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Das aulas avulsas ao Lyceu Provincial: as primeiras configurações da instrução secundária na Província da Parahyba do Norte (1836-1884) – FERRONATO (RBHE)
FERRONATO, C. J. Das aulas avulsas ao Lyceu Provincial: as primeiras configurações da instrução secundária na Província da Parahyba do Norte (1836-1884). Aracaju, SE: Edise, 2014. Resenha de: MARIANO, Nayana Rodrigues Cordeiro. ‘GLORIOSO TEMPLO DE SABEDORIA’: O Lyceu Provincial e a Instrução Secundária na Parahyba do Norte. Revista Brasileira de História da Educação, Maringá, v. 17, n. 2 (45), p. 277-282, abr./jun. 2017.
O Lyceu Provincial e a instrução secundária na Parahyba do Norte. Esta é a temática central abordada pelo historiador Cristiano Ferronato no livro Das aulas avulsas ao Lyceu Provincial: as primeiras configurações da instrução secundária na Província da Parahyba do Norte (1836-1884), publicado em 2014, pela Universidade de Tiradentes e pela Editora Diário Oficial do Estado de Sergipe. A obra é fruto de sua tese de doutoramento realizada junto ao Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba, defendida em 2012. Atualmente, Ferronato atua como professor do curso de licenciatura em História e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Tiradentes – SE. Nos últimos anos, realiza pesquisas sobre instrução no Nordeste oitocentista.
O livro que chega ao grande público discute as configurações da instrução secundária na então Província da Parahyba do Norte desde a oferta de aulas avulsas, enfatizando esse processo histórico do ensino liceal. Em 1836, foi criado o Lyceu Provincial da Parahyba do Norte, instituição de ensino secundário longeva, um precioso artefato da memória educacional paraibana que carrega consigo uma força de preservação, de interação e de germinação, representado pela elite provincial, ao longo do século XIX, como um ‘glorioso templo de sabedoria’1. A instituição carecia de um trabalho de fôlego, e Cristiano Ferronato nos brindou com este estudo que abrange 48 anos, visto que delineou seu recorte entre os anos de 1836, com a criação do Lyceu, e 1884, quando este foi transformado em Escola Normal. Nesse processo, além do ensino liceal, o autor discute as aulas avulsas públicas e particulares na Província. O livro é composto de cinco capítulos e nele, a partir das primeiras páginas, sentimo-nos convidados a bater à porta e entrar nesse universo instrucional, morada de tantas histórias.
‘Um tempo, um espaço e um objeto’. Neste capítulo inicial, o autor enfoca as questões teórico-metodológicas e, com base nelas, aponta a trajetória percorrida para a realização da pesquisa. Fiel à sua formação,estabelece um diálogo rico com o núcleo documental, composto por leis, regulamentos, decretos, correspondências, dados estatísticos, listas de alunos, programas de ensino, jornais, manuscritos, dentre outros, com destaque para os relatórios e falas dos presidentes de Província direcionados à Assembleia Legislativa. Respaldado pelos aportes teóricos e metodológicos de uma abordagem cultural, explora de forma fecunda o fenômeno da escolarização secundária, com o auxílio de formulações elaboradas por Bourdieu, como as noções de ‘configuração, representação’ e ‘poder simbólico’. Realiza também um maduro investimento no mapeamento dos estudos liceais no Brasil e em Portugal e na interlocução com a historiografia.Em consonância com a abordagem de Dolhnikoff, alavanca as elites locais à condição de elites políticas, partícipes de um ‘arranjo institucional’, que considera resultado das negociações entre as elites de diversas regiões da nova nação. Tal arranjo foi concretizado nas reformas liberais da década de 1830 e não foi modificado com a revisão conservadora dos anos de 1840, que não anulou a autonomia provincial. Ao tornar visível essa dimensão política, Ferronato traz à tona a complexidade das relações entre centro e regiões, no processo de construção do Estado nacional e nas experiências de escolarização secundária estudadas.
As primeiras configurações do ensino secundário, com suas aulas avulsas públicas e particulares e com a criação do Lyceu Provincial, são discutidas a partir do segundo capítulo. Problematizando esse processo,o autor aponta algumas análises importantes acerca do ensino superior no Brasil, mencionando a fundação dos primeiros cursos, a exemplo de Direito em São Paulo e Recife em 1827. Destaca também a influência da educação coimbrã na formação jurídica homogênea da geração inicial de administradores da nação recém-independente. Com a criação dos primeiros cursos no Brasil, ficava a cargo dessas instituições a formação da elite que ocuparia cargos na burocracia imperial. Nesse contexto, a constituição de instituições de ensino secundário era importante, pois auxiliaria na formação da elite local para atuar no aparato burocrático provincial.
Inicialmente, as aulas avulsas compunham o ensino secundário e eram denominadas pelo conteúdo a ser ministrado, ou seja, aulas de latim, de retórica. De acordo com Ferronato, com a criação do ensino liceal, houve uma organização, reunião ou complementação das aulas isoladas. Na província em questão, as referidas aulas funcionavam nas principais vilas e cidades, a exemplo das vilas de Sousa e Pombal, nas casas dos próprios professores. Os relatórios de presidentes da Província ou diretores da instrução pública contêm dados mais abundantes sobre o número de alunos matriculados e sobre os gastos para o seu funcionamento, não explicitando o cotidiano de funcionamento das mesmas.
Para Ferronato, a institucionalização do Lyceu Provincial influenciou a criação, em 1849, da Diretoria da Instrução Pública, uma vez que transformações se efetivaram com sua instalação, o funcionamento das aulas, sua localização, a utilização de relatórios etc. No entanto, essa nova forma de organização escolar coexistiu com a anterior até 1877, ano de extinção das aulas avulsas. Nessa convivência, o ensino liceal representaria o poder da capital, a Cidade da Parahyba, e a modernização do ensino secundário; já a outra modalidade de ensino, seria encabeçada pelo poder local, vista como uma organização tradicional. As aulas particulares, afirma o autor, funcionaram reservadamente na Província. É interessante destacar a relevância de trabalhar com as aulas avulsas públicas e particulares, especialmente por serem restritos os estudos sobre essa forma educativa.Vale ressaltar a riqueza dos organogramas e quadros sobre a Diretoria da Instrução Pública;sobre as aulas avulsas de latim em vilas e cidades da Província;sobre os alunos matriculados;os mapas de despesas com a instrução secundária;os salários dos professores, entre outros,estruturados ao longo do capítulo.
No livro, duas temporalidades ganham contorno com base na visão do autor. A primeira abrange a criação do Lyceu ocorrida em 1836, sua estruturação e sua consolidação, destacando-se os estatutos, elaborados em 1837 e 1846, e a tentativa de sua equiparação com o Colégio Pedro II. Essa fase estende-se até o ano de 1873, quando foi publicado o Decreto nº 5429, a partir do qual um processo de centralização do ensino marcaria o declínio e fim das aulas avulsas públicas no interior da Província. De 1873 a 1884, uma segunda fase se estruturaria, com um significativo aumento do número de alunos matriculados e com o fim de exames gerais de preparatórios nas províncias, em 1877. Um ciclo se findaria com a sua transformação em Escola Normal. Com a restauração da instituição, em 1885, passou a se denominar Lyceu Paraibano.
A ascensão do ensino liceal no Brasil é o foco do terceiro capítulo, no qual o autor examina diversos traços desse ensino no Império, mostrando que ele seria integrante de um projeto civilizatório mais amplo. Fazendo jus à memória da instituição em discussão,ele recua ao ano de 1831, com a criação do Curso de Humanidades, uma espécie de embrião da estruturação do ensino secundário. Um destaque é dado ao Ato Adicional de 1834, quando foi colocada nas mãos do governo provincial uma série de atribuições tributárias, coercitivas e legislativas, o que proporcionou a descentralização na gestão da instrução e impulsionou na Província o desenvolvimento do ensino liceal. O autor aborda também as discussões sobre os exames preparatórios no Brasil e na Parahyba do Norte como mecanismo de acesso ao ensino superior e, no tocante aos objetivos formativos dos liceus, um debate entre ensino técnico e estudos humanísticos.
Uma parcela da historiografia amalgamou uma representação sobre o Imperial Colégio Pedro II, criado em 1837, apresentando-o como uma instituição modelo para o ensino secundário no Brasil. Estruturando sua problematização, a partir do Lyceu Provincial da Parahyba do Norte, Cristiano Ferronato apresenta outra leitura dessa imagem. Ele identifica, com os programas de ensino, que a instituição não seguiu integralmente o modelo proposto pela Corte.
Nos capítulos finais entra em cena o ‘glorioso templo de sabedoria’, criado para formar a elite dirigente da Província. Inserida no movimento da Cidade da Parahyba e instalada no conjunto arquitetônico jesuítico, a instituição enfrentou inicialmente problemas decorrentes da falta de recursos financeiros, estiagens prolongadas, epidemias, poucos matriculados e ausência de prédio próprio. Apesar dos entraves iniciais, o Lyceu conseguiu se solidificar e tornou-se símbolo da instrução secundária. Com base em um levantamento dos livros que compunham a biblioteca da instituição, o autor confirma a perspectiva propedêutica, já que o acervo era composto por obras de filosofia, retórica, latim, entre outras. Com os agentes envolvidos nessa ação educativa, alunos, professores, autoridades e funcionários em geral, Cristiano Ferronato vai finalizando seu estudo. Descortina um espaço disciplinador, a íntima relação com o ensino das aulas avulsas e, dialogando com os estatutos do Lyceu, apresenta-nos as principais normatizações e atribuições propostas para o funcionamento cotidiano da instituição, com regulamentações sobre matrícula, exames, férias, premiações, deveres dos funcionários, dentre outras questões.
Felizardo Toscano de Brito, Manoel Pedro Cardoso Vieira, Diogo Velho Cavalcante de Albuquerque, Manrique Victor de Lima, Fr. Fructuosoda Soledade Sigismundo, Antonio da Cruz Cordeiro, Pe. José Ignácio de Brito Machado, Silvino Elvídio Carneiro da Cunha, foram alguns dos professores que fizeram história na instituição e a partir dela. Um corpo docente composto por religiosos, advogados, médicos, literatos e por homens ligados à imprensa figura entre tantos outros nomes arrolados pelo autor. São eles os responsáveis pela instrução de parte da mocidade paraibana, isto é, os filhos da elite econômica e política da Província e também alguns membros de grupos intermediários, como chama a atenção Ferronato, os quais ocupavam cargos como presidentes de Província, deputados, diretores da instrução pública, professores do Lyceu, médicos da Santa Casa de Misericórdia e outras funções, como visto nos itinerários traçados no livro. Aí temos exemplificado o papel que lhes foi conferido ao adentrar essa casa liceal.
Estes são alguns aspectos que, analisados ao longo do livro, consolidam a abordagem inovadora apresentada. O autor abandona análises generalistas sobre a instrução no Brasil do Oitocentos, apresentada sob o signo da falta, e traz para o palco o processo educativo como uma prática social e histórica.A História da Educação, que tem passado por um prodigioso desenvolvimento, ganha, com a escritade Cristiano Ferronato, mais um trabalho que contribui de maneira criativa e fecunda para a reflexão sobre as configurações da instrução secundária na Parahyba oitocentista. Apresentando-nos um cenário rico, complexo, inovador, o autor aponta caminhos que estão descortinando esse universo instrucional. As diversas qualidades do livro, aliadas a uma escrita atraente e instigante que suspende percepções simplificadas em favor de uma compreensão que atrela a escolarização secundária a um jogo social mais amplo, indicam-nos uma obra indispensável para os leitores interessados na história das instituições educativas no Brasil.
Nayana Rodrigues Cordeiro Mariano – Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, Brasil.
Educação pela higiene: a invenção de um modelo hígido de educação escolar primária na Parahyba do Norte (1849-1886) – MARIANO (S-RH)
MARIANO, Nayana Rodrigues Cordeiro. Educação pela higiene: a invenção de um modelo hígido de educação escolar primária na Parahyba do Norte (1849-1886). João Pessoa: Ideia, 2015, 305 p. Resenha de: XAVIER, Wilson José Félix. Por gerações sãs e fortes: nos rastros de um modelo hígido de educação escolar primária na Parahyba do Norte. sÆculum – REVISTA DE HISTÓRIA, João Pessoa, [33] jul./dez. 2015.
Como preâmbulo a esta resenha, apresentamos um livro de leitura prazerosa, resultado da tese de doutoramento da autora, defendida em fevereiro de 2015, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba. O texto, que mantém a estrutura original da tese, é enriquecedor pelas informações reunidas na interpretação da autora, bem como por sua amarração com as perspectivas de outros autores, neste caso, sobretudo, Michel Foucault e o professor José Gonçalves Gondra. A obra, organizada em quatro capítulos, trata basicamente da análise instigante (e até certo ponto corajosa) da construção de um modelo hígido de educação escolar durante o século XIX na Parahyba do Norte, a partir das prescrições higiênicas do e no espaço escolar.
Sendo assim, no primeiro capítulo, “Breve História de uma Pesquisa”, são apresentadas as escolhas teórico-metodológicas que viabilizaram a realização da pesquisa, tomando-se como fio condutor da narrativa a vida do professor primário e político Graciliano Fontino Lordão (1844-1906) e as epidemias do cólera-morbo na Parahyba do Norte (momentos em que o discurso médico aparecia com mais evidência). Neste capítulo, a autora relata como partiu da análise, principalmente, de regulamentos gerais da instrução pública parahybana do período imperial – os de 1849, 1860, 1884 e 18862 –, mas também de relatórios de Presidentes de Província, Códigos de Postura, revistas, jornais, manuais, compêndios e livros de leitura escolar; para desvelar as profundas relações entre medicina e educação, e dessa forma, tecer uma convincente trama histórica que leva o leitor ou a leitora a perceber como os preceitos de ordem médica foram adentrando o universo escolar para a invenção do referido modelo – invenção essa apresentada não como algo ficcional, mas no sentido de designar uma fabricação, uma construção de concepção de educação escolar. Assim, o sentido de tal pretensão, i.e., de tal construção, ganha contornos teóricos mais precisos a partir da categoria “biopolítica”, pensada por Foucault como procedimento institucional de administração da coletividade3.
Sob esse aparato teórico, a autora aponta como no Oitocentos, a medicina se posicionou como detentora de conhecimentos vitais, que, por meio de uma elite dirigente, se infiltra no incipiente mundo escolar das “casas de escola”, local de funcionamento da maioria das cadeiras isoladas.
No segundo capítulo, “Saberes da Medicina; Higienismo e Educação Escolar”, a autora detém-se nos aspectos relativos à arte de curar e às relações entre higienismo e educação. Dentre várias das reflexões feitas pela autora, talvez o grande leitmotiv que perpassa todos os subitens é o insight foucaultiano que leva o “olhar” da autora para o horizonte do que é “menor, marginal, periférico”4, conduzindo-a a questões relacionadas com a medicina, o corpo, e a sexualidade, permitindo que a categoria “biopolítica” jogue luz sobre certos aspectos do saber médico como parte constitutiva do processo de escolarização da Parahyba do Norte. É nesse sentido que a autora transita por caminhos ainda pouco trilhados no que tange a questão da escolarização, tais como os saberes e práticas sociais das parteiras, barbeiros, benzedeiras e boticários, bem como a atuação de médicos de formação acadêmica ou práticos (sem formação acadêmica) na Parahyba do Norte na segunda metade do século XIX. Não menos importante são as incursões da autora, analisando as habitações do século XIX e as Posturas Municipais, destacando a influência do ideário higienista na reorganização dos espaços urbanos.
Segundo a autora, tanto a disseminação da instrução pública quanto o avanço dos saberes médico-higienistas na ordenação do cotidiano fazem parte de um projeto maior de construção do Estado moderno brasileiro – formar as novas gerações passou a ser a tarefa fundamental no amplo projeto de construção e consolidação da nação. Os conhecimentos advindos da educação e da medicina propiciariam condições de governabilidade, e, para a autora, acompanhando Gondra, a Higiene foi a área da medicina que mais ajudou na organização da educação escolar. É, portanto, no final deste segundo capítulo que a autora defende o pioneirismo do Regulamento Geral de Instrução Pública de 1849, a partir do qual se começa a pensar e a debater na Parahyba do Norte, um modelo hígido de educação escolar, ou seja, esse documento foi precursor nas prescrições de natureza médica, abrindo caminhos para a invenção de uma educação escolar higiênica e higienizadora.
Dando continuidade à tentativa de mostrar como se deu a constituição dos dispositivos regulamentadores e disciplinares que foram criados para ordenar o mundo urbano e a educação de sua população, no capítulo três, “A Construção do Modelo Hígido de Educação Escolar na Parahyba do Norte”, a autora destaca como as escolas começam a ser pensadas como um lugar limpo e sadio. A partir da norma médica, tentava-se produzir um espaço interno escolar calmo, confortável, iluminado e mobiliado, enfim, higiênico, que cada vez mais se distanciava do “desordenado”, “conturbado” e “promíscuo” ambiente doméstico. Nesse sentido, sob a influência do higienismo, educadores, engenheiros, médicos e políticos defendiam a separação entre as residências dos professores e as “casas de escolas”, ganhando força entre certos grupos sociais, a ideia da necessidade de espaços próprios para o funcionamento das escolas. Sua análise é significativa, pois compreende desde a abordagem minuciosa dos Regulamentos Gerais de Instrução dos anos de 1849, 1860 e 1886, passando pelas reproduções imagéticas da educação ocorrida em ambientes domésticos (como foi muito comum nas escolas isoladas no Brasil imperial), e pelas imagens de mobílias escolares consideradas higiênicas. Eis mais um dos tantos méritos do livro: saber utilizar as imagens visuais para a investigação histórica e suas possibilidades de uso para a compreensão da construção de uma sociedade de normalização e, consequentemente, da elaboração de um espaço escolar diferente de outros espaços sociais como a igreja e a família.
Destaque também neste capítulo, para a boa discussão acerca da ordenação do espaço público e privado na província da Parahyba do Norte e das “casas de escola”. Não menos interessante são as incursões pelos preceitos higiênicos contidos no compêndio Livro do Povo (1865)5 e nos motivos que levaram à ausência da Parahyba do Norte na Exposição Internacional de Higiene e Educação em Londres, ocorrida em 1884. Todas essas circunstâncias são habilmente utilizadas para fortalecer o argumento central do livro.
No quarto e último capítulo, intitulado “O Gerenciamento da Vida pela Medicina:
O Colégio de Educandos Artífices”, a autora trata de vários aspectos desse tipo de instituição profissionalizante que, mesmo tendo vida efêmera, no caso da Parahyba do Norte – acolhendo, educando e instruindo crianças das chamadas “classes perigosas” entre os anos de 1865 a 18746 –, aponta em seu regulamento prescrições originárias do saber médico. Essas normatizações, que estavam de acordo com o Regulamento Geral da Instrução de 1849, indicavam a constante preocupação com as doenças e práticas sexuais dos educandos artífices, trazendo à tona a busca por um ambiente espaçoso, arejado e limpo, com alunos asseados e bem vestidos. Ao que parece, para a autora a normatização médica presente no Colégio de Educandos Artífices da Parahyba do Norte é a representação mais cabal na província, do modelo hígido que se inaugura com o Regimento Geral da Instrução de 1849 com o intuito de promover o progresso da província diante das transformações sociais, culturais e políticas da segunda metade do século XIX.
A tônica da composição do livro, que merece destaque, é o constante esforço em dialogar com o que se produzia naquele momento na Corte e em outras províncias, sem perder de vista a pertinente perspectiva de que o projeto higienista parahybano oitocentista guardou as suas peculiaridades diante de outros projetos desenvolvidos em outras províncias brasileiras no século XIX. Um bom exemplo do que se diz é a eficiente articulação tecida entre o Regulamento Geral da Instrução de 1860 com o Decreto n. 1.331-A de 1854, conhecido como Reforma Couto Ferraz, que aprovava uma reformulação para o ensino primário e secundário dirigido ao Município da Corte.
De forma igualmente perspicaz, ao tratar do “corpo educado”, a autora ressalta, amparada nos estudos de José Gondra, algumas das principais representações ou concepções de Educação Física, lembrando as marcas próprias das ações médicas: disciplinar, higienizar, medicalizar, fortalecer, biologizar e regenerar.
Quanto a medicina do Oitocentos, há um alerta para o fato do corpo não ser visto de forma isolada, sendo acompanhado das dimensões moral e intelectual.
Cabe lembrar que, muitas das questões levantadas pela autora acerca da Educação Física reaparecerão entre os intelectuais da chamada “Geração de 1870”, que se empenharam numa construção teórica, política e ideológica pautada no ideário de modernização do país7.
As questões da vacinação, do não padecimento de moléstias contagiosas por parte de alunos, da escolha do ambiente limpo asseado e de casas apropriadas e bem colocadas para a instrução, ressurgem frequentemente nos Regulamentos citados anteriormente. Nesse processo, indica a autora, todas as reformas abordadas objetivavam garantir o gerenciamento da população, dentro de um projeto que buscava produzir sujeitos docilizados, úteis, instruídos, hígidos, dentro de um programa civilizador, “já que a instrução era vista como instrumento propagador de transformações e progresso”8.
Entretanto, a questão mais polêmica do livro é justamente o seu argumento central: a propositura da constituição de um modelo hígido na Parahyba do Norte ainda no século XIX. Se a obra tem o mérito de desconstruir o “mito” de que na província nada foi feito ou aconteceu em torno das discussões e práticas higienistas nesse período, há sempre os riscos assumidos em se apontar a formação de um modelo. Esse tipo de representação advindo da Matemática – o modelo – é sempre problemático quando apropriado pelos campos da História e da História da Educação, principalmente, quando proposto a partir da limitada documentação disponível sobre o Oitocentos na Parahyba do Norte. Não obstante, a autora defende bem o seu ponto de vista com uma boa delimitação de seu objeto, um adequado tratamento das fontes e a rigorosidade (sem rigidez) metodológica característica que perpassa todo o trabalho, que a leva a construir um modelo “local” que, dialogando com um processo mais abrangente de formação da nação consegue ganhar força de sustentação. O modelo mais restrito, referente à Província da Parahyba do Norte, se perde em alcance para a compreensão/ explicação de outras realidades, ganha em poder heurístico com relação à história educacional paraibana. Pode-se dizer que esta estratégia metodológica de perdas e ganhos calculados é bastante acertada para o estudo em questão. Mas, certamente, não é este um assunto esgotado.
Trata-se, portanto, de uma obra que deve ser lida, apreendida e, sobretudo, discutida por todos os pesquisadores, notadamente por aqueles que estão vinculados às pesquisas em História da Educação, e/ ou aos que se dedicam aos estudos históricos das doenças e da medicina na Paraíba. Em conclusão, é uma obra imprescindível à comunidade acadêmica pela abrangência, profundidade e ousadia com que são tratadas as questões, e que contribui, sobremaneira, para o debate sobre os sentidos do projeto modernizador de edificação de uma escola considerada moderna, num momento em que a Higiene ganhava espaço no universo escolar, entrelaçando instrução, educação e saber médico.
Notas
2 Segundo a própria autora, a Província da Parahyba do Norte possui sete Regulamentos Gerais da Instrução, datados de 1849, 1852, 1860, 1879, 1881, 1884 e 1886. Contudo, os regulamentos de 1852, 1879 e 1881 não foram encontrados por pesquisadores em nenhum acervo documental até o momento.
3 MARIANO, Nayana Rodrigues Cordeiro. Educação pela Higiene: a invenção de um modelo hígido de educação escolar primária na Parahyba do Norte (1849-1886). João Pessoa: Ideia, 2015, p. 52- 53.
4 MARIANO, Educação pela Higiene..., p. 55.
5 Compêndio de autoria do bacharel em Direito maranhense Antonio Marques Rodrigues, publicado pela primeira vez em 1865 e adotado nas escolas primárias da Parahyba do Norte.
6 A instituição foi criada em 1859, porém, somente em 1865 é que começou a ser organizada. A razão de tal demora deve-se à ausência de recursos do governo provincial.
7 Um dos intelectuais mais importantes dessa “Geração”, José Veríssimo, dedica o capítulo IV da obra “A Educação Nacional” (publicada pela primeira vez em 1890, e republicada no Rio de Janeiro em 1906), à importância da Educação Física como proposta para a regeneração física, moral e intelectual do povo.
8 MARIANO, Educação pela Higiene..., p. 261.
Wilson José Félix Xavier – Doutor em Educação pela Universidade Federal da Paraíba e Professor Adjunto do Centro de Ciências Agrárias da mesma instituição, Campus de Areia. E-Mail: <wilsonxavierufpb@gmail.com>.
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