambicano onde o Brasil, de alguma forma, se faz presente nos chamados projetos de cooperação (Fiocruz, Embrapa, SENAI, Caixa Econômica e Ministérios da Educação, Desenvolvimento Agrário, Desenvolvimento Social, Esporte) ou fazendo negócio: Vale, OAS, Odebrecht, Camargo Correa, Andrade Gutierrez, Embraer, Rede Record, Petrobrás, Eletrobrás, Grupo Pinesso ( produção de soja) e BRF ( venda de frango congelado). Leia Mais
A Lei da Guerra: Direito Internacional e Conflito Armado – BAYERS (MB-P)
BAYERS, Michael. A Lei da Guerra: Direito Internacional e Conflito Armado. Rio de Janeiro: Record, 2007, 263 p. Resenha de: PINTO, Jairo Francisco. A Carta das Nações Unidas e a soberania dos Estados nacionais. Marinha do Brasil/Proleitura, 2016/2017.
A Lei da Guerra – Direito Internacional e Conflito Armado é uma obra que trata do nível de comprometimento legal exercido pelas nações envolvidas em conflito armado, menciona as fontes das leis do direito internacional e resgata conflitos pretéritos, a fim de demonstrar o funcionamento efetivo dessas leis.
Nesse contexto, a fim de garanti r a paz no mundo por meio do bom relacionamento entre os países; em outubro de 1945, foi criada a Organização das Nações Unidas (ONU). Naquele momento, após a segunda guerra mundial, com um saldo de milhões de mortos, representantes de cinquenta países reuniram-se em São Francisco, na Califórnia — EUA, e criaram uma nova Organização Internacional para, em suas palavras, “preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra”. (BAYERS, 2007, p.197) Essa obra, embora apresente um conteúdo bastante técnico e específico, apresenta linguagem completamente didática e de fácil entendimento tanto para os leigos .quanto para os profissionais do mundo jurídico. Assim, viabiliza aos seus leitores uma compreensão das leis que governam o uso da força nas questões internacionais, a partir de análises de acontecimentos históricos recentes no contexto da política e do direito globais.
Em uma abordagem com foco em estudos de caso citações de fatos inerentes à lei da guerra desde o século XIX até os dia atuais, BAYERS posiciona o leitor de modo a refletir e entender os motivos promotores da fragilidade experimentada pelo Conselho de Segurança (CS) da ONU, no que tange ao cumprimento de seu propósito maior: o dispositivo central da carta da ONU no artigo 2, parágrafo 4:
Todos os membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado, ou qualquer outra ação incompatível com os propósitos das Nações Unidas”. (BAYERS, 2007, p.198 e 199)
Ao analisar vários conflitos armados ocorridos pós-criação da ONU, como Intervenções no Kosovo e no Afeganistão em 1999/2001 e a guerra no Iraque em 2003, envolvendo diretamente os Estados Unidos da América (EUA) e outras potências aliadas, verificam-se momentos recorrentes de violação da principal atribuição do CS: a autorização do emprego da força contra qualquer nação.
Diante disso, o mundo teve conhecimento de um festival de abusos que vão desde desrespeitos aos direitos de civis e de prisioneiros de guerra, até arranjos políticos para viabilizar a concretização dos objetivos da nação mais poderosa envolvida no conflito. Desse modo, chega-se à conclusão inequívoca de que o direito relativo ao uso da força é realmente politizado, como formulou muito bem o filósofo militar Cari. von Clausewitz, segundo o qual “a guerra é a continuação da política por o ut r os me io s ” . (BAYERS, 2007, p.12) Ainda nesse sentido, o autor sinaliza para a constante criação de doutrinas, por parte das grandes potências, versando sobre legítima defesa, intervenção humanitária, intervenção em defesa da democracia e legítima defesa preventiva, a fim de tentar justificar suas ações sem a autorização do CS.
Em síntese, o autor, com muita propriedade, argumenta acerca da inobservância do cumprimento às leis da guerra estabelecidas pela Carta da ONU. Isso demonstra que potências econômicas e militares intitulam-se JUÍZES DO MUNDO (grifo meu). Tudo para atender aos seus próprios interesses, principalmente os EUA que, com suas Forças militares estacionadas em mais de 140 países estão envolvidos, direta ou indiretamente, em praticamente todos os conflitos existentes no mundo.
Infere-se, então, que tais atitudes devem servir como subsídios a serem utilizados em qualquer estudo sobre Estratégia Nacional de Defesa , já que a prática da diplomacia é ignorada em muitos casos.
Jairo Francisco Pinto
Como conversar com um fascista. Reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro – TIBURI (DSSC)
TIBURI, Márcia. Como conversar com um fascista. Reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2015. 194 pp. Resenha de: SCHURSTER, Karl. Diacronie Studi di Storia Contemporanea, v. 27, n.3, 2016.
«Ciò che è in gioco è la riduzione dell’altro a un oggetto»1. Questa frase, tratta dall’ultimo libro della filosofa e artista gaúcha Márcia Angelita Tiburi forse è quella che meglio riassume tutto lo sforzo dell’autrice per far comprendere come agisca l’individuo fascista. Il suo intento principale è quello di analizzare, attraverso 67 brevi saggi, ciò che rimane del fascismo nella società attuale e quanto sia capace di produrre una soffocante quotidianità autoritaria. Niente di più opportuno nell’attuale congiuntura politica brasiliana.
L’8 marzo del 2016 l’Assemblea Legislativa dello Stato di Pernambuco, nel Nordeste brasiliano, ha cominciato a trattare un progetto di legge, presentato dal deputato Joel da Harpa appartenente al neonato Partido Republicano da Ordem Social (PROS), che dispone la proibizione dell’insegnamento di qualsiasi tematica relativa all’ideologia di genere in ambito educativo2. Questo progetto difende il divieto totale di discutere tematiche relative alla questione di genere cercando nella legislazione brasiliana un apparato atto a difendere un modello di famiglia che viene sistematicamente ridefinito attraverso un grande spazio di lotta e mobilitazione di gruppi e movimenti sociali. Il deputato fa ricorso nell’incipit del suo progetto all’aggettivo “difeso”, derivante dal latino defensus, “proibito”, per legiferare sul divieto dei docenti di trattare di questo argomento. È in questo spazio di discussione, su temi controversi, all’interno di una democrazia imperfetta, che si sono preservati gli spazi per quelle pratiche autoritarie che vengono inquadrate nelle analisi di Tiburi. Il suo intento è quello di promuovere un dibattito attraverso cui sia possibile stabilire un dialogo tra idee, proposte e persone che agiscono sotto l’egida del pensiero fascista utilizzando come principale strumento quello che è da tenere più caro trattando di fascismo: il dialogo. Per quale ragione è così importante per il deputato – appartenente a un milieu religioso e proveniente da un partito conservatore – mettere all’ordine del giorno dell’Assemblea Legislativa un progetto di legge che va contro i piani statali, municipali e nazionali in materia di istruzione? La sua proposta mira a evitare il dialogo e a normare ciò che l’altro può e deve essere, esattamente come una proposta fascista, o meglio, fascistizzante. In questo caso l’autrice ci fornisce una propria definizione di fascismo attraverso diversi esempi e riflessioni filosofiche, molte simili alle conclusioni a cui siamo giunti nella nostra tesi di dottorato3. Il fascismo per lei, come per noi, va molto oltre i limiti della politica o anche dell’economia, è all’interno di un campo filosofico nel quale il centro di gravità è qualcosa d’altro: nel caso dei fascismi, la negazione dell’altro. I testi risultano quindi un elemento di giunzione tra la filosofia di Theodor Adorno, il pensiero di Tzvetan Todorov e l’interpretazione della cultura di Homi Bhabha4.
Il testo da cui nasce il libro, Como conversar com um fascista, è una piccola, ma profonda, riflessione su come diverse pratiche sociali, quando non istituzionali, abbiano prodotto nel Brasile contemporaneo l’estinzione della politica. Questo annichilimento di quella che sarebbe per eccellenza l’arte del dialogo avrebbe generato il terreno fertile per la crescita dell’azione politica fascista e sarebbe presente nel nostro quotidiano attraverso ciò che la filosofia ha identificato come il «genocidio indigeno, il massacro razzista e classista contro i giovani neri e i poveri nelle periferie delle grandi città, la violenza domestica e l’assassinio delle donne, l’omofobia e la manipolazione dei bambini»5. Stando così le cose, il dubbio persistente risiede, qui, nella capacità della società di creare meccanismi capaci di impedire la ripetizione di fenomeni di autoritarismo e di odio attraverso una spiegazione rigorosa, adeguata e allo stesso tempo consistente, per i fenomeni dell’agire politico fascista in grado di negare l’esistenza dell’altro. Uno degli esempi più significativi di questo tentativo si ebbe nella stessa Germania, dove – malgrado l’enorme sforzo di denazificazione della società attuato subito dopo il 1945 e l’impatto del maggio 1968 – la società si mostrò incapace di offrire alle nuove generazioni strumenti critici per il superamento della seduzione del nazismo e dell’estremismo, consentendo l’emergere di un’ampia fascia di giovani affascinati dall’estremismo razzista e lo sviluppo dell’odio6. Lo stesso avviene con il nostro tempo presente. Trascorsi trent’anni dal processo di ridemocratizzazione del Brasile, ancora non siamo riusciti ad avanzare in forma sostanziale nella costruzione di una coscienza collettiva che privilegi la convivenza con le differenze. Viviamo ancora in un paese, come sostiene la filosofa, dove la differenza è qualcosa di insopportabile, dove le pratiche e i crimini dettati dall’odio passano come qualcosa di naturale o storicamente giustificabile. La professoressa Tiburi riafferma l’idea per cui le passioni sono sempre frutto di un apprendimento e si formano in noi attraverso l’esperienza. Il fascista, perciò – o colui che utilizza il fascismo come azione politica – è quell’individuo che ha vissuto e vive costanti esperienze di odio e diviene, con il passare del tempo, incapace di provare affetto per l’altro. Parafrasando l’autrice, questo individuo è stato ed è capace di introiettare l’«odio molto prima di riuscire a pensarlo»7.
È chiaro, in considerazione delle tematiche affrontate nel libro di Tiburi – la crisi e il fallimento della politica nella quotidianità brasiliana, la democrazia e l’autoritarismo, la questione di genere, con un’analisi su ciò che ha chiamato la logica dello stupro, la questione dell’aborto, la paura e l’odio in televisione, i problemi etnici-razziali, specialmente per ciò che riguarda la questione indigena – che l’autoritarismo è molto più che presente nella vita brasiliana. È stato sistematicamente trasformato in una pratica giornaliera e banale, producendo quello che Félix Guattari ha chiamato i microfascismi8. Perché il fascismo sia una realtà, sostiene, bisogna che sia alimentato da pratiche quotidiane, da una routine che lo riproduca e che sia in grado di normalizzarlo. Questo non sarebbe quindi solamente un modo di riprodurre il fascismo come pratica e alternativa, ma, ancor più, di sterminio della democrazia, non quella che abbiamo oggi, di facciata, ma quella che desideriamo, a cui ambiamo. Ciò che risulta abbastanza evidente nel libro è che, fino ad ora, tutte le trasformazioni intraprese dalla società o dalle istituzioni sociali come la scuola non sono state sufficienti a formare una nuova gioventù critica e svincolata dai brutali atti di razzismo e di violenza, simbolica e fisica, contro l’altro. Nelle strade, negli stadi di calcio, nei bar e persino negli ambienti di lavoro si moltiplicano gli atti di razzismo e di esclusione, come sottolinea l’autrice del libro9. Riusciremo a superare, discutendone in modo critico, ciò che è già stato chiamato il fascino, der schöne Schein, di una cultura della violenza e del rifiuto dell’altro nel nostro quotidiano? Il libro risponde a questa domanda in modo sufficientemente obiettivo, affermando che solo attraverso il dialogo e il ritorno alla politica saremo in grado di rigettare l’agire fascista non considerandolo come un alternativa.
Il volume, inoltre, affronta, a partire da Nietzsche e dalla sua teoria dell’eterno ritorno, il cosiddetto peso del rancore, di quello che non può essere dimenticato, di ciò che ogni individuo e società sopporta per un lungo periodo. Bisogna comprendere in certi contesti quali siano i mezzi attraverso cui si produce il risentimento e come questi stessi siano in grado di creare uno spazio per la disseminazione dell’odio. Gli esempi attuali del riemergere dell’odio si sono moltiplicati negli ultimi anni, specialmente in Brasile: contro i neri, le donne, gli omosessuali, i migranti interni o coloro che sono immigrati per ragioni politiche o economiche. Persino nell’ambito degli sport di massa, in particolare nel calcio, la moltiplicazione degli atti di razzismo – non sempre affrontati con la necessaria severità dalle autorità responsabili – e spesso, troppo spesso, perpetrati da giovani, mostrano nel contesto della crisi economica globale, con un tasso di disoccupazione elevato e una frustrazione collettiva, un grande vuoto nel campo della rappresentanza politica e una mancanza di azioni da parte della società civile per porre fine all’incessante costruzione di quel che Peter Gay ha chiamato «l’altro conveniente»10.
I fallimenti e le omissioni del nostro processo educativo sono stati in grado di porre un freno all’emancipazione da questo atto e hanno posto le condizioni perché potesse prosperare e risorgere l’odio razziale, di classe, di gruppo, di genere e contro tutti coloro che vengano identificati intenzionalmente o meno, come un “altro” essenzialmente diverso. L’analisi di questi temi è il centro di gravità di gran parte dei capitoli del libro, attraverso vari esempi che disvelano la quotidianità della società brasiliana.
I diversi saggi che riflettono sulla questione femminile e su tematiche in cui la discussione è molto accesa, come lo stupro e la legalizzazione dell’aborto, risultano dunque fondamentali per avvalorare la difesa costante da parte dell’autrice del rispetto, della tolleranza, della diversità come elementi in grado di inibire la moltiplicazione di sintomi, atti e comportamenti permanenti di discriminazione e di odio, molto spesso legati ad un semplice e brutale disegno volto al ritorno ad un passato che è stato vissuto come un trauma. È in quest’ottica che il libro si trasforma in una lettura necessaria per comprendere il Brasile e le sue attuali sfaccettature. Attraverso l’interpretazione di Márcia Tiburi, è possibile capire che anche le democrazie consolidate dal punto di vista istituzionale, come quella brasiliana, corrono rischi costanti quando le pratiche fascistizzanti diventano una faccenda quotidiana.
Notas
1 TIBURI, Márcia, Como conversar com um fascista. Reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro, Rio de Janeiro, Record, 2015, p. 191.
2 Per approfondire, cfr., URL:
<http://200.238.101.22/docreader/docreader.aspx?bib=20160308&pasta=Mar%C3%A7o\Dia %2008 > [consultato il 26 maggio 2016].
3 SCHURSTER, Karl, A história do tempo presente e a nova historiografia sobre o Nacional Socialismo, Tesi di Dottorato – Storia comparata, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2012.
4 Cfr. BHABHA, Homi K., I luoghi della cultura, Roma, Meltemi, 2001 [Ed. originale The location of culture, London, Routledge, 1994].
5 TIBURI, Márcia, op. cit., p. 29.
6 Per approfondire si veda il documentario: Heil Hitler, Herr Lehrer! (LISKA, Peter, Heil Hitler, Herr Lehrer! Jugend unterm Hakenkreuz, 3sat, Germania, 2010, 50’). Il film è ricavato dal libro di Jürgen Kleindienst. Cfr. KLEINDIENST, Jürgen, Herr Lehrer: die Kindheit unter dem Hakenkreuz, 1933-1939, Frankfurt am Main, JKL, 1985.
7 TIBURI, Márcia, op. cit., p. 30.
8 Per approfondire l’argomento si veda: GUATTARI, Félix, Revolução molecular. Pulsações políticas do desejo, São Paulo, Brasiliense, 1981.
9 Cfr. l’articolo su «El País»: ALTARES, Guillermo, «Cerca de 26% dos judeus europeus dizem ter sofrido preconceito por causa de sua religião», in El País, 6 maggio 2014, URL:
< http://brasil.elpais.com/brasil/2014/06/05/sociedad/1401978023_851631.html > [consultato il 22 maggio 2016]. Su un altro fronte, gli atti di razzismo contro i neri, i beurs, i pardos, persino se si tratta di celebri giocatori di calcio, si moltiplicano con estrema frequenza e, quando i loro perpetratori vengono identificati, ci sorprendiamo per la loro giovanissima età.
10 GAY, Peter, O Cultivo do Ódio, São Paulo, Companhia das Letras, 1996.
Karl Schurster – È Schurster è stato ricercatore post-doc e ha conseguito il dottorato in Storia presso l’UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Insegna come professore dell’Universidade de Pernambuco nel campo di studi della Storia del Tempo presente ed è membro permanente del corso di Laurea in Scienze della Formazione presso la stessa università. Attualmente sta realizzando un secondo stage postdottorale presso la Freie Universität Berlin sotto la direzione del professor Stefan Rinke. I suoi interessi sono rivolti allo studio della politica internazionale, con particolare interesse sui conflitti, in particolare le guerre mondiali e l’olocausto. È stato vincitore del 2° posto al Premio Jabuti, assieme a Francisco Carlos Teixeira e Francisco Eduardo Almeida per il coordinamento dell’Atlântico: a história de um oceano, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2013.
Rock and Roll: Uma História Social – FRIEDLANDER (CTP)
FRIEDLANDER, Paul. Rock and Roll: Uma História Social. Tradução de A. Costa. 4 ed, Rio de Janeiro: Record, 2006. 485pp. Resenha de: ROCHEDO, Aline. Um olhar sobre o livro, Rock and Roll: Uma História Social. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 13, p. 71 – 75, jul./set. 2013.
Para os estudiosos, os curiosos e os apaixonados por música, em especial o rock, apresento o livro que pode ser considerado uma odisseia sociomusical do “rock and roll”. O autor, Paul FriedlanderII, nos relata os primeiros trinta anos da música pop/rock e apresenta os vários estilos musicais oriundos da mesma matriz rítmica. São dezenove capítulos que narram o processo de consolidação do gênero, assim como as peculiaridades dos artistas e lugares por onde engendrou o rock. Tais capítulos apresentam a narrativa histórica do rock a partir do “blues rural” seguido pelo desenvolvimento do “blues urbano”, do “gospel” e do “jump band jazz” no início do século XX, até a chamada “new wave” nos anos 1980.
A narrativa do livro propõe que os estilos musicais oriundos do rock passaram por ciclos de vida. A princípio, estilos emergentes procuram forma e configuração em um processo que pode ser chamado de formulação. Em seguida, os artistas incorporam elementos disponíveis de fontes próximas de sua realidade. Nessa perspectiva, os novos estilos tendem a surgir e existir em um nível regional, desconhecidos de um público maior, antes de explodir em um conhecimento de massa. Tal dinâmica foi percebida nas quatro principais explosões do rock: rock clássico, a invasão inglesa, o hard rock e o punk.
Segundo o autor, os principais marcos identificáveis da história do rock internacional são divididos em cinco momentos: primeiro, de 1954-1955, com a explosão de rock and roll clássico; segundo, entre 1963-1964 com a invasão inglesa; terceiro, 1967-1972, conhecido como a era de ouro (o amadurecimento sincrônico de artistas de vários gêneros, incluindo a primeira invasão inglesa e a ascensão dos reis da guitarra); quarto, de1968-1969 com a explosão hard rock; e quinto, de 1975-1977 com a explosão punk.
O trajeto proposto no livro inicia-se nos anos 1940-1950 quando rock surge como gênero musical de origem negra. Os estilos que influenciaram o “rhythm and blues” e, consequentemente, o rock and roll foram: o “blues” no qual as letras falavam de adversidade, conflitos e, ocasionalmente, celebrações; o “gospel”, nos diálogos de chamado e resposta, originários dos cantos africanos aos quais também inspirou gestos livres durante as apresentações e o “jump band jazz”, estilo que emergiu no rastro do fim da era das grandes bandas no final da Segunda Guerra Mundial. Essa fusão tornouse, posteriormente, a base para a primeira era do rock, o rock and roll clássico.
A visão de mundo do “rhythm and blues” era mais otimista do que a do estilo predecessor, o blues da época da depressão, embora ainda tivesse raízes profundas na liberdade e nas experiências de vida real. Como seu público, os roqueiros clássicos vislumbraram uma válvula de escape musical e emocional. O humor esteve presente como elemento que diferenciou o gênero, numa mensagem aparentemente inofensiva como nas canções de Chuck Berry, Eddie Cochran, Carls Perkins, Little Richard, o que também corroborou para definir sua identidade. Sendo um gênero da música negra, embora se identifique elementos europeus, esses pioneiros do rock forjaram uma fusão de estilos. Assim, apareceram duas gerações distintas: “artistas predominantemente negros, que ficaram populares antes de 1956; e o grupo branco com raízes country e liderados por Elvis, que levou o gênero ao sucesso comercial”.III Nos anos 1950, principalmente por sua origem negra, uma forte pressão foi exercida contra o rock por líderes religiosos, órgãos oficiais e interesses de gravadoras junto à indústria fonográfica. A campanha desenvolvida por meio de uma parcela da sociedade como pais, pastores, professores, ressoava a antipatia ao gênero, no qual os artistas eram caracterizados delinquentes juvenis, preguiçosos e indolentes. As gravadoras, por sua vez, tinham grandes interesses na queda do rock and roll e do “doowop”( um estilo de música vocal), pois nestes estilos elas tinham pouco poder de ação.
Durante praticamente os anos de 1953-1955, essa prática teve o efeito de obscurecer as versões negras originais. Devido a pressão em recusar o rock, houve uma espécie de enfraquecimento, como se o gênero perdesse a popularidade e a força, principalmente por não aceitarem a integração racial.
Nos anos 1960 a música popular negra estava dividida em dois estilos bem diferentes e distintos: o “soul”, o som abrasador, forte e relevante de Memphis e a “Motown”, o som elegante, dançante e mais popular de Detroit. Ambos tinham origem no “gospel”, “doo-wop” e no “rhythm and blues”, mas cada um construiu de forma diferente suas músicas, a partir dessas influências. Poucas músicas do repertório soul eram destinadas ao movimento pelos direitos civis dos negros que estava em curso. No entanto, a música foi adotada pela comunidade negra como símbolo e referência: “A „soul music‟ ajudou a criar a atmosfera na qual o orgulho negro cresceu”.IV O estilo que emergiu no início dos anos 1960 e adentrou os anos 1970, deixou importante legado para a geração seguinte envolvida com funk.
Enquanto os últimos acordes do rock clássico ecoavam na cena musical americana, a juventude inglesa nos anos 1960 começava a se apropriar de um novo ritmo, uma fusão entre o rock clássico, rockabilly, blues e pop, que posteriormente acabou retornando aos Estados Unidos. Tal fusão se tornou o gênero de maior sucesso comercial e de crítica da história da música popular. Tanto a música quanto a sua travessia pelo Atlântico foram chamados de “invasão inglesa”. Assim, os Beatles trilharam um caminho que não havia sido explorado antes. Admiradores dos astros Chuck Berry e Elvis Presley, o quarteto mais famoso da Inglaterra, registrou o rock inglês a seu modo.
No primeiro período da explosão Beatles as letras remetiam ao universo juvenil da sensibilidade adolescente nas relações de amizade e namoro. Posteriormente, o grupo adquire um perfil amadurecido com letras e músicas mais elaboradas mostrando uma visão de mundo crítica. Criando uma linguagem musical própria, a banda influenciou o comportamento juvenil de sua época conquistando fãs em todas as partes do mundo.
Outro importante grupo, os Rolling Stones ao lado dos Beatles, protagonizou a chamada “invasão britânica” que projetou os artistas ingleses nas paradas dos EUA.
Entre 1965 e 1970 várias bandas foram formadas, fermentando a mistura de folk-rock. No período, Bob Dylan, jovem estadunidense, configurou o rock ao seu estilo. A música folk sempre foi uma parte importante da tradição musical americana, e as canções de protesto, histórias pessoais ligadas aos eventos sociais correntes, são partes essenciais de sua herança. Embora Dylan não tenha protagonizado inovações na stética musical, suas letras, extremamente conscientes, poéticas e profundas influenciaram a utilização do rock como meio de contestação.
No final dos anos 1970, importantes tendências econômicas e artísticas estavam afetando o modo pelo qual a música era criada e vendida. Gravadoras e programas de rádio davam pouca chance a talentos desconhecidos, apostando somente nos artistas já consagrados. O público, cansado das mesmas músicas e do aumento do preço dos discos, começou a reagir. Assim, o surgimento da tecnologia da fita cassete, essa que permitira a gravação caseira, aliado a outras variáveis econômicas e a perda do interesse do consumidor, causou uma queda nas vendas de discos. Foi neste contexto, economicamente orientado e controlado que explodiu o estilo simples, primário e contestador chamado punk-rock.
Os grupos punks de jovens ingleses revoltados berravam letras polêmicas sobre cultura e política com um rock simplista e distorcido. Embora o punk nunca tenha se tornado um gênero comercial viável, o seu foco nas mazelas da sociedade passou a ser um dos seus elementos mais copiados. Os grupos punks anglo-americanos, como Sex Pistols e The Ramones, desprezavam o apuro técnico-formal da música utilizando poucos e fáceis acordes. Os punks acreditavam numa arte crua que atingisse o público e mexesse com suas emoções. Para os artistas envolvidos no processo de consolidação desta vertente do rock, toda interpretação do mundo devia passar pela perspectiva punk.
Durante a década de 1980, o panorama do pop/rock estava repleto de numerosos estilos diferentes. A influência punk na nova música (chamada de new wave) estava apenas florescendo nas rádios, mas em poucos anos proliferou e invadiu a mídia. O ingrediente chave do sucesso da “new wave” era a ligação da música com o vídeo, uma dinâmica que foi institucionalizada com o nascimento da MTV( Music Television). A MTV apresentava a seus espectadores uma série de músicos da „new wave‟. Os artistas mais ecléticos eram os que mais produziam vídeos. Muitos críticos tinham a impressão de que os videoclipes reforçavam tendências negativas que ainda corriam na sociedade.
Alguns ainda achavam que quando uma música virava vídeo, a consequência era a perda da música, pois a imagem e o estilo prevaleciam.
Ainda nos anos 1980, a música aumentou o debate de temas como política, economia, e justiça social. Artistas e promotores de shows escolheram ligar estas causas a grandes eventos de forma a divulgar questões políticas, levantar fundos, envolver mais artistas e ajudar a promover os negócios do rock. De 1985 a 1990, os megaeventos promoveram causas e debates progressistas. Estas ações angariaram recursos e mostraram ao público que alguns astros não tinham medo de tomar posições públicas sobre assuntos políticos e sociais. Um resultado visível dessa mobilização foi o fato da Anistia Internacional ter recebido mais de duzentos mil novos membros depois das turnês. Outras organizações também perceberam o aumento no interesse pelo ativismo.
Assim, o envolvimento de artistas foi o fator diferencial: “ele expôs seus fãs a importantes debates estimulando-os a pensar e agir”.V Entretanto, também era perceptível que a indústria da música tomava decisões baseadas no mercado, favorável às poderosas corporações multinacionais: “as principais corporações multinacionais que controlam a música são politicamente conservadoras e preferem homogeneizar a música e neutralizar qualquer tipo de conteúdo cultural ou político polêmico”.
Ademais os debates sociais, econômicos e políticos no entorno do rock, a leitura nos proporciona acompanhar a trajetória do gênero que cresceu em diversos países acompanhado por um público jovem e entusiasmado, adequado às peculiaridades regionais. O autor foi cuidadoso em mostrar a diversidade de biografias de bandas e artistas destes trinta anos de rock, como Chuck Berry, Little Richard, Lee Lewis, Elvis Presley, The Beatles, Jemi Hendrix, Bob Dylan, The Clash, Led Zepplin dentre outros.
O primeiro e o último capítulo destoam dos outros, pois são norteadores para uma análise didática denominada pelo autor como “Janela do Rock”. Letras, músicas, ritmos, artistas, atitudes e contexto sociais são considerados para a compreensão do gênero e propriamente das composições. Para Friedlander, a análise de uma música e sua letra deve considerar a história pessoal do artista, a relação da música com a sociedade no contexto da época, os padrões e valores contemporâneos e ainda atentar para o fato de que cada ouvinte interpreta a canção de maneira diferente, dependendo de sua própria experiência de vida.
Em um primeiro momento, a música é recebida de forma intuitiva e contém uma rica variedade de conhecimento e sentimento sem o processo de pensamento lógico que nos acompanha e ao qual geralmente chamamos de entendimento. Na forma analítica, o ouvinte passa a ter condições de realizar julgamentos próprios sobre a natureza das músicas, sua qualidade e diferenciação em relação a outras músicas e seu contexto social. E deste ponto, procurar por conta própria mais informações sobre a música e o artista. Por exemplo, nos anos 1950, a crítica à sociedade era indireta, sutil e não fazia qualquer menção de um ataque aos valores conservadores dominantes. Esta constatação, no entanto, pode ser equivocada porque muitos elementos de rebeldia eram encontrados fora das letras, nas apresentações e performance dos artistas.
O rock é fusão da música negra de resistência e protesto com influências europeias que ultrapassou as diferenças raciais e sociais. A história social do rock é marcada pela política conservadora da guerra fria, rigorosos códigos morais e sexuais.
Registra uma transmissão de mensagens, implícitas e explícitas, relatos, símbolos de rebeldia, mudança social e sentimentos. Talvez por isso, cada época possua aqueles artistas cujos movimentos e aparência no palco são, predominantemente, gestos de desafio. A mensagem alcança lugares que não estão, necessariamente, ligados à política e esta mensagem pode gerir mudanças e ir mais longe do que se pode supor.
Notas
2 Paul Friedlander é Professor na Universidade do Oregon de História do Rock e membro da Associação Internacional para o estudo da Música Popular. Foi diretor-assistente do Conservatório de Música da Universidade do Pacífico, na Califórnia.
3 FRIEDLANDER, Paul. Rock and Roll: Uma História Social. Tradução de A. Costa. 4º ed, RJ: Record, 2006. P.47
4 FRIEDLANDER, op. cit.p.241
5 Idem.p.376
6 dem.p.407
Referências
FRIEDLANDER, PAUL. Rock and Roll: Uma História Social. Tradução de A. Costa. 4 ed, Rio de Janeiro: Record, 2006. 485pp.
Aline Rochedo –
Mestre em História Social pela Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora dos anos 1980, no âmbito da política, economia e sociedade, tendo o BRock e Culturas Juvenis como norteadores. Atua na área de Cultura, História e Comunicação, principalmente nos seguintes temas: Música brasileira, Rock, Juventudes, Identidade e Memória.
A goleada de Darwin: sobre o debate Criacionismo/Darwinismo – SOUZA (RFA)
SOUZA, S. de. A goleada de Darwin: sobre o debate Criacionismo/Darwinismo. Rio de Janeiro: Record, 2009. Resenha de: ALMEIDA, Fábio Portela Lopes de. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.25, n.36, p.375-380, jan./jun., 2013.
O debate entre criacionistas e darwinistas ainda parece distante da realidade brasileira. Afinal, ao contrário dos Estados Unidos, em que os defensores de ambos os pontos de vista se digladiam em jornais, revistas, programas de televisão, escolas públicas e palanques políticos, no Brasil, a discussão é mais velada e restrita a certos círculos acadêmicos.
Essa impressão inicial, contudo, não condiz com a realidade: o criacionismo tem se alastrado também no Brasil e seus partidários têm defendido publicamente a sua legitimidade. Há alguns anos, por exemplo, Rosinha Garotinho, quando governadora do estado do Rio de Janeiro, defendeu explicitamente o criacionismo e o seu ensino nas escolas públicas em 2004. Quanto ao darwinismo, declarou: “Não acredito na evolução das espécies. Tudo isso é teoria”1 . Mais recentemente, em 2008, a então Ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, proferiu declarações que foram associadas a uma defesa do ensino do criacionismo, embora ela as tenha desmentido posteriormente2 .
Além disso, assim como nos Estados Unidos, o criacionismo também está impregnado — inconscientemente? — nas escolas públicas brasileiras, nas quais é comum professores de ciências recorrerem a explicações criacionistas para explicar às crianças questões a respeito para as quais as teorias científicas já encontraram respostas consensuais. Mas, se essa característica do ensino público era inconsciente — uma decorrência da cultura cristã que permeia o imaginário social brasileiro —, hoje os contornos do debate estão começando a se tornar mais explícitos e diretos — assim como ocorre no país norte-americano. Associações criacionistas têm publicado livros-texto com conteúdo explicitamente criacionista e os utilizado nas escolas brasileiras com o propósito claro de atrair novos fiéis para a sua causa.
É nesse contexto que a obra A Goleada de Darwin: sobre o debate criacionismo/darwinismo, de Sandro de Souza, ganha relevância. O livro é pioneiro na divulgação científica do debate no país e cumpre seu propósito magistralmente, seguindo o estilo próprio de Carl Sagan, o astrônomo que costurava debates científicos e políticos complexos utilizando uma linguagem simples e informativa, atraindo o interesse do público leigo, na verdade o mais afetado pelas implicações políticas da intrincada relação entre política e ciência. Afinal, independentemente de seus pais conhecerem ou não os termos de um debate epistemológico como o que opõe o darwinismo ao criacionismo, as crianças brasileiras serão afetadas por suas implicações em seu ensino.
Assim, o texto assume o tom correto para esclarecer os termos do debate para o público leigo, traduzindo-o a partir da metáfora de um jogo de futebol, cujo resultado final termina com a vitória incontestável do darwinismo: três a zero, e um gol impedido para os criacionistas. Essa abordagem bem humorada, contudo, não significa superficialidade, já que o livro alcança o objetivo de esclarecer as origens históricas e epistemológicas do debate, mostrando ao leitor a superioridade científica do darwinismo em relação ao criacionismo. Na verdade, esse debate tem um caráter, antes de tudo, político. Seguindo na esteira do que já haviam afirmado Michael Ruse3 e Robert Pennock4 , Sandro de Souza aponta que o verdadeiro objetivo criacionista não é epistemológico, mas político: instituir o ensino do criacionismo nas escolas públicas.
Como o objetivo político dos criacionistas é preponderante, as teses epistemológicas do movimento são modificadas para se adaptar aos critérios estabelecidos pelos tribunais ao rejeitar as teses anteriores. Esse ponto é discutido no segundo capítulo do livro, destinado a apresentar as diferentes versões do criacionismo: sempre que o movimento pretende ensinar uma determinada tese criacionista nas escolas públicas e ela é rejeitada pelos tribunais, o movimento a reformula de acordo com os critérios estabelecidos pelo Poder Judiciário e a reapresenta em uma forma diferente.
De certa maneira, é possível dizer que essa é a origem do movimento conhecido como “design inteligente” (debatido no sétimo capítulo do livro). Como na década de 1980 os tribunais norte-americanos já haviam considerado inconstitucional o ensino de teorias criacionistas com conteúdos associados à narrativa bíblica nas escolas públicas, o movimento passou a adotar uma abordagem mais formal, sem referência explícita a um deus onisciente e onipotente. O “design inteligente” busca demonstrar que certas estruturas orgânicas complexas somente poderiam ter surgido a partir de um projeto consciente, uma vez que sua complexidade não poderia ter sido originada de processos evolutivos “cegos”. Todavia, como Sandro de Souza demonstra, esse é apenas um “gol impedido” dos criacionistas, já que os exemplos citados em suporte a essa tese são plenamente explicáveis a partir da estrutura conceitual darwinista.
Os gols de Darwin são narrados nos terceiro, quarto e quinto capítulos da obra, que reconstroem o paradigma darwinista desde suas origens. No terceiro capítulo, Sandro de Souza apresenta o que considera os dois pilares da teoria darwinista: os conceitos da descendência comum (herança) e da seleção natural. Os conceitos são apresentados de maneira bastante clara, entrelaçados à própria biografia de Charles Darwin, com o objetivo de mostrar como o próprio naturalista os vislumbrou. Para discutir o conceito de descendência comum, por exemplo, Sandro de Souza recorre à famosa viagem do Beagle às ilhas Galápagos, onde Darwin teve contato com inúmeras espécies de tentilhão — que, por serem apenas ligeiramente diferentes entre si, tornaram possível a tese de que todas descendiam de um ancestral comum. A ideia de seleção natural também é discutida no mesmo espírito, mostrando aos poucos como Darwin a concebeu — passando de suas experiências empíricas com a seleção artificial e do reconhecimento da variabilidade entre indivíduos da mesma espécie à sua conclusão epistemológica: “o mecanismo de seleção natural tem de ser interpretado como uma lei fixa, tal qual a lei da gravidade” (p. 73). Mas Sandro de Souza não se limita a discutir os elementos teóricos e como Darwin os construiu; ele também mostra a resistência da sociedade inglesa em aceitar a sua teoria, bem como as objeções apresentadas por teóricos importantes, como Lord Kelvin e Fleeming Jenkin, que foram devidamente refutadas posteriormente.
No quarto capítulo, é narrado o segundo gol de Darwin: a confirmação, ao longo do tempo, das previsões de sua teoria. Esse foi um gol marcado em momento importante da “partida”, já que a corroboração empírica de uma teoria é, talvez, o passo mais importante para a sua aceitação pela comunidade científica. E, nesse sentido, a teoria darwinista pode ser considerada uma vencedora: várias descobertas posteriores à sua formulação a têm confirmado. Em primeiro lugar, a abundância dos fósseis de espécies extintas e intermediárias confirma a previsão teórica da mudança gradual de espécies e da ancestralidade comum. Além disso, a biogeografia, que estuda a maneira como as espécies são distribuídas pelo planeta, põe em xeque a tese criacionista de que os animais teriam se dispersado a partir do monte Ararat, após o dilúvio bíblico. A morfologia, ao mostrar importantes analogias e homologias entre as espécies, confirma tanto a seleção natural (uma vez que órgãos análogos, embora tenham origens diversas, cumprem a mesma função por responderem, embora por caminhos evolutivos diversos, a problemas ambientais semelhantes) quanto a tese da descendência comum (já que órgãos homólogos, mesmo que não cumpram a mesma função, têm a mesma origem embrionária). Sandro de Souza também discute o papel da embriologia na confirmação da teoria darwinista, à medida que mostra como os embriões de várias espécies passam por estágios muito semelhantes de desenvolvimento.
E, por fim, o terceiro gol de Darwin, para selar a goleada: as evidências oriundas da genética e da biologia molecular, que permitem, hoje, o exame detalhado dos caminhos evolutivos que levam às mais diferentes espécies — e, em determinados casos, até observar, quase em tempo real, o modo pelo qual a seleção natural opera. Trata-se de elemento importante na crítica ao criacionismo, já que responde a uma objeção epistemológica apresentada — a de que a crença no darwinismo seria tão metafísica quanto à crença em Deus ou em um designer, uma vez que não haveria como observar o processo evolutivo acontecendo, mas apenas traçar inferências a partir das evidências consideradas.
A obra cumpre com maestria o objetivo a que se propõe: apresentar os principais termos do debate que opõe darwinistas e criacionistas com uma linguagem clara e acessível ao público leigo. Cumpre, assim, o objetivo primordial de uma obra de divulgação científica, a de informar à maior diversidade possível de leitores os termos de um debate cuja compreensão demandaria conhecimento técnico a respeito do funcionamento da ciência em geral e da biologia em particular.
Contudo — e ainda utilizando a metáfora futebolística —, é importante destacar o que considero uma “pisada na bola”. Em um trecho do sétimo capítulo, em que Sandro de Souza discute os objetivos políticos dos criacionistas, afirma-se que seria “inconstitucional o ensino de religião nas escolas públicas”. Ocorre, todavia, que a própria Constituição brasileira estabelece, em seu Art. 210, § 1º, a oferta da disciplina “Ensino Religioso” nas escolas públicas de Ensino Fundamental. Trata-se de discussão relevante, objeto inclusive de duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade em trâmite Supremo Tribunal Federal, mas que é colocada de maneira equivocada pelo autor. Como o texto constitucional impõe o ensino da disciplina, a questão fundamental que se coloca não é a respeito de sua oferta, mas a respeito do modelo de ensino religioso a ser adotado5.
Nesse contexto, o criacionismo poderia ser ensinado na disciplina de ensino religioso, desde que esta fosse lecionada a partir de um modelo interconfessional, que estimulasse os alunos a adotarem uma postura tolerante com relação às demais concepções religiosas. Se essa fosse a pretensão dos criacionistas no contexto brasileiro, isso não seria um problema, portanto; mas o que eles pretendem é o ensino da teoria do design inteligente nas aulas de ciências naturais, ao lado do darwinismo, ou, preferencialmente, em substituição a ele6. Como bem mostra Sandro de Souza, essa pretensão é irrazoável porque o criacionismo não se mostra como alternativa que satisfaça a critérios epistemológicos mínimos para que se possa considerá-lo como teoria científica ao lado do darwinismo.
Notas
1 martins, e.; frança, v.rosinha contra darwin. época. edição n. 314, 24 maio. 2004. disponível em: http://revistaepoca. globo.com/epoca/0,6993,ept731549-1664-1,00.html. acesso em: 10 abr. 2012
2 traumann, t. a ministra criacionista. época. edição n. 506, 13 maio 2008. disponível em: http://revistaepoca.globo.com/ revista/epoca/0,,edg81345-6010-506,00.html. acesso em: 12 abr. 2012.
3 ruse, m. a philosopher’s day in court. in: ruse, m. (ed.). but is it science? the philosophical question in the creation/evolution controversy. nova iorque: prometheus books, 1996. p. 16.
4 pennock, r. tower of babel: the evidence against the new creationism. cambridge: the mit press, 2000.
5 almeida, f. p. l. de. liberalismo político, constitucionalismo e democracia: a questão do ensino religioso nas escolas públicas. belo horizonte: argvmentvm, 2008.
6 abrantes, p.c. c.; almeida, f. p. l. de. criacionismo e darwinismo confrontam-se nos tribunais… da razão e do direito. episteme, v.24, p.357-401, 2006.
Fábio Portela Lopes de Almeida – Mestre em Direito e em Filosofia pela Universidade de Brasília (UnB), doutorando em Direito pela mesma instituição, Brasília, DF – Brasil. E-mail: fabio.portela@gmail.com
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A causa sagrada de Darwin – DESMOND; MOORE (FU)
DESMOND, A.; MOORE, J. A causa sagrada de Darwin. Rio de Janeiro: Record, 2009. Resenha de: JÚNIOR, José Costa. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.13, n.2, p.209-212, mai./ago., 2012.
Os historiadores Adrian Desmond e James Moore buscam neste volume, amparados em uma ampla pesquisa documental, mostrar que uma causa humanista muito profunda levou Charles Darwin a desenvolver a teoria científica mais extraordinária sobre a origem e a manutenção das espécies. Os autores, que escreveram uma biografia de Darwin (Desmond e Moore, 2000), apresentam aqui a tese de que “a teoria da evolução humana não foi a última peça do quebra-cabeça de Darwin, mas sim a primeira” (pag. 14). O objetivo do livro é mostrar que o horror de Darwin à escravidão foi uma motivação de fundo para que o naturalista inglês concebesse a teoria da evolução das espécies através da seleção natural. Nesse sentido, essa motivação inicial deu-se, em parte, devido à intensa preocupação de Darwin com a unidade da espécie humana e uma ampla noção de irmandade entre os homens. A brutalidade da escravidão, que transformava os negros em outra espécie, uma “besta a ser algemada”, revoltava Darwin, e tal sentimento foi a base para a desconfiança de que podemos todos ter uma única origem.
O livro é dividido em 13 capítulos, detalhados com a presença de diversos personagens históricos inseridas no contexto da construção da teoria de Darwin: o avô Erasmus, o capitão Fitzroy, a esposa Emma, os companheiros Lyell e Hooker e o preconceituoso Agassiz. No capítulo 1, O negro retinto, um amigo íntimo, é revelado que Darwin mantinha uma grande amizade com um assistente negro em Cambridge. Trata-se de um pano de fundo para explicar como a escravidão exemplificava atrocidades absolutamente deprimentes. Darwin conheceu na viagem do Beagle (1831-1836) aquilo que foi a maior migração forçada de seres humanos ao longo da história e passou a combater a ideia de que os negros eram uma espécie diferente e inferior.
Já no capítulo 2, Crânios da raça dos imbecis, procura-se mostrar como a expansão europeia do séc. XIX levou ao contato com diversos povos, cuja aparente falta de sofisticação induziu o europeu a enaltecer cada vez mais sua própria história. Nesse contexto, surge a frenologia, uma pseudociência que defendia a possibilidade de definir características morais e intelectuais dos indivíduos a partir de medições cranianas. Para Darwin, tratava-se de “hipótese fantástica e absurda”.
No terceiro capítulo, Um único sangue em todas as nações, os autores apresentam o Espírito de Cambridge, onde Darwin começou sua vida acadêmica. A ciência era vista como complemento do cristianismo, e todas as criaturas deveriam ser respeitadas como criaturas de Deus. O homem seria uma espécie “à parte”, com alma imortal e responsabilidade por sua conduta. Na década de 1830, com a chegada dos liberais ao poder, tem início uma exigência de abolição da escravidão nas colônias inglesas, através do Abolition Act de 1833, que, no entanto, garantia apenas a abolição para crianças de até 6 anos de idade. Nesse contexto, Darwin parte para a sua grande viagem, na qual veria o sofrimento dos escravos na América, a maioria deles trabalhando para empresas inglesas. É o que nos é apresentado no quarto capítulo, A vida nos países escravagistas.
Darwin não foi um fanático apologista da causa, tendo apenas aceitado sua “herança moral”. Sua família e comunidade próxima sempre foram abolicionistas. O contexto da viagem do Beagle era formado pelos privilégios comerciais da Inglaterra e por sua Marinha forte. O capitão do Beagle, Robert Fitzroy, extremamente conservador, aceitou o então jovem liberal Charles Darwin em seu barco. O contato com o pluralismo cultural levou o jovem Charles a pensar a unidade da humanidade e o significado disso para as relações entre os homens. A origem da aparente desigualdade entre os homens poderia ser simplesmente a adequação aos diferentes ambientes existentes no planeta. Darwin começou, então, a compreender o papel da relação entre o ambiente e as necessidades das espécies.
No quinto capítulo, A origem comum: do pai do homem ao pai de todos os mamíferos, lemos que a imagem que Darwin tinha de uma natureza em transformação era extremamente peculiar. As raças humanas estavam unidas pelo sangue: muitos galhos de uma árvore que confluíam em um único ancestral. Nesse sentido, a pergunta mais importante, para além da ancestralidade comum, era: como surgem as diferenças na espécie humana? Uma origem ancestral era possível, pois somos semelhantes na dor, doença, morte, sofrimento e fome. Entretanto, havia uma arrogância cósmica dos humanos que separava os humanos “divinos” de criaturas bestiais. Para Darwin, os seres humanos não eram os seres absolutos nem a finalidade da natureza: “É um absurdo dizer que um animal é superior ao outro”. As espécies dividem-se através de adaptações, porém não houve tempo para a espécie Homo sapiens sapiens dividir-se em espécies. É interessante ressaltar que os resultados científicos que temos hoje para a negação da existência de raças são bem próximos da argumentação darwinista: muitos autores defendem que não houve tempo para que a espécie humana tenha originado raças (Pena e Birchal, 2005-2006). Nesse debate, a luta antiescravagista mudara sua atenção para o sul dos Estados Unidos, com o arrefecimento da escravidão nas colônias inglesas, e os diversos conflitos na região, que motivaram uma guerra, chamaram a atenção de Darwin. Também durante essa época, Darwin começou a compreender as limitações da teoria da seleção natural para o âmbito das diferenças entre os humanos. Uma teoria complementar seria necessária para explicar adequadamente tais variações.
No capítulo 6, A hibridização dos seres humanos, os autores apresentam o contexto da crítica ao impacto da “civilização” em certas sociedades: onde quer que os europeus tenham chegado, foram arautos do extermínio das tribos nativas. As invasões europeias acabavam por forçar uma miscigenação nas tribos do interior, na visão de Darwin. Nesse ponto, Darwin tem contato com a tese de Malthus acerca das limitações na produção e sente a necessidade de ter mais cuidado ao tratar das características da humanidade.
Já no sétimo capítulo, temos um relato da viagem de Lyell aos Estados Unidos, onde encontrou “homens mais preocupados com a santidade da propriedade do que com os direitos sagrados do homem”. Intitulado Essa questão mortalmente odiosa, mostra como Lyell não abriu seus olhos para o horror, como acontecera com Darwin no Brasil. Em 1840, Darwin fecha seus Notebooks, que continham informações relevantes sobre o processo evolutivo; entretanto, seu trabalho sobre a origem comum das espécies só seria publicado “sobre seu cadáver” e alguém competente deveria editar o ensaio, e este editor seria justamente Lyell. Para Lyell, “uma lei superior que governa a criação das espécies pode ajudar a explicar as formas de distribuição da vida nas rochas, mesmo que essa lei possa continuar um mistério para sempre”. Assim, observando as diversas nuances raciais da América, Lyell entende que “se todos fossem membros da mesma espécie, haveria esperança”.
No capítulo 8, Animais domésticos e instituições domésticas, é apresentado o debate entre “unitaristas” (defensores da origem comum das raças humanas) e “pluralistas” (defensores da origem em separado das raças humanas), que se define pelo embate entre a analogia e a flexibilidade das espécies domésticas e dos híbridos. Para Darwin, somente sua teoria evolutiva poderia resolver a controversa questão do hibridismo. A exuberância do tema das raças humanas, a anatomia, a fisiologia e a fertilidade inter-racial apontavam que o negro e o branco eram membros da mesma espécie. Porém, uma resposta fatual mais ampla era necessária para a confirmação da unidade humana.
No nono capítulo, Ai, que vergonha, Agassiz!, conhecemos o homem que foi responsável por fazer Darwin manifestar-se efetivamente a respeito da humanidade: Louis Agassiz, um dos mais respeitados naturalistas da América de então, tornou-se o maior rival de Darwin. Agassiz era a síntese de um homem da ciência: independência, objetividade e espiritualidade, com um pouco de democracia, e autor “dos argumentos mais convincentes em favor da imutabilidade das espécies”. Tinha repugnância pelos negros, que, segundo ele, “ameaçavam o futuro dos EUA”. Defendia que o local de origem de uma espécie era “determinado pela vontade do Criador”, e não pela dispersão e adaptação de um tronco originário comum. A origem comum humana seria uma evolução “condenável e ateia”.
No capítulo 10, A contaminação do sangue negro, os autores apontam que enquanto Darwin colocava suas ideias no papel, um conflito começava nos EUA: o embate entre republicanos do norte antiescravagistas e democratas sulistas pró-escravidão. Uma defesa viável da unidade humana, a alternativa às criações múltiplas de Agassiz, estava começando a aproximar-se da “origem comum” evolutiva de Darwin. A crença de Darwin na transmutação era muito forte, mas, como transformar insights antigos numa teoria sólida sobre as origens raciais? Talvez a resposta estivesse na diferença entre os sexos humanos. A seleção sexual poderia explicar por que a pele humana era mais útil nos climas tropicais.
Essa possibilidade é explorada no capítulo 11, A ciência secreta separa-se de sua causa sagrada. Com a chegada de um manuscrito de Wallace em 1858, Darwin temia que “sua originalidade fosse esmagada”. Hooker e Lyell garantiram a primazia dos escritos de Darwin (1854 e 1857), com a concordância de Wallace. Enquanto forma de explicar a criação, A origem das espécies “insultaria o Gênesis” de qualquer maneira, e falar sobre raças humanas poderia comprometer ainda mais a aceitação da seleção sexual. Provar que as raças tinham uma origem comum era provar que senhor e escravo tinham uma origem comum, e tal conclusão acabaria finalmente com essa atrocidade. Assim, as diferenças raciais entre os descendentes eram em parte naturais, em parte artificiais em relação aos animais domésticos. Mas, em última instância, todos derivavam de uma única espécie muita antiga. Darwin resolveu um problema que polarizara a ciência. No entanto, sua resolução alimentava forte antagonismo social: “O mundo teria muita dificuldade para engolir a seleção natural” e suas consequências para a humanidade.
O capítulo 12, Os canibais e a confederação de Londres, apresenta a Sociedade Antropológica de Londres, fundada em 1863, durante a Guerra Civil nos EUA, onde não havia lugar para ideias de que o negro é “um irmão”. Entretanto, a Sociedade Antropológica era o único órgão de Londres que tolerava debates sobre o darwinismo. Nesse contexto, Darwin enfrentava a perspectiva desagradável de publicar ele mesmo sua teoria da seleção sexual, como explicação das variações das raças, oriundas de um tronco comum.
No último capítulo, intitulado A origem das raças, os autores mostram como, em 1866, Darwin reuniu coragem para discutir as origens raciais humanas, explicando como a competição entre os machos e as escolhas das fêmeas produziram as raças humanas a partir de uma espécie ancestral e como homens e mulheres escolhiam traços desejáveis em seus pares. O fundamento de A origem do homem sempre foi a seleção sexual, justificada pela evidência do espectro zoológico. Darwin nunca capitularia nessa questão fundamental, de tão essencial que era para a crença de uma vida inteira na “fraternidade humana”. Darwin encerra o livro propondo que, “finalmente, quando os princípios da evolução forem aceitos pela maioria, a controvérsia entre monogenistas e poligenistas vai ter uma morte silenciosa da qual ninguém vai se dar conta” (Darwin, 1974, p.216). Talvez ele não imaginasse que não era apenas essa controvérsia que morreria.
Uma observação importante em relação ao livro é como ele exemplifica a relação entre ciência e moralidade. Este debate é bastante atual e remete às disputas entre filósofos e sociobiólogos: qual é a relevância da compreensão de nossa constituição biológica para o âmbito da moral? As ciências se ocupam do que é: os fatos constituem a referência empírica das teorias científicas. Já a moral está ligada a um trabalho de reflexão sobre hábitos, costumes e ações. Assim, a última analisa as origens e os fundamentos dos costumes que regem e articulam fatos, normas e valores e não deve confundir-se com o domínio das proposições científicas, conforme Hume já nos alertou (Hume, 2001). Entretanto, apesar do conhecimento científico não fundamentar valores, é capaz de esclarecer erros e preconceitos, desempenhando um papel libertador no exercício das escolhas morais, ao contrário das teorias que buscam, a partir de fatos, fundamentar valores, como algumas linhas da sociobiologia e o darwinismo social. A ciência pode trazer elementos que contribuam para a reflexão e ampliar o campo no qual possamos exercer nossa liberdade. É o que fez Darwin, segundo os autores de A causa sagrada de Darwin, mostrando como um cientista pode afastar certas práticas morais deturpadas e mudar para sempre o lugar do homem na natureza.
Referências
DARWIN, C. 1974. A origem do homem e a seleção sexual. Tradução de Attílio Cancian e Eduardo Nunes Fonseca. São Paulo, Hemus Livraria Editora, 715 p.
DESMOND, A.; MOORE, J. 2000. Darwin: a vida de um evolucionista atormentado. Tradução de Cynthia Azevedo. São Paulo, Geração Editorial, 672 p.
HUME, David. 2001. Tratado da natureza humana. Tradução de Serafim da Silva Pontes. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 740p.
PENA, S.; BIRCHAL, T. 2005-2006. A inexistência biológica versus a existência social de raças humanas: pode a ciência instruir o etos social? Revista USP, Vol. 68: pp. 10-21.
José Costa Júnior – Universidade Federal de Minas Gerais. Departamento de Filosofia Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Belo Horizonte, MG, Brasil. E-mail: jose.costajunior@yahoo.com.br
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Por uma outra globalização: do pensamento único a consciência universal | Milton Santos
A obra por uma outra globalização tem como objetivo principal discutir o atual processo de globalização, abordando questões que trata da constituição da globalização; quais indivíduos de fato esta atual globalização beneficia? E se é possível dar novos rumos a atual história social no período da globalização?
O livro é organizado em seis partes, todas subdivididas em capítulos. A primeira parte é a introdução. Nesta compreende-se que o autor procurou introduzir os três eixos temáticos do livro, sendo a possibilidade de considerarmos pelo menos três mundos em um só: a Globalização como fábula; a Globalização como perversidade e a Globalização tal como pode ser, sendo esta pautada na solidariedade humana. Leia Mais
Agincourt: o Rei, a Campanha, a Batalha | Juliet Barker
O livro Agincourt: O Rei, a Campanha, a Batalha da autora inglesa Juliet Barker foi publicado pela primeira vez na Inglaterra em 2005, pela editora Little Brown; foi traduzido para o português e publicado no Brasil em 2009 pela editora Record. Em uma vasta análise bibliográfica e de fontes, a autora descreve todo o processo, desde o início da Guerra dos Cem Anos até a batalha de Agincourt.
Juliet Barker nasceu em 1956 na cidade inglesa de Yorkshire, onde vive até hoje. É historiadora especialista em Idade Média e em literatura bibliográfica. Obteve seu doutorado em História Medieval em St Anne’s College, Oxford e, em 1999, obteve um doutorado honorário de Letras pela Universidade de Bradford. Foi curadora e bibliotecária no Bronte Parsonage Museum [2] e também é membro da Real Sociedade de Literatura inglesa.
A batalha de Agincourt (1415) é um ponto da História muito estudado e que faz parte sem dúvida do imaginário histórico inglês. Incluída no calendário da Guerra dos Cem Anos, assim como Crécy (1346) e Poitiers (1356), os ingleses triunfariam sobre os franceses embora estivessem com um exército consideravelmente menor. Agincourt também foi imortalizada na literatura mundial por ninguém menos que William Shakespeare em seu livro Henrique V. É sem dúvida um tema de relevância altíssima para ser abordado.
O livro foi estruturado em três partes que têm seus respectivos focos, mas todos organizados em seqüência cronológica. Na primeira parte “A Estrada para Agincourt”, há uma breve descrição do contexto inglês e francês dos séculos XIV e início do XV, bem como dos preparativos para a campanha. A segunda parte “A Campanha de Agincourt” trata da campanha que os ingleses empreenderam na França, desde Harfleur até a batalha de Agincourt em si. A última parte “As Consequências da Batalha” versa sobre o que ocorreu posteriormente a esse confronto e o impacto que a batalha teve nos anos seguintes.
Barker destaca o rei Henrique V da Inglaterra. Ela tenta, através de documentos e bibliografia a respeito do monarca, traçar um perfil de como ele teria sido e como foi sua liderança para a campanha na Normandia. Resgatando todo seu histórico, a autora mostra um rei influenciado pelas experiências militares vividas; os contatos pessoais – estes que declara imprescindíveis para o sucesso da campanha de Agincourt, tanto com grandes políticos como com os próprios guerreiros que lutavam por seu exército; enfim, como Henrique V se tornou um ícone, uma inspiração para a hoste inglesa que lutaria pela seqüência da legitimação do poder real inglês sobre a França.
Tem-se também o perfil religioso de Henrique. Como relatado nas fontes, o rei buscava dentro da Bíblia orientações para sua campanha, como no momento em que diz aos sitiados em Harfleur que Deus autorizaria, segundo o livro de Deuteronômio da Bíblia, que saqueassem a cidade se esta não fosse entregue.
A autora faz ainda uma extensa análise para todos os empreendimentos, levantamento de recursos, organização de guerreiros, mercenários, ferreiros, armeiros, cavalos, enfim, tudo o que era necessário para se realizar uma campanha na França. Também se detém no relato do sítio de Harfleur – ponto inicial de um viés prático da campanha. Após isso, só interessa a marcha dos ingleses e tudo o que girava em torno destes até culminar na grande batalha de Agincourt.
Barker analisa o porquê de os ingleses, em um número tão inferior, terem vencido a batalha de forma “simples”: eram um exército muito mais coesos, unidos em torno do rei Henrique V e se sentiam encurralados. Já os franceses estavam subdivididos de forma desorganizada em senhores feudais e nobres egoístas que não tinham como idéia principal unirem-se para vencer. Eram numerosos e julgavam a vitória certa – e a matança fácil. Essa desorganização foi o que os levou à derrota.
Mesmo realçando o papel de Henrique V na batalha, a autora não elabora uma narrativa estritamente política. Ainda sim, é a partir dessa figura que Barker tece uma teia de relações sociais e econômicas, conseguindo quase que contar de forma romântica a história. Embora as fontes tratem majoritariamente da sociedade nobre da época, Barker se permite estudar como agiam todos os membros que compuseram a hoste inglesa e toda a movimentação por trás dela.
É possível identificar ainda as diferenças entre os guerreiros ingleses e franceses, sobretudo focando no aspecto do corpo militar inglês formado em sua grande maioria por arqueiros. Há uma boa análise, embora pudesse ter sido mais explorada, da identidade que caracterizava o exército inglês por sua tática de batalha fundamentada no arco e flecha.
Isso não é um fator que desmereça a obra. Barker fez um trabalho exaustivo de leitura de fontes e análises bibliográficas baseada em diversos autores especialistas no assunto, como Anne Curry [3] e Robert Hardy [4] . É um livro que não relata apenas a batalha de Agincourt em si, pode servir de base para diversas pesquisas dentro do período, e, sobretudo, sobre a Guerra dos Cem Anos.
No Brasil, ainda que o mercado editorial seja tão inconstante a respeito das escolhas por boas traduções, mais sobre uma “História que não nos pertence”, potencialmente haveria um público alvo para o tema. Com a difusão de jogos, filmes e romances que tratam de temas históricos e grandes batalhas cresce cada vez mais o interesse a respeito. Assim, a tradução e publicação em menos de quatro anos desde seu original em inglês é um avanço grandíssimo e que pode servir de exemplo para que mais e mais tenhamos contato com diferentes culturas e Histórias, além de dar suporte a quaisquer estudos que estejam relacionados a esses conhecimentos.
Notas
2. Uma das mais antigas sociedades literárias de língua inglesa do mundo.
3. Historiadora britânica, especialista na temática envolvendo a Guerra dos Cem Anos, especialmente a batalha de Agincourt.
4. Ator inglês, também é especialista em estudos sobre o arco-longo inglês e Comandante da Ordem do Império Britânico (Ordem de Cavalaria inglesa fundada em 1917).
Guilherme Floriani Saccomori1 – Graduando e bolsista do PET-História desde 2009, com pesquisa individual orientada pela Prof. Dra. Marcella Lopes Guimarães intitulada “Arqueiros Ingleses na Guerra dos Cem Anos: a Transição Militar na Baixa Idade Média”.
BARKER, Juliet. Agincourt: o Rei, a Campanha, a Batalha. Rio de Janeiro: Record, 2009. Resenha de: SACCOMORI, Guilherme Floriani. Cadernos de Clio. Curitiba, v.2, p.305-309, 2011. Acessar publicação original [DR]
Arte e beleza na estética medieval | Umberto Eco
A Idade Média foi um momento de constante tensão entre opostos, de contradições entre as escrituras sagradas e suas interpretações, entre a teoria e a prática da instituição e dos fiéis. Por certo, o ordenamento do mundo levava a certo controle das contradições. A escolástica chegou a propor um método para o entendimento do mundo, ocultando suas contradições. Mas, as contradições não eram totalmente ocultadas, nem tão pouco controladas; porque ao pensar o tudo e o nada, o belo e o feio, o céu e o inferno, o homem e a mulher, a estética medieval, em especial, a exposta nas Catedrais não deixava de indicar as contradições, visto que o belo além de ser compreendido como algo dinâmico, também não deixava de ser múltiplo, diverso, fugaz, assim como suas formas de representação já o eram. Assim sendo, como devemos entender a arte medieval? De que maneira a beleza foi representada? Qual sua função na sociedade? Esses foram alguns dos questionamentos que Umberto Eco2 se propôs, ao pensar a arte e a beleza na estética medieval.
Publicado nos anos de 1960, e revisto na década de 1980, o livro só recentemente traduzido para o português (por Mario Sabino3 e publicado pela Editora Record em 2010), pretendia fornecer um painel do período, na forma de um manual acadêmico, detalhando a sensibilidade na estética medieval, como foi pensada a proporção, a luz, o símbolo e a alegoria, a forma e a substância, as teorias da arte, o lugar do artista na sociedade, e as relações, aproximações e distanciamentos entre a Escolástica e o Renascimento dos séculos XV e XVI. Para isso, toma como base a “história das teorias estéticas, elaboradas pela cultura da Idade Média latina” (2010, p. 9), e de que maneira foram sistematizadas por autores como Tomás de Aquino. Leia Mais
Minha guerra alheia – COLASANTI (S-RH)
COLASANTI, Marina. Minha guerra alheia. Rio de Janeiro: Record, 2010. 286 p. Resenha de: ABRANTES, Alômia. “O mosaico falhado de memória”: composições da infância e da guerra. sÆculum – REVISTA DE HISTÓRIA, João Pessoa, [23] jul./dez. 2010
No fluxo da produção de biografias e autobiografias lançadas no Brasil, Marina Colasanti, conhecida e premiada escritora, surpreende-nos com um livro de memórias sobre a sua infância vivida em meio a conflitos bélicos, em especial, no cenário italiano da II Guerra Mundial.
Poderíamos apressadamente pensar que trata-se de mais um trabalho de memória sobre um conflito reiteradamente narrado por tantos escritores, inspirador de tantas obras literárias e cinematográficas, mas “Minha Guerra Alheia”, além da marca sensível comum à escrita da autora, insinua um fazer escriturístico que ressoa nas inquietações de quem se debruça sobre a reflexão acerca da produção da memória, da escrita de si, e da relação destas com a história. Leia Mais
A Misteriosa Chama da Rainha Loana: romance ilustrado | Umberto Eco
A pesquisa de Yambo para recuperar sua memória é um passeio pela construção de sua “visão de mundo”, entrelaçada com a história da Itália, entre 1930 e 1990, que corresponde à própria idade de Yambo. Yambo é o protagonista do romance ilustrado, assim anunciado, de Umberto Eco.
A história do personagem que, após um acidente vascular cerebral, tenta recuperar sua memória emocional, é um mergulho nas mais variadas fontes. Pode-se dizer que se trata de um trabalho de historiador, camuflado pelo romance, que transborda pelo excelente autor que é Umberto Eco. Leia Mais
Eu vivi por um sonho – CUTRUFELLI (REF)
CUTRUFELLI, Maria Rosa. Eu vivi por um sonho. Tradução de Maurício Santana Dias. Rio de Janeiro: Record, 2009. Resenha de: PETERLE, Patricia. Reinventando a história de Olympe de Gouges. Revista Estudos Feministas v.17 n.2 Florianópolis May/Aug. 2009.
Eu vivi por um sonho, cujo título original é La donna che visse per un sogno (A mulher que viveu por um sonho), é um dos romances da escritora italiana Maria Rosa Cutrufelli, publicado em 2004, na Itália, e o primeiro dela a chegar ao mercado editorial brasileiro. A tradução fica a cargo de Maurício Santana Dias, que vem cada vez mais se destacando como um influente elo entre Brasil e Itália.
Maria Rosa Cutrufelli nasceu em Messina, na Sicília, uma região que já deu grandes autores, uns mais, outros menos canônicos, para a literatura italiana. Só para lembrar alguns nomes, Giovanni Verga, Luigi Pirandello, Vitaliano Brancati e, mais recentemente, Leonardo Sciascia, Vincenzo Consolo, Andrea Camilleri. Sem se esquecer de que a literatura italiana teve sua origem com a escola poética siciliana, que será recuperada depois por Dante Alighieri e pelos poetas toscanos.
Formada em Letras pela Universidade de Bolonha, Cutrufelli hoje mora na capital romana e, além da atividade de escritora, colabora com a RAI (Radiotelevisão Italiana) e com várias revistas literárias. É uma das fundadoras da revista Tuttestorie, que dirigiu por 12 anos. A temática da narrativa feminina e os estudos de gênero, presentes em vários números dessa publicação, são aspectos constantes que acompanham a sua escritura, como pode ser identificado nos vários ensaios sobre a condição da mulher na sociedade, por exemplo, “Il cliente – inchiesta sulla domanda di prostituzione”, de 1981 (“O cliente – a pesquisa sobre a procura de prostituição”). Esses aspectos também estão marcantes nas suas aventuras ficcionais. Podem ser lembrados aqui Mamma Africa (1989), um livro de memórias autobiográficas, e La Briganta (1990), cuja protagonista é uma mulher que deve enfrentar todas as dificuldades por ser diferente e não seguir as “normas impostas”. Outra obra, Complice il dubbio (1992), foi adaptada para o cinema com o título Le complici, em 1998, pela cineasta Emanuela Piovano.
Em Eu vivi por um sonho, Cutrufelli recupera a “fórmula” do romance histórico, tão em voga na segunda metade do século XX e no início do século XXI. O convite da autora ao leitor é voltar ao século XVIII, na França, mais precisamente na Paris de Robespierre, um país devastado pela revolução e desgovernado pelas rebeliões. Nesse quadro, a guilhotina é o símbolo máximo da ordem, que intimida e desencoraja por meio do terror e da morte aqueles que tentam lutar por uma sociedade de indivíduos livres e iguais. Dentre esses se sobressaem a figura e a voz de Olympe de Gouges, a autora da “Declaração dos direitos da mulher e da cidadã” (1791), um título que retoma o da declaração feita pelos homens. No texto de Olympe, são reivindicados a igualdade de direitos para as mulheres, sua representação no parlamento, o direito ao trabalho e à igualdade de salário, o direito à propriedade para as mulheres casadas e a reforma das leis matrimoniais; e são também assinaladas obrigações como a igualdade penal para os sexos. Vale lembrar que esses ideais foram ainda motivados pelo lema da Revolução Francesa, anterior de dois anos, de 1789: igualdade, liberdade, fraternidade.
A de Olympe é a principal voz narrativa do coro polifônico feminino que compõe a tessitura do romance. Cutrufelli, partindo de dados e fatos históricos, recupera e reinventa o passado para falar de um assunto ainda atual: o papel da mulher na sociedade.
O coro de vozes femininas, ainda, é composto da esposa do filho Pierre, Hyacinthe, da serva, Justine, da jovem republicana que denuncia Olympe, Françoise-Modeste, das crianças como Thérèse e de uma série de personagens que testemunham e ajudam a delinear o clima vivenciado naquela “Paris do terror”. Os títulos dos capítulos são dados a partir dos nomes das vozes que narram. Assim, “Hyacinthe”, “Olympe”, “Hyacinthe”, “Françoise-Modeste” e “Justine” são os primeiros e se repetem ao longo da leitura. Tal configuração já apresenta ao leitor a coralidade presente na obra e ajuda-o a manter o fio condutor da(s) narrativa(s). Todas essas mulheres dão, por meio de suas falas, traços diferentes da personagem principal Olympe, a partir de pontos de vista variados, contribuindo, assim, para construir o retrato da heroína.
Em Eu vivi por um sonho, há, portanto, um leque de personagens que, a partir do contexto no qual estão circunscritos, percebem e descrevem os acontecimentos que confluem na figura de Olympe. É seguindo essa linha, portanto, que são perfilados para o leitor os vários quadros que remetem àquele período, à vida cotidiana, à vida política, à vida na prisão, com diálogos e discussões de pessoas comuns que se encontram e falam de política, da revolução, da família e dos problemas caseiros. É interessante chamar a atenção para a caracterização feita da realidade dos cárceres, definidos como lugares escuros, sujos e lotados.
Esse resgate do passado é feito não só a partir dos nomes de personagens históricos, como Robespierre, mas também a partir de alguns fatos presenciados ou contemporâneos às vicissitudes de Olympe. Logo no início do romance há o funeral de Jean-Paul Marat, conhecido como “amigo do povo”, que é assassinado por Charlotte Corday, presa em 17 de julho de 1793 e condenada à guilhotina:
Para abreviar, ouço bater as 6h e nós ainda estamos em casa. Não agüento mais de tanta impaciência, da janela entra um rumor surdo, contínuo, é a multidão que vai se juntando e se demorarmos mais um pouco tenho medo de não ver nada. Isso já me aconteceu na Igreja dos Franciscanos, onde o corpo estava exposto. A multidão se aglomerara a tal ponto que não consegui achar espaço. De longe, de muito longe entrevi jovenzinhas que lançavam flores sobre o leito fúnebre, todas vestidas de branco – como queria ser uma delas! -, enquanto o presidente de uma seção pronunciava um discurso […] cidadãs, espalhem flores sobre o corpo pálido de Marat! Marat foi nosso amigo, foi amigo do povo, viveu para o povo, pelo povo morreu. Cidadãs espalhem flores sobre o corpo pálido do amigo do povo […] (p. 36).
O romance de Cutrufelli retrata os últimos quatro meses de vida de Olympe, de julho até 3 novembro de 1793, quando ela é guilhotinada. O que se tem desse percurso é o retrato de uma mulher decidida, uma idealista decepcionada com a Revolução. Olympe sente-se traída e é motivada por um sentimento de justiça que a faz escrever e lutar por aquilo que acredita. Nessa perspectiva, a escrita será a sua maior força: “E aqui estou, manca no corpo e na alma. Porém ainda tenho momentos de firmeza, em que a realidade recobra peso e retoma seu lugar. Os momentos de escrita” (p. 47). Toda força, coragem e vigor que representam essa personagem, em alguns momentos, dividem o espaço com as fragilidades femininas:
– A condenada chorava. Sim, são lágrimas que abrem caminho em meio a frios riachos de chuva, minhas faces as reconhecem pela morna docilidade, pelo modo como correm e deslizam consoladoras até o pescoço, por dentro da camisa, até o esterno. Choro. Por que não deveria? Sou uma mulher, Henri Sanson. Uma mulher que quis ser alguém. É pela beleza deste sonho que eu choro. E porque teria preferido morrer num dia de sol, com os braços soltos e meu pequeno chapéu azul posto maciamente sobre a fronte (p. 302).
Essas também são as últimas palavras de Olympe que “encerram” o livro.
Para a escritora, a multiplicidade de vozes narrantes tem um motivo – a vontade de evitar a estrutura dos romances históricos “tradicionais” -, como afirmou em entrevista dada a Marilia Piccone, por ocasião da publicação em 2008 do romance D’amore e d’odio, no qual é possível identificar uma estratégia e uma situação muito parecida. Porém, nesta última obra, o conjunto polifônico não tem como objetivo perfilar uma personagem, mas sim delinear a pluralidade de histórias e vozes do século XX. Todavia, mesmo tentando evitar os romances históricos mais “tradicionais”, esse tipo de narrativa pode ser considerado uma escolha e, sobretudo, um elemento marcante dentro de toda a obra e do projeto literário de Cutrufelli – a esse respeito é interessante a entrevista da autora publicada no livro Gendering Italian Fiction: Feminist Revisions of Italian History (1999), de Maria Ornella Marotti e Gabriella Brooke.
Há ainda, nas últimas páginas, um “Posfácio (ou quase)”, de poucas páginas, no qual Maria Rosa Cutrufelli afirma ter-se tornado uma “pescadora de vidas perdidas”, refazendo-se a Don Delillo. Agora, em vez de resgatar uma parte da história francesa, a autora recupera uma parte das suas lembranças pessoais, durante a década de 1960, quando lia um pequeno livro, Storia dell’emancipazione femminile (História da emancipação feminina). É nessa leitura que ela se depara com o texto da Declaração de Olympe de Gouges, uma descoberta juvenil que traz alguns questionamentos: “[…] mas então existe uma falsa igualdade? E quem era aquela mulher que soubera discernir o verdadeiro do falso?” (p. 308). São talvez essas mesmas indagações que povoam e nutrem a ficção de Cutrufelli. É com este livro, que chegou a ser finalista na Itália do famoso Prêmio Strega, em 2004, que a escritora italiana é apresentada ao público brasileiro.
Patricia Peterle – Universidade Federal de Santa Catarina.
O filho eterno – TEZZA (REF)
TEZZA, Cristovão. O filho eterno. Rio de Janeiro: Record, 2007. Resenha de: CRISTOVÃO, Tezza. O filho eterno: uma leitura desejante. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.17, n.1 Jan./Apr. 2009.
O romance O filho eterno, de Cristovão Tezza, conta a história do amadurecimento de um homem com o nascimento de seu primeiro filho, uma criança com Síndrome de Down. A crítica literária de língua inglesa, sempre preocupada em ‘fichar’ um romance, chama esse gênero literário de coming-of-age novel ou bildungsroman. No entanto, na orelha do livro somos informados de que o escritor, Cristovão Tezza, baseia a história em sua própria vida, logo, um romance autobiográfico: “Num livro corajoso, Cristovão Tezza expõe as dificuldades, inúmeras, e as saborosas pequenas vitórias de criar um filho com síndrome de Down”. Folheando as primeiras páginas encontramos as epígrafes:
Queremos dizer a verdade e, no entanto, não dizemos a verdade. Descrevemos algo buscando fidelidade à verdade e, no entanto, o descrito é outra coisa que não a verdade.1
Um filho é como um espelho no qual o pai se vê, e, para o filho, o pai é por sua vez um espelho no qual ele se vê no futuro.2
A primeira fala sobre ‘verdade’ e a impossibilidade de a verdade ser apreendida mesmo quando a intenção é revelar a verdade. A segunda fala sobre ser pai e ser filho. Antes mesmo de iniciar a leitura, somos informados de que o romance tem como ponto de partida as memórias do escritor Cristovão Tezza, e, ele mesmo, na epígrafe, deixa claro que memórias são essas. Uma história baseada em fatos reais que não tem pretensão de ser a verdade. É a história do relacionamento de pai e filho – e, pela orelha do livro, somos informados de que se trata de um relacionamento com “dificuldades, inúmeras, e as saborosas pequenas vitórias”. Além disso, trata-se de um “livro corajoso” – o escritor é considerado corajoso ao relatar parte de sua vida, ao expor sua família e sua intimidade. Porém, confesso que me incomoda adjetivar o livro (e o escritor) de “corajoso”, pois “ser corajoso” me remete a livros com relatos (dramáticos) de histórias pessoais – “histórias de coragem e conquistas” – bem nos moldes do mote (ou mantra?) da propaganda política do governo: “sou brasileiro e não desisto nunca”. Talvez só eu tenha feito essa relação mental (que foi automática e com uma pitada de arrogância, admito), mas, de qualquer maneira, ler “livro corajoso” na orelha não me impediu, nem me desanimou, de ler o livro – a epígrafe me deu a impressão de que não se tratava de mais um “relato de coragem e determinação”. Claro que essa orelha foi escrita com propósitos comerciais, afinal, toda história e todo filme “baseados em fatos reais” encontram um certo apelo público. A ideia de alguém que viveu momentos difíceis e superou, ou que não superou, mas o final infeliz nos ensina a valorizar a vida e os momentos felizes. Coincidentemente, enquanto eu lia o livro e comentava, durante um almoço com uma amiga, a resposta dela foi: “Ah sei! Vi uma entrevista do autor e esse é o livro que ele escreveu sobre o filho com Down né? Anotei pra comprar. É uma história bonita?”. Respondi: “Bonita? Hmm… define ‘bonita'” (ela não quis ou não soube ou não vinha ao caso naquele almoço). Na hora, eu me lembrei do texto “O valor“, de Antoine Compagnon,3 e, automaticamente, vários outros textos foram pipocando na minha cabeça, textos sobre belo, estilo, estética, conceito de literário etc., como o do Ítalo Moriconi, “Circuitos contemporâneos do literário (indicações de pesquisa)”.4
Essa conversa apresenta parte da reflexão de Moriconi sobre o conceito de literário na atualidade. Para Moriconi, o processo material de criação da obra literária (ou obra de ficção), bem como a personalidade e a vida do autor desempenham papel determinante na divulgação, recepção de obras literárias (e artísticas) contemporâneas. Poderíamos aqui citar a presença do website do escritor Cristovão Tezza na orelha da contracapa do livro, após a breve informação biográfica. O culto à personalidade do autor e como esta aparece na obra estão implícitos nesse novo detalhe de algumas edições recentes. Como se, sob o aval da editora Record, o leitor obtivesse o endereço eletrônico de “um website oficial” – aos moldes de personalidades tornadas celebridades no mundo virtual, com inúmeros websites de fãs e com o respeitado website oficial.
Se na esfera pública clássica, pré-midiática, o autor era um “ser de papel” (como dele disse Barthes), ser virtual no sentido original da palavra virtual e não no sentido de virtual on line, hoje esse autor está disponível para apresentar seus materiais de trabalho, de tal maneira que a esfera do específico estético incorporou o making of como elemento de consideração. […] Considero que textos de depoimentos de artistas e de entrevistas sobre suas trajetórias biomateriais constituem corpus que fazem parte do conceito de literário atualmente. É que faz parte da definição de arte e literatura o objeto que se coloca em cena como representação do processo material de criação, como simulacro de uma situação de enunciação.5
Dispersa parcialmente da conversa, comecei a pensar sobre o meu adjetivo para aquela narrativa, aquele texto de ficção, texto literário, romance, romance autobiográfico. Sentei na frente do computador e comecei a escrever minha resenha. Meu adjetivo: sincero. Um livro sincero, um narrador sincero, uma história sincera. Sem pieguice, sem conquistas descritas em tom meloso, sem lágrimas fáceis de “histórias bonitas” – mas lágrimas sinceras de confissões que podem ser recebidas como um soco no estômago. A subversão de expectativas sociais em relação à paternidade: logo no início temos um pai que deseja secretamente a morte do filho assim que ele nasce. Durante todo o livro o leitor é confrontado com desejos e pensamentos ‘egoístas’ de um personagem, e esses fazem o leitor, a todo momento, pensar em seus desejos íntimos e secretos. A coragem aqui aparece nas revelações secas e cruéis dos desejos mais secretos de um personagem que não procura se redimir. E isso, para mim como leitora, é a força do romance. A preocupação do personagem em não se conformar, em não fazer parte de um sistema e em não ser mais um “idiota” é refletida na narrativa, que em nenhum momento se conforma aos moldes das narrativas “corajosas”.
O filho eterno é uma narrativa seca de desencantamento, em terceira pessoa, onde os personagens não têm nome, com exceção do filho, Felipe, e são chamados de “ele”, “o pai”, “a mulher”, “a mãe”, “a filha”, “a irmã”. Mesmo Felipe frequentemente aparece como “o filho” em contraposição ao “pai”. Não encontramos o lugar-comum, o apelo ao sentimento de pena e empatia, e, acredito, ser isso uma das qualidades de uma história que prende o leitor por não fornecer respostas e soluções óbvias, pelo contrário, a surpresa é uma constante durante a leitura. Percorremos a trajetória do personagem pai e, dentro de sua história, acompanhamos a trajetória do personagem filho, Felipe. O treinamento neurológico nos primeiros anos de vida do filho é contrastado com o ‘treinamento’ do pai em relação às tentativas de publicar seus livros e as recusas das editoras:
Eu também estou em treinamento, ele pensa, lembrando mais uma recusa de editora. A vida real começa a puxá-lo com violência para o chão, e ele ri imaginando-se no lugar do filho, coordenando braços e pernas para ficar em pé no mundo com um pouco mais de segurança (p. 130).
O crescimento e o desenvolvimento do filho são percebidos pelo pai nas representações de papéis sociais que o filho se esforça em cumprir (p. 211). Ao mesmo tempo, o pai descobre a alegria que a rotina traz e a tranquilidade conquistada com papéis sociais como “o professor universitário”, “o escritor”.
“O pai começa a descobrir sinais de maturidade no seu Peter Pan e eles existem, mas sempre como representação” (p. 218). O espelho no qual ambos, pai e filho, se veem é o espelho que reflete a representação dos papéis sociais. A percepção de mimetismo social no filho não está muito distante dos papéis que o pai é solicitado a cumprir socialmente na universidade, na família, na escola do filho, no campeonato de natação e na apresentação de teatro do filho. A dificuldade do pai é tão grande quanto a dificuldade do filho. A criança que vive eternamente no presente aprende a responder ao que é solicitado dela socialmente. O pai provisório, que só pensava em viver o presente, também aprende. E aqui é revelado o escritor por trás da narrativa. A sutileza ao contar os episódios na vida do pai e do filho é alcançda no contar da história, pois não há momentos de avaliação e reflexão em que paralelos são explicitamente estabelecidos. Esse trabalho é reservado ao leitor. E nesse momento me veio à cabeça um texto do qual eu gosto muito: “Freud’s Masterplot”, de Peter Brooks.6
Nesse texto, Brooks cria uma “teoria da narrativa” baseada no que ele chama de “teoria da vida”, criada por Freud em Além do princípio do prazer e baseada na leitura de Lacan dos conceitos freudianos de condensação e deslocamento, com seus análogos na linguagem, metáfora e metonímia, respectivamente. Se viver é a separação entre o nascimento e a morte, o meio da narrativa é o que separa o início do fim (sendo ambos, a morte e o fim, já presentes no nascimento e no início do texto). Sendo assim, resta ao indivíduo e ao leitor percorrer esse caminho árduo e prazeroso, evitando atalhos. Para Brooks, o meio do texto (o texto em si) é o local onde alguma forma de energia textual é ativada pelo leitor na interação entre leitor e texto. Na ficção, o perigo dos atalhos e da “morte repentina” é tarefa do escritor criador da narrativa e do leitor, que precisa ligar as redes metonímicas para alcançar a metáfora. Acredito que há no romance de Tezza essa preocupação em não deixar o leitor “morrer de repente”, ou, como indaga Roland Barthes sobre o prazer de ler, não abandonar o texto. E chego ao Barthes.
Em “Da leitura”, Barthes questiona a existência de um prazer de leitura, um prazer de ler, e conclui que existem, pelo menos, “três vias pelas quais a Imagem de leitura pode capturar o sujeito-leitor”: a) o estabelecimento de uma relação fetichista entre o leitor e o texto; b) “o prazer metonímico de toda narração”; e c) a leitura como condutora do desejo de escrever, desejo de Escritura.7 A leitura de O filho eterno foi, para mim, uma leitura permeada pelos três desejos destacados por Barthes. Como sujeito-leitor, passei de um “dever de leitura” para as vias assinaladas por Barthes, e, pessoalmente, foi o “prazer metonímico” da narrativa de Cristovão Tezza que tornou a leitura especial, uma “leitura desejante”.
Notas
1 Thomas BERNHARD apud Cristovão TEZZA.
2 Søren KIERKEGAARD apud TEZZA.
3 Antoine Compagnon, 2001.
4 Ítalo MORICONI, 2006.
5 Ítalo MORICONI, 2006, p. 161-162.
6 Peter BROOKS, 2007.
7 Roland BARTHES, 1988, p. 49.
Referências
BARTHES, Roland. “Da leitura”. In: ______. O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 43-52. [ Links ]
BROOKS, Peter. “Freud’s Masterplot”. In: RICHTER, David H. (Ed.). The Critical Tradition. Boston: Bedford; St. Martin’s, 2007. p. 1161-1171. [ Links ]
COMPAGNON, Antoine. “O valor”. In: ______. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte: UFMG, 2001. p. 225-255. [ Links ]
MORICONI, Ítalo. “Circuitos contemporâneos do literário (indicações de pesquisa)”. Revista Gragoatá, Niterói, n. 20, p. 147-163, 1. sem. 2006. [ Links ]
Marina Barbosa de Almeida – Universidade Federal de Santa Catarina
Gerações de cativeiro: uma história da escravidão nos Estados Unidos | Ira Berlin
O professor Ira Berlin, da Universidade de Maryland, Estados Unidos, já ganhou diversos prêmios em razão de seus livros publicados em 1975 e 1999, intitulados, respectivamente, Slave without masters: the free negro in the Antebellum South e Many thounsands gone: the first two centuries of slavery in Mainland North America. O mesmo aconteceria com a publicação de outro livro em 2002, e traduzido para o português em 2006, Gerações de Cativeiro, que foi agraciado pela Associação Histórica Americana. Com essa publicação, o professor americano prossegue suas pesquisas na área da história dos Estados Unidos e do mundo Atlântico, enfocando o trabalho escravo.
No livro Gerações de Cativeiro, Berlin trabalha novamente com a escravidão nos Estados Unidos, dando ênfase no escravo, pois, como afirma, apesar da relação entre proprietários e cativos ser desigual, tendo estes pouco poder se comparado aqueles, havia um embate entre ambos. Os escravos eram ameaças constantes aos seus senhores e, portanto, era necessária uma contínua relação de disputas entre estes dois grupos, sendo que, às vezes, o resultado desta era a realização de algumas “concessões” em prol dos cativos. Apesar da proibição de casarem-se, muitos escravos formaram famílias; apesar de não poderem ter religião própria, criaram-se igrejas à revelia dos senhores; apesar de não poderem ter propriedades, muitos cativos adquiram posses. Deste modo, neste livro o escravo é o centro da narrativa mesmo sem esquecer outros atores sociais como os proprietários de escravos, os brancos livres, negros livres ou libertos e indígenas.
O criativo título Gerações de Cativeiro expressa a outra ideia que permeia a análise no livro: a perspectiva de mudanças. Mudanças nas gerações em cativeiro, nas gerações de comunidades escravas, as quais, como a própria palavra geração expressa, foram influenciadas pelas que as precederam e diferenciadas das posteriores. Assim, Berlin demonstra a descontinuidade, as variações e opõe-se a uma história linear dos quase 300 anos de escravidão nos Estados Unidos bem como a uma história que retrata os escravos como “socialmente mortos”, sem enraizamento, isolados no Novo Mundo trazendo à tona a ideia do escravo como ativo, como sujeito na sua própria história e na sua geração.
Observando o escravo por este viés, Berlin percebe, portanto, a escravidão como algo negociado e não simplesmente imposto e mantido através da violência. No centro deste processo está o trabalho desses cativos. Todavia, Berlin não se concentra somente na história do trabalho; ele amplia seus estudos para as relações familiares, religiosas e para o próprio vocabulário desenvolvido pelos grupos de africanos e de seus descendentes que se estabeleceram nas plantações de tabaco, arroz, índigo e nas cidades. Embora não oficiais, essas práticas formularam instituições escravas, as quais se diferenciavam da dos seus senhores.
Conectando o título com a divisão do livro, Berlin intitula e separa seus capítulos baseando-se também na concepção de gerações, as quais organizaram-se e estabeleceram-se a partir do final do século XVI até meados do XIX, com o término da escravidão nos Estados Unidos. Há, portanto, as gerações da Travessia, da Plantation, Revolucionárias, de Migrantes e, por fim, da Liberdade. Nesses capítulos, além da observação de diversas formas de relações dos cativos entre si e entre estes e seus superiores, há a análise das variações dessas relações referentes aos espaços onde estas foram constituídas. Desta forma, nos capítulos iniciais, as narrativas têm como palco as treze colônias americanas enquanto, no fim do livro, temos os Estados Unidos como nação e dividido, principalmente, entre norte e sul.
As Gerações da Travessia são os grupos iniciais de africanos trazidos para a América. Berlin nomeia esses como crioulos do Atlântico, uma vez que eram um grupo de origem não somente africana, mas também europeia. A formação desse grupo deu-se pelo contato ocorrido em virtude do estabelecimento de feitorias e pontos comerciais europeus na costa oeste da África a partir do século XV. Desta relação surgiram os crioulos, um terceiro grupo, o qual não era reconhecido nem como europeu e nem como africano. Esses crioulos eram extremamente hábeis no comércio, pois tinham maleabilidade e conhecimentos para ir e vir tanto no mundo dos europeus como no dos africanos. A despeito das vantagens comerciais e linguísticas, esse aspecto limítrofe do crioulo trazia dificuldades na sua identificação com determinados grupos detentores do poder e, por conseguinte, na obtenção de proteção por parte destes. Deste modo, questões como crimes, dívidas ou má sorte poderiam significar escravização.
Os crioulos do Atlântico, em diversas situações, desempenhavam as atividades diárias lado a lado com os europeus, os quais, em alguns casos, trabalhavam como servos. Aqueles puderam continuar e expandir sua cultura nascida no continente africano. Diferentemente do que aconteceu com as gerações posteriores, a travessia do Atlântico não desfez os laços entre os cativos: simplesmente, deslocou-os para outra localidade. Além disso, participavam das atividades religiosas europeias e tinham mais possibilidades de acesso a terras bem como a alforrias e ao casamento do que as gerações posteriores.
Com a introdução das plantations essa pequena prosperidade vivenciada pelos crioulos do Atlântico desapareceu e a segunda geração de escravos surge: estamos na Geração da Plantation. Apesar das especificidades regionais, o que compreende toda esta segunda geração é a introdução das grandes plantações e a rigidez e a brutalidade com que o sistema escravista se estabeleceu, haja vista que, neste momento, temos a necessidade de maior produção em menos espaço de tempo visando à exportação. Com a plantation, almejava-se o lucro, custe o que custar. Essa geração é o retrato que pintamos da escravidão como tal, com trabalho árduo e castigos corporais mais acentuados, com altas taxas de mortalidade, desequilíbrio entre homens e mulheres, poucas alforrias e famílias.
Não eram mais os crioulos do Atlântico, os escravos trazidos da África. Saiu-se do litoral e mirou-se nos nativos do interior do continente. Assim, a língua crioula deixou de ser corrente para dar voz às africanas do interior. O contato entre trabalhador o escravo africano e o europeu esvaiu-se, aumentando a distância entre brancos e negros.
Nesse segundo capítulo, o autor trabalha com a escravidão na região norte dos Estados Unidos. A priori, a ideia comum é considerar os estados do norte como abolucionistas e livres de escravos. Mas, Berlin demonstra que esta região quase chegou a vias de tornar-se uma sociedade escravista, ou seja, uma sociedade em que este tipo de mão de obra é o alicerce central da produção econômica e todas as relações sociais estão construídas em torno no modelo patriarcal de senhor e escravo. Todavia, a expansão da escravidão freou antes desse processo ocorrer como aconteceu na região sul.
Após o estabelecimento da Geração da Plantation, vêm, no final do século XVIII, as Gerações Revolucionárias, acompanhando e vivenciando as revoluções por igualdade e liberdade que borbulhavam tanto na Europa quanto na América. A Revolução Americana desestruturou internamente a organização da sociedade escravocrata de então, sendo que não havia mais uma uniformidade entre os proprietários de escravos, os quais estavam divididos entre legalistas e patriotas, e nem havia mais um Estado forte para a proteção da instituição escravista. Deste modo, esse período de conflitos internos gerou uma válvula de escape para os cativos.
Além da guerra, a ideologia, que permeava essa e as outras revoluções contemporâneas, também foi extremamente significativa para a erosão do poder dos senhores escravocratas. Apregoava-se, tanto na Declaração Americana de Independência como na Declaração Francesa dos Direitos do Homem, a igualdade universal. Portanto, surgiam questionamentos como: se todos eram iguais como uns poderiam ser subjugados a outros? Além disso, havia outra questão: os americanos desejavam a independência por estarem sendo escravizados pelos países metropolitanos, mas como poderiam almejar sua liberdade se continuavam a escravizar em suas terras? Esse paradoxo fortaleceu ainda mais os escravos.
Com o fim das revoluções, os escravos iriam vivenciar outro momento: a expansão das grandes plantações para o interior do sul dos Estados Unidos, criando as Gerações de Migrantes. Acompanhando a plantation, seguiram mais de um milhão de escravos vindos de outras regiões do país, haja vista que o tráfico Atlântico de africanos havia sido extinto em 1808. Esse mercado interno de cativos aqueceu-se entre os anos de 1810 a 1861 quando as terras do interior sulista foram protagonistas das plantações de algodão e de açúcar.
Enquanto no sul as relações escravocratas enrijeciam-se e se fortaleciam com os lucros das plantações, no norte, após as ondas revolucionárias, mudanças estavam em prosseguimento. Leis para a gradativa abolição da escravatura estavam sendo elaboradas e aplicadas. Em algumas regiões, a abolição aconteceu mais rápido do que em outras, apesar de a escravidão, em certos locais, perdurar com outras formas e nomes, porém com o mesmo conteúdo e objetivo. Além disso, a liberdade para os negros não significava igualdade no norte e muito menos proteção contra investidas dos brancos sulistas, haja vista que a temática da reescravização esteve sempre presente na vida desses indivíduos no século XIX. Mesmo sendo estados considerados livres e sendo refúgio e esperança de muitos ex-excravos, negros livres e cativos sulistas fugidos, o norte auxiliou na recaptura e envio de escravos para os seus senhores sulistas.
Mas, a escravidão não viveria para sempre. A partir de meados do século XIX, a possibilidade da liberdade com o fim da escravidão estava ganhando mais força. A abolição da escravatura em diversos países e o fortalecimento do movimento abolicionista no norte dos Estados Unidos eram os carros chefes desse movimento. Assim, chega-se às Gerações da Liberdade.
Com a guerra civil entre o norte e o sul, iniciada em 1861, os escravos viram o sistema escravista em colapso e aproveitaram essa fragilidade. Contudo, em seus primeiros momentos, a decepção dos escravos quanto à liberdade e a salvação vinda do norte foi grande. A guerra, diferentemente do que geralmente aprendemos, não tinha inicialmente motivos abolicionistas, como expõe Berlin. Os soldados federais não estavam lutando pelo fim da escravidão; a maioria nem se importava com estas questões. Esta relação mudou somente quando os sulistas passaram a utilizar os cativos nas fortificações e na luta contra os soldados da União. Indo de encontro com as políticas federais, os soldados do norte começaram a também fazer uso dos escravos e a não mais devolver os cativos fugidos aos seus donos sulistas. Com o passar da guerra, o governo necessitou de mão-de-obra, o que favoreceu as fugas escravas, que só aumentavam. Para o fugitivo, o envolvimento com o serviço militar significava não só liberdade, mas também a possibilidade de ter acesso à cidadania. Entretanto, foi somente em 1863 que o presidente Lincoln declarou todos os cativos dos estados rebeldes do sul como livres. Portanto, vale ressaltar que a abolição aconteceu quase dois anos depois do início da guerra, demonstrando que esta não era a intenção inicial do governo de Lincoln.
Porém, a escravidão não solapou somente com as forças externas dos federais. Dentro das plantações, os escravos também resistiam, protestavam e se rebelavam. Assim, com o fim da guerra civil, a instituição escravista estava destruída e a nova lógica em jogo era a da liberdade. A construção dessa nova sociedade era um misto de antigos e novos desejos. A história desses libertos não poderia ser elaborada ser as marcas e as vivências da escravidão. E, segundo Berlin, a herança da escravidão são essas marcas e vivências que delinearam e delineiam a formulação da vida em liberdade e do direito de ser cidadão.
O livro Gerações de Cativeiro é um trabalho de síntese histórica uma vez que o autor percorre desde as feitorias na África do século XV até as batalhas da Guerra de Secessão nos Estados Unidos no século XIX. Neste caso, ser um trabalho de síntese não significa um termo depreciativo, ao contrário. Berlin consegue entrelaçar num livro de poucas centenas de páginas diversas pesquisas menores sobre este extenso período. Os dados que apresenta não são retirados de fontes primárias e sim, dessas pesquisas que estão expressas nas notas no fim do livro. Devido ao grande número de trabalhos citados, verificamos uma grande carga de leitura e formidável capacidade de organizá-la de forma coerente e concisa por parte do autor. Porém, além desses trabalhos de outros pesquisadores, Berlin apresenta os resultados das suas próprias pesquisas anteriores resultando num livro dos quase 300 anos de escravidão nos Estados Unidos com questionamentos e apontamentos revisados e inseridos nos atuais estudos da história social da escravidão.
Ana Paula Pruner de Siqueira – Mestranda pela Universidade Federal de Santa Catarina, financiada pela CAPES. E-mail: paulaas_pruner@yahoo.com.br.
BERLIN, Ira. Gerações de cativeiro: uma história da escravidão nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Record, 2006. Resenha de: SIQUEIRA, Ana Paula Pruner de. Aedos. Porto Alegre, v.2, n.3, p. 287-292, jan. / jun., 2009.
A Batalha pela Espanha: a guerra civil espanhola (1936-1939) | Antony Beevor
A guerra civil da Espanha, um dos mais trágicos conflitos do século XX, foi contundentemente retratada em peças da literatura universal e em imagens marcantes do século, tendo sido eternizada na literatura mundial por Ernest Hemingway, em Por quem os sinos dobram, e o seu épico magistralmente ilustrado por Pablo Picasso, em Guernica. Romantizada, sem dúvida, pelos relatos dos envolvidos de lado a lado, a Guerra antecipou as oposições que se tornariam evidentes com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, tendo sido o palco da política de intervenção das potências européias e medida do enfrentamento feroz a que se entregariam poucos anos depois.
A Batalha pela Espanha, do pesquisador inglês Antony Beevor, é uma atualização de obra homônima publicada em 1982, que se fez necessária a partir da abertura do acesso a novas fontes documentais sobre o conflito, algumas delas na Espanha, mas principalmente na Rússia pós-soviética. Beevor é já conhecido do público brasileiro por outros títulos extraordinários que não versam propriamente sobre história militar, mas sobre dimensões político- diplomáticas de episódios da Segunda Guerra Mundial. Entre esses títulos, destacam-se Creta: Batalha e resistência na Segunda Guerra Mundial (2008), Stalingrado (2002), Berlim, 1945: A Queda (2004) e O Mistério de Olga Tchekova (2005), todos trabalhos construídos a partir de sólida e diversificada base documental. Leia Mais
Os príncipes da Irlanda. Livro 1: a saga de Dublin | Edward Rutherfurd
O romance escrito pelo autor inglês radicado há mais de dez anos nas terras irlandesas – Edward Rutherfurd que, ao longo de suas quase setecentas páginas procura recontar a história da formação tanto de Dublin como da Irlanda, possui certa base de pesquisa histórica, alguma atualização nas discussões acadêmicas e historiográficas, mas, preservou em sua narrativa, imagens estereotipadas e temas polêmicos.
As duas primeiras partes do romance, Dubh Linn e Tara, envolvem o passado céltico da ilha, enfatizando os aspectos religiosos e sociais. A religiosidade pagã é mostrada com respeito e reverência, porém, com certo referencial da literatura esotérica atual, possuindo pouca ou nenhuma semelhança com as narrativas míticas irlandesas, embora conserve alguns nomes próprios que aparecem em textos como “Deidre” e “Noise”, por exemplo. Na questão do sacerdócio, o autor, ao mesmo tempo em que se mostra conhecedor de bibliografia especializada – ao descrever os druidas portando roupas e acessórios de pássaros, portanto realizando práticas xamânicas (ver AldhouseGreen, 2005: 195-197) em outras passagens da obra acaba cometendo erros (a posição de druida era hereditária, p. 30) ou assumindo posições equivocadas (as druidesas tendo o mesmo poder dos druidas e a mesma tonsura, p. 84, ou mesmo tendo um poder maior que os reis, p. 87).
Sobre polêmicas envolvendo o papel das druidesas ver Ellis (2001: 105-130). Na realidade, em nenhuma sociedade antiga a mulher teve papel religioso predominante em relação ao masculino, sendo essa representação da sacerdotisa amplamente poderosa um referencial anacrônico. Em seu estudo The World of the Druids, Miranda Green apresenta uma análise das fontes clássicas onde são descritas as funções dos druidas. Nessa obra, Green menciona que existiam mulheres sábias que poderiam ser aliadas dos druidas, mas, em hipótese alguma, podem ser consideradas druidesas. O uso da tonsura druídica por mulheres como aparece descrita no romance é uma licença poética do autor que, dentro do universo ficcional tem liberdade para criar, mas jamais pode conferir um caráter verdadeiro a essas criações. Essas descrições parecem estar aliadas ao discurso esotérico atual que procura mostrar que as mulheres eram realmente poderosas e detentoras de um conhecimento que foi perdido e que precisa ser resgatado.
Outras situações envolvendo mulheres também apresentam problemas, como a suposta liberdade feminina em relação à escolha do casamento (p. 42), outro anacronismo muito comum nos escritos contemporâneos e esotéricos sobre os Celtas. Essa liberdade feminina descrita e defendida no romance de Rutherfurd pode ter sido influenciada pelo romance As brumas de Avalon, onde a autora Marion Zimmer Bradley confere às personagens femininas um grande poder de decisão e de autoridade interferindo nas decisões de governantes e reis e subordinando os druidas ao seu comando. Essa visão da mulher é extremamente fantasiosa, pois descreve um poder feminino que nunca existiu, transformando a vida das mulheres radicalmente para melhor, mostrando assim que, no passado, as sociedades realmente eram harmônicas porque viviam sob uma ginecocracia e, tudo se degradou depois que as mulheres foram destituídas. Essa visão equivocada é infelizmente hoje defendida por correntes esotéricas que instigam as mulheres modernas a buscarem àquela liberdade; utopia essa que seria um retrocesso para as mulheres. Essa reivindicação de um grande poder feminino que foi perdido, mas que ainda persiste em alguma regiões, é defendido ferozmente por alguns acadêmicos que insistem em atribuir um poder druídico a algumas mulheres da Armórica atual. Conhecidas como “avós druidas”, essas mulheres seriam as detentoras e guardiãs de todo o saber que fora extinto com a chegada do cristianismo. O mais apropriado a dizer dessas mulheres é que elas não são os receptáculos do conhecimento advindo dos druidas, mas sim guardiãs das tradições folclóricas que podem sim ter reminiscências da cultura celta. Afirmações como estas partindo de acadêmicos estão travestidas de uma militância semelhante ao discurso esotérico que querem provar a todo custo que a cultura celta ainda se mantém pura e viva como nos séculos que antecederam a cristianização e que cabe às mulheres estabelecer esse resgate no presente. Teses como essas figuram muito bem no campo da ficção, não devendo em hipótese alguma ser levadas a sério no campo da investigação científica comprometida com a análise séria e criteriosa das fontes.
O terceiro capítulo, São Patrício, envolve o processo de cristianização da região. Neste momento, o autor mostra-se bem atualizado, demonstrando que o conhecimento sobre este personagem histórico é controverso e muito polêmico. Rutherfurd constrói a narrativa seguindo a atual concepção de que Patrício não teria sido o primeiro evangelizador da Irlanda, sendo antecedido por várias comunidades e até bispos, que após sua morte foram transformados em seus discípulos. Ou seja, uma construção hagiográfica dos fatos históricos (p. 220). A estratégia de evangelização adotada, primeiro converter os druidas e membros importantes para depois o restante das comunidades, também está presente no romance. Mesmo o intenso conflito entre mosteiros rivais foi citado (p. 202), demonstrando que o escritor não adotou nenhuma concepção idealista da fé cristã. No romance há uma perfeita integração entre cristão e pagãos, principalmente por parte dos druidas convertidos que aceitam a nova religião de forma pacífica encontrando pontos em comum com a antiga crença e até exaltando o cristianismo como a verdadeira religião e que só ela é capaz de conduzir os homens ao único criador. Uma passagem interessante da narrativa apresenta um diálogo entre a personagem Deirdre e o druida convertido Larine, onde este relata à sua interlocutora que “(…) a Igreja Cristã contém todo o saber do mundo romano”. (p.166). Essa afirmação do personagem demonstra o cristianismo como possuidor de uma herança do mundo clássico, e, aqueles que se convertem têm acesso a toda verdade humana. Por essa passagem é possível perceber uma clara exaltação ao cristianismo e da figura do bispo Patrício em detrimento da antiga religião e do conhecimento druídico.
O processo de invasão e colonização dos Vikings foi desenvolvido nos capítulos 4 e 5. O contexto social foi bem descrito, mostrando tanto os conflitos entre noruegueses e irlandeses, quanto suas interações e casamentos interétnicos. A descrição da famosa batalha de Clontarf, envolvendo o também famoso líder Brian Boru, ao contrário, foi pouco explorada em termos de narrativa militar, sendo por isso muito decepcionante.
Os piores momentos da obra foram a permanência de dois estereótipos. O primeiro é referente aos Celtas usarem um crânio como taça para brinde em comemorações e festas (p. 34). Trata-se de uma imagem literária fantasiosa, criada pelos gregos e perpetuada pelo medievo em diante (Langer 2003: 32). O segundo estereótipo, mais grave ainda, é a caracterização dos guerreiros Vikings portando elmos com chifres (p. 191). Uma fantasia criada e popularizada no Oitocentos, totalmente desmentida pela pesquisa acadêmica (Langer 2002: 07).
O romance de Rutherfurd possui muito mais qualidades que as obras do escritor brasileiro Orlando Paes Filho (como a série Angus), que deixa explícito em suas linhas uma profunda militância cristã mostrando desprezo por outras crenças que não estejam subordinadas à Igreja Católica, fato esse que compromete em muito a narrativa. Desagradando àqueles que, admiradores da literatura de aventura, não professam a mesma religião defendida com tanta veemência nos romances de Paes Filho, que jamais pode ser comparado a outros romances históricos como os escritos por Margareth Yourcenar, Bernard Cornwell ou José Saramago, deve este livro ser lido com critério.[1]
Nota
1. Esta resenha contou com a colaboração do Prof. Dr. Johnni Langer, especialmente nos capítulos 4 e 5, referentes aos Vikings na história da Irlanda.
Referências
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Luciana de Campos – Doutoranda em Letras UNESP/SJRP. E-mail: fadacelta@yahoo.com.br
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A misteriosa chama da Rainha Loana. Romance ilustrado | Umberto Eco
ECO, Umberto. A misteriosa chama da Rainha Loana. Romance ilustrado. Rio de Janeiro: Record, 2005. Resenha de: NEVES, Lucilia de Almeida. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.24, n.1, p.307-311, jan./jun. 2006.
O Desafio do Capitalismo Global | Robert Gilpin
Teórico das Relações Internacionais, Robert Gilpin é considerado um dos principais representantes do Realismo Político. Preocupado com as mútuas relações entre segurança e economia, Gilpin fez uma grande contribuição para o desenvolvimento da disciplina Economia Política das Relações Internacionais. Nessa trilha, “O Desafio do Capitalismo Global”, publicado em inglês em 2000, retoma antigas teses do pensamento realista da Teoria da Estabilidade Hegemônica (TEH), segundo a qual uma economia internacional liberal estável só seria possível se sustentada por uma potência hegemônica que garanta a provisão dos bens públicos internacionais: uma ordem internacional liberal, a segurança internacional, um sistema monetário estável e fornecedor de empréstimos, em última instância, internacional. Aplica-se, segundo a TEH, o seguinte postulado: “para que exista uma economia liberal estável é necessário um estabilizador”, com poder político e econômico para levar a cabo a tarefa.
Cético como seu mentor, o historiador econômico Charles Kindleberger, em relação à possibilidade de uma ordem econômica internacional estável regida pelas leis do mercado, Gilpin afirma nessa obra que: “Embora os progressos tecnológicos e o jogo das forças de mercado representem motivos suficientes para ampliar a integração da economia mundial, as políticas de apoio dos Estados mais fortes e as relações de cooperação entre eles constituem a base política necessária para uma economia mundial estável e unificada” (p. 26). Em outros termos, uma sólida base política internacional seria a condição para a governança da economia internacional. Leia Mais
Reforma: O cristianismo e o mundo 1500-2000 | Felipe Fernandez-Armesto e Derek Wilson
Em todo âmbito acadêmico, os estudiosos da história sabem das dificuldades de se ser fiel aos acontecimentos sem perder, ou deixar de mencionar, os detalhes mais relevantes do recorte histórico que se pretende apresentar. Assim como nas demais áreas do saber humano, o estudo da história é repleto de nuanças que dificultam o trabalho, tornando a busca das fontes uma verdadeira aventura para o pesquisador que deseja apresentar um trabalho de sério. No que diz respeito à religião cristã, desde suas origens na tradição judaica até os dias atuais, geralmente nos são apresentados trabalhos que acentuam a importância da observação histórica e de todo o seu processo evolutivo.
Dentre todos os acontecimentos importantes na trajetória do cristianismo, a Reforma Protestante, do século XVI, merece atenção especial. Felipe Fernandez-Armesto e Derek Wilson – o primeiro de origem confessional católica, o segundo protestante – apresentam, numa demonstração de maturidade acadêmica, deixando de lado as diferenças que os separavam, a Reforma de maneira completa, detalhada e equilibrada, pondo de lado certas interpretações mais comuns, como a assepsia histórica, o catolicismo conservador e o protestantismo apaixonado. Leia Mais
Em busca do Povo Brasileiro – Artistas da revolução, do CPC à era da TV | Marcelo Ridenti
A utopia de uma efetiva aproximação entre os intelectuais, os artistas e o povo brasileiro é o tema central desse livro de Marcelo Ridente, que, em última instância, trata da produção cultural inspirada no âmbito da então sonhada Revolução Brasileira. Apesar das especificidades de cada uma das áreas artísticas abordadas, é possível observar, através do estudo proposto, as diversas problemáticas que nortearam a produção cultural brasileira, em meados dos anos 60 e 70 – um período de intensos debates sobre a viabilidade do projeto de modernização do País. Nessa direção, o estudo privilegia a análise de obras, cuja proposta não escamoteia a intenção do artista em revelar ao espectador a história de sua gente, analisar o presente e projetar o futuro da sociedade brasileira.
A pesquisa de Ridente se insere no âmbito das preocupações que se aproximam dos pressupostos teóricos e metodológicos da chamada História Nova, capaz de reconhecer, em todas as marcas da inteligência humana, objetos de estudo para a disciplina. A história – asseguraria Jacques Le Goff, um dos expoentes da Escola dos Annales – deve perscrutar as fábulas, os mitos, os sonhos da imaginação (1990, p. 107). Nesse sentido, os historiadores, no decorrer do século XX, propuseram a superação das premissas positivistas, responsáveis pelo confinamento das pesquisas aos documentos escritos, e muitas vezes, oficiais. A terceira geração dos Annales ampliou as possibilidades da escrita da história, propondo a utilização de tipos de fontes diferenciadas: documentos que abarcam formas de linguagem não escrita, depoimentos orais, registros judiciais, artísticos, literários, entre outros. Leia Mais
O fim da utopia: política e cultura na era da apatia | Jacoby Russell
Resenhista
Ademir Luiz da Silva– Mestre em História das Sociedades Agrárias pela Universidade Federal de Goiás.
Referências desta Resenha
RUSSELL, Jacoby. O fim da utopia: política e cultura na era da apatia. Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2001. Resenha de: SILVA, Ademir Luiz da. História Revista. Goiânia, v.7, 1-2, p. 177-180, jan./dez.2002. Acesso apenas pelo link original [DR]
Uma história cultural do humor | Jan Bremmer e Herman Roodenburg
Resenhista
Élio Chaves Flores
Referências desta Resenha
BREMMER, Jan; ROODENBURG, Herman (Orgs). Uma história cultural do humor. Trad. Cynthia Azevedo e Paulo Soares. Rio de Janeiro: Record, 2000. Resenha de: FLORES, Élio Chaves. A História deixou de ser agelasta? SÆCULUM – Revista de História. João Pessoa, n. 8/9, p. 181-189, jan./dez. 2002/2003.
A História vai ao Cinema: vinte filmes brasileiros comentados por historiadores / Jorge Ferreira
Para os irmãos Lumiére, o cinema seria uma curiosidade passageira. Reza a lenda que um dos inventores do cinematógrafo (1895), ou o pai dele, chegara a proferir: “o cinema é uma invenção sem futuro”. O palpite não vingou e, em pleno alvorecer do século XXI, a captação de imagens em movimento sobrevive muito bem, seja em fotogramas, seja nos seus avatares em novas tecnologias (do vídeo analógico aos processos digitais).
E o cinema não apenas teria um futuro, mas ainda deixaria, em sua secular existência, um rastro imensurável de registros desse próprio tempo, bem como de tempos mais ou menos remotos, bem ou mal reinterpretados em celulóide. Presentificando outras etapas da história, o cinem também tornou-se uma invenção com o olho (câmera) no passado. O problema é que os historiadores, em princípio, não perceberam isso.
A História, que aperfeiçoa seus métodos antes de surgir o cinematógrafo, prefere ignorá-lo, como lembra Marc Ferro, acrescentando: “a linguagem do cinema revela-se ininteligível e, como a dos sonhos, é de interpretação incerta”. Mais prudente, naquele campo do conhecimento, seria manter a tradição documental da palavra escrita. Além de tudo, em sua fase heróica, era o cinema uma curiosidade inculta, destinada portanto à “ralé”. Os elitistas não o levariam a sério. Muitas décadas depois, mesmo mudando-se esse conceito, ainda haveria resistência dos historiadores para se valer do filme, seja ficcional ou mesmo documental, como fonte. Ferro foi um dos profissionais desse campo a apontar a legitimidade do material cinematográfico junto aos estudiosos.
No Brasil, os historiadores seguiram o descompasso de seus pares estrangeiros no trato com o cinema. Mas o audio-visual tanto cresceu em nossas vidas (com a televisão e o videocassete), que logo se impôs como suporte pedagógico. Várias disciplinas o acolheram em salas de aula, impondo aos professores a urgente necessidade de se melhor compreender o que até então era “mera diversão”.
O livro A História vai ao Cinema, organizado por Jorge Ferreira e Mariza de Carvalho Soares, é um rico e estimulante passo do pensamento acadêmico para se compreender uma manifestação artística que já tinha ido à História desde seu surgimento em fins do século XIX.
Não se trata de um compêndio que teoriza sobre tais relações entre as duas matérias apreensoras do tempo (o diretor Sílvio Tendler, na introdução, apenas esboça algo nesse sentido).
A coletânea em pauta reúne vinte filmes brasileiros, cada um deles analisado por um historiador. A seleção dos títulos teve critério um tanto elástico. Incidiu sobre fitas lançadas entre 1976 e 1998 – de “Dona Flor e seus dois Maridos” a “Central do Brasil”. A ênfase em filmes de sucesso comercial, ou de boa ressonância junto à crônica especializada, coincidentemente ou não, redundou em filmes associados a uma idéia de “bom gosto” artístico – o que implica na exclusão não justificada de produções absurdamente populares, como as comédias de Mazzaropi, dos Trapalhões ou do ciclo pornochanchadeiro (dois terços do que se produziu em cinema brasileiro, nos anos 70, eram filmes eróticos). Se tais filmes não foram sucesso de crítica (de resto, algo subjetivo), foram avalizados pelo público. Além do mais, a pornochanchada esteve no centro das discussões daquela década, seja associada ao “pão e circo” imposto pela ditadura, seja por suas supostas “transgressões” sexuais num período de liberação dos costumes, particularmente da mulher – assunto que, por si só, legitimaria uma observação mais ampla das relações basilares entre obras como “Dona Flor…” e “Xica da Silva” e esses filmes de menor extração.
A compreensão, pelo prisma da História, de obras fílmicas requer que se aventure um pouco na própria história do cinema – no caso, o brasileiro. Assim, à guisa de exemplo, é pertinente, na análise de “Marvada Carne”, a observação da ancestralidade do personagem Nhô Quim, que hoje mantém os “poucos mesmos artefatos da cultura material dos bandeirantes paulistas”.[1] Mas o mesmo tipo caipira – e todo esse filme de André Klotzel – é também uma citação do cinema caipira de Mazzaropi, inclusive contando no elenco com a presença de Geny Prado, veterana atriz de seus populares filmes. A cultura remota, sem dúvida, ressoa nos personagens e em seu mundo rural. Mas a cultura imediata do cinema também está, mais conscientemente, arrisco dizer, na construção da obra, que visa tocar no imaginário de amplo público, emocionando-o de algum modo.
O processo cinematográfico, por injunções comerciais, implica em se agrupar filmes em gêneros reconhecíveis. As tramas, os tipos humanos (heróis e vilões) etc. se repetem, bem como as formatações narrativas de pura imagem. Estas tendem a ser recorrentes (o uso dos planos, os movimentos de câmera, a montagem e seu ritmo, a cor etc.). Produzem discursos em consonância com o roteiro meramente literário. Às vezes, porém, deliberadamente ou não, há dissonâncias entre o que é verbalizado na tela e a montagem audiovisual adotada. Na análise de “Pra frente Brasil” cita-se o modelo thriller norte-americano para o filme político, fórmula esta difundida por Costa Gavras.[2] A comparação procede, mas seria também pertinente observar que tal modelo redunda na espetacularização da trama política, engolida pelo ilusionismo hollywoodiano, não surtindo maior efeito nas platéias que só se interessam na “ação pela ação”. Roberto Farias, o diretor, sobretudo está, com seu filme, ajustando-se a uma solicitação comercial num momento em que a abertura política supostamente aceitaria filmes dessa natureza. Farias opta pela linguagem conservadora plenamente adequada à “ideologia” que adota: a do mercado. Da chanchada ao ensaio do Cinema Novo, passando por filmes modernosos sobre Roberto Carlos, o cineasta sempre se guia por caminhos que devem ser também lembrados na análise da obra em pauta. Essa contextualização de cultura cinematográfica e sua adequação ao plano lingüístico não são elementos desprezíveis numa análise envolvendo História e Cinema.
Concorde-se ou não com toda a opinião e abordagem de tantos estudiosos, o livro em questão é, desde já, uma referência obrigatória para se estudar aqueles dois campos do conhecimento. Os autores são especialistas dos temas retratados nos filmes em foco. Alguns podem ter mais familiaridade ou não no trato da linguagem cinematográfica. O projeto editorial assemelha-se ao livro Passado Imperfeito – A História no Cinema (Record, 1997), organizado por Marc C. Carnes, em que historiadores e outros especialistas rastreiam e criticam a história da humanidade expressa em filmes europeus e notadamente hollywoodianos. Ressalvas aqui cabem também no que tange às especificidades do meio cinematográfico, mas o resultado é sempre estimulante. Num outro ângulo dessa aproximação cinema-história, cabe lembrar que os criadores audiovisuais precisam também mergulhar no que há de específico e mais avançado noutras áreas do conhecimento. Há um atraso brutal em relação ao saber, haja vista os resultados medíocres de tantos filmes. “Canudos”, de Sérgio Rezende (que também se baseia no romance O Rei do Cangaço, de Manuel Benício, e não somente traduz Euclides da Cunha), é exemplo desse mau resultado. Um fracasso artístico, inclusive, o que me faz discordar de que seja “bom cinema”, como se lê no texto.[3] O formato do espetáculo comercial de gênero “épico guerreiro”, implica na redução do fenômeno messiânico a uma sucessão de batalhas mal realizadas.
O Nordeste, com esse filme e outros como “Cabra Marcado para Morrer”, “O Homem que virou Suco”, “Central do Brasil” etc. é um tema recorrente na cinematografia brasileira, herança da redescoberta do Brasil via Cinema Novo dos anos 60. Mas outros temas, nessa antologia, se cruzam em vários filmes. Assim, vemos o problema das migrações tanto em “Aleluia Gretchen”, “Quatrilho”, “Gaijin” e “Lição de Amor” quanto em “O Homem que virou Suco” e “Cabra Marcado para Morrer” – esse último diretamente ligado a outro subtema: o Brasil pré e pós-64, ao lado de “Jango”. Temos, enfim, um amplo espectro de possibilidades de análises, por vários ângulos, inclusive com filmes cujo tema histórico situado no passado mais remoto é, de fato, uma crítica ao Brasil contemporâneo, como se observa em “Xica da Silva, por exemplo. Adotemos, pois, esse livro como suporte para discussões mais aprofundadas sobre nosso imaginário histórico, sem esquecer a perspectiva de fazermos “a história audiovisual da história”, como propôs o sociólogo Gilberto Vasconcelos em recente estudo sobre Glauber Rocha.
Notas
1. ALMEIDA, Jayme de. Marvada Carne: uma comédia caipira épica. In: p. 195.
2. BATALHA, Cláudio H. Pra frente Brasil: o retorno do cinema político. In: p. 137.
3. HERMANN, Jacqueline. Imagens de Canudos. In: p. 246.
Firmino Holanda – Universidade Federal do Ceará.
FERREIRA, Jorge; SOARES, Maria de C. (Orgs.) A História vai ao Cinema: vinte filmes brasileiros comentados por historiadores. Rio de Janeiro: Record, 2001. Resenha de: HOLANDA Firmino (Res), Revista Trajetos, Fortaleza, v.1, n.1, 2001. Acessar publicação original. [IF].
História Indiscreta da Ditadura e da Abertura – Brasil 1964-1985 – COUTO (HE)
COUTO, Ronaldo Costa. História Indiscreta da Ditadura e da Abertura – Brasil 1964-1985. Rio de Janeiro: Record, 1998, 517p. Resenha de: FERRAZ, Francisco César Alves. História & Ensino, Londrina, v.6, p.199-201, 2000.
Os interessados na história recente do Brasil têm à sua disposição uma obra que é proveitosa tanto do ponto de vista do seu conteúdo, quanto do perspectiva de quem a escreveu. A História Indiscreta da Ditadura e da Abertura -Brasil: 1964-1985, de Ronaldo da Costa Couto, além do estilo agradável e direto, sem as retorções acadêmicas de praxe, possui, dentre suas principais virtudes, o fato de oferecer uma síntese da história política brasileira recente a partir da perspectiva de quem participou de vários de seus momentos principais, seja sob as luzes do palco principal, seja nos bastidores do poder.
Costa Couto foi, ao longo das décadas de 70 e 80, secretário de governos estaduais do Rio de Janeiro e Minas Gerais, bem como ministro em duas pastas e governador de Brasília. A história que escreveu ajuda a entender melhor como alguns homens públicos neste país concebem sua função política e social.
É um tipo de história que tem sido escasso nesses últimos tempos, a do pOlítico de Estado que escreve histórias de seu presente, para além de suas memórias particulares. Dois exemplos deste tipo de história podem ser lembrados: a volumosa História da Segunda Guerra Mundial, do estadista britânico Winston Churchill, e o recém reeditado clássico da historiografia brasileira do século XIX Um Estadista do Império, do parlamentar Joaquim Nabuco.
A maior diferença desses trabalhos com o de Costa Couto é que este foi apresentado, originalmente, como tese de doutorado na Universidade de Paris-Sorbonne (Paris IV). A maior semelhança é a de ter a perspicácia de compreender a estrutura e o funcionamento dos acontecimentos políticos a partir de uma interpretação singular, combinando duas dimensões da história pol ítica que nós, historiadores acadêmicos, deixamos de lado como “história factual’ ou desprovida de interesse. Uma delas é aquilo que nossos parlamentares e membros do poder executivo chamam de “entendimentos”, ou seja, aquelas conversas de bastidores entre políticos, aqueles acordos ou rompimentos que nós, da plateia, só descobrimos quando o roteiro já foi todo rearranjado, à nossa revelia e muitas vezes às nossas custas … Essa dimensão da “política miúda” é enredada com o poder de síntese histórica que, queiramos ou não enxergar, alguns políticos possuem de sobra, principalmente quando tentam articular os meios que dispõem para os fins que desejam. Esse é o ponto mais forte desse livro. Se desejamos conhecer como as coisas realmente acontecem na política brasileira, precisamos aprender a ler as notinhas de jornais com o mesmo apetite que lemos as matérias de primeira página.
A fonte documental básica para o livro de Costa Couto contribui bastante para esta compreensão: são os depoimentos de trinta e duas pessoas de relevante importância política, de Luís Inácio Lula da Silva ao general João Baptista Figueiredo. Alguns dos depoentes não concediam entrevistas a historiadores acadêmicos, o que torna o estudo de Costa Couto uma boa oportunidade para conhecer certos meandros do poder no Brasil. Essas entrevistas propiciam ao leitor uma perspectiva que, dificilmente, seria conseguida com o estudo dos documentos usuais de nossa história recente. Têm, contudo, o inconveniente de limitar a compreensão dos processos históricos nas fronteiras do que é possível um político dizer em público. Pessoas públicas que têm uma imagem a zelar não costumam revelar nada além do que é permitido e já divulgado. Neste sentido, é uma história “discreta”, sem novidades para os leitores mais atentos de nossa produção historiográfica.
Assim, alguns problemas do livro aparecem. O principal, já evidente desde o título, é prometer algo maior do que o que pode cumprir: o que o autor quer dizer com ‘história indiscreta”? Não é uma história de fofocas do poder, adianta na apresentação
o historiador (recentemente falecido) Francisco Iglésias. Ainda bem. Mas ao fazer uma história da política brasileira a partir dos bastidores, “sem comprometer ninguém (p.20)”, sem o risco de propor explicações mais gerais do que a dinâmica de poder palaciano, perde-se uma oportunidade única de oferecer ao leitor uma reflexão sobre o porquê de “plantinhas tão tenras” (nas palavras do político Octávio Mangabeira) como democracia, direitos, cidadania e igualdade social, aparecerem com mais frequência de modo instrumental e oportunista, nas considerações de nossos homens públicos, do que como princípios fundamentados na vivência e na dignidade da vida política.
Não obstante essa “discrição” -por não revelar nada novo ou “guardado a sete chaves” pelo poder -o livro é importante pelas pistas que, voluntariamente ou não, oferece para estudos futuros sobre a história do poder político no Brasil. Nessa história, eu, você, todos nós, leitores, aparecemos mais como a plateia do que como coadjuvantes, menos ainda como protagonistas da história. Não se trata apenas de uma divisão entre classes, ou entre elites e massas. Se essa estrutura política ainda sobrevive às vésperas da virada do século, se ainda é possível combinar o discurso da modernidade com o clientelismo mais tradicional, e se tudo isso ainda aparece na história dos livros didáticos como algo pertencente à ordem natural das coisas, nossa atenção deve deslocar um pouco das explicações que reduzem a política à expressão dos interesses de classe. Talvez seja o momento de saber o que alguns políticos pensam de si mesmos, e como concebem a história da qual se vêem como os atores principais. Neste sentido, o livro de Costa Couto é um importante e útil ponto de partida.
Francisco César Alves Ferraz – Professor da Universidade Esiadual de Londrina e Doutorando em História na USP.
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