O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise | Noemi Kon, Maria Lucia da Silva, Cristiane Abdul

“Já que é preciso, de qualquer modo, não lhes pintar unicamente um futuro cor-de-rosa, saibam que o que vem aumentando, o que ainda não viu suas últimas consequências e que, por sua vez, se enraíza no corpo, na fraternidade do corpo, é o racismo. Vocês ainda não ouviram a última palavra a respeito dele”.1 Com essas palavras que hoje assumem ares proféticos, o psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981) terminava um dos seus seminários em 1972. Leia Mais

Art, disobedience, and ethics: the adventure of pedagogy – ATKINSON (C)

ATKINSON, Dennis. Art, disobedience, and ethics: the adventure of pedagogy. Cham, Switzerland: Springer/Palgrave Macmillan, 2018. Resenha de: BACKENDORF, Jonas Muriel. Conjectura, Caxias do Sul, v. 24, 2019.

Art, disobedience, and ethics: the adventure of pedagogy é o mais recente livro da série Education, Psychoanalysis, and Social Transformation, organizada pela Palgrave MacMillan. De acordo com a apresentação do livro, uma das finalidades principais da série é: “to play a vital role in rethinking the entire project of the related themes of politics, democratic struggles, and critical education within the global public sphere” (p. ii). Embora não trate diretamente das idiossincrasias do cenário brasileiro e sul-americano, o livro aborda com profundidade questões de fundamental relevância para a nossa realidade presente, em especial o caráter cada vez mais explícito com que as humanidades, as artes, e o pensamento desprendido como um todo vêm sendo atacadas pelo atual governo – por meio de argumentos que vão desde a ausência de “retorno para o contribuinte” até a “militância política”1 dessas áreas de estudo, argumentos que exemplificam com transparente precisão a relevância do ataque de Atkinson aos modelos pedagógicos instrumentais, bem como da defesa de uma educação crítica e desobediente.

O autor é professor emérito na Universidade Goldsmiths, de Londres, além de ocupar o cargo de docente visitante nas universidades do Porto, de Helsinki, Gothenburg e Barcelona. Um aspecto importante da sua biografia é a experiência que tem no ensino secundário, por ter trabalhado, na Inglaterra, de 1971 a 1988. O livro de que ora me ocupo é o sexto da bibliografia do autor, sendo os outros igualmente voltados para as questões educacionais: Art in education: identity and practice; social and critical practice in art education (coautoria de Paul Dash); Regulatory practices in education: a lacanian perspective (coautoria de Tony Brown e Janice England); Teaching through contemporary art: a report on innovative practices in the classroom (coautoria de Jeff Adams, Kelly Worwood, Paul Dash, Steve Herne e Tara Page) e Art, equality and learning: pedagogies against the state. O mais próximo, em conteúdo, do atual é justamente o último, em que o autor trata, já com profundidade, de algumas das questões centrais para o presente livro, a questão da desobediência e a da postura combativa frente aos modelos fechados da pedagogia instrumental. Leia Mais

O aracniano e outros textos – DELIGNY (REi)

DELIGNY, Fernand. O aracniano e outros textos. Tradução Lara de Malimpesa. São Paulo: 1 edições, 2015. Resenha de: MATOS, Sônia Regina de Luz. Revista Entreideias, Salvador, v. 5, n. 2, p. 97-102, jul./dez. 2016.

Inicialmente antes de escrever a resenha do livro O aracniano e outros textos (2015) é preciso descrever algumas linhas biográficas do autor, o educador francês Fernand Deligny (1913-1996). Desde já, cabe destacar que este livro é o primeiro e único livro do autor traduzido em língua portuguesa, pois ele ainda é pouco estudado no Brasil no campo da educação. O pensamento deste pedagogo é inclassificável, ele cruza os campos da filosofia, da educação, da arte e da literatura. Sua prática pedagógica contorna um processo de escritura que acontece continuamente durante as investigações e as experiências na área da educação junto aos autistas. Logo, a leitura deste livro nos convoca ao deslocamento de leitura, não tão somente em relação aos procedimentos de escrita que o pedagogo apresenta junto a arte literária, mas também, ao acesso a outra potência de agir em educação, ainda marginalizada dos espaços da pedagogia.

Então, conforme anunciado, aponto algumas linhas da biografia do professor Deligny, que desde 1927, trabalhou junto às crianças e aos adolescentes que eram classificados como inadaptados socialmente ou considerados “à parte da sociedade” (DELIGNY, 2015). Encontramos registros inéditos sobre sua experiência como educador no hôpital psychiatrique à Armentières. Esse trabalho aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial e desdobrou-se em outras experiências pedagógicas. Uma delas foi junto a clínica La Borde com o grupo de estudos do psiquiatra Félix Guattari. A partir de 1967, ele se instala na região de Cèvennes, construindo coletivamente uma rede de espaços de acolhimento e de investigação, que ele denominou de “rede aracniano” (DELIGNY, 2015).

As atividades educativas desta rede são influenciadas pela experiência de ensaísta, de poeta, de escritor e de cineasta. Deligny escreve e publica, constantemente, seus pensamentos pedagógico e investe nos conceitos das áreas de etologia e de antropologia.

Sendo assim, elabora um procedimento cartográfico a partir de traços, de linhas e de mapas que constituem os percursos dos movimentos do cotidiano dos autistas. A investigação cartográfica sobre a “experiência autística” (DELIGNY, 2015) deste educador é reconhecida como uma prática pedagógica inédita. Prática citada nos livros e entrevistas do filósofo Gilles Deleuze (1925-1995) e do psicanalista Félix Guattari (1930-1992). Nesse sentido, cabe destacar que estes dois pensadores franceses, expressam a ideia de que Deligny assumiu profissionalmente uma vertente de atuação educativa próxima da psicanálise institucional, que percebem o autismo como uma produção singular de existência.

Na França, após dez anos de sua morte se retomam as investigações e os estudos sobre sua obra. A partir de 2007, a editora L’Arachnéen, publica um volume com algumas obras de Fernand Deligny e reedita outras. No Brasil, o trabalho deste pedagogo é pouco conhecido, somente em 2015 contamos com uma primeira tradução brasileira do livro que disponibilizo nesta resenha: O aracniano e outros textos (2015). O objetivo da resenha é mostrar alguns conceitos deste autor, do movimento aracniano e de suas experimentações pedagógicas com os autistas. Ainda é importante destacar que o livro não versa sobre uma transposição didática que apresenta modelos de práticas escolares junto ao trabalho com os autistas.

Diante destas palavras introdutórias, digo que o presente livro é composto por dois eixos de leitura, um primeiro é o texto O aracniano, redigido entre 1981 e 1982, contendo 59 fragmentos que nos remetem a mesma denominação do título do livro. Um segundo eixo de leitura é aglutinado ao subtítulo: Quando o homenzinho não está (aí) que é composto por 14 breves textos redigidos entre 1976 a 1982, em gêneros de ensaios e artigos. Ainda nesta publicação constam mapas do percurso dos autistas, produzidos entre 1976 e 1977. Além disso, há um conjunto de fotografias das instalações das crianças autistas que moravam no espaço aracniano, na região de Cévennes, em 1969.

Então, o primeiro eixo de leitura, o texto O aracniano é escrito em fragmentos e sua inspiração conceitual retirada do campo da etologia que estuda as espécies de animais, como as aranhas. O seu projeto pedagógico denominado de aracniano é coletivo e envolve as crianças autistas, as suas famílias e os educadores. Assim, todos vivem no mesmo espaço rural. Sendo que, este espaço rural é dividido em pequenos territórios, assim, cada território tece uma parte da linha da teia de aranha, que se transforma em uma rede que investiga o agir autista. Com isto, o movimento aracniano acompanha, descreve e escreve o espaço da “experiência autista”. (DELIGNY, 2015) Para registrar essa experiência, o grupo elabora a montagem de mapas que constituem os trajetos que as crianças autistas fazem em seu cotidiano. Os mapas acompanham a experiência das “linhas de errância de crianças ‘autistas’”. (DELIGNY, 2015, p. 41) Elas são errantes porque as crianças não funcionam pela consciência dos atos. Por meio desta prática investigativa, o pedagogo diz: “o meu projeto: dar à palavra aracniano – ao meu ver estonteante – um sentido digno de sua harmonia e de sua amplitude”. (DELIGNY, 2005, p. 22) Afirma-se assim, que o pensamento aracniano descentraliza as práticas pedagógicas do autismo das representações psicopatológicas e investe em rastrear e em apreender com as singularidades produzidas pelo projeto.

O segundo eixo de leitura do livro que é composto por 14 breves textos, se inicia com um texto de 1976. Ele foi redigido para um congresso de psicanálise e publicado em uma revista francesa e uma italiana, intitulado: Esse ver e o olhar-se ou o elefante no seminário. A escritura do artigo tem um tom de ensaio descritivo, pois apresenta um dos mapas que constituí o percurso dos autistas.

O texto descreve a invenção de vários símbolos que possibilitam a leitura e a interpretação cartográfica dos percursos das pessoas que viviam no espaço aracniano. Cabe destacar que ao mostrar o funcionamento cartográfico nos deparamos com um outro plano de vocabulário, tais como: linhas, anel, traçar, ângulo, entrelinhas, desvio, deriva, ideologia, microideologia, linguagem vacante, linguagem em falta e na falta de linguagem.

No outro texto O agir e o agido, escrito em 1978 para uma edição italiana, segue outra descrição de mapa, neste ele amplia as questões conceituais já demarcadas no texto anterior, porém remarca algumas críticas ao tipo de psicanálise que classifica o autismo e o determina como patologia. Posição essa que vai acompanhar outros textos em sua vida profissional.

Logo, outro ensaio: A arte, as bordas… e o fora. O ensaio, também é publicado em italiano, em 1978. Conceitualmente, Deligny mostra que “a linha e a linguagem eram de idêntica natureza” (DELIGNY, 2015, p. 148) e a linha expressa-se nos mapas dos trajetos do cotidiano dos autistas. Os mapas apontam alguns elementos da linguagem que a “experiência autista” (DELIGNY, 2015) produz e que essa experiência vive uma linguagem fora da relação direta e hierárquica entre sujeito e objeto.
Na redação do texto Carteira adotada e carta1 traçada, publicado por uma editora italiana, em 1979, ele diferencia sua relação com o Partido Comunista Francês e sua experiência na elaboração da cartografia junto ao movimento aracniano. Passa a valorizar essa última experiência porque ela não exige filiação ideológica.

A experiência no Partido Comunista Francês o víncula por meio de uma carta que representa a adoção de uma ideologia. Já com a experiência do movimento aracniano ele se vincula aos mapas do traço das “crianças cujos trajetos são traçados […] não tende de forma alguma para uma globalidade em que o absoluto ideológico se reencontraria, endêmico”. (DELIGNY,2015, p. 157).

A criança preenchida, divulgado em 1979, trata da relação topológica, que são as “áreas de estar” que expressam os movimentos topográficos dos autistas. Esses movimentos constituem os mapas e os trajetos registrados e interpretados como linhas errantes do agir autista. O pedagogo define dois tipos de “topos” ou registros dos espaços autistas, a topologia e a topografia. Os dois tipos de registros permitem traçar o agir autista que conjuga “ ‘o tempo’ fora do tempo” (DELIGNY, 2015, p. 163), pois esse agir funciona pela lógica do “topo” ou espaços que não se sujeitam a linguagem oral, espaços refratários a falação. Por meio da topologia e da topografia, ela aponta uma outra plasticidade pedagógica, que pode ser analisada a partir dos espaços ocupados pelo agir autista.

Ainda neste mesmo ano, o pedagogo publica em italiano um breve ensaio denominado Esses excessivos. Ele elabora uma resposta direta a academia que somente valida como produção intelectual a classificação e ou a posição de conhecimento mais universal sobre os estudos com os autistas. Ele se posiciona afirmando que não comunga com o que ele chama de falação intelectual em busca do universal e do verdadeiro. Ele defende que sua produção se faz a partir dos “topos”, ou seja, traça o espaço do agir autista, sem assumir um manual ou modelo que caracterize o autismo.

O humano e o sobrenatural é um texto envolto na ideia da vacância da linguagem das crianças autistas. Ele inicia o texto argumentando que elas desproveem da intenção de vagar e de balançar o seu corpo. Elas não acompanham o ato da consciência, o que elas fazem é o uso do seu corpo humano não como segregação, como faz o homem em muitos momentos da história da humanidade. A vacância da linguagem produz um espaço único de relação refrataria com a língua e com os gestos. Neste momento ele crítica o conceito de humanidade e linguagem humana.

A exibição é um título publicado em italiano, em 1980. O educador elabora sua posição desconfortável em relação a posição da psicanálise quando ela refere-se ao inconsciente e a linguagem dos autistas. Afirma que não compreende a língua psicanalítica.

Fala que essa língua não faz parte da língua do repertório aracniano, a língua que o interessa é de “quem vê um autista viver”. (DELIGNY, 2015, p. 180) Em 1978, escreve para um colóquio, em Paris, sobre o tema A liberdade sem nome e destaca que o autista tem a potência de ser refratário ao poder da língua do homem e que a potência da “experiência autista” (DELIGNY, 2015) se encontra no agir sem direcionamento ideológico e nada identitário. Trata-se, portanto, de um tipo de liberdade à deriva, de vivacidade desconhecida por nós, os homens.

O artigo Semblant de rien, refere-se a 1981, escrito em italiano.
A tradução dele não acontece para língua portuguesa porque é uma expressão francesa que dispara vários significados e o autor mescla o uso dos significados do título durante a sua escrita. A ideia da frase “semblante de rien” nos remete a ideia de um semblante significa o que? Para quem? Para quem o semblante não significa nada? Para os autistas. O semblante emite signos. Essa emissão sígnica não representa nada para eles. A língua que conhecem é a língua do agir em gesto, por isso, a expressão autística é uma língua estrangeira para os homens que vivem das palavras e sua verossimilhança com os signos.

No mesmo ano, publica numa revista francesa o ensaio com o título O obrigatório e o fortuito. O texto trata do tema da guerra, no período em que viveu em Armentières e “era professor primário encarregado de instruir crianças retardadas”. (DELIGNY, 2015, p. 198) O pedagogo se refere a ideia de que a obrigação é uma ação presente quando os homens estão diante da guerra e diante de instruções instituídas por culturas e instituições. E mesmo diante da guerra e das instituições a experiência do obrigatório chegava as crianças retardadas2 como um elemento desconhecido e sem referente.

Na data, em 1981, o texto Convivência é editado num congresso americano sobre o tema sexualidade e linguagem. O professor mostra que há um Ser subjetivado a linguagem da sexualidade, este Ser está escrito em letra maiúscula porque é determinado pela convivência do homem. Ele constata que com a “experiência autista” (DELIGNY, 2015), por ser refratária a subjetivação da linguagem, ela não é atingida por essa linguagem. Assim, a convivência autista se distingue da convivência do homem. Convivência, retirada dessa experiência autista que se encontra vinculada ao agir sem Ser subjetivado aos signos da sexualidade do homem.

A voz faltante, publicado em italiano, em 1982, faz parte do penúltimo dos textos escolhidos para compor este livro. O pedagogo escolhe apresentar o paralelo entre as palavras homofônicas na língua francesa: a voz (voix) e a via (voie). Em sua experiência no asilo, ele reconhece que o ato da ausência da fala por parte da maioria dos autistas produz outro efeito na relação com a linguagem. O efeito dessa relação passa pela via do traço e dos trajetos produzidos pelo “agir autista” (DELIGNY, 2015) que se faz pela linguagem não-verbal. Talvez, por isso à “experiência autista” (DELIGNY, 2015) acione algo estrangeiro e desconhecido ao humano. Se a voz é ausente, é um indicativo de que a investigação com os autistas exige uma via novo para se pensar a supremacia dada a linguagem oral na relação humana.

O último ensaio, compõem o segundo eixo de leitura do livro e ganha espaço como título: Quando o homenzinho não está (aí). A redação do texto refere-se aos fragmentos e as anotações de quem escreve um diário de pensamentos do tipo aracniano. As anotações versam sobre muitos conceitos já demarcados nos textos anteriores e sobre as vivências nos asilos e no movimento aracniano junto as crianças, principalmente junto ao Janmari, adolescente autista que o professor Deligny adotou.

Para finalizar, reintero que o livro é composto por várias singularidades conceituais de experimentações em pedagogia.

Uma das singularidades é que o livro se faz junto ao território de artes, tais como: escrita literária, fotos, imagens dos mapas, ou seja, ele flerta e se produz por meio de uma ínfima parte do pensamento do educador Deligny como um aracniano. O desafio da leitura deste livro é que ele escreve sobre práticas pedagógicas que trabalham com o radicalidade de investir no autismo como existência e com o rigor de retirar dela uma potência singular de vida, experimentando outro tipo de educação para o homem.

Poderemos desfrutar desta leitura como uma prática única que nos ensina a pensar como é uma pedagogia que se faz junto com o agir autista e não sobre o agir autista.

Notas

1 Ele utiliza como sinônimo de mapa.

2 Lembrando que este é o conceito usado pela literatura científica e especialidade nos anos de 1940. Deligny o usa de maneira a demarcar uma certa ironia e oposição a classificação institucional.

Sônia Regina da Luz Matos – Professora da Universidade de Caxias do Sul (UCS).

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O Freudismo: um esboço crítico – BAKHTIN (EPEC)

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. O Freudismo: um esboço crítico. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 2012. 110p. Resenha de: BIANCHI, Cristina dos Santos. Uma análise bakhtiniana/volochinoviana da psicanálise: reflexões necessárias para o estabelecimento de um novo paradigma em ensino de Ciências. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v.18, n. 2, p.201-210, mai./ago. 2016. Ensaio

Resenhar a visão dos autores do Círculo de Bakhtin sobre o freudismo é, no mínimo, uma tarefa complexa, haja vista as controvérsias relativas à obra e a possibilidade de explorar dentro de seu contexto um sem-número de discussões referentes a diversos campos do conhecimento. Nosso intento é aproximar a polêmica da discussão sobre a cientificidade da psicanálise à tensão entre o “científico” e o “humanístico” e suas implicações para o ensino de ciências, que no contexto da pós-modernidade busca sua democratização.

Comecemos pela discussão relativa à autoria de algumas obras do Círculo, como é o caso de O Freudismo: um esboço crítico e de Marxismo e Filosofia da Linguagem, que ainda dividem opiniões. Destacamos três principais, discutidas por Fiorin (2008).

A primeira é que ambas as obras são assinadas pelo amigo Valentin Nikolaevich Volochínov, o que se justifica para alguns autores por uma impossibilidade política de Bakhtin assumir a autoria. Outra é que Bakhtin só é autor dos textos publicados em seu nome ou encontrados em seus arquivos. Um terceiro grupo atribui essas obras aos dois autores, o que nos parece mais conveniente para esta resenha, uma vez que não desejamos nos aprofundar nas questões de pertença autoral.

Uma controvérsia também é situada em relação ao marxismo encontrado na obra – publicada em 1927. Uma vez que o panorama intelectual da época pertencesse a uma URSS sob a influência marxista onde se desenvolvia a sociologia, a filosofia, a psicologia e até a fisiologia da época, não é novidade que tenha imposto restrições a autores não marxistas. Uma orientação neokantiana do autor Bakhtin deflagra um problema para que os marxistas o reivindiquem (FIORIN, 2008). No próprio prefácio “Freud à Luz de uma Filosofia da Linguagem”, o tradutor Paulo Bezerra afirma o marxismo como um “fio condutor” para adentrar o “labirinto da psicanálise”, mas um marxismo “centrado especificamente em Marx, de quem assimila a ideologia como falsa consciência, ao contrário do conceito de ideologia como visão científica de uma classe, formulada por Lênin e transformada posteriormente em axioma.” (p. XIV). Sem a intenção deveras de ir a fundo nesse tema, o fato é que não podemos negar a influência marxista do panorama intelectual, contextualizando a obra à ideologia predominante da época.

Outro fato que precisamos ter em mente é que um mundo “Iluminado” e impulsionado pela ciência funcionava a pleno vapor de fábricas, corroborando a corrente biologicista em que se apoia a psicanálise freudiana e que faz transparecer uma nova categoria de discurso ressaltada pelos autores Bakhtin/Volochínov, o “discurso autoritário”, ratificado pelo próprio Freud (2011 [1925], p. 74) em sua declaração de que a verdade é o objetivo absoluto da Ciência.

No entanto, Freud resgata desse cenário inóspito e massacrante, obscurecido pelas fumaças industriais, o indivíduo, transformado exclusivamente em mão de obra, desafiando a ordem moral e lógica da sociedade moderna (PLASTINO, 2001 apud MORAES et al., 2008). Ainda assim, uma análise bakhtiniana/volochinoviana sobre a psicanálise se detém na dicotomia entre o “objetivismo abstrato” e o “subjetivismo idealista” (BAKHTIN, 1998) traduzida em uma tensão existente entre duas culturas (SNOW, 1995): de um lado a “científica”, de outro a “humanística”, que perdura nos dias atuais sob a forma de disputa entre pressupostos epistemológicos hegemônicos. A resistência dos autores ao inconsciente proposto por Freud, em sintonia com as ideias de Vigotski (EMERSON, 2002), é também uma tônica da obra que se encaixa nessa tensão. Temos então, em O Freudismo, a oportunidade de analisar a crítica bakhtiniana/volochinoviana por suas próprias lentes dialógicas, suscitando reflexões importantes para o ensino de ciências, na busca por superar a dualidade entre as duas culturas citadas.

Bakhtin/Volochínov dividem sua análise em três partes. Na primeira apresentam “O Freudismo e as correntes atuais do pensamento em Filosofia e Psicologia”, depois, fazem a “Exposição do Freudismo” e finalizam com sua “Crítica ao Freudismo”.

O cuidado de Bakhtin/Volochínov em situar histórico-filosoficamente o leitor antes de iniciar sua abordagem da teoria freudiana reflete a importância que dispensam ao marxismo como caminho, ratificada na epígrafe do primeiro capítulo atribuída a K. Marx: “A essência do homem não é algo abstrato, próprio de um indivíduo isolado. É, em sua realidade, o conjunto de todas as relações sociais.” (p. 3). Destacam, portanto, o “motivo central”, uma “dominante ideológica” do Freudismo: o que teria chamado a atenção da sociedade burguesa europeia para uma teoria proveniente da psicanálise? Teriam sido os êxitos do processo terapêutico? Ou acaso não foi senão a atenção voltada ao organismo biológico com destaque para o poder das pulsões sexuais na determinação do comportamento humano? A corrente biologicista predominante na teoria de Freud se contrapõe oportunamente, na visão do mundo burguês, à ideologia de classe predominante da época: “O ‘sexual’ em Freud é o polo extremo do biologismo em voga, reunindo e condensando numa imagem compacta e picante todos os momentos particulares do anti-historicismo atual.”(p. 10). E apesar da acusação de anti-historicista, não era como Freud enxergava o sujeito, um ser biológico em detrimento do social.

Usamos como exemplo as pulsões e o desejo. As pulsões estão relacionadas com instintos biológicos, contudo dirigida pelo desejo, que tem regulação social e é dirigida pelo princípio do prazer (LIMA; PERINI, 2009).

Mostram-nos também os autores a posição da psicanálise em relação às tendências psicológicas, subjetiva e objetiva. Para Bakhtin/Voloshinov, a diferença que Freud e seus discípulos tentam fazer de sua concepção de psíquico em relação à psicologia então vigente nada mais seria do que uma mudança de terminologia: “Já Freud tenta erigir com os velhos tijolos subjetivos um quase-edifício objetivo inteiramente novo do psiquismo humano. O que é o ‘desejo inconsciente’ senão o mesmo tijolo velho apenas com posição invertida?” (p. 70). Além disso, chamam à atenção de que a interpretação do psíquico é dada pelos enunciados verbalizados, o que não renuncia a introspecção como método, característico da psicologia subjetiva.

Apesar de reconhecermos a busca de Freud por uma legitimação científica – como verificamos em “Sobre Narcisismo: uma introdução”, em que declara que as teorias sobre a psicologia se basearão, um dia, em estruturas orgânicas (FREUD, 2006 apud MORAES et al., 2008) e também quando diz que “a psicanálise na realidade, é um método de pesquisa, um instrumento imparcial, à semelhança do cálculo infinitesimal.” (FREUD, [1910] 2011, p. 100) – seu trabalho muito se distancia do behaviorismo, como também representa avanços sobre a psicologia subjetiva, como por exemplo, sua originalidade referendada pelos próprios autores à sua dinâmica psíquica, a um novo mundo em movimento, em crise, em contraposição ao antigo mundo psíquico passivo e inerte. E é nessa dinâmica que Bakhtin/Volochínov apontam as projeções da realidade social da nova teoria: “Nenhuma enunciação verbalizada pode ser atribuída exclusivamente a quem enunciou: é produto da interação entre falantes e, em termos mais amplos, produto de toda uma situação social em que ela surgiu.” (p. 79, grifo do autor), que em nada contraria o freudismo. Freud busca o sujeito imerso em sua ligação com sua infância em relação à sua família e a toda sua vivência.

Assim, Bakhtin/Volochínov tentam comprovar o que não é negado, que a psicanálise possui uma orientação filosófica geral: “O pensamento humano nunca reflete apenas o ser de um objeto que procura conhecer; com este, ele reflete também o ser do sujeito cognoscente, o seu ser social concreto.” (p. 22), partindo do princípio de uma luta de status do freudismo, em que adeptos da neutralidade científica precisavam manter sua cientificidade. Um mal-estar causado no meio acadêmico-científico a respeito dessa sustentação para a psicanálise, criticada pelos autores, iria começar também a ser sentido em relação à objetividade da ciência em A lógica da pesquisa científica de Popper, um dos “traidores da verdade” – junto a Lakatos, Kuhn e Feyerabend (THEOCHARIS; PSIMOPOULOS, 1987).

Partindo à exposição do Freudismo, consciência, inconsciente e préconsciente são apresentados como campos em permanente luta, em interações interdependentes, em que para a compreensão da consciência, é necessário desvelar o inconsciente. O inconsciente, portanto, ocupa posição de relevo na teoria de Freud.

Os autores nos mostram as concepções sobre o inconsciente nos três períodos de Freud, com peculiaridades devidas a cada um. Explicam-nos o “Método catártico de tratamento da histeria”, fruto de conclusões do primeiro período, como também “A doutrina do recalque” como um dos conceitos mais importantes da psicanálise.

Explanam sobre o “Conteúdo do inconsciente” na teoria das pulsões, que evolui até o terceiro período de Freud. E uma das peculiaridades desse período, o “Ideal do Ego”, apresentado como o censor das atividades do “Ego” – o “agente do princípio da realidade”, “a razão e o senso comum” (p. 43). Este último também influenciado pelo “Id” – “elemento obscuro interior dos anseios e paixões que às vezes experimentamos tão intensamente em nós mesmos e contraria os nossos argumentos racionais e a boa vontade”. (p. 42, 43).

Porém, uma leitura estéril do cunho social das interações entre inconsciente, consciente, Ideal do Ego (superego) e Id é subentendida a partir do momento que interpretam que o freudismo supõe o indivíduo como um ser isolado, sendo os conflitos assinalados entre consciente e inconsciente pertencentes ao determinismo biológico. Não é o que Freud realmente considera: “A civilização se baseia, em geral, na renúncia aos instintos, e cada indivíduo tem que repetir pessoalmente, no seu caminho da infância à madureza, essa evolução da humanidade até a resignação razoável” (FREUD, [1910] 2011, p. 112-113).

Continuando, Bakhtin/Volochínov explanam o método psicanalítico da “Interpretação de Sonhos”, através das “livres associações”. Para analisar o conteúdo do inconsciente, é necessário que este possa ser localizado e analisado na consciência. Os conteúdos manifestos dos sonhos são associados a pensamentos e imagens livres da consciência, método que se tornou clássico para toda a psicanálise.

Reforçam os autores o biologicismo de Freud: “Cada momento da construção ideológica é biologicamente determinado com rigor.” (p. 57, grifo do autor).

Esse aforismo é, para os autores, o pressuposto da “Filosofia da cultura em Freud” que explica além da origem dos sonhos, a criação de mitos, religiões manifestações artísticas e formas da vida social, encontrando sua expressão máxima na obra de Otto Rank, discípulo de Freud, que escreve o livro O trauma do nascimento. “Segundo Rank, toda a vida do homem e toda a criação cultural não são senão a erradicação e a superação do trauma do nascimento em vias diversas e por meios diversos.” (p. 62, grifo do autor). Bakhtin/Volochínov também trazem à tona a questão de um inconsciente capaz de operar com extrema sensatez moral, levando-nos a questionar sobre o que dizer de um mecanismo tão contextualizado, senão que se trata da expressão de um caráter ideológico. Os autores acreditam que uma volta consciente ao próprio passado, como meio de busca ao inconsciente, necessite de lentes polidas de olhos não influenciados pelo indivíduo, desconsiderando que uma retrospecção possua um potencial de reconstrução autônoma sobre si mesmo.

Certamente que não aproxima, de fato, a realidade psíquica de uma natureza material, concluem os autores, a exemplo da teoria das zonas erógenas, como poderiam pretender Freud e seus seguidores, já que “jamais operam diretamente com a composição material e com processos materiais do organismo corporal; procuram apenas reflexos do somático no psiquismo, isto é, acabam sujeitando todo o orgânico aos métodos da introspecção, psicologizando-o.” (p.

71, grifo do autor). Sendo assim, os autores se sentem autorizados a afirmar que a ideia de alguns partidários de Freud de que a biologia seria a base objetiva da psicanálise, “não se baseia em nada […] em tudo a psicanálise continua fiel ao ponto de vista da experiência subjetiva interior.” (p. 73, grifo do autor).

Pelo que já temos destacado sobre Freud, não é sua metodologia partir da materialização do psíquico. Ao contrário, Freud afirma que seu material de trabalho, o inconsciente, é de difícil tangência, deixando de ser objeto exclusivo de discussão filosófica e tornando-se objeto de experimentação a partir dos métodos hipnóticos experimentados entre 1880 e 1890, antes do nascimento de sua ciência.

Freud, assim, faz exatamente o oposto do que afirmam os autores, trazendo a possibilidade da compreensão de fenômenos antes tratados com a terapêutica de choques elétricos, vistos como disfunções de partes do cérebro.

O campo sexual, entendido pelos autores como o fio condutor capaz de atrair a sociedade burguesa para o freudismo, ao mesmo tempo gerador de conflitos, é visto como uma nova “‘interpretação’ aguda e nova de todos os aspectos da vida que perderam o sentido” (p. 91), ressignificando relações familiares no contexto da sociedade burguesa europeia. Acrescido a isso, os conflitos gerados são circunscritos a esta sociedade, sendo impraticável sua transposição histórica. Uma leitura do sexual em Freud como uma ressignificação e acomodação da vida burguesa deixa escapar sua real contribuição para a ressignificação do sujeito na sociedade. Um indivíduo massificado descobre que possui desejos e que é orientado pelo princípio do prazer, pode ser o primeiro passo na busca de uma vida, até então, negligenciada.

E é claro que a transposição histórica de uma situação referente à sexualidade não é pertinente em teoria alguma, depende da harmonia entre o discurso interior (indivíduo) e o exterior (sociedade), o que não é negado por Freud.

O polêmico “Complexo de Édipo” não poderia ter síntese mais reduzida: “O futuro coitus do homem é apenas uma compensação parcial do paraíso perdido do estado intrauterino.” (p. 39) e a “Vida sexual da criança” é apresentada como o símbolo da inocência e da pureza que passa a seguir instintos de libido como diretrizes de desenvolvimento psicossomático. Eis um ponto que encontrou, segundo o próprio Freud, “uma novidade contrária aos mais enérgicos preconceitos do homem”, e ainda que “são muito poucas as descobertas da psicanálise que esbarram com uma repulsa tão geral e provocam tanta indignação como a afirmação de que a função sexual tem início com a própria vida […]” (FREUD, 2011 [1925], p. 45). Freud é acusado de reducionismo biológico, sendo assim, uma negação de que sua teoria da libido se trata da teoria das energias psíquicas sem um equivalente empírico (FULGENCIO, 2002), pode refletir o próprio preconceito dos autores em relação ao tema, compreensível se considerarmos os tabus impostos pela sociedade até os dias de hoje.

O reducionismo sexual à genitalidade e com utilitarismo reprodutivo é ainda predominante dentro do ensino de ciências, mais preocupado com as doenças do que com a manutenção da saúde e bem-estar, em alusão a uma visão higienista.

Aqui sim imperam determinismos, mas que são socioculturais na construção da sexualidade. A incompreensão do conceito de sexualidade como elaborada por Freud tem em suas raízes as tensões assinaladas entre a legitimação científica em contraponto à validação do humanístico dentro das instâncias epistemológicas valorizadas. Em última análise, reflete a hegemonia de uma ciência racionalista que segmenta e compartimentaliza o indivíduo, separando-o de seus anseios e paixões.

O freudismo também é criticado pelos autores por enclausurar-se dentro de suas próprias teorias, não permitindo chances de permuta com as demais correntes da psicologia. Isso é considerado como uma das grandes falhas da teoria psicanalítica, já que uma escola de pensamento que se apropria de um pilar científico não se permite questionar ou compartilhar ideias com seus pares em potencial.

Porém, a falta de diálogo ocorre também na análise de Bakhtin/Volochínov. Uma preocupação demasiada dos autores em pontuar a teoria freudiana em contraposição à corrente filosófica predominante, e de contradizê-la em sua pretensa objetividade, pode ter lhes furtado a oportunidade de analisar e discutir pontos convergentes com a teoria linguística que se iniciava com o Círculo. Enquanto alguns autores apontam a falta da leitura de obras importantes para sua compreensão (EMERSON, 2002; LIMA; PERINI, 2009), há quem afirme que uma boa leitura da teoria elaborada até então (1927) teria permitido aos autores concluir que a importância da função da linguagem era de fato, concebida por Freud (NOVAES; RUDGE, 2007). Podemos considerar que a psicanálise trabalha com a linguagem, que ao ser expressa, representa o constituinte principal da investigação psicanalítica. E isso é apontado pelos autores como um ponto positivo, mesmo assim, encontramos uma análise freudiana contundente e voltada para a questão específica da comprovação de um sujeito histórico, que nem sequer foi negado por Freud.

Chegamos ao ponto em que devemos refletir sobre o cenário apresentado. Em que ponto a dialética se aproxima do dialogismo? Um discurso sofista em busca da persuasão contra um discurso filosófico em busca da verdade: a retórica como o instrumento privilegiado de poder para os detentores do saber é tão antiga quanto atual. A filosofia ocidental antiga é incorporada pela ciência tomista medieval e vai cedendo ao empirismo da revolução científica a partir do século XVI, até o racionalismo se estabelecer no topo de uma hierarquia epistemológica, basicamente no campo das ciências naturais. Até que no século XIX, os estudos humanísticos reclamam para si um reconhecimento científico, emergindo as ciências sociais. Um conhecimento com o status de científico é o que temos de mais respeitável. E o reconhecimento científico era importante para Freud.

Vemos assim uma disputa, de um lado, Freud na busca de legitimação científica de seu trabalho e de outro, a tentativa de Bakhtin/Volochínov (sem mencionar tantos outros) em provar que a psicanálise não merece a instauração neste pilar. Uma aporia se manifesta onde o discurso autoritário da ciência racionalista, criticado na análise bakhtiniana/volochinoviana, é utilizado pelos próprios autores na defesa de uma análise sociológica da linguagem e da cultura. Presenciamos a disputa em um jogo de forças que determina a hegemonia do discurso, dado através da linguagem. A ciência, mais do que uma construção sociocultural, é um discurso e precisa ser compreendida como tal. O início da contestação de sua autoridade em Popper provoca uma crise de estruturas, que encontra em Foucault (1979) a problematização de seu estatuto político e de funções ideológicas que poderia veicular. Entra em cena uma série de discussões que contestam a neutralidade e a superioridade científica, conhecidas como movimento CTS – Ciência, Tecnologia e Sociedade o que consideramos extremamente frutífero para o desenvolvimento de uma nova visão, uma reorientação almejada para o ensino de ciências, que considere o eixo sociedade, interpretado como a valorização do indivíduo no contexto social contemporâneo de produção científica e tecnológica.

Retomando a psicanálise, sua importância é fundamental para a superação do sujeito cartesiano. Dela emerge uma concepção do humano segundo o qual identidade, sexualidade e desejos “funcionam de acordo com uma ‘lógica’ muito diferente daquela da Razão, arrasa com o conceito de sujeito cognoscente e racional provido de uma identidade fixa e unificada – o ‘penso, logo existo’, do sujeito de Descartes” (HALL, 2011).

O que podemos concluir desta reflexão que nos auxilie em corroborar os novos rumos apresentados para um ensino de ciências democrático, capaz de formar cidadãos autônomos e ativos no processo de construção de uma sociedade consciente e justa? Em primeiro lugar, a compreensão de que a dinâmica social funciona no contexto das relações da vontade de poder, entendida por Nietzsche como desejo de superação, mantida em uma relação tensional com seu Outro. Todos os movimentos do desenvolvimento do saber se iniciaram e se mantêm como impulso de superação (HATAB, 2010). Em segundo, que a manutenção do status privilegiado tem um custo, o da resistência a movimentos concorrentes, manifesta em um discurso autoritário. Em terceiro, precisamos reconhecer em nós em que ponto temos nos apropriado do discurso autoritário a ponto de torná-lo autoritarista, quer dizer, em que ponto o discurso ciência/humanidade pode nos privar de uma visão holística importante para a superação deste mundo dual.

Tendo em mente este esclarecimento, podemos seguir uma saída para o nó górdio em que nos puseram os mitos das verdades e das necessidades pós-modernas: a construção de um paradigma, já emergente dada a crise do modelo de racionalidade dominante, embasado em uma cultura transdisciplinar (NICOLESCU, 2008), que supere a dicotomia das duas culturas de Snow. Preconizamos o paradigma “de um conhecimento prudente para uma vida decente” (SANTOS, 2010, p. 37), em que a dualidade “científico” x “humanístico” deixe de ter sentido e em que todo o conhecimento seja autoconhecimento. Por fim, que o conhecimento reconheça no senso comum uma forma de saber indispensável para a ressignificação do existir contemporâneo (MORIN, 2011; SANTOS, 2010).

Referências

BAKHTIN, M. M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1988.

EMERSON, C. O mundo exterior e o discurso interior: Bakhtin, Vigotski e a internalização da língua. In: DANIELS, H. Uma introdução a Vigotski. São Paulo: Loyola, 2002.

FIORIN, J. L. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2008.

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução. In: FREUD, S. A história do movimento psicanalítico. Artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos. (1914-1915b) Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. XIV).

FREUD, S. O esquema da Psicanálise. In: CLARET, Martin. Freud por ele mesmo. São Paulo: Ed Martin Claret, [1910] 2011.

FREUD, S. Autobiografia. In: CLARET, Martin. Freud por ele mesmo. São Paulo: Ed. Martin Claret, [1925] 2011.

FULGENCIO, L. A teoria da libido em Freud como uma hipótese especulativa. Ágora, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 101-111, 2002.

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HATAB, L. J. A genealogia da moral de Nietzsche: uma introdução. Tradução de Nancy Juozapavicius.

São Paulo: Madras, 2010.

LIMA, S. M. M.; PERINI, R. Bakhtin e Freud: aproximações e distâncias. Bakhtiniana, São Paulo, v.

1, n. 2, p. 80-99, 2009.

MORAES, L. A. G. de; GONÇALVES, L. R.; BRAGA R. de J.; GREGGIO, T. C.; PRUDENTE, R. C. A. C. A psicanálise entre a desconstrução do indivíduo e uma nova perspectiva cultural. CES Revista de Juiz de Fora, Juiz de Fora, v. 22, p. 239-253, 2008.

MORIN, E. Rumo ao abismo?: ensaio sore o destino da humanidade. Tradução de Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.

NICOLESCU, B. O manifesto da transdisciplinaridade. Tradução de Lúcia Pereira de Souza, 3. ed.

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NOVAES, B.; RUDGE, A. M. A função da linguagem em Bakhtin e Lacan. Tempo psicanalítico, Rio de Janeiro, v. 39, p. 157-178, 2007.

PLASTINO, C. A. O primado da afetividade: a crítica Freudiana ao paradigma moderno. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

SANTOS, B. de S. Um discurso sobre as ciências. 16. ed. Porto: Edições Afrontamento, 2010.

SNOW, C. P. As duas culturas e uma segunda leitura. São Paulo: Edusp, 1995.

THEOCHARIS, T.; PSIMOPOULOS, M. Where science has gone wrong. Nature, Grã-bretanha, v. 329, p. 595-598, 1987. Disponível em: <http://www.ivorcatt.co.uk/x1cp.pdf>. Acesso em: 31 maio 2014.

Cristina dos Santos Bianchi – Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Rio de Janeiro, RJ – Brasil Mestra em Biologia e integrante do Grupo de Pesquisa em Formação de Professores do Instituto de Física Armando Dias Tavares, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professora da Rede Estadual de Ensino do Rio de Janeiro (SEEDUC). E-mail: crisbianchibr@yahoo.com.br.

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História e Psicanálise: entre ciência e ficção | Michel de Certeau

“O que fabrica o historiador quando “faz história”? Para quem trabalha? Que produz?”2. Essas são as questões que norteiam a célebre obra de Michel de Certeau A Escrita da História onde aponta as principais características da “operação historiográfica” e os caminhos traçados pela historiografia no século XX. O autor, porém, não se limitou a esse trabalho, produziu uma vasta bibliografia resultante de sua reflexão sobre a elaboração do conhecimento histórico. Por volta de 1982 buscou dar continuidade a esse livro, através de uma coletânea que comporia um segundo tomo que nunca chegou a ser publicado pelo próprio autor3. Nesse volume reuniria vários artigos que tratariam da relação entre a história e a psicanálise. Após sua morte, em 1986, esse projeto foi retomado numa obra póstuma juntamente com outros artigos de sua autoria, todos já publicados, e que tratavam da mesma temática. Assim, em 1987 foi publicado em francês, pela editora Gallimard, a primeira edição de Histoire et psychanalyse entre science et fiction. Em 2002 foi lançada na França uma nova edição, revista e aumentada, com a introdução de Luce Giard. Essa edição foi traduzida para o português por Guilherme João de Freitas Teixeira sob o título História e Psicanálise: entre ciência e ficção, publicada em 2011 pela Autêntica Editora.

Nessa obra Certeau utiliza-se da literatura, da literatura psicanalítica, da historiografia e de vários estudiosos das mais variadas formações para estruturar seu pensamento. Encontramos nos seus textos estudos das obras de Freud como A ciência dos sonhos (1900), Totem e tabu (1912-1913), Mal-estar na civilização (1930) e Moisés e o monoteísmo (1939), bem como os diversos textos publicados por Jacques Lacan. E várias referencias de pensadores como Pierre Nora, Lévi-Strauss, Nietzsche, K. Popper, Todorov, Paul Veyne, Roland Barthes, Deleuze e especialmente Michel Foucault.

Neste livro, além das notas de rodapé do próprio autor, encontram-se várias notas do organizador da edição em francês, Luce Giard, geralmente para explicar onde foi inicialmente publicado cada texto e para fazer referências cruzadas ou referencias com outras obras do próprio Certeau. Existem também notas do tradutor quando há dificuldade de encontrar equivalentes entre o francês e o português, quando a tradução não garante todo o significado que existia no significante da língua original, ou nas diversas vezes em que o autor faz trocadilhos. No fim da coletânea nos é apresentada toda a bibliografia de Michel de Certeau. Em seguida, referências de estudiosos do pensamento do autor e por fim as referências bibliográficas das obras citadas no decorrer do livro, tanto pelo autor, quanto pelo organizador. Termina-se o livro com um índice onomástico.

A presente coletânea é composta pela introdução de Giard Um caminho não traçado em que percorre a relação de Certeau com o tema – história e psicanálise – bem como considerações acerca das obras e da vida do autor. Em seguida, uma série de dez capítulos, que foram publicados inicialmente de forma isolada e por diferentes meios, correspondendo a artigos científicos, capítulos de livros e conferências. Existe, contudo, unidade e sentido entre os textos, não apenas pela temática comum que os perpassa, mas também pela possibilidade de ponderar sobre a própria metodologia de Michel de Certeau e de perceber como suas ideias se imbricam em uma trama. Cada capítulo contribui para a maior compreensão do pensamento do autor, não de forma progressiva, pois não existe uma hierarquia entre os textos, mas passamos a perceber como os diferentes textos corroboraram na edificação de uma teoria coerente e complexa. Assim, à medida que os textos nos falam sobre a Escrita da História eles mesmos nos servem de modelo dessa escrita.

Os três primeiros capítulos – A história, ciência e ficção; Psicanálise e história; e O “romance” psicanalítico. História e Literatura – mostram a relação construída pelo autor entre a história e a psicanálise. Todavia, Certeau faz isso de modo cauteloso, sem misturar ou confundir as identidades de cada disciplina. Seu lugar de fala é a história, e deixa isso bem claro. Embora fosse membro participante e ativo da École Freudienne de Paris desde sua fundação, por Jacques Lacan, nunca se fez psicanalista profissional. Percorria por ambas as disciplinas, gostava da fronteira, mas não residia fora de sua formação. Não procurou construir uma epistemologia geral. Sua reflexão como epistemólogo origina-se de seu trabalho enquanto historiador da mística dos séculos XVI e XVII. Ao traçar relações entre a história e a psicanálise, não a faz por simples atração, capricho ou fruto de um insight. Certeau atravessava as disciplinas por necessidade, quando um saber não respondia suas inquietações, buscava satisfazê-las em outra, mas sempre orientado pela história. Desse modo tramitava pela filosofia, teologia, linguística, literatura, antropologia e especialmente a psicanálise.

O autor não busca historicizar a psicanálise, nem pretende criar uma explicação social e histórica para a sociedade contemporânea a partir de uma leitura psicanalista. A novidade do trabalho de Certeau reside na reflexão que realiza das empreitadas de Freud como historiador. De até aonde cabe, ou não, de até aonde soma, ou não, a teoria e metodologia da psicanálise aplicada à operação historiográfica.

Volta-se para o antigo debate entre a história e a ficção. Segundo Michel de Certeau ao realizar a crítica documental o historiador consegue diagnosticar o erro/falso nesses documentos. Esse erro é a ficção, que é transferida para o campo do irreal. O que resta acreditam os historiadores ser o real e, portanto, a verdade, que se dá pela denúncia do falso. Mas o discurso histórico utiliza-se da ficção: a econometria histórica (a suposição do que poderia ser); o uso de metáforas; a possibilidade de mais de uma interpretação. Todavia, o discurso do historiador não se torna uma mentira por se utilizar da ficção, nem abandona o status de ciência, mas é real na medida em que se considera uma representação dessa realidade. O problema reside na lógica adotada pelas ciências positivas que relacionam ficção ao irreal e apenas com Freud que essa relação é revista.

Freud não foi um historiador profissional, mas escreve sobre História, e faz isso com um toque de suspense do romance policial e a inquietação do romance fantástico. No seu fazer histórico ele desorganiza tudo o que os historiadores acreditavam estar arrumado. Ele foi o único autor contemporâneo capaz de criar mitos, no sentido de criar romances com funções teóricas. A psicanálise e a história percebem o tempo e a memória de modos distintos. Contudo, os problemas que apresentam são análogos: tornar o presente capaz de explicar o passado, compreender as diferenças e as continuidades entre as organizações antigas e atuais, construir uma narrativa explicativa. Assim, a questão que vem à tona é: qual o impacto do freudismo nas discussões sobre as relações entre história e literatura?

A literatura é para a história o que a matemática é para as ciências exatas – a forma que torna o discurso inteligível. Mas no discurso freudiano é a ficção que fornece a seriedade científica. A narrativa produzida pela psicanálise, o “romance”, deveria combinar os sintomas da doença (a coleta de dados) com a história de vida/sofrimento do paciente (historicizar seu problema). O estudo tradicional, científico, não acrescentava a historicidade do caso clínico à coleta de dados, portanto dentro do discurso dito científico não entrava a história. Essa historicidade vem para superar o modelo teórico vigente. O “romance” então supera a ciência, pois além da coleta de dados (o factual) ele historiciza o caso. Em Freud, torna-se possível pensar história e ficção.

Os capítulos IV-VI: O riso de Michel Foucault; O sol negro da linguagem: Michel Foucault; e Microtécnicas e discurso panóptico: um quiproquó apresentam os problemas levantados por Foucault em diálogo com as teses de Certeau sobre a história e a psicanálise. Não uma ingênua apresentação das ideias de Foucault, nem mais um dos comentários sobre sua obra, mas uma reflexão do próprio Certeau a partir da leitura de Foucault, de quem não era apenas amigo íntimo, mas um admirador de seu trabalho. As obras de Foucault que alicerçam essa parte da obra são fundamentalmente As palavras e as coisas (1966), Arqueologia do saber (1969) e Vigiar e punir (1975).

Envolvido num certo tom de ironia, Foucault descarta as certezas que o evolucionismo pretende, mostrando certo desprezo pelo postulado de um progresso contínuo. Para ele, todo sistema cultural é uma aposta, por ser incerto e não saber precisamente aonde vai chegar, mas mesmo assim, busca dar um sentido, uma ordem à vida, elaborando um modo de enfrentar a morte. Foucault critica essa ideia de progresso porque ela pressupõe que uma cultura caminha sempre para frente, acumulando e superando a anterior, hierarquizando-as. Contudo, cada cultura oferece ao nosso pensamento um mundo de ordem, o exótico de um pensamento é o limite de compreensão do nosso. E nessa relação de alteridade, percebemos as diferenças culturais e transformamos nossa relação com nossa própria cultura. Nosso mundo de certezas desmancha-se, marcando o fim de um sistema cultural e o início de outro. Nesse processo, palavras e ideias são utilizadas para pensar teoricamente esse novo sistema, e embora tais palavras e ideias existissem nos dois sistemas elas podem alterar o significado por estarem inseridas em ordens de pensamento diferentes.

Dessa estrutura do pensamento de Foucault, Certeau detêm-se em algumas questões de ordem metodológica: a análise histórica deve ser estrutural, ou seja, fazer uma adequação entre significante e significado, pois o significado das palavras é construído historicamente; a noção de periodicidade perpassa erroneamente a ideia de continuidade, de progresso, assim, necessitamos confrontar nosso objeto com outras obras contemporâneas ao próprio objeto, não se concentrando demais no pensamento anterior (as “influências”) e no posterior (nossas próprias ideias, teorias).

Os últimos capítulos: História e Estrutura; O ausente da história; A instituição da podridão: Luder; e Lacan: uma ética da fala/palavra [parole] apresentam a perspectiva teórica de Michel de Certeau pensada em seu próprio objeto de pesquisa, a espiritualidade dos séculos XVI e XVII. Não encontraremos nesses artigos um estudo sistemático sobre essa temática tal como o faz em La Fable mystique: XVIe et XVIIe siècle (1982), por exemplo. O que norteia a composição da obra são as questões de ordem teórica e metodológica. Aqui, Certeau se detém a essas questões mostrando como elas se relacionam ao seu tema de pesquisa, é uma intervenção sobre seu próprio fazer historiográfico.

Certeau ao apresentar seu objeto lembra-nos que essa escolha – não apenas a sua, mas a de todos os historiadores – é uma escolha orientada por uma busca de identidade. Olhamos para o passado buscando algo do presente. Nesse primeiro momento encontramos com o outro por meio de nossa imaginação, reconstruímos um mundo que nunca conheceremos de fato, aí existe um erudito e não um historiador. Nossa busca é como a de um catador, que revira o lixo buscando os restos e sonhando com a casa que nunca terá. O pesquisador permanece o mesmo. Em seguida, com o contato maior com a documentação, numa relação de força, há um estranhamento com o outro e um afastamento de seu mundo. Percebemos que esse mundo nos escapa, que não é como imaginávamos ou como sonhávamos. O objeto de pesquisa se torna um outro, um estranho. Mas o que mudou com relação a nosso primeiro olhar não foi o passado, mas sim a maneira como olhamos para ele, uma mudança do próprio pesquisador diante de sua pesquisa, é nessa transformação que o erudito se torna um historiador. Fazer história é mais que produzir narrativas históricas, é ter consciência de que algo se passou, está morto, e é inacessível como vivo.

O trabalho do historiador deve fazer aparecer a alteridade. A história direciona nosso olhar para o passado a fim de se aproximar do estranho, do “selvagem” que habita as origens. O discurso histórico nos revela essa presença ameaçadora, tal qual a psicanálise, embora se utilizando de diferentes procedimentos. Assim, a concepção de história de Freud não é de uma permanência, mas de uma tensão que organiza uma sociedade ou um discurso.

Michel de Certeau é sem dúvidas um grande erudito e historiador do século XX e suas contribuições para as discussões acerca da teoria da história e metodologia da operação historiográfica estão para além do que conseguimos mapear. Encontramos nessa coletânea um compêndio de vários exercícios intelectuais do autor, uma verdadeira lição de como “fabricar” história. Certeau é comedido em sua escrita, mostra-nos como fazer a relação da história com as várias disciplinas que utilizamos como auxiliares. Escreve sobre teoria, mas preocupado em como essa serviria para resolver problemas do fazer historiográfico. Sua abordagem metodológica busca um entremeio [entre-deux] entre os eruditos do século XVII, os tratados de método do século XX e os pensadores pós-modernos. O caminho que traçou não busca responder definitivamente a toda problemática da Escrita da História, antes, porém insere mais questões para refletirmos e tomarmos consciência do que realmente fazemos ao escrever história, tomarmos consciência da nossa própria narrativa, e assim, como na psicanálise, trazer a tona o que está escondido/ ou o que escondemos no nosso ofício.

Notas

2. CERTEAU, Michel de. A escrita da História. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 65.

3. GIARD, Luce. Um caminho não traçado. In: CERTEAU, Michel. História e Psicanálise: entre ciência e ficção. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. p. 37.

Maicon da Silva Camargo – Mestrando em História. Universidade Federal de Goiás. E-mail: maiconcamargo.msc@gmail.com


CERTEAU, Michel de. História e Psicanálise: entre ciência e ficção. Trad. Guilherme J. de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.  Resenha de: CAMARGO, Maicon da Silva. Aedos. Porto Alegre, v.5, n.13, p.294-298, ago./dez., 2013. Acessar publicação original [DR]

História e psicanálise: entre ciência e ficção | Michel de Certeau

Michel de Certeau (1925-1986) nasceu em Chambéry região camponesa da França. Intelectual de Inteligência brilhante e inconformado com a realidade, Certeau caminhou por vários caminhos de saberes, formou-se em Filosofia, História, Teologia e Letras Clássicas, e ainda caminhou por tantas outras disciplinas, como a Antropologia, a Linguística e Psicanálise. Michel de Certeau comuns de sua época [2]. Sua trajetória intelectual pode ser pensada como uma procura constante da palavra do outro, uma procura pelo outro e suas ações. Sua simplicidade lhe permitia perceber as artes e as criações nas coisas mais simples do cotidiano (o caminhar, o ler, o morar, o cozinhar, etc.), seu olhar nos levou a entender o sujeito como criativo, capaz de subverter a disciplina. Em linhas gerais, podemos identificar que o sujeito é o grande personagem de seus trabalhos [3]. Sua produção mostra enorme erudição, uma produção que vai do inicio dos anos 1960, até 1980. Religioso, foi ordenado sacerdote na Companhia de Jesus em 1950 e, fiel aos princípios de sua ordem, permaneceu padre e assim viveu até a sua morte.

Certeau subverte lugares. Inquieta o leitor, e ao mesmo tempo proporciona um diálogo com ele. A leitura de seus textos nos faz pensar a simplicidade do cotidiano de uma forma diferente, como um espaço de conflitos, de lutas capilares, quase imperceptíveis. Certeau nos mostra através de poucas palavras o barulho da estratégia e o silêncio da tática. Sua preocupação ainda se destaca na problematização no que se diz respeito ao conhecimento histórico e os meandros de sua produção, ao escrever “A escrita da História”, Certeau lançará questões de grande importância para a historiografia, descortinando o que está por traz do texto histórico, as suas limitações, as suas possibilidades e suas interdições. Afinal quem produz e como é produzido o texto do historiador? Quais os limites e as aberturas impostas pela sociedade dos historiadores? Quem julga a qualidade, e a validade do texto histórico. Arrisco em afirmar que A Escrita da História é um texto fundamental para se pensar o oficio, e para ser historiador.

Um dos mais importantes momentos da produção de Michel de Certeau é sua aproximação com a Psicanálise que se dá, sobretudo, por sua participação nos seminários de Lacan, de quem era grande admirador. Tendo tido uma relação direta com os textos de Freud, Certeau chega a destacar a influência do pensamento freudiano na historiografia, intervenções que ele chamará de “cirúrgicas”, essa influência permeará grande parte de seus textos. Participará ainda da Escola Freudiana de Paris, até a sua dissolução nos anos 1980.

Publicado pela primeira vez no Brasil em 2011, pela editora Autêntica, a coletânea de textos, “História e Psicanálise: entre ciência e ficção”, reúne textos que, mais uma vez, trazem à tona a heterogeneidade do pensamento de Michel de Certeau, dez capítulos que tratam desde a relação, muitas vezes conflituosa, entre história e ficção, da relação da própria história com a psicanálise, bem como três belíssimos textos sobre o pensamento e a pessoa de Michel Foucault, a quem Michel de Certeau admirava e reconhecia a força de sua produção e de seu pensamento. Porém, os temas abordados por Certeau vão mais além, abrem um leque de possibilidades para se pensar o conhecimento histórico. Trata-se de um rico material, onde é escancarado o pensamento múltiplo e fecundo de Certeau. Certeau fez de seu percurso “Um caminho não traçado”.

Inspirada na vida de Certeau, em suas práticas de esgrima e montanhismos nos Alpes da Savoia, Luce Giard, abre a coletânea de textos com um belíssimo ensaio sobre a vida e a obra do historiador do cotidiano. Usando uma linguagem metafórica, a autora faz um transcurso entre a vida e a produção historiográfica desse jesuíta, um pensador de passos firmes e inconformado com o seu próprio conhecimento, isso fez com que Certeau, caminhasse, buscasse o conhecimento incessantemente. Giard nos faz ver um Certeau simples, pensante, que estava sempre atento a perceber as artes escondidas no cotidiano, um personagem que mesmo tendo ganhado destaque no ciclo intelectual francês permaneceu sem ostentação, sem méritos. Historiador da espiritualidade e dos textos místicos, Michel de Certeau, sempre relia seus textos, demonstrando insatisfação, reavaliando suas posições e seu pensamento. Talvez seja por isso que os textos de Certeau, passados mais de vinte anos, ainda são de uma atualidade impressionante.

O primeiro capitulo trata da relação entre História e ficção, o texto procura fazer reflexões acerca das possibilidades de pensar essa relação. Nesse sentido, Certeau vai pensar o discurso da história a sua pretensão de realidade. Afirma o autor que, o historiador não fala e nem tem a ambição de falar verdades absolutas. O discurso da história, embora deseje um efeito de real, ele não outorga uma verdade sobre o passado. Assim, Certeau, perpassa questões que norteiam o conhecimento histórico, propondo reflexões de caráter teórico e metodológico sobre essa tríade – história, ciência e ficção – um texto que traz para o cenário das discussões temas que norteiam a produção da história e o lugar da narrativa.

Os capítulos II e III se preocupam em estabelecer considerações sobre a História e a Psicanálise. Questões que possibilitam nomear a obra. Os encontros de Certeau com os textos de Lacan possibilitam o autor ampliar seus conhecimentos e suas reflexões sobre as suas pesquisas, rompendo fronteiras, Certeau, ainda pensa, nesses textos a relação entre a História e a Literatura, nessa relação Freud é a grande inspiração do texto, Certeau caminha pela psicanálise buscando entender as suas possíveis relações com a história.

Como dito anteriormente, Certeau nutria profunda admiração pelo filósofo Michel Foucault, a este dedicará três textos da coletânea aqui discutida – Capítulos IV, V e VI – mais do que textos sobre a produção de Foucault, Certeau escreve textos que revelam a sua admiração pela “revolução” causada pelos escritos foucaultianos, sobretudo, por “Vigiar e Punir” que ele considera como uma obra prima. Vale destacar aqui, que alguns comentadores criam uma oposição entre Certeau e Foucault, criando um grande equivoco. Não são pensadores em conflito, trata-se de pensamentos diferentes. Enquanto Michel Foucault busca entender a disciplina e a sociedade disciplinar, Michel de Certeau preocupa-se em perceber a antidisciplina, os meios e as táticas de fuga, de rompimento com a ordem. O texto, “o riso de Michel Foucault”, é um percurso pela personalidade de Foucault, em quem Certeau identifica um “um riso incontrolável”, dois pensadores que se negaram a ocupar um lugar fixo, estático. Foucault e Certeau ainda falam, suas falas habitam o texto. Vozes que escapam o jazigo que é o texto.

Os capítulos VII e VIII, estão relacionados a relação entre história e a escrita da história. Retomam questões, que de certa forma se fazem presentes em “A escrita da História”, contudo, não se afastam da proposta temática da coletânea, continuam ainda traçando caminhos pela psicanálise. Especificamente, o sétimo é uma discussão acerca do estruturalismo, corrente de pensamento de grande repercussão nos anos oitenta. O oitavo traz o ausente da história, é na verdade um texto sobre a escrita da história, ou, a elaboração do discurso histórico, um discurso que busca vestígios, pistas do outro, do passado, para elaborar um texto inteligível.

Concluindo, o capitulo de conclusão da coletânea é dedicado a Jacques Lacan, fundador da Escola Freudiana, de quem Certeau era membro ativo, nesses textos Michel de Certeau identifica nos seminários de Lacan, uma força criadora, (co) movedora de sentidos, Certeau foca sua análise naquilo que Lacan tanto utilizou. A voz, a voz que produz efeitos, gera experiências.

Mas o que Certeau causa em seu leitor? Não tenho respostas. A dúvida talvez seja mais forte e mais criadora do que a certeza. Duvidar faz criar outras respostas, a certeza me prende, me limita. Os textos de Michel de Certeau são como gravações, como pensa Gilles Deleuze, ao ler, o leitor atento, poderá escutar sua voz, suas pausas, suas entonações, a suavidade de sua voz e a força de seu pensamento. Melhor, o leitor atento poderá vê-lo, seu corpo franzino, seu olhar perspicaz, e a força de seu pensamento.

Os textos apresentados em “História e Psicanálise” revelam a sensibilidade e a potência do pensamento de Michel de Certeau, é um texto rico, profundo e povoado de vozes. Vozes de Certeau, de Lacan, de Foucault, vozes de leitores… Em 09 de Janeiro de 1986, uma triste quinta feira, Michel de Certeau morria, porém, não se calaria. Sua voz resiste ao caráter sepulcral do texto. A voz de Michel de Certeau continua ecoando em meio às instituições que legitimam o trabalho do historiador, mas, o pensamento certeauniano não conhece fronteiras, inquieta pesquisadores de múltiplos campos de saber. Certeau, certamente proporcionou uma revolução no pensar, no fazer. Revolucionou a nossa forma de escrever a história e nossa forma de perceber o cotidiano, o sujeito e a nós mesmos. Pois, a experiência do conhecimento de nada adianta se não modificar a nós mesmos, antes de tudo.

Notas

2. Cf. CHARTIER, Roger. Estratégias e táticas. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietude. Tradução de Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002.

3. Em “A invenção do Cotidiano” (Vol. 1 e 2.) Michel de Certeau se preocupa em perceber como as pessoas elaboram práticas cotidianas a partir de uma cultura ordinária, o cotidiano passa a ser inventado pelo sujeito através de suas artes, Certeau vê na invenção do cotidiano uma liberdade gazeteira, sorrateira, que age em micro espaços e micro ações.

Silvano Fidelis de Lira – Graduado em História pela Universidade Estadual da Paraíba (2012) e atualmente mestrando em História na Universidade Federal da Paraíba, desenvolve pesquisas sobre memória e sensibilidade. E-mail: silvanohistoria@gmail.com


CERTEAU, Michel de. História e psicanálise: entre ciência e ficção. Tradução Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. Resenha de: LIRA, Silvano Fidelis de. Um pensamento inquieto: os caminhos de Michel de Certeau. Aedos. Porto Alegre, v.5, n.13, p.304-307, ago./dez., 2013. Acessar publicação original [DR]

Educação e Psicanálise | Rinaldo Voltolini

São inúmeras as tentativas de conexões e de diálogos entre os campos da psicanálise e da educação. Desde Freud, a psicanálise busca evidenciar uma nova face da educação, propondo uma outra relação entre os dois campos. Sabemos que se a versão profilática da interação já foi, há muito tempo superada, ainda restam interpretações funcionalistas que, em tempos de pedagogias tecnicistas, tornam cada vez mais necessária a discussão sobre as condições e as possibilidades das interfaces deste litoral.

Pois esta é a proposta do livro Educação e Psicanálise, do psicanalista e professor da Faculdade de Educação da USP, Rinaldo Voltolini. Atualizando reflexões de Freud e de Lacan para os dias de hoje, Rinaldo começa propondo uma profícua reflexão acerca dos termos educação e educar, demonstrando na argumentação que é: “[…] como posição discursiva e não mais como um campo outro de conhecimento sobre o qual se deveria aplicar a psicanálise que a educação encontra sua elaboração maior na teoria analítica” (Voltolini, 2011, p. 12-13).

O livro articula uma bela discussão acerca do propalado caráter impossível da arte de educar. Ora, educar, da mesma forma que governar e psicanalisar, é considerado um ofício impossível exatamente pelo paradoxo que se instala na posição daquele que se incumbe dessa tarefa. A discutida relação transferencial com o aluno, com os governados e com os analisantes, exige que o saber apostado na relação seja sempre suposto, pois quando a condição da falta se ausenta na mediação destas relações, ocorrem as fissuras transferenciais. A noção da impossibilidade, portanto, fica evidenciada na paradoxal posição de estar no lugar de suposto saber, porém, sem a apropriação imaginária desta condição, a fim de não impedir a presença da dimensão da falta e da castração.

A impossibilidade também está presente em outro tema caro à educação e à psicanálise, o mal-estar na cultura. A incompletude da satisfação pulsional e os avatares da civilização levam os sujeitos, não raras vezes, a depararem-se com a impossibilidade da civilidade absoluta. Neste sentido, a busca da potência e da não castração são as outras faces desse mal-estar constitutivo do humano.

O autor, imbuído de vasta experiência no trato com educadores e com instituições, filia-se ao pensamento freudiano, deixando decantar, em sua produção, a valiosa química que articula o indissolúvel par: prática e teoria. Ao referir-se ao mal-estar na educação, filho direto do mal-estar na cultura, Voltolini assevera que algo “cai” no percurso da construção da civilidade do sujeito a bem de poder viver em comunidade. Ele pontua aquilo que, tantas vezes, evoca questões nas instituições educacionais, ou seja, “sempre resta um resto” que resiste à dominação e à tipificação. Nos ímpetos selvagens, há alguma coisa que permanece, apesar da moral civilizada à qual somos submetidos, sendo justamente aí que esbarram as tentativas educativas que visam ao sucesso, pois tal resto resulta inalcançável do ponto de vista estrutural.

O interessante dessas articulações de Voltolini é que ele não se furta em explicar que não se trata de repensar a educação, a fim de mudar de estratégia pedagógica, não há em seu pensamento nenhuma ingenuidade posta a serviço de uma certa higienia na direção do mal-estar na educação. Isso porque, em suas ponderações, fica evidente que não há qualquer intenção em propor modos de esgotar o mal-estar na educação. Pelo contrário, o autor compartilha da noção freudiana de que o mal-estar é a condição de criarmos cultura e civilização. Quesito no qual o autor é categórico: caso o projeto pedagógico ambicione algum modo de esgotar a tensão entre o sujeito e cultura fatalmente irá fracassar. Sem a cultura nos restaria somente a barbárie, o gozo absoluto e destruidor, mas é justamente esse resquício que escapa aos movimentos civilizatórios e que norteia as possibilidades de gozo no âmbito da cultura.

Neste mesmo diapasão, reside a noção de que a educação é um campo cheio de paradoxos, cuja insatisfação constante deve ser tomada, como efeito da impossibilidade enquanto condição permanente do ato de educar. Kupfer (2007, p. 14) aponta que,
O sonho de uma educação psicanaliticamente orientada e por isso capaz de contribuir para o progresso da humanidade deixa de fazer sentido. Somos perversos de nascimento; o máximo que a educação pode fazer é esforçar-se para transformar o ‘humus de nossas piores disposições’ em algo que preste, e isso os educadores já fazem há séculos.

Aproveitemos para esta discussão, o fato de que as boas produções da cultura estão sempre a nos brindar com problematizações prenhes de questões caras às nossas inquietações. Exemplo disso é o clássico Laranja Mecânica de Stanley Kubrick (1971) – filme que narra a história de Alex, um jovem líder de uma gangue que comete uma série de atos de violência gratuita. Durante um dos episódios de vandalismo que sua gangue protagoniza, Alex é preso, porém recebe a opção de participar de um programa que pode reduzir o seu tempo na cadeia – um programa experimental para recuperar criminosos. O rapaz vira cobaia de experimentos para refrear os impulsos destrutivos do ser humano, que acabam levando-o à extinção do livre-arbítrio, desumanizando-o.

Kubrick (1971) explorou, na narrativa, a crítica que desenvolveu acerca do uso da terapia comportamental como um modo de acabar com o problema da delinquência, uma forma de reprimir totalmente os impulsos agressivos. Problematizou esse caminho, abrindo uma série de reflexões sobre os paradoxos contidos na tentativa de erradicar a dimensão pulsional do humano. Ao trazer à tona o assunto da delinquência, o diretor acabou por discutir, em diversas cenas, o contraponto civilização/barbárie. Através de inúmeros elementos estéticos que produzem, no espectador, um curto-circuito visual e que fazem alusão à condição estrutural de tensão entre o sujeito e a civilização, Kubrick revisita de diferentes formas o tema do mal-estar. Na exploração fílmica que faz, ecoam questões sobre o que pensar do humano quando as conquistas civilizatórias não garantem nada com relação à felicidade, tampouco com relação às interações com outros.

Podemos dizer que, em direção semelhante, o livro de Rinaldo Voltolini problematiza a tensão entre o sujeito e a cultura, atualizando-a através da discussão sobre o mal estar na educação atual. Conforme Voltolini, “A educação mais bem-sucedida é a que fracassa, permitindo que a nova geração introduza o novo” (Voltolini, 2010, p. 56).

O autor lembra que é em um certo fracasso da tradição, que se forja o novo da geração que chega. Para problematizar essa provocação, trazemos algumas filigranas de Hannah Arendt (2001) no livro Entre o Passado e o Futuro. Lá, a filósofa diz que a crise da educação revela, sobretudo, uma crise na relação do sujeito moderno com o passado e com a história. O problema, segundo ela, é que toda a educação necessita de uma dose de tradição. Isto é, será somente no encontro com o velho que a geração que chega poderá construir o novo, em termos de ação. Ao falarmos do novo, evocamos necessariamente os temas da herança e da transmissão, ou seja, tradição e inovação são invocados para pensar os laços na e da educação (Gurski, 2012).

Ora, uma das principais ideias que, há muito tempo, acompanha o conceito de educação vem ancorada na noção de liame entre os diferentes tempos, ou seja, na noção de continuidade da produção humana. A transmissão é o fino fio que liga, interliga e possibilita que passado, presente e futuro possam estar aninhados, dando-nos, a noção tão cara de que algo de nossos feitos continua na geração que chega. Neste sentido, gostaríamos de associar a fala do autor também a alguns fragmentos do desconstrucionismo [1] de Jacques Derrida.

O filósofo francês estabeleceu um genuíno diálogo com a psicanalista e historiadora francesa Elizabeth Roudinesco (Derrida; Roudinesco, 2004, p. 9), através do qual apresentou o âmago de suas teorizações acerca do tema da herança: “Trata-se de escolher sua herança, segundo seus próprios termos: nem aceitar tudo, nem fazer tábula-rasa”. Ou seja, a melhor maneira de ser fiel a uma herança é ser-lhe infiel, isto é, “[…] não recebê-la à letra, como uma totalidade, mas antes surpreender suas falhas” (Derrida; Roudinesco, 2004, p. 11).

Talvez possamos pensar que é deste modo que a psicanálise pode ser potente quando se encontra com a educação. Ao referir-se à impossibilidade estrutural da educação, a psicanálise aponta para algo maior que a figura do professor, por exemplo. O que implica perceber que a relação aluno-professor, longe de ficar restrita às questões relativas ao conteúdo ministrado e às boas intenções do docente, passa necessariamente por inúmeras questões inconscientes relativas ao sintoma e à posição na relação com o Outro [2] de cada um, no caso do professor e do aluno.

O autor mostra, na delicada trama que estabelece entre sua experiência enquanto psicanalista e educador e a tradição da letra freudiana, a facilidade com que esse impossível é tomado no registro da impotência pelos educadores; em geral mesmo como uma “[…] confirmação das dificuldades de uma educação específica qualquer” (Voltolini, 2011, p. 25). Nesse sentido, é muito recorrente que os professores paralisem-se narcisicamente frente às dificuldades dos alunos. Ao se deixarem levar pela simplificação da noção de educação e, muitas vezes, confundirem o ato de ensinar e o ato de educar, acabam por se sentirem meros instrumentos da absorção de conhecimentos. Tal processo os coloca em posição de não implicação com as dificuldades escolares do aluno.

Lajonquière (2010) sugere que talvez seja possível esperarmos outra coisa da pedagogia com relação à educação se apostarmos “[…] em gente comum disposta a falar com as crianças – ao invés de falar sobre elas de forma pedagógica – e convicta de que a educação está atrelada às mesmíssimas condições de possibilidade para vivermos na polis sem nos comermos uns aos outros” (Lajonquière, 2010, p. 123-124). Posição que infelizmente, sabemos que não é a tônica das instituições educacionais.

Nosso grupo de pesquisa [3] tem experienciado uma atividade de extensão com os adolescentes de uma escola pública no arquipélago da cidade, onde trabalhamos com cinema e psicanálise. Lá, nos deparamos com muitas das questões evocadas pelas letras de Voltolini, uma das mais impactantes foi justamente a facilidade com que o impossível estrutural inerente à tarefa de educar acaba submetido ao registro da impotência pelos professores e funcionários da escola. Era recorrente, no discurso dos professores, a queixa acerca das vicissitudes dos adolescentes. Dentre as questões trazidas, encontrava-se a falta de interesse ou ainda as dificuldades que apresentavam no aprender, sem que em nenhum momento, lhes ocorresse evocar qualquer questão acerca das possíveis implicações com tais fraturas e falências no que avaliam como os processos de ensino-aprendizagem.

Os domesticáveis eram logo tratados como alunos-problema e, uma vez com tal rótulo, toda a aposta do professor com relação a esse aluno, necessária a qualquer educação, desaparecia numa proporção inversa à construção de sua má fama, como se dele já não fosse possível esperar nada. Associava-se à constituição dos ditos alunos-problema a situação social e econômica desfavorecida das famílias da região.
Estes fatos, entre outros, revelam que precisamos constituir outros analisadores a fim de pensar as variáveis da educação, um acento que possa colocar em questão essas relações de modo a repensar condições que estão sendo percebidas como dadas no ambiente educacional. Entendemos que uma outra concepção de educação passa necessariamente pela possibilidade de resignificar condições atuais que estão postas na ordem do dia nas Instituição Educacionais.

Parece que é justamente acerca de um “outro” olhar que Voltolini argumenta, quando convoca a noção da falta e da castração, advindas da psicanálise, como operadores educativos. Ele adverte que, quando se trata de ensinar, existe uma limitação que não é uma limitação do professor, é uma limitação dada pela própria condição da falta.

Ainda que sejam indiscutíveis os caminhos que traçam a conexão entre a educação e a psicanálise, talvez caiba falar que em alguns momentos tal diálogo pode passar por fraturas. A proposta mais comum de debate entre ambas é atravessada por uma noção de ideais educativos que atropela e desvirtua as contribuições da psicanálise.

Kupfer, no livro Educação Para o Futuro: psicanálise e educação reitera a posição do autor de Educação e Psicanálise quando fala que discurso é o que faz laço social: “Desta perspectiva, educar torna-se a prática social discursiva responsável pela imersão da criança na linguagem, tornando-a capaz por sua vez de produzir discurso, ou seja, de dirigir-se ao outro fazendo laço social” (Kupfer, 2007, p. 35).
Parece-nos que Voltolini ressalta a potência das conexões da Educação e Psicanálise especialmente quando propõe que a psicanálise, ao produzir uma ressignificação do campo da educação está propiciando a quem se aventura em tal empreitada, uma circulação pelas diversas possibilidades que o encontro com o outro pode produzir. Dentre tais potências, sublinhamos o quanto a permeabilidade ao outro pode fazer com que da chamada experiência impossível do educar decante efeitos de sujeito.

Notas

1. Segundo nota de Roudinesco (Derrida; Roudinesco, 2004, p. 9), o termo desconstrucionismo foi utilizado pela primeira vez por Jacques Derrida, em 1967, no texto Gramatologia; é um termo retirado da arquitetura que significa a decomposição de uma estrutura. Consiste basicamente em desfazer um sistema de pensamento hegemônico ou dominante sem nunca aniquilá-lo, destruí-lo: “Desconstruir é de certo modo resistir à tirania do UM […]”.

2. Para tratar da constituição psíquica, Lacan diferencia duas instâncias: o chamado “pequeno outro”, que seria o semelhante, o parceiro imaginário, e o “Outro” (grande Outro), que ele conceitua como a instância simbólica e, portanto, da linguagem, que determina o sujeito, sendo de natureza anterior e exterior a ele; lugar da palavra, do tesouro dos significantes (Lacan, 1985 [1954/55], p. 297).

3. Referimo-nos aqui às pesquisas que acontecem no âmbito do NUPPEC/UFRGS – Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura que congrega professores e pesquisadores vinculados ao Instituto de Psicologia (UFRGS) e PPGEDU/UFRGS.

Referências

ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Perspectiva, 2001. [ Links ]

DERRIDA, Jacques; ROUDINESCO, Elizabeth. De que Amanhã: diálogo. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. [ Links ]

GURSKI, Rose. Três Ensaios sobre Juventude e Violência. São Paulo: Escuta, 2012. [ Links ]

GURSKI, Rose. Meio Século de Mal-Estar. Zero Hora, Porto Alegre, 30 nov. 2012. (Caderno de Cultura) [ Links ]

KUPFER, Maria Cristina Machado. Educação Para o Futuro: psicanálise e educação. São Paulo: Escuta, 2007. [ Links ]

LACAN, Jacques [1954/1955]. Seminário 2: O Eu na Teoria de Freud e na Técnica da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. [ Links ]

LAJONQUIÈRE, Leandro de. Figuras do Infantil: a psicanálise na vida cotidiana com as crianças. Petrópolis: Vozes, 2010. [ Links ]

LARANJA Mecânica. Direção: Stanley Kubrick. Reino Unido, 1971. 1 DVD (138 min. [ Links ]).

VOLTOLINI, Rinaldo. Educação e Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. [ Links ]

Rose Gurski – Psicanalista, membro da APPOA, Professora do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia UFRGS, Porto Alegre/Rio Grande do Sul; coautora dos livros Educação e Função Paterna (Ed. UFRGS, 2008); Debates Sobre Adolescência Contemporânea e o Laço Social (Juruá, 2012); autora do livro Três Ensaios sobre Juventude e Violência (Escuta, 2012).
E-mail: roselenegurski@terra.com.br

Alice Umpierre – Estudante de graduação em Psicologia (UFRGS), Porto Alegre/Rio Grande do Sul; bolsista IC/PROBIC-FAPERGS; pesquisadora do NUPPEC/UFRGS.E-mail: alice.umpierre@gmail.com


VOLTOLINI, Rinaldo. Educação e Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. Resenha de: GURSKI, Rose; UMPIERRE, Alice. Educação & Realidade, Porto Alegre, v.38, n.2 abr./jun., 2013. Acessar publicação original

A cultura dos superdotados? – BERGÉS-BAUNES; CALMETTES-JEAN (REE)

BERGÉS-BAUNES, Marika; CALMETTES-JEAN, Sandrine. A cultura dos superdotados? Tradução Maria Nestrovsky Folberg. Porto Alegre: CMC, 2010. Resenha de: HOMRICH, Marcele Teixeira.“A cultura dos superdotados?” The gifted child culture? Revista Educação Especial, Santa Maria, v.24, n.41, p.501-504, set./dez., 2011.

A cultura dos superdotados é uma publicação originada nas Jornadas de Estudos do Hospital Sainte-Anne (França), e tem como referencial teórico a psicanálise, sendo o foco adentrar na questão: o que esconde a inflação do significante superdotados? O livro publicado no Brasil com tradução da professora Dra. Maria Nestrovsky Folberg,¹ pela Editora CMC, discorre sobre a superdotação e psicanálise, entrando no contexto social, clínica e escola.

O livro é estruturado por pequenos textos organizados em quatro eixos: 1) panorama e estabelecimento da questão, 2) confrontação teórico-clínica, 3) clínica, retratos, sociedade e 4) e a escola? O primeiro eixo visa discutir a questão da avaliação psicológica, os conceitos de QI, e as possíveis repercussões que tais quocientes podem produzir no fechamento de questões da ordem da estruturação subjetiva. Como ponto de partida, retoma questões básicas, como o pedido que chega até os consultórios, onde há uma tríade tédio – superdotação – atestado de dons, tal discurso constitui uma uniformidade.

Ao longo do primeiro eixo, elementos históricos acerca das testagens, assim como os principais nomes no campo, são trazidos para a discussão, produzindo problematizações sobre a lógica que propõe o quociente intelectual.

O diagnóstico de superdotação, sustentado pela lógica do QI, traz consequências sérias, produzindo uma satisfação reparadora e uma afirmação fálica na estrutura familiar.

No decorrer do primeiro eixo, são também discutidos: as teorias sexuais infantis, a escrita, o corpo e o discurso acerca do tédio. Tais elementos, trazidos especificamente em cada texto, possibilitam pensar acerca do saber sexual como saber não-dito, recalcado, onde um não sei se coloca na possibilidade de se lançar na busca de conhecimentos, ou seja, um saber inconsciente que jamais será sabido. Na lógica contrária, coloca-se a criança supostamente superdotada: o gozo do superdotado está posto em mostrar a insuficiência e a não-pertinência da questão proposta – reivindicação fálica, a negação do sujeito do inconsciente. O tédio coloca-se exatamente nessa lógica mortífera: a pulsão de morte. Assim, a escrita impossibilitada, dificultada, trêmula e desalinhada, entra como projeção do corpo, demonstra uma relação primária com o objeto, uma persistência do elo de dependência.

No segundo eixo, denominado Confrontação teórico-clínica, os autores retomam a discussão sobre o QI, porém trazendo elementos pontuais que devem ser focados pelos colegas psicólogos, evitando uma concepção redutora.

O eixo também apresenta exemplos clínicos acerca da demanda da criança superdotada e de sua família, o lugar da criança na estrutura familiar e seu lugar frente ao desejo dos pais.

Uma das hipóteses seria que a demanda dos pais para com a criança dita superdotada está na lógica de uma não-demanda, é a marca nelas da ausência de desejo de seus pais ou, pelo menos, a busca desvairada desse desejo.

Uma segunda hipótese a partir das discussões dos textos ainda seria: não se pode dizer que não existe demanda por seus pais, mas se há demanda, elas se desenvolvem sobre o fundo de um imperativo de gozo que o sujeito supõe ser uma injunção do Outro.

A criança dita superdotada estaria privada em sua relação com o Outro, do que constitui o alcance simbólico dessa relação e do apoio que lhe permitiria levar em consideração suas próprias faltas. Assim, em dificuldade de articular sua enunciação, as próprias marcas inconscientes de sua subjetividade.

Essas marcas permanecem clivadas de toda falta, clivadas no sentido de recusa. O corpo se manifesta como portador da dimensão sexual, desconectado da fala e da demanda, anunciando os sintomas como: enurese, transtornos de higiene, os maus jeitos, a inabilidade…

O terceiro eixo: Clínica, retratos, sociedade, apresenta recortes de casos clínicos sustentado pela discussão teórica que permeiam o livro. Os textos discutem os excertos da clínica como sintomas que surgem a partir de atravessamentos sociais como configurações contemporâneas. A exigência de uma boa performance em tempos de alta publicidade, em que há um imperativo de gozar a qualquer preço. A inteligência estaria nesta lógica, na qual é solicitada e mantida na lógica publicitária de respostas rápidas e urgentes, sem suportar falhas, intervalos… o não-saber.

Ser superdotado, na lógica contemporânea de mercado e consumo, é ser mais, é um plus. Esse plus aparentemente pode parecer um ganho, mas têm um alto custo na subjetividade daquele que se oferta a esse lugar, o gozo Rev. Educ. Espec., Santa Maria, v. 24, n. 41, p. 501-504, set./dez. 2011 Disponível em: 503 “A cultura dos superdotados?” sem limite, o excesso leva à morte. O sintoma se apresenta como impossibilidade de negar a inscrição da barra no S.

A Terapêutica estaria na direção de que o “dito superdotado” possa desligar-se daquilo que elude a dimensão da falta na relação com o Outro para permitir sua enunciação. O trabalho com os pais estaria em trilhar um caminho para sair da suficiência em que estão confinados pela lógica que os aprisiona.

No último eixo, nomeado E a escola?, apresenta discussões teóricas e situações escolares em que a superdotação toma a cena. Os textos apresentam o fato que a criança superdotada nem sempre está na situação de sucesso escolar. Na situação em que a criança apresenta seu fracasso em sala de aula, ou na situação inversa, em que apresenta seu “super”, o pedido da avaliação pode vir do contexto escolar. Ao fim do último eixo, encontramos duas entrevistas acerca de algumas políticas e ações que estão sendo desenvolvidas na França.

O livro A cultura dos superdotados coloca em debate uma discussão atual acerca dos sintomas da infância, assim como a lógica da inflação da infância na contemporaneidade, lógica capitalista que objetaliza a criança. Como afirma Voltolini: Nossa época parece se identificar com a criança. Não seria talvez porque nela, a semelhança do que se passa com as crianças, busca-se um “gozo polimorfo”, sustenta-se uma “impunidade generalizada”, espera-se um “prazer imediato” e ilude-se com um futuro libertador de “toda” nossa insuficiência? Freud já havia pontuado, em sua também já clássica referência sobre o his majesty the baby, o lugar central, de majestade, devotado à criança nos dias de hoje, anotando o quanto os pais esperam que seus filhos realizem “o que eles não conseguiram realizar”.

Mas não estaríamos em condição de invectivar que toda esta “hiperbolização” da infância guarda relações com os nossos principais impasses com ela? Afinal, reclamamos hoje de uma “criança sem limite”, mas que limites esperamos dela? As novas patologias com as quais a marcamos se caracterizam pelo, excesso, o sem limite: “hiper”- ativa; “super”- dotada etc., ou pela escassez, a deficiência: déficit de atenção. Ambos signos da dinâmica capitalista, que tem entre suas primordiais operações a promoção do fator quantitativo (mais, menos; maior, menor) acima do qualitativo (VOLTOLINI, 2008).

Aprofundar as produções teóricas acerca da superdotação possibilita irmos além da compreensão superficial e aparente dos discursos que predominam nos contextos escolares. A necessidade de escutar os pedidos que chegam às escolas, instituições que se dedicam ao assunto, assim como aos consultórios médicos e psicológicos possibilitará novas formas de compreender a dinâmica em que tal criança se constitui, e o lugar que ocupam na estrutura social e familiar.

Notas
¹ Professora PPG Educação UFRGS, Coordenadora NEPPE.

Referências

VOLTOLINI, Rinaldo. A escola e os profissionais d’A criança. In: FORMACAO DE PROFISSIONAIS E A CRIANCA-SUJEITO, 7., 2008, São Paulo. Anais eletrônicos.

Marcele Teixeira Homrich – Psicólogo/Psicanalista, Mestre em Educação (Unisinos), Doutoranda em Educação – Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente é docente no Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo Ângelo, Santo Ângelo, Rio Grande do Sul, Brasil. celehomrich@ibest.com.br

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Voz na luz: psicanálise e cinema – GUIMARÃES (CTP)

GUIMARÃES, Dinara Machado. Voz na luz: psicanálise e cinema. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. 185 p. Resenha de: NASCIMENTO, Cristhianne Lopes. Voz na Luz: Psicanálise e Cinema de Dinara Machado Guimarães.  Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 04 – 04 de julho de 2011.

A psicanalista Dinara Guimarães propõe uma ideia inovadora ao investigar o cinema a partir da voz. Por o cinema ser uma arte sempre associada ao olhar, este livro amplia a concepção dos recursos sonoros e vocais das produções cinematográficas quando relacionados com a psicanálise. E esta particularidade já se apresenta no Prefácio quando o cineasta Cacá Diegues define que “a voz deste livro é a voz que o cineasta escuta”.2 Em sua obra, O vazio iluminado, a autora trabalha o olhar no cinema sustentado pela ideia de um vazio que também dá passagem para a criação da concepção voz na luz. Assim, como existia uma separação entre olhar e vê em sua primeira obra, esta traz como foco uma separação entre a voz e aquilo que se diz.

Desse modo, Dinara Guimarães nos apresenta “o cinema como uma arte que materializa uma voz moral na consciência humana”.3 E, com isso, permite uma análise do processo de criação tendo como base a teoria da psicanálise e a teoria do cinema. Para tanto, a autora divide sua obra em duas partes compostas por várias sequências: a primeira é o início da passagem do olhar para a voz (a) sonora; a voz de supereu de Sigmund Freud; a voz como objeto de pulsação invocante de Jacques Lacan; a voz na triangulação entre as categorias do Real, do Simbólico e do Imaginário; e a segunda parte consolida o encontro entre o cinema e a psicanálise assumindo o cinema como voz (a) sonora, uma voz silenciosa passando deste o surrealismo francês, os movimentos de vanguarda americana experimental, nouvelle vague francesa, neorrealismo italiano, até o cinema brasileiro e cinema contemporâneo. Por fim, as considerações finais que ressaltam o caminho percorrido e a voz transpassável pela tela desviada que ainda é seu grande enigma.

No primeiro plano já encontramos uma nomenclatura alternativa utilizada pela autora: a classificação cinema mudo e falado da abordagem tradicional é denominada por cinema silencioso e sonoro, e, ambos são detentores de voz. Isso quer dizer que o cinema mudo possui uma voz silenciosa. E, por isso, “o cinema combina a voz e a presença invisível do enunciador”.4 A partir desta assertiva, Dinara Guimarães define os princípios psicanalíticos que lhe é fundamental – o objeto a e o objeto da pulsão de ouvir, invocante – para chegar à construção do objeto e do método. Tendo como referencial Lacan e Freud, respectivamente. Logo, o cinema é construído pela voz (a) sonora por ser uma arte basicamente de representação de imagem. A voz, caracteristicamente errante, ao converter-se na fala cerca o lugar vazio, o vácuo de onde surge a voz ou o inverso disto, a voz silenciosa. Ou seja, o cinema tem uma voz silenciosa que ressoa por se tratar de outra dimensão da voz, a dimensão do instante de escutar. Por isso, segundo a autora, o cinema é chamado de “voz na luz”.

Nesse momento, a autora nos expõe os vários mecanismos de invenção criativa dos artistas sem nenhuma intenção de interpretá-los. Para tanto, percorre o campo teórico da psicanálise através da decupagem de três registros: o Real incorporado à ordem do “impossível” lógico; o Simbólico como uma lei ordenadora da estrutura que é a linguagem; e o Imaginário como registro das representações mediado por esta lei ordenadora. Onde cada um deles ganha três dimensões que articulam sobre um vazio que Lacan deposita os objetos a e, um dos objetos de desejo nomeado por ele, é a voz.

Dinara Guimarães destaca o pouco momento em que Freud compara a voz com a instância moral do supereu (ou superego) que seria uma voz da consciência ou a, também, chamada consciência moral. Já as abordagens de Lacan são bem exploradas por ela. Sua abordagem da voz se dá no desejo do sujeito e no desejo do Outro, portanto, um lugar dos significantes, marcado pelo registro Real. Então, Lacan é o primeiro a conceituar a voz como um objeto e “constrói o objeto a para marcar o ponto de escape da simbolização na estrutura de linguagem”.5 Pois, para ele o Real pode ser trabalhado excluído do Imaginário e do Simbólico e, consequentemente, enfatiza a ação criadora da palavra. E passa a evidenciar o Real como pura ausência, porém, o objeto a é o ponto de convergência entre o Real, o Simbólico e o Imaginário, determinando o lugar vazio estruturante da voz. Ao definir esta linha argumentativa, a autora desfila exemplos para demonstrar a escuta do cinema que ultrapassa a sonoridade acústica da tela para atingir a liberdade de uma voz que ecoa além da imagem.

Finalizando a primeira parte, Dinara Guimarães nos apresenta o conceito de voz acusmática presente em Michel Chion. A voz humana, segundo ele, é parcial e direcional, mas ouvimos de todos os lados despertando os sentidos a partir da orelha. Por isso, uma voz acusmática seria o som que se escuta sem saber de onde vêm. Produzida em um espaço extra-campo, mas não significa fora do filme. A voz ressoa pela “presença suposta”, quer dizer que é de alguém presente „fora-de-cena‟.

Na segunda parte, a autora define voz (a) sonora e voz sonora e depois a representação moral da voz (a) sonora em algumas projeções cinematográficas. A interface cinema e psicanálise se dá, para a autora, no encontro entre a psicanálise in-tensão e a psicanálise ex-tensão e, assim, constrói-se a voz iluminada. Para desvelar esta voz, é necessário escandir a voz (a) sonora, pois, ao destacar, separar a voz ela surge como objeto-causa do desejo. Dessa maneira, o sujeito se encontra como objeto e se faz voz, pois esta voz localizada dentro e fora do campo auditivo constituindo-se em Outro. Dinara Guimarães, então, apenas relaciona com o cinema a abordagem da voz do desejo do Outro que Lacan trabalha em relação à literatura.

Outro ponto, escandido pela autora, é a relação entre a voz e o olhar. “A voz e o olhar se opõem. A voz ressoa à distância da imagem, e o olhar fixa a imagem”.6 E a lógica de operação da fantasia tem relação com o enquadramento do olhar e da voz na tela por que o sujeito encena para ver e ouvir a realidade da sua subjetividade.

Com isso, a autora se distancia cada vez mais dos pensamentos tradicionais que compreendem a voz no sentido de um conjunto de sons emitidos pelo aparelho fonador. Restringindo a voz ao âmbito da percepção auditiva proposta pela fonoaudiologia e pela psicologia da Gestalt. E, também, o cinema sonoro limita-se a ter um único recurso técnico, a voz.

E esses conceitos estão presentes nas novas propostas artísticas do cinema vanguardista para, com isso, tentar atingir um novo sentido. Pois, a autora coloca a voz na luz do cinema como a reflexão da consciência moral, a instância crítica e vigilante. É uma voz que traz consigo um ideal estético preenchido por várias vozes escutadas por todos os lados e sentidos. David Wark Griffith, Fritz Lang, Alfred Hitchcock, Luis Buñuel, Maya Deren, Alain Resnais, Roberto Rossellini, Federico Fellini, Jean-Luc Godard, Carlos Reichenbach, Cacá Diegues, Krzystof Kieslowski, Luc Besson e outros são as vozes da moralidade destacada pela autora corroborando com os ideais apresentados ao longo de sua obra.

O cinema só se constrói enquanto voz pelo prazer de escutar pelas vozes do desejo. A escuta do cinema traz à luz a voz do comando de presença invisível, pois, cinema é voz: a voz distante da fonte sonoro-vocal, a voz da memória, a voz do espectro sonoro, a voz fantasmática, a voz inspiradora e a voz paranóica. Finalizando, a autora afirma que o que se escuta no cinema é a voz do silêncio. Assim, como um escrito, a voz entoa ao espectador uma linguagem, portanto, vinda do interior, silenciosa, dita em pensamentos ou vinda do exterior, invisível, ela antecipará o olhar. Pois, estará em algum lugar e em lugar nenhum, possível de ser vista e escutada, mas sempre fadada a errar.

Com esta conclusão, Dinara Guimarães, nos proporciona uma sobrecarga de conceitos da teoria da psicanálise, mas por vários momentos nos fica devendo maiores esclarecimento a cerca da teoria do cinema. Porque ao desfilar suas várias vozes (a) sonoras nas projeções cinematográficas encontramos termos do cinema extremamente técnicos que impossibilitam a interface desejada entre cinema e psicanálise com maior clareza. Embora, consiga falar com enorme poder dessas duas “ciências”.

Referência

GUIMARÃES, Dinara Machado. Voz na luz: psicanálise e cinema. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. 185 p.

Notas

2 p. 07

3 p. 15

4 p. 17.

5 p. 33.

6 p. 67.

Cristhianne Lopes do Nascimento – Mestranda em História pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás – PUC/GO

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Collected papers of Herbert Marcuse. Philosophy, Psychoanalysis and Emancipation – MARCUSE (CEFP)

MARCUSE, Herbert. Collected papers of Herbert Marcuse. Philosophy, Psychoanalysis and Emancipation. Vo.5. [?]: Editora da Unesp, [?]. Resenha de: CARNEIRO, Silvio Ricardo Gomes. Cadernos de Ética e Filosofia Política, São Paulo, v.20, p.185-193, 2011.

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A eficácia da cura em psicanálise: Freud – Winnicott – Lacan – PEREZ (RFA)

PEREZ, Daniel O. (Org.). A eficácia da cura em psicanálise: Freud – Winnicott – Lacan. Curitiba: CRV, 2009. Resenha de: OLIVEIRA, Marcelo de; ALVES, Vera Lúcia da Silva. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.22, n.30, p.303-308, jan./jun., 2010.

A coletânea de textos reunidas no livro A eficácia da cura em psicanálise é desdobramento de um trabalho anterior1 e se caracteriza como uma resposta à indagação do organizador, de ambos os livros, ainda sobre a questão da cura, agora sob as diferentes perspectivas psicanalíticas – Freud, Winnicott e Lacan. No texto que abre esta coletânea sob o título “A psicanálise e a cura”, Daniel Omar Perez retoma a interrogação freudiana acerca do mal-estar inerente à condição do humano e pontua a problemática do sujeito na contemporaneidade, que é tão pertinente hoje quanto nos fins do século XIX, uma problemática para além de uma “simples” retirada de sintomas. Uma psicanálise é um tratamento que compreende a dimensão do mal-estar sem reduzi-lo a um único aspecto, e que conduz aquele que fala a reconhecer sua parte no que diz, ou seja, uma experiência em que o analisante passa de objeto a sujeito. A proposta dos trabalhos apresentados neste livro é claramente expressa: ao contrário de se fechar em sentenças definitivas, a respeito da eficácia da cura na psicanálise, as variações e as vicissitudes do entendimento sobre a clínica, os conceitos e a cura analítica sustentam e revigoram o campo freudiano.

Francisco Verardi Bocca, em “Cuidado com a cura!!!”, faz uma perspicaz busca, mais lógica do que cronológica, em alguns textos de Freud, das suas diferentes elaborações sobre o ego, porque, segundo ele, Freud vincula a reflexão da eficácia terapêutica com a noção de conflito psíquico: envolvendo o ego, as forças pulsionais e também a posição do analista. O percurso, dado pelo autor, demonstrou expectativas tanto otimistas quanto pessimistas sobre os resultados da análise, que vão da remoção ao amansamento do sintoma. Esclarece que Freud, primeiramente, toma o ego como aliado ou colaborador do analista, em seguida passa a tê-lo como fonte de obstáculos e de resistências para a cura e, por fim, assevera que o método analítico, dentre todos, é o que chega mais longe. Eis o itinerário: 1º – A cura pelo esclarecimento e remoção de sintomas. Entre 1916 e 1917, Freud sustenta que análise promove modificações eficazes e definitivas por meio da transformação do material inconsciente em consciente; 2º – Persiste a aposta no ego. No texto O ego e o id (1923) e, já instrumentalizado com o conceito de neurose de transferência, confere ao ego o poder de conciliar as demandas provindas de todas as fontes. Contudo, em 1926 reconhece um obstáculo: a resistência. Infiltrando-se novos contornos ao ego; 3º – O ego sob suspeita. Começa a relativizar a atuação do ego, principalmente em “Análise terminável e interminável”, em que aponta que suas modificações não são persistentes; 4º – O ego como fogo-amigo. Substitui o fim último da remoção do sintoma por atenuação da exigência pulsional. Freud, reconhecendo o limite da análise e da sua eficácia terapêutica, não a configura como terminável.

No texto seguinte, “A propósito da cura no discurso analítico”, Antonio Godino Cabas, considerando a cura inseparável do dispositivo clínico, interroga: o que é uma psicanálise? O obstáculo a ser contornado é como definir o que ocorre em uma psicanálise, como produzir uma prova de convicção que possibilite demonstrar a sua essência e a eficácia da prática, posto que se trata de uma experiência tão real quanto carnal e diz respeito a um sujeito único, a uma experiência unicamente aplicável ao particular de cada caso, e nisto perfila uma inconsistência do saber analítico: a impossibilidade de se fazer interpretações generalistas. Sublinha a inconsistência do “ser” do psicanalista, não há no inconsciente um significante que dê conta de definir o que é um psicanalista, nada que possa garantir de antemão quem é e quem não é um psicanalista. O caminho que o autor empreende é a perspectiva do saber analisante. É o mesmo percurso realizado por Freud e por Lacan, na construção da doutrina analítica. Em ambos era desde um lugar como analisantes que “experimentavam” a psicanálise. Somente sob esta perspectiva é possível saber algo sobre o inconsciente, a partir de um saber de si-mesmo. Este é o cerne da experiência psicanalítica e de sua cura.

Sobre o conceito de experiência e o estatuto do saber no discurso analítico” é outro texto de Antonio Godino Cabas, no qual aborda a experiência clínica, criticada pela ênfase que traria um caráter demasiadamente empírico à psicanálise, tomada pelo viés de uma situação artificial que se constitui na sessão analítica. Artificial, posto que é pelo tratamento que se dá à demanda do analisante pelo analista que se produz o enquadramento necessário a uma psicanálise. Tal experiência provoca um movimento específico que visa à manifestação do real no campo do saber, como ato. Destarte é um saber, o saber-analisante, que se realiza em ato, que produz ato. Consistindo não em um saber do analisante, mas sim a qualidade, um tipo de saber. Conclui-se que a cura analítica está em estrita relação com a experiênicia e com o saber, pois é, antes de tudo, um saber fazer com o inconsciente.

João Perci Schiavon denuncia em “A cura em psicanálise” que a noção de pulsão é pouco explorada e mutilada como um pedaço de pulsão: pulsão de morte, pulsão sexual e pulsão de vida. Afirma que Freud, ao exercer a escuta flutuante, já estava intuindo a pulsão, chegando ao significante muito antes dos linguistas – mas não antes dos poetas. Afirma que o conceito orienta toda a trama significante e sublinha que Lacan compreendeu a pulsão como a potência do significante. O autor abre, sob domínio clínico e teórico, novos campos de interrogação da pulsão em relação ao saber do inconsciente – lugar da cura – e destaca alguns equívocos frequentes. Um primeiro equívoco: afetos secundários passam por primários. Afirma que dor e luto não decorrem diretamente do corte ou perda do objeto, mas sim do superinvestimento de representação do objeto, e a análise, com rigor ético, deve promover o reencontro do sujeito com esse poder e não exatamente com o objeto – seu norte deve ser a sublimação e não a castração. Quando para apenas no rompimento da unidade narcísica do discurso, reduz o campo pulsional à pulsão de morte, a falta-a-ser. O segundo equívoco: o afeto originário desligado da ideia é um absurdo. Considera-se que o recalque incide apenas sobre uma representação ou um significante e não sobre o afeto, e que este fica à deriva, desligado de sua representação. Sustenta que o afeto ligado a ideias substitutivas leva ao afastamento do saber e a uma queda considerável do exercício pulsional, nos sentidos prático e ético; consequentemente, a vida sofre diminuição. O terceiro equívoco: um saber dissociado do gozo ou um gozo dissociado do saber. A propósito do fim da análise, equivocam-se os que tomam o saber como uma coisa e a pulsão outra, sem que se coincidam. Perci designa a pulsão como saber do gozo que deve passar ao conhecimento. O avanço da análise deve ter modos de conceber e explorar o campo pulsional ou o campo do saber e o fim é a exigência de saber; é nisto que consiste a cura.

“A cura da psicanálise”, título do trabalho de Jorge Sesarino, traz a proposta de pensar a causa do sofrimento e deste ato encetar o efeito do significante no aparelho psíquico, ou seja, a emergência do sujeito, como o eixo fundamental de uma psicanálise: o saber inconsciente. Saber sobre a causa pensável, produzindo uma descontinuidade na existência do sujeito imerso nas exigências da vida cotidiana, que, passando a se ouvir naquilo que diz, modifica profundamente a personalidade deste a partir de sua atitude diante do desvelamento da verdade sobre a causa do que lhe faz sofrer. A psicanálise não busca curar os sintomas, mas saber o que eles têm a dizer. Nisto consiste a ética da psicanálise: dar lugar ao sujeito como autor de sua existência, conduzindo a demanda de amor ao seu lugar de enunciação, lugar de desejo correspondente à falta, movimento de queda do ideal.

No texto “Homenagem a Freud e a psicanálise hoje”, Gilberto Rudeck da Fonseca faz uma rápida retrospectiva da psicanálise: Freud inventa conceitos que dirigem o tratamento, concebe o inconsciente e, com ele, a possibilidade de interpretar o sentido do sintoma que aí se encontra. Em seguida, descobre as palavras e a fundamental importância de dizê-las. Concebe a transferência e se depara com um limite que se centrava no próprio sintoma: uma satisfação silenciosa que não provinha do prazer, que estava fora do sentido e que escapava à linguagem. Este aparente fracasso suscitou dissidências, como apostas nos medicamentos, na psicologia do eu e nas análises da contratransferência. Freud não recuou: escreveu vários novos conceitos e deu um salto subversivo, conduzindo o tratamento para o encontro do sujeito com o seu resto, com a “sua sombra”. Tirou o ser humano de um padrão preconcebido e lhe deu a condição de ser “seu próprio inventor”. Com isso cai a modernidade e a esperança na ciência, e a pós-modernidade é fundada por Freud. A psicanálise nos dirige a esse limite, à castração, ao traço de satisfação aprisionado ao gozo. Gilberto expõe três respostas que são posições e formas de trabalhar com a sombra, esclarecendo com um caso clínico.

Em “A cura na baliza da angústia”, Maria Angélica Carreras, para falar do fim, começa do início, que é quando ao sofrer demais por ignorar o motivo, o sujeito dá ao analista o lugar de suposto saber – o processo é movido pela transferência do sujeito e pelo desejo do analista. O analista, que não responde “à demanda amorosa de reconhecimento”, é aos poucos destituído desse lugar inicial, processo essencial para chegar ao fim. Afirma que a incógnita sobre o saber está ligada ao desejo Outro: que quer de mim? Para Lacan, o neurótico, ao tentar responder esta questão crucial, constrói o seu fantasma, não sem angústia. E a arte da direção da cura está no difícil manejo da angústia. Diferencia culpa (campo da impotência) e angústia (campo do impossível) e, ainda, faz uma breve sinopse da construção do conceito de angústia em Freud e Lacan, que a relaciona com a castração no Outro. Angústia é sinal da posição fantasmática entre o sujeito e o objeto. Comenta: “o que nos faz adoecer é a onipotência do Outro, o que nos salva é descobrir que o Outro é castrado”. O fim de análise é a travessia da angústia, é a descoberta de que o Outro não existe, de que suas dívidas imaginárias não procedem, de que ninguém é responsável pelos seus infortúnios. É o caminho da liberdade. Assim, segundo a autora, há um antes e um depois do fantasma.

“Todo aquele que é feliz tem razão: a questão da cura a partir do pensamento de Winnicott”, por Nadja Nara Barbosa Pinheiro, traz a reflexão segundo a qual é necessário considerar a questão da cura tanto em relação à teoria quanto em relação à prática, ao menos quando esta interrogação se desenrola no campo da psicanálise. Questão complexa, como salienta a autora, posto que ao psicanalista, advertido por sua ética, não é possível ofertar a felicidade plena àquele que o procura. Este posicionamento do psicanalista, segundo Nadja, contrasta com o momento histórico atual, que, oferecendo muitas promessas de satisfação plena, ilusões de felicidade e prazeres fugazes vendidos como propostas de dissolução do mal-estar, simplesmente negam que a falta em questão se trata de um elemento constituinte da estrutura do sujeito desejante e, como tal, inerente à vida anímica.

No texto que encerra a coletânea, “A cura em psicanálise”, Edna Maria Romano Wallbach dá a palavra à Boileau, que diz que a psicanálise é um método de cura pouco mensurável, mas incontestável. Aponta para o instinto de morte como o fator mais poderoso, não só da resistência, mas a causa suprema do conflito. Enfatiza a primeira infância, na qual todas as repressões se efetuam por um ego débil, e que posteriormente não surgem novas repressões, apenas persistem as mesmas. Afirma que a análise deve capacitar o ego, agora mais maduro, a revisar as antigas repressões, para não ceder facilmente à força instintual. Destaca também a dupla formada, analista e analisando, e os afetos que despertam um no outro, colocando como questão fundamental a análise pessoal do analista. Concluiu que Freud trabalhava mais com a teoria das pulsões, enquanto hoje se trabalha com a teoria das relações objetais, e encerra esclarecendo que a função da análise não é demonstrar os mecanismos neuróticos ou psicóticos, mas atentar que está lá “uma pessoa para nascer”. O caminho para a cura, proposto pela autora, se configura demasiadamente idealizado, ao privilegiar o ego em detrimento do inconsciente e/ou do real.

Nota

1 PEREZ, Daniel Omar (Org.). Filósofos e terapeutas em torno da questão da cura. São Paulo: Escuta, 2007.

Marcelo de Oliveira – Mestrando em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curitiba, PR – Brasil. E-mail: marcelodeoliveira75@gmail.com

Vera Lúcia da Silva Alves – Mestranda em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curitiba, PR – Brasil. E-mail: veraalves33@hotmail.com

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[DR]

Leis da Liberdade – KANGUSSU (AF)

KANGUSSU, Imaculada. Leis da Liberdade. São Paulo: Ed.Loyola. Resenha de: FIGUEIREDO, Virginia. Sobre Marcuse, 40 anos depois de 68. Artefilosofia, Ouro Preto, n.6, maio, 2009.

“A subjetividade dos indivíduos, a sua própria consciência e inconsciência, tendem a ser dissolvidas na consciência de classe. Assim é minimizado um importante pré-requisito da revolução, nomeadamente, o fato de que a necessidade de mudança radical se deve basear na subjetividade dos próprios indivíduos, na sua inteligência e nas suas paixões, nos seus impulsos e nos seus objetivos. A teoria marxista sucumbiu à própria reificação que expôs e com- bateu na sociedade como um todo.” Essa passagem que extraio do livro Leis da Liberdade é uma citação de outro livro, A Dimensão Estética, de Herbert Marcuse. Ela exprime, com alguma clareza, a atitude desse filósofo que podemos considerar como membro da Escola de Frankfurt, mas também como um crítico da ortodoxia marxista, talvez pela influência que Martin Heidegger, seu orienta- dor em Freiburg, deixou marcada em seu pensamento. Neste ano de 2008, lembrando a importante participação e liderança de Marcuse no movimento estudantil de 1968, principalmente na Universidade da Califórnia, em San Diego, onde o filósofo era, na época, professor, nada mais justo que comemoremos os 40 anos de Maio 68, com a publicação do livro de Imaculada Kangussu, que é resultado de uma tese sobre Marcuse, defendida com muito brilho na UFMG em 2001. A autora, que há tempos milita no difícil questionamento, hoje e sempre, das relações entre arte e política, quer chamar nossa atenção para o sentido de subversão política que a dimensão estética pode conter. Nas suas palavras, a dimensão estética aparece como uma “trincheira para a potência de negação”, na qual se exercitam as leis da liberdade, que são a marca distintiva da natureza humana. Também são de se ressaltar, no livro As Leis da Liberdade, a s incursões psicanalíticas, sobretudo em conceitos freudianos, como os de pulsão e princípio de prazer, a partir dos quais nos é revela- do o sentido material e natural da razão marcuseana, bem como o progressivo recalque a que a mesma foi e continua sendo submetida pela ordem perversa do sistema capitalista.

Renovando o espírito de contestação e rebeldia, com o qual toda arte digna desse nome está comprometida, o livro pretende alcançar a definição de uma “Nova sensibilidade” (é assim que um dos capítulos se intitula) descondicionada. Se, junto com Freud, Marcuse reconhece o valor metapsicológico das estruturas pulsionais, diferentemente dele, o filósofo atribuiu a elas certa plasticidade e, portanto, certa capacidade de efetuar mudanças da organização social. Tomando, talvez como pressuposto, certa constatação de fracasso do que estava implícito nas propostas das estéticas vanguardistas – o que poderia ser resumido na estratégia de dissolução da subjetividade, como se esta última fosse o foco privilegiado da ação individualizadora do capital – a proposta de retomada da obra marcusiana parece querer indicar a necessidade da constituição de uma “nova subjetividade” positiva (e não mais dissolvida e negativa, o que, talvez tenha, segundo esse diagnóstico, favorecido o avanço voraz da economia pródiga de recalques do capital) ou estética, forte o suficiente para o confronto e a resistência frente à ordenação do nosso status quo.”

Virginia Figueiredo-UFMG/CNPq.

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Estudos Feministas | UFSC | 1992

Estudos Feministas

A Revista Estudos Feministas, sediada no Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFH) e no Centro de Comunicação e Expressão (CCE) da Universidade Federal de Santa Catarina, é um periódico indexado e interdisciplinar, de circulação nacional e internacional, e tem o objetivo de divulgar a vasta produção de conhecimento no campo dos estudos feministas e de gênero, buscando dar subsídios aos debates teóricos nessa área, bem como instrumentos analíticos que possam contribuir às práticas dos movimentos de mulheres.

A Revista Estudos Feministas foi criada em 1992, tendo sido inicialmente editada pela Coordenação Interdisciplinar de Estudos Contemporâneos da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Num segundo momento, o Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e o Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro assumiram a responsabilidade pela edição da Revista. A partir de 1999, passou a ser sediada pelo Centro de Filosofia e Ciências Humanas e pelo Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente, está integrada ao Instituto de Estudos de Gênero, órgão que agrega pesquisadoras oriundas de distintas áreas de conhecimento e atuação da UFSC, tendo como denominadores comuns os estudos feministas e a perspectiva de gênero. [Foco e escopo em 2024]

A Revista Estudos Feministas (Florianópolis, 1992-) é uma revista trimestral indexada que circula nacional e internacionalmente, com o objetivo de divulgar textos cientificamente originais nos idiomas português, espanhol e inglês, na forma de artigos, ensaios e resenhas sobre gênero e feminismos que possam estar relacionados a um disciplina particular ou interdisciplinar em sua metodologia, teoria e literatura. Os artigos publicados contribuem para o estudo de questões de gênero e derivam de diferentes disciplinas: sociologia, antropologia, história, literatura, estudos culturais, ciência política, medicina, psicologia, teoria feminista, semiótica, demografia, comunicação, psicanálise, entre outras.

Trabalha em regime de rotação institucional desde 1992 e foi publicado pela primeira vez pela Coordenação Interdisciplinar de Estudos Contemporâneos da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Posteriormente, o Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e o Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro assumiram a responsabilidade pela edição da Revista. Desde 1999, o Centro de Filosofia e Ciências Humanas e o Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa Catarina abrigam a revista. Atualmente, é incorporado ao Instituto de Estudos de Gênero, órgão que reúne pesquisadores de diferentes disciplinas [áreas de conhecimento e atividade] da UFSC, que têm como denominadores comuns os estudos feministas e as perspectivas de gênero. [Foco e escopo em 2020]

Periodicidade quadrimestral

Acesso livre

ISSN 0104-026X (Impresso)

ISSN 1806-9584 (Online)

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