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Historiografia e ensino de história em tempos de crise democrática / Revista Transversos / 2020
Em outras palavras, na representação da felicidade vibra
conjuntamente, inalienável, a (representação) da redenção. Com a
representação do passado, que a História toma por sua causa, passa-se o
mesmo.
Walter Benjamin
Um primeiro elemento do que podemos chamar de uma crise contemporânea da disciplina história e, neste caso específico, da teoria da história, da história da historiografia e do ensino de história está relacionado à temporalidade.
O que precisamos lembrar, antes de qualquer reflexão sobre a história, a teoria da história, a história da historiografia e o ensino de história hoje, é que a temporalidade no interior e para a qual a disciplina se constituiu, trazia desafios significativos, provocando, por exemplo, a perda de sua imediatidade, de seu poder de determinação mais transcendental, ou como Rüsen escreveu, trata-se de uma disciplina que não estaria mais “legitimada pela sua mera existência”. (RÜSEN, 2011: p. 27)
O que precisamos sublinhar aqui é que a constituição da disciplina – e com ela a teoria, a história da historiografia e o ensino de história – se torna possível (e necessária) no interior de uma temporalidade marcada pelo que Koselleck chama de “aceleração do tempo”. Ela se constitui, por um lado, a partir da redução do “espaço de experiência” (Erfahrungsraum) e, por outro, do alargamento do “horizonte de expectativas” (Erwartungshorizont), ou ainda em outras palavras, da redução da confiança em passados e da acentuação da estratégia antropológica que é a da projeção. (Cf. KOSELLECK, 1989)
O que precisamos reter aqui é que se, por um lado, a modernidade se constituiu como um espaço marcado pela perda da imediatidade dos sentidos – Deus e Bíblia –, por uma espécie de multiplicação de mundos ou regiões possíveis, organizadas, por sua vez, com base em determinados sentidos, significados e afetos, ela também assiste, por outro lado, a uma disputa entre estas regiões no que diz respeito à possibilidade de que uma delas pudesse se generalizar e (re)ocupar um espaço mais central (transcendental).
A modernidade (mais propriamente ocidental) pode ser compreendida exatamente como uma temporalidade (um horizonte histórico) marcada pela ampliação considerável de experiências e perspectivas que até então eram pouco conhecidas, de modo que o que temos é o aparecimento de outras possibilidades e limites que precisariam ser experimentados e tematizados. A ideia aqui é justamente a de que a partir dessa ampliação, o conjunto de sentidos, significados e afetos reunidos em torno das noções de Deus e Bíblia deixou de ser suficiente (adequado, sachlichkeit) para responder de forma mais ou menos razoável àquela realidade (efetiva, Wirklichkeit).
O que se dá, então, é que boa parte ou mesmo a maior parte dos homens e mulheres (no ocidente) procuram se dedicar ao exercício existencial-intelectual (experiência + atividade do aparato intelectivo: da imaginação e do entendimento em termos kantianos) que é o de projetar, a partir do presente (também em diálogo com passados, neste caso menos evidentes ou disponíveis), outros futuros possíveis, outras combinações constituídas exatamente por aquelas experiências e perspectivas que de alguma forma apareceram para e no ocidente. O que significa, assim, menos passados (ao menos aqueles mais evidentes, reunidos em torno das noções de Deus e Bíblia) e mais futuros, ou ainda, menos tradição e mais prospecção. O ocidente acaba se dedicando mais à estratégia antropológica de imaginar (ou sonhar), pensar e, então, constituir outros mundos possíveis (Cf. BENJAMIN, 1994). Temos o que Koselleck chama de um alargamento significativo do “horizonte de expectativas”. (Cf. KOSELLECK, 1989)
Mas qual a relação desta argumentação com a crise atual da disciplina história, da teoria, da história da historiografia e do ensino de história?
A resposta se relaciona ao que sublinhamos logo no início, à compreensão de que é justamente nessa temporalidade marcada pela redução do “espaço de experiência” e pelo alargamento do “horizonte de expectativas” que elas são constituídas. Elas se organizaram com o objetivo de participar do esforço mais geral de reorganização temporal, ou seja, da reconstituição de determinada estabilidade. O problema aqui, certo nó podemos dizer, é justamente um sentimento de perda de confiança em passados que atinge, em cheio, a história e, neste caso, o ensino de história. A disciplina participa de um movimento de reconstituição de um mundo comum, no entanto, ela (já) havia perdido parte de seu poder (mais imediato) de prescrição (Cf. GUMBRECHT, 2011)
As filosofias da história e os historicismos procuraram participar dessa reconstituição de um horizonte comum (mais geral, transcendental) e, se por um lado, obtiveram certo sucesso, e isto porque conseguiram, de alguma forma, reencantar razoavelmente a relação epistemológicopragmática com passados (especialmente a partir da estratégia temporal do progresso), o que temos, por outro lado, é que as próprias filosofias da história e os historicismos também acabaram participando e provocando o que podemos chamar de uma aceleração dessa aceleração ou instabilidade temporal, na medida em que também tivemos, ao fim, a própria multiplicação de sentidos e significados que seriam ideais. (Cf. KOSELLECK, 1989, RANGEL, 2019 e RANGEL; ARAUJO, 2015)
Portanto, temos o que podemos chamar de certo êxito em relação ao reencantamento da história, logo, da relação com passados (e mesmo de certa reestabilização temporal), mas, também (e apenas aparentemente de maneira paradoxal), a própria intensificação da aceleração, da instabilidade temporal. Ou em outras palavras, por mais que se tenha tornado possível certo reencantamento da relação epistemológico-pragmática com o passado, ele já era percebido como menos adequado e próprio à tematização e rearticulação do presente. (Cf. GUMBRECHT, 2011: p. 30)
De modo que a fórmula – o passado necessariamente nos auxilia no enfrentamento de questões próprias ao nosso mundo (ao presente) – nunca mais retomou o poder de prescrição (mais imediato ou automático, irresistível) que tivera, e mais, vem perdendo força desde então.
Vem perdendo força exatamente porque o que temos ao longo do século XIX e boa parte do século XX é algo que se aproxima desse esquema circular: 1- com a aceleração ou instabilidade temporal temos uma perda significativa da confiança epistemológico-pragmática em passados, 2- na medida mesmo em que temos essa redução do “espaço de experiência” temos uma aposta significativa na estratégia antropológica que é a da projeção, da prospecção, da constituição de outros mundos possíveis muitos mais a partir da imaginação a qual, por sua vez, atua compactando, reunindo, organizando parte do que vinha aparecendo para e no ocidente (inclusive com base em passados, mas neste caso menos óbvios ou disponíveis). 3- à medida que se dedica mais a projeções, acaba tornando possível a diferenciação entre hoje e ontem, logo a intensificação da instabilidade temporal; de modo que muito próximo à lógica do Sattelzeit o que se tem é que cada hoje se diferencia ainda mais do seu ontem. E, 4- na medida em que temos ainda mais diferenciação entre hoje e ontem do que havia entre ontem e anteontem, o que temos é um aprofundamento disto que podemos chamar de uma desconfiança em passados (no que diz respeito ao estudo e à reunião de orientações no presente em nome de outros futuros possíveis).
Situação dramática que tem sido aprofundada, atualmente, pela dinâmica própria à técnica, num mundo que vai se sofisticando tecnologicamente e vai produzindo cada vez mais a impressão, especialmente no que diz respeito aos mais jovens (aos nossos alunos) de que passados e futuros são ainda mais diferentes e distantes (Cf. RANGEL, 2018). A impressão, portanto, de que passados teriam muito pouco ou mesmo nenhuma condição de nos auxiliar no enfrentamento de possibilidades e limites colocados pelo mundo contemporâneo.
A história e, neste caso, especialmente o ensino de história tem perdido espaços importantes e mesmo parte da atenção de alunos e do público em geral, especialmente se pensada a partir do ambiente escolar, porque desde a modernidade boa parte de nós (claro que nem todos, e que bom!) tem tido cada vez menos empatia por passados, nos reconhecendo cada vez menos neles. (Cf. ABREU; RANGEL, 2020)
Seria interessante pensar, então, em meio à temporalidade contemporânea (que provoca ao menos a impressão de que hoje e ontem são muito diferentes e estão muito distantes), em uma reelaboração da (de certa) empatia por passados. Uma empatia a partir e junto a passados obscurecidos e periferizados para uma espécie de reorganização ainda mais radical do hoje em nome de outros futuros possíveis. Ainda temos muitos passados (e outros futuros possíveis) pela frente!
“Crise”. Talvez seja essa a palavra mais recorrente no debate público contemporâneo, no Brasil e no mundo. Basta ligarmos a TV na hora do noticiário para que todo tipo de crise seja lançado em nosso colo: crise política, crise econômica, crise sanitária. Este dossiê pretende, justamente, lançar luz sobre a experiência de crise que caracteriza a contemporaneidade, e não apenas no que se refere à dimensão epistemológica da história, como destacamos acima, mas também no que diz respeito às crises democráticas contemporâneas.
Falar em “crises democráticas contemporâneas” ainda é pouco para explicar o propósito deste dossiê. É que não é apenas o conceito de “crise” que é polissêmico. “Democracia” também é. O que está em crise é o experimento democrático liberal-burguês, fundado no século XVIII, na Europa e nos EUA, e que se tornou hegemônico no final do século XX com o fim da Guerra Fria. A democracia liberal-burguesa está morrendo de dentro para fora, a partir da disfunção de suas instituições, cada vez menos capazes de sustentar seu valor fundamental: a possibilidade da representação política através do voto (LEVITSKY; ZIBLATT, 2017). O “povo está contra a democracia”, para utilizar as palavras de Yascha Mounk (2019).
Ainda é cedo para conhecer as consequências dessa crise. Não faltam autores apontando tendências e fazendo previsões. O já citado Yascha Mounk aposta no divórcio entre democracia e liberalismo, manifestado na forma de um “liberalismo autoritário” e de uma “democracia iliberal”. Já o diagnóstico de Jason Stanley é mais sombrio e aponta para a possibilidade de renascimento dos fascismos: caracterizados pela recusa da representação política indireta e pelo clamor pela relação direta, afetiva e sem mediações entre “povo” e líder carismático, visto como o único que seria verdadeiramente honesto e digno de representar o interesse público.
No caso brasileiro, o principal efeito da crise democrática na arena do conhecimento histórico é a implosão de teses relativamente estabelecidas a respeito de eventos traumáticos que marcaram a história nacional. O “negacionismo histórico” é um projeto político-epistemológico da “nova direita” que ganha espaço na política brasileira desde pelo menos 2013, cujo objeto é negar o teor traumático de experiências que marcam o passado brasileiro, especialmente a escravidão e a ditadura militar (1964-1985) (CHALLOUB; PERLATO, 2016). Por trás disso, está o interesse em deslegitimar as políticas públicas que nos primeiros anos do século XXI estavam fundadas no horizonte da reparação histórica, como, por exemplo: as políticas afirmativas voltadas à população negra e as indenizações para as vítimas dos crimes de Estado cometidos durante a ditadura. Também não podemos esquecer da Comissão Nacional da Verdade, criada em 2011, que ao investigar os crimes de Estado praticados pela ditadura serviu como gatilho para a manifestação de toda sorte de negacionismos, até então diluídos no senso comum. Analisando o verbete “regime militar brasileiro” da enciclopédia universal wikipedia, Mateus Pereira mostra como, já em 2012, os negacionistas estavam atuando na internet, negando a natureza golpista da intervenção militar de 1964 e justificando os crimes cometidos pela ditadura.
Como era de se esperar, os(as) historiadores(as) não ficaram passivos diante da avalanche negacionista e se lançam, cada vez mais, ao “combate”, como diz o lema da atual gestão da Associação Nacional dos Professores Universitários de História (ANPUH), presidida por Márcia Motta (UFF). Podemos dizer, portanto, que no campo de atuação dos profissionais de história, a crise democrática resultou no chamado, ou melhor, na convocação à intervenção no debate público, em um “giro ético-político”, nas palavras de Marcelo Rangel e Valdei Araujo (2015). Esse engajamento assumiu várias formas, todas de alguma maneira questionando o rígido processo de especialização disciplinar que desde a década de 1970 fortaleceu a autonomia do campo historiográfico no sistema universitário brasileiro, na mesma medida em que isolava os historiadores profissionais do restante da sociedade (ARAUJO 2016). Essa autonomização não significou, entretanto, total ausência de engajamento público, pois, como mostra Rodrigo Perez (2018), a historiografia brasileira contemporânea é marcada por um “engajamento historiográfico” que, desde o final da década de 1970, é praticado através de abordagens interpretativas comprometidas com o empoderamento retroativo dos “sujeitos subalternos”. As novas modalidades de engajamento deflagradas pela crise democrática, no entanto, são movidas por um espírito mais combativo, de confronto mesmo, já que do outro lado está um projeto político que, em última instância, questiona a existência da historiografia como ciência social legítima e merecedora de investimentos públicos.
É comum, por exemplo, a utilização do termo “história pública” como uma espécie de guarda-chuva semântico para definir o movimento coletivo dos historiadores profissionais brasileiros no sentido da intervenção no debate público. O uso inspira alguns cuidados, pois parece que o termo vem sendo demasiadamente alargado, o que acaba desgastando-o. O que significa exatamente fazer história pública? Há várias respostas possíveis. Alguns autores tratam a história pública na chave da divulgação científica (CARVALHO; TEIXEIRA, 2019). Fazer história pública, então, seria o esforço de criação de canais de comunicação capazes de divulgar para o “grande público” os resultados das pesquisas que os historiadores profissionais desenvolvem nas universidades. Outros autores argumentam que a história pública não deve se restringir ao expediente da divulgação científica, mas precisa se comprometer a formular uma agenda epistêmica adequada à publicização, o que pode significar o diálogo com outros campos de pesquisa – como, por exemplo, a história oral (SANTIAGO, 2018) -, com a própria sociedade em geral. Seja como for, a sensação que temos é que a “história pública” se transforma, cada vez mais, em uma área especializada da historiografia, entre outras tantas. O risco é que a autonomização e os debates teóricos endógenos levem os especialistas em história pública a não fazerem história pública, o que seria uma contradição em termos.
O fortalecimento dos estudos especializados no ensino de história, que costumavam ser considerados menos nobres pelo mainstream historiográfico, é outro desdobramento da crise democrática no campo da ciência histórica. Especialmente depois do surgimento do movimento “Escola Sem Partido” (criado em 2004, mas projetado nacionalmente pelo horizonte da crise democrática aberto em 2013), o ensino de história vem sendo uma trincheira de resistência, onde os professores de história se afirmam como produtores de conhecimento e reivindicam liberdade política / pedagógica para o pleno exercício de seu ofício. Qual história deve ser ensinada e como deve ser ensinada? Circe Bittencourt (2018) demonstra como essas perguntas não são pertinentes apenas ao ambiente escolar, ou aos campos disciplinares com interesses diretamente pedagógicos. Trata-se de questões políticas fundamentais que tocam nos temas da identidade nacional e dos usos políticos do passado. Como mostra Daniel Pinha (2017), à luz das discussões propostas por Nicole Loraux e Marc Bloch acerca do anacronismo subjacente à tarefa historiográfica, o tempo presente orienta as aulas de história enquanto fundamento epistemológico inescapável ao ofício do professor, se este é compreendido com base numa dimensão autoral (nos termos propostos por Ilmar de Mattos, 2005). Isso é especialmente verdadeiro em um momento de crise tão aguda como essa que vivemos, quando consensos são implodidos e o professor de história / historiador precisa negociar com sua audiência o conteúdo de seu saber, o formato de sua abordagem. Os estudos especializados em ensino de história vêm explorando essas tensões e mostrando como as aulas de história ministradas no ensino básico são talvez o mais importante canal de diálogo e de comunicação do conhecimento histórico especializado com o “grande público”.
Há também autores que apontam para a insuficiência da ciência histórica, constituída a partir da temporalidade historicista ocidental, em tematizar outras experiências de passados. Para aumentar a capacidade da historiografia em acolher diversos registros de memória, Valdei Araujo (2017) propõe um alargamento das competências do historiador profissional, que ao invés de se comportar apenas como o produtor de sentido, deveria ser também um “curador”, capaz de “acolher criticamente” a pluralidade das histórias que circulam pela sociedade. Em outra perspectiva, mas partindo do mesmo diagnóstico de que a historiografia profissional não é capaz de dar conta dos “diversos passados que circulam socialmente”, Arthur Ávila, Fernando Nicolazzi e Maria da Glória (2020) propõem a “indisciplinarização do conhecimento histórico”. Dialogando diretamente com as perspectivas pós-coloniais e decoloniais, os autores identificam uma crise de representatividade na nossa disciplina, dada pela incapacidade de uma ciência forjada com base nos valores ocidentais em representar passados não ocidentais.
Como o leitor e a leitora podem perceber, o ambiente da crise democrática suscitou diversos debates na historiografia brasileira contemporânea, dando forma a diferentes agendas de pesquisa, tanto no âmbito da modalidade acadêmico-universitária quanto na escolar, propondo distintas soluções para a atuação do especialista em história no debate público. O dossiê ora apresentado vem se somar a esses esforços de enfrentamento da crise epistemológico-ético-política também resultante da crise democrática.
Em nosso artigo de abertura, intitulado “Memory, historical culture, and history teaching in the contemporary world”, Marcelo Abreu e Marcelo Rangel propõem um debate em torno de questões teórico-historiográficas relacionando memória, cultura histórica e ensino de história, tendo em vista o enfrentamento de dilemas ético-políticos do mundo contemporâneo tais como: a necessidade de democratização, a problematização do etnocentrismo e as múltiplas formas de produção de presença envolvendo a produção de enunciados historiográficos.
Em seguida, no artigo “Ditadura civil-militar e formação democrática como problemas historiográficos: interrogações desde a crise”, Daniel Pinha problematiza o topos “Ditadura civil-militar” – sobretudo entre os anos de 2004 e 2014, aniversários de 40 e 50 anos do Golpe Militar – enquanto chave de análise utilizada por historiadores brasileiros para nomear e caracterizar a experiência do regime autoritário instaurado no Brasil em 1964. Rodrigo Perez parte de temática semelhante, indagando sobre as formas de circulação do discurso historiográfico em ambientes de crise, mas investe na análise de textos de outra natureza: a chamada historiografia comercial. “Por que vendem tanto?” pergunta Perez, focalizando dois estudos de caso: o “Guia politicamente incorreto da história do Brasil”, de Leandro Narloch, publicado em 2009, e “A elite do atraso”, de Jessé Souza, publicado em 2017. Viviane Araujo, por sua vez, investiga o discurso conservador em meio à crise democrática no contexto latino-americano, e a mobilização dos conceitos de gênero e família como formas de assegurar uma oposição reativa à agenda de igualdade de gênero que vem ganhando espaço no debate político atual. Como explicita, na mesma linha do “Escola Sem Partido”, velho conhecido do público brasileiro, o movimento “Con Mis Hijos No Te Metas”, surgido no Peru (2016) e que se espalhou rapidamente por toda a região, apresenta um discurso contrário ao que chamam de “ideologia de gênero”, afirmando uma identidade política apartidária, mas que fortalece e fomenta lideranças políticas ultraconservadoras. Vistos em conjunto, estes três artigos refletem sobre os efeitos da crise democrática contemporânea na historiografia e as disputas políticas pelo passado no espaço público latino-americano e brasileiro, em particular.
Breno Mendes discorre sobre o lugar do currículo no ensino de história, associando teoria da história, história da historiografia, ensino de história e teorias do currículo. Para o autor, a versão da Base Nacional Comum Curricular, aprovada no governo Temer, revela, sobretudo, uma atualização das teorias tradicionais do currículo em detrimento de teorias pós-críticas. Raone Ferreira, por sua vez, analisa reflexões de professores de história acerca de suas práticas, trazendo à tela duas dimensões fundamentais que atravessam a tarefa docente nestes tempos de crise: os movimentos conservadores e o ciberespaço. O artigo de Domingos Nobre, Anna Beatriz Vechia e Carolina Oliveira tematiza o ensino de história no âmbito da educação escolar indígena, apresentando a experiência no Curso de Ensino Médio com Habilitação em Magistério Indígena realizado com os Guarani Mbya no Estado do Rio de Janeiro. Há, nestes três artigos, um propósito comum: refletir sobre o ensino da história no espaço escolar, em tempos de crise, revelador de tensões envolvendo recuos e alargamentos na intensificação de valores democráticos e na incorporação do desafio ético de repercussão da diferença.
Nara Cunha, Rosiane Bechler e Cyntia França focam a produção de sentidos históricos em torno das tragédias-crimes ambientais nas cidades mineiras de Mariana e Brumadinho. As autoras examinam a relação entre historiografia escolar e a abordagem de temas sensíveis, tendo em vista o tratamento do trauma provocado pela queda das barragens. O texto de Andrea Ribeiro, por sua vez, aborda o ensino de história no sistema socioeducativo, voltado à formação de adolescentes que vivem e acumularão em suas experiências de vida a experiência da privação de liberdade por meio do sistema prisional. Qual o lugar da história na constituição identitária desses sujeitos? Estes dois artigos nos revelam o potencial da narrativa histórica em oferecer possibilidades de restauração e orientação de vidas que experimentaram determinadas tragédias, traumas etc.
Os artigos deste dossiê nos oferecem uma boa oportunidade de enfrentar aquele que talvez seja o maior desafio ético dos(as) especialistas em história, pesquisadores(as) e professores(as) no contexto contemporâneo: intensificar valores democráticos por vezes desgastados e enfraquecidos em ambiente de crise democrática.
Referências
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Marcelo Rangel
Rodrigo Perez
PINHA, Daniel; RANGEL, Marcelo; PEREZ, Rodrigo. Apresentação. Revista Transversos, Rio de Janeiro, n. 18, jan. / abr., 2020. Acessar publicação original [DR]