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Literatura infantil brasileira: uma nova / outra história – LAJOLO; ZILBEREMAN (EA)
LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: uma nova / outra história. Curitiba: PUCPress; FTD, 2017. 152 p. Resenha de: SILVA, Raquel Souza da; CAMPOS, Cleide de Araúo. Revisitando a história da literatura infantil e juvenil brasileira. Em Aberto, Brasília, v. 32, n. 105, p.199-203, maio/ago. 2019.
A leitura do livro Literatura infantil brasileira: uma nova / outra história, de Marisa Lajolo e Regina Zilberman, traz à tona outros olhares para o universo da literatura infantil e juvenil brasileira, centralizando uma produção diferenciada nos últimos trinta anos. A obra possui caráter de continuidade da história literária já registrada, entretanto, com uma perspectiva que ultrapassa a menção cronológica de obras e de autores, objetivando ampliar os conhecimentos sobre esse gênero literário em contexto nacional de modo mais analítico. Estruturalmente, o livro está dividido em quatro grandes eixos. O primeiro deles diz respeito à natureza da literatura infantil e juvenil além-livro impresso: há o detalhamento das discussões sobre o futuro do texto literário em papel, o que é o livro, o que constitui a arte literária, as novas perspectivas e os nomes representativos da produção para crianças e jovens na era digital e sobre as relações entre o tradicional e a novidade, entre o impresso e o digital. O segundo eixo trata da força que as instituições têm sobre a literatura infantil: são discutidas as influências do mercado editorial sobre esse gênero literário, bem como a adequação e a capacitação das figuras que compõem uma obra – como o escritor, o ilustrador, o designer gráfico etc.; faz-se ainda debate sobre a intervenção da escola e do Estado no processo de formação leitora de crianças e jovens. No terceiro eixo, há um grande arcabouço de exemplos e breves análises de autores e obras que caminham sob um novo viés estético da criação literária, em que novas temáticas são pensadas, como a figura não estereotipada do indígena, havendo também o destaque para a linguagem não verbal nas obras destinadas a crianças e jovens. Por fim, o último eixo está relacionado à questão da possibilidade de haver livro e leitura além-universo escolar, com discussões e menção a autores que estão à margem das paredes escolares, mas que se revelam muito próximos do gosto do público mirim.
De maneira geral, as autoras trazem reflexões e questionamentos especialmente para pensar o futuro do livro, o mercado editorial, o avanço das técnicas oferecidas pelo mundo digital, a função da escola e o papel do Estado nesse processo. Elas apontam possíveis explicações para a disseminação de obras cada vez mais interativas e de materialidades diversas nas produções para o público infantil e juvenil, como a corrida da indústria do livro, em que a lógica neoliberal predomina.
Para as pesquisadoras, é “nesse cenário globalizado e economicamente vicejante que escritores e ilustradores têm produzido muitos e belos livros” (Lajolo; Zilberman, 2017, p. 77). Seja ela impressa ou em ambiente virtual, os profissionais que produzem a obra literária procuram atender os diferentes gostos do público leitor ao qual ela se destina e têm forte reconhecimento quando recebem prêmios, distribuídos nacional e internacionalmente. Além disso, a proximidade com o público tem se solidificado cada vez mais, se pensarmos que os autores frequentam as mesmas feiras literárias que os consumidores, visitam escolas, promovem encontros de diversas naturezas, a fim de estreitar essa relação. Tais movimentos permitem conhecer e entender as crianças e os jovens mais de perto, fato que há poucas décadas não era visto como tão importante.
Diante das dinâmicas e das múltiplas alternativas para ler livros de literatura infantil e juvenil, as autoras convidam o leitor a adotar “uma nova e uma outra” posturas em relação à leitura literária nos dias atuais, que são definidas conforme a necessidade do público e das rápidas mudanças que um mundo globalizado impõe a ele. Assim, o suporte e o destino do livro ultrapassam a tradição, saltando do patamar do impresso e da linguagem uniformizada para as hipermídias e para as múltiplas formas de expressão, bem como rompendo cada vez mais com paradigmas que estigmatizam as histórias ficcionais ao longo da tradição literária.
Nesse contexto, é compreensível que constituir um arcabouço da novíssima história da literatura endereçada ao público infantil e juvenil siga uma linha cronológica e restrita a nomes específicos. O movimento que o grupo produtor e receptor dessa literatura realiza é tão acelerado, que torna efêmera qualquer proposição de listagem de autores e de obras, por isso destacamos a escolha e a justificativa das autoras logo na introdução do livro aqui discutido. As estudiosas seguem, portanto, analisando alguns títulos de nomes representativos para falar do tema proposto, mostrando que conhecer autores e suas obras é importante, mas que entender o contexto de produção e de recepção deles também é essencial. Tudo isso pode minimizar o risco de se continuar a pensar em gêneros literários apresentados de uma única maneira, como se o leitor também fosse uniforme, quando na verdade sabemos que sua diversidade é imensa e considerar sua subjetividade é indispensável.
Levando em consideração alguns dos desafios impostos pela contemporaneidade, a literatura infantil e juvenil vem se reinventando na busca por mercados e leitores nascidos em plena era digital. Nesse sentido, procurando estabelecer algumas considerações acerca dos últimos trinta anos de produção para o público mirim, são apresentados alguns autores que ocupam o cenário das plataformas virtuais. Há, ainda, menção a autores que abordam a temática indígena sob um olhar diferenciado do que comumente se propagou até agora. Também recebem destaque reflexões sobre a linguagem visual, com sua importância cada vez mais reconhecida.
Em relação às obras multimidiáticas, as pesquisadoras atentam para a possibilidade de autores menos visados circularem por gêneros que ainda encontram resistência para serem publicados, como o texto poético. Sobre “um novo indianismo”, mencionado na obra, é possível realçar que todos os autores apresentados por Marisa Lajolo e Regina Zilberman prezam pelo reconhecimento próprio da cultura narrada, afirmando as identidades locais e rompendo com os estereótipos fortemente marcados sobre a figura do indígena ao longo da tradição literária como um todo, não só da infantil e juvenil. No que diz respeito ao texto não verbal, o diferencial são as inovações proporcionadas pelo universo virtual, em que, transgredindo “as técnicas sugeridas pelos meios de comunicação do mundo do impresso, a tecnologia digital suscitou novas possibilidades de expressão que repercutem positivamente na produção de livros para crianças” (Lajolo; Zilberman, 2017, p. 101-102). Assim, reconhecemos a importância de diálogo entre os suportes, lembrando que diversificálos pode possibilitar o interesse e a ampliação de repertório leitor para crianças e jovens.
Como mencionado anteriormente, as autoras também se preocupam em discorrer sobre em que medida a escola atual (não) realiza a mediação das novidades da produção literária destinadas a crianças e a adolescentes. Além do mais, a intervenção estatal, que gerencia o movimento escolar, também é apresentada como forte influenciadora sobre como se entende a produção literária infantil e juvenil.
Elas problematizam essa força institucional, por vezes negativa, pontuando que, no Brasil do século 21, “livros para crianças e jovens continuam, salvo em fugidios momentos de intervenção e vanguarda, gerenciados pelo discurso didático e ideológico de órgãos centrais da Educação e da Cultura” (Lajolo; Zilberman, 2017, p. 68).
Percebendo o cenário exposto, ainda que ações exitosas aconteçam, a figura do Estado sobre a escola caminha contramão quando, por exemplo, ele ainda mantém a prática de destinar para as instituições de ensino obras encomendadas ao seu gosto pragmático e distante das possibilidades de constituição de sujeitos que repensem seu papel social. Muitas editoras, nesse caso, não ficam para trás, priorizando sua lógica mercadológica e atendendo à demanda estatal, sem necessariamente prezar as obras que centralizem a natureza estética como indispensável na formação de leitores. Sabemos que isso não acontece por acaso, pois os encaminhamentos dessas instituições são pensados com vistas à tentativa de formar um público que não questione a sua hegemonia.
Feito esse contexto, voltamos à proposição inicial das autoras e destacamos que, de acordo com o prefácio escrito por Roger Chartier, desde o século 18, a definição do objeto livro é associada à ideia de “originalidade da escritura” e de “propriedade literária de seu autor”. Diante dos excertos, constatamos que o objeto livro ainda mantém a sua especificidade inicial, mas que vem se reformulando a cada época. É por isso que uma das propostas discutidas na obra é a relação entre o impresso e o digital, pois, no mercado editorial do livro, é evidente o cenário de mudanças de suportes que a literatura infantil e juvenil vem passando. Tais desdobramentos não poderiam ser muito diferentes, afinal, as crianças e os jovens estão cada vez mais imersos na era tecnológica desde muito cedo, e negar o contexto sociocultural do público ao qual uma obra se destina é também negar a matéria viva que constitui a literatura: o tempo, o espaço e as vivências de seus autores e de seus receptores. Logo, quando a proposta maior é formar leitores, o menos ideal a se fazer é restringir ao público a diversidade de linguagens em que, cada vez mais acelerada, caminha a produção literária infantil e juvenil.
O suporte, a materialidade do livro, vem resistindo e se ressignificando perante as diversas possibilidades de funcionalidades e de expansão tecnológica. Marisa Lajolo e Regina Zilberman pontuam em suas análises que escritores e editoras acompanham uma diminuição da cultura impressa e investem na modernização de suas produções literárias para crianças e jovens. Estes são os pontos cruciais para as autoras quando elas conceituam o que é o livro, suas implicações e suas pluralidades. Ao longo de toda a obra aqui discutida, reforça-se a constituição da literatura infantil e juvenil brasileira nas três últimas décadas, pontuando as evoluções mais significativas ocorridas no decorrer dos últimos tempos.
As estudiosas salientam que as obras infantis são produzidas em múltipla autoria (escritores, ilustradores, designers gráficos, editores e outros). Elas chamam atenção para o Ciberespaço, definido como um ambiente virtual que pode servir de suporte para a criação e a circulação das obras literárias. Esse espaço torna as fontes de informação cada vez mais acessíveis e mais rápidas, facilitando o digital, mas sem negar o suporte impresso, podendo, inclusive, dialogar com ele.
Em virtude do acesso às tecnologias digitais de informação e das múltiplas plataformas, os textos que circulam na sociedade são cada vez mais multimodais, favorecendo as variadas formas de leituras entre crianças e jovens. Assim, o modo de ler um livro digital é diferente, tanto pelo fato do público ser diversificado quanto pelas inúmeras formas de comunicação, que inevitavelmente a era tecnológica proporcionou.
Por fim, realçamos o diferencial que Marisa Lajolo e Regina Zilberman deram ao tratar da história da literatura infantil nas últimas décadas. Desta vez, elas nos convidam a atentar para o fenômeno das rápidas mudanças em relação às obras destinadas para crianças e jovens, justificando que essa aceleração decorre principalmente por conta do avanço das tecnologias, da corrida do mercado editorial e da própria sociedade, que anseia por novidade e está cada vez mais dinâmica no processo leitor. Nesse sentido, cabe reforçar que mais vale um diálogo entre o impresso e o digital do que uma disputa entre os dois, pois, como mostrado pelas autoras, essa pode ser uma maneira exitosa para formar leitores de literatura infantil e juvenil.
Raquel Souza da Silva – Mestranda em Educação na Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências e Tecnologia, Presidente Prudente. E-mail: raquelsousadasilva02@gmail.com.
Cleide de Araújo Campos – Doutoranda em Educação na Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências e Tecnologia, Presidente Prudente. E-mail: emaildacleide6@gmail.com Recebido em 21 de junho de 2019
As faces da liberdade e a teoria do reconhecimento – RAMOS (RFA)
RAMOS, C. A. As faces da liberdade e a teoria do reconhecimento. Curitiba: PUCPRess, 2016. Resenha de: MARÇAL, Jairo. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.29, n.47, p.703-708, maio/ago., 2017.
Um dos grandes dilemas da modernidade se expressa no confronto agudo e contraditório que opõe, de um lado, o desejo da liberdade individual, sem interferências, e do outro lado, a necessidade humana da vida em comunidade, que se organiza por normas e leis. Esse conflito fundamental suscita questões filosóficas em torno da ideia de liberdade — a liberdade pode ser compreendida como um atributo essencialmente individual? Se, as relações intersubjetivas, sociais e políticas demandam regras, e se as regras interferem na liberdade individual, como é possível falar em liberdade nesses contextos? É possível conciliar essas dimensões aparentemente tão controversas? Essas questões têm sido equacionadas e enfrentadas por grandes pensadores de diversos matizes, sobretudo a partir do século XVIII e, permanecem francamente abertas e desafiadoras. O livro As faces da liberdade e a teoria do reconhecimento, de Cesar Augusto Ramos, apresenta aos leitores uma discussão de grande relevância sobre um dos temas mais instigantes da filosofia política contemporânea e se caracteriza pela amplitude e profundidade da pesquisa em torno da questão filosófica da liberdade, nas suas dimensões individual, social e política.
A obra não se limita a uma única perspectiva de análise, ou à leitura endógena de um autor ou de uma corrente e, tampouco opta por discorrer, de forma meramente enciclopédica, sobre as diversas correntes que disputam a melhor interpretação do tema. De forma arrojada, o texto de Ramos coloca frente a frente as múltiplas faces da liberdade e, nesse cenário promove um debate profícuo que culmina com a defesa da tese de que “a liberdade individual necessita ter uma expressão intersubjetiva e institucional para sua efetiva realização”. Esse é o leitmotif do livro, que se expressa também pela força promissora do conceito hegeliano de liberdade — “estar consigo mesmo no seu outro”.
Outro aspecto metodológico que se revela na tessitura do texto é o trabalho cuidadoso do autor na articulação entre os filósofos clássicos, que se dedicaram a pensar o tema da liberdade e na atualização dos seus conceitos por pensadores contemporâneos. Também merece destaque a bibliografia altamente qualificada, que coloca o leitor em contato com as discussões mais atuais sobre o tema, em âmbito internacional.
O livro é estruturado em quatro partes — a primeira parte aborda a face individual da liberdade; a segunda parte trata da face intersubjetiva da liberdade e sua dimensão social; a terceira parte apresenta a face republicana da liberdade; a última parte é dedicada ao reconhecimento na mediação das faces da liberdade.
A primeira parte do livro é dedicada à análise do conceito de liberdade como autonomia moral e pessoal, que emerge na história da filosofia pela via do liberalismo filosófico. O individualismo dos modernos se configura, essencialmente, pela concepção da liberdade como direito subjetivo (natural) vinculada ao indivíduo, que acaba por marcar de maneira decisiva toda a tradição do pensamento liberal clássico.
A discussão em torno da liberdade individual é apresentada por Ramos num percurso que vai do liberalismo moderado de John Stuart Mill, passando pelo perfeccionismo moral de Joseph Raz, pela distinção clássica entre liberdade negativa e liberdade positiva, estabelecida por Isaiah Berlin, pelas vinculações entre a liberdade negativa e os limites legais e constitucionais na teoria de John Rawls, até a ideia de autonomia estritamente pessoal das volições de segunda ordem de Harry Frankfurt.
Ramos demonstra que para Isaiah Berlin a liberdade é observável “na ausência de ações que podem criar impedimentos arbitrários e indevidos à livre atividade dos sujeitos”. Para o liberalismo, a lei não pode ser tomada como elemento intrínseco à liberdade e, tampouco, na condição de sua promotora, como assevera o republicanismo, mas “é apenas um instrumento de proteção da liberdade como direito fundamental”. Já a ideia de liberdade em Rawls, mesmo que discutida na relação com as limitações legais e constitucionais, permanece tal qual em Berlin, fundada no registro da liberdade negativa.
Segundo Ramos, ainda que Berlin e Rawls tenham se destacado pelas apresentações da ideia de liberdade negativa, fortemente vinculadas à defesa das escolhas individuais livres de interferências, suas concepções de liberdade individual valorizam também a liberdade positiva (autonomia pessoal), como na clássica formulação de Kant, vinculada à “autorrealização para a consecução de uma vida boa”.
A concepção liberal da liberdade contribuiu para o desenvolvimento da ideia de autonomia individual, com significativo impacto na forma de vida das sociedades modernas e, subsidiou posicionamentos contrários a tiranias e várias formas de autoritarismo, mas, por outro lado, o seu caráter atomista e disjuntivo revela sua fragilidade e, a face sombria do individualismo exacerbado tem trazido consequências deletérias à vida em sociedade.
A segunda parte do livro apresenta o conceito hegeliano de liberdade e sua reatualização pelo filósofo da Teoria Crítica, Axel Honneth. Aqui, a ideia central consiste na superação do caráter disjuntivo (individualista) caracterizado nas concepções de liberdade individual negativa e positiva, constituindo assim um conceito social de liberdade, que se desenvolve pela relação do eu com o seu outro (alteridade).
A proposta de Hegel é solucionar a equação identidade x alteridade, aparentemente paradoxal, pelo menos à luz da concepção liberal. Ramos argumenta que, na concepção hegeliana, essa díade não é vista como um problema, mas sim como uma possibilidade de interação e de efetivação da liberdade em seus momentos subjetivo e objetivo. Em outras palavras, na filosofia hegeliana, a liberdade somente se efetiva nas relações intersubjetivas e na racionalidade das instituições sociais e políticas.
Honneth assume o conceito hegeliano de liberdade e, portanto, também se volta para a tentativa de conciliação das dimensões individual e social da liberdade, sem subordinar, contudo, a liberdade do indivíduo a qualquer forma de razão ou ética estatal. Na dimensão individual da liberdade, Honneth amplia essa perspectiva considerando os aspectos psicológicos e afetivos. Essa reatualização do conceito hegeliano de liberdade, proposta por Honneth, é importante porque, na medida em que amplia o campo de abordagem, favorece o seu uso na análise das sociedades atuais.
A terceira parte do livro propõe uma abordagem mais ampla que a do individualismo liberal, a partir da conjunção das dimensões subjetiva (individual) e objetiva (institucional). Ramos observa que “o tema mais comum e influente nas diversas formas de apresentação do republicanismo foi a causa do viver livre (vivere libero) em um Estado livre” e, apresenta essa face da liberdade a partir da análise das filosofias de Jean-Jacques Rousseau, Hannah Arendt, Philip Pettit e Charles Taylor.
Rousseau define o sentido público da liberdade política ao assumir que a “interdependência entre os homens foi irrevogavelmente incorporada nas relações sociais” e que, nessa condição, a liberdade de cada um só pode ser assegurada numa ordem civil, resultado da vontade geral e mobilizada pelo exercício do direito político dos indivíduos.
Arendt, cujo pensamento tem matriz aristotélica, se inspira na polis ateniense e, na posição de crítica do individualismo e do egoísmo que marcam de forma indelével a modernidade, sustenta que a razão de ser da política é a liberdade, mas que esta só se realiza na dimensão da vida em comum, por meio da ação deliberativa.
O comunitarismo de Charles Taylor recria o indivíduo, afastando-o da perspectiva sombria e empobrecedora do egoísmo moderno, para fazê- -lo emergir na condição de um individualismo expressivo, que afirma a identidade do sujeito, por meio de valores associados à comunidade.
Pettit, vinculado ao republicanismo neorromano, critica tanto o atomismo liberal, quanto as formas ortodoxas de coletivismo, buscando conciliar a liberdade individual e a liberdade política (individualismo holista) com base na ideia da não dominação, apoiada no consequencialismo. Para Pettit, são as leis não arbitrárias de um Estado republicano que tornam possível e asseguram a liberdade dos indivíduos. Entretanto, para que haja boas leis, que garantam autoridade aos governantes e liberdade aos cidadãos, é fundamental a cidadania ativa e o exercício da democracia contestatória, ancoradas pelo controle discursivo, que articula as dimensões psicológica (individual), social e política.
Na última parte do livro, Cesar Ramos propõe a teoria do reconhecimento como mediadora das faces da liberdade. O argumento central da sua análise se estrutura a partir da questão inevitável de que “a liberdade individual necessita ter uma expressão intersubjetiva e institucional para sua efetiva realização”.
A teoria do reconhecimento demanda que as relações intersubjetivas, com interatividade recíproca, estejam presentes na raiz das teorias da liberdade de cunho social, cujo objetivo é a crítica e a superação das propostas que restringem a liberdade à dimensão individual e autorreferente, restrita ao âmbito normativo das teorias da justiça e ao formalismo jurídico.
A perspectiva da necessidade do reconhecimento pelo outro e, também as consequências da ausência ou mesmo da negação de tal reconhecimento, estão presentes no republicanismo neoateniense de Arendt, no comunitarismo de Taylor e no republicanismo neorromano de Pettit, mas é em Hegel e na reatualização de seu conceito de liberdade, empreendido por Honneth, que o tema assume maior clareza e profundidade, na medida em que a reconstrução normativa, proposta pelo filósofo, passa a “considerar as instituições e práticas sociais, destacando aquelas que permitem considerar a constituição da liberdade como um bem socialmente compartilhado e que possuem valor normativo”. Para Honneth, a luta por reconhecimento perpassa as relações afetivas, as reinvindicações de direitos e a busca pela estima social e, a sua ausência nessas esferas deprecia as identidades individuais, implicando na luta por reconhecimento.
As faces da liberdade e a teoria do reconhecimento, de Cesar Ramos, é um trabalho filosófico estimulante, resultado de uma pesquisa acurada, que se destaca pelo tratamento crítico e refinado do objeto de análise e pela elegância da sua escrita. O livro se apresenta como uma importante referência na filosofia política e merece ser lido e discutido por especialistas, mas também despertará o interesse dos leitores com apreço pelo tema da liberdade.
O livro está disponível na versão impressa e a PUCPRess está providenciando também a versão eletrônica (e-book), revisada pelo autor.
Jairo Marçal – Centro Universitário UniBrasil, Curitiba, PR, Brasil. Mestre (UFPR) e doutorando (PUCPR) em Filosofia Política. E-mail: jairomarcal@gmail.com
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