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Protagonismos indígenas: diálogos entre História & Ciências Sociais em diferentes tempos e espaços contemporâneos / Revista Brasileira de História & Ciências Sociais / 2018
Em continuidade à primeira parte deste dossiê, abordamos neste número da Revista Brasileira de História & Ciências Sociais – RBHCS um abrangente leque de trabalhos – seja do ponto de vista da periodicidade seja do ponto de vista das regiões sobre os quais se voltam – que conferem visibilidade aos processos que envolvem os indígenas enquanto protagonistas na história do Brasil e de outras regiões da América Latina.
Ao concluir este volume, percebemos como a área de conhecimento relativa aos indígenas na história permanece apresentando lacunas que os estudos já realizados permitem vislumbrar. Neste sentido, abordagens nos campos da demografia social e do meio ambiente na história indígena constituem propostas relativamente inovadoras aqui desenvolvidas.
Conhecer os povos indígenas na história traz ainda o desafio e a perplexidade de compreender que muitos dos aspectos do “passado” neles representado parece, de fato, ainda não ter “passado”, já que muitas de suas formas podem ser percebidas ainda nas trágicas situações contemporâneas que presenciamos hoje, após 30 anos de celebrada a Constituição Cidadã.
Dos nove artigos deste dossiê, a maior parte se volta para o exame de contextos referentes ao Século XIX – cinco deles no Brasil e um na Argentina. Dois dos outros artigos referem-se a contextos estudados ao longo do Século XX e um, último, contemporâneo.
O século XIX foi bastante variado em relação aos regimes políticos nacionais no Brasil, pois inicia como colônia (1500-1822), atravessa mais de seis décadas como Império independente (1822-1889) e termina como República. Entre as legislações que afetaram diretamente os povos indígenas e seus territórios ao longo daquele século no Brasil, especialmente considerando o Segundo Reinado (1845-1889), destacam-se o Regulamento das Missões, de 1845, e a Lei de Terras, de 1850. Neste período além do tráfico negreiro, foi também abolida a escravidão (1888), cujos significados se estendem aos indígenas, muitas das vezes considerados pelas elites como mão-de-obra disponível para substituir a força de trabalho africana.
Seguindo uma ordem cronológica, o presente número do Dossiê inicia com o artigo a quatro mãos das historiadoras Ana Carollina Gutierrez Pompeu e Alessandra González Seixlack, intitulada “Juan Calfulcurá e os crioulos. Protagonismo indígena no Pampa argentino na primeira metade do século XIX”. O artigo aborda a ocupação das áreas indígenas do Pampa pelo Estado argentino, marcada por conflitos e pela negociação. Conhecida como “Negócio Pacífico de Índios”, essa forma de negociação entre indígenas e exército argentino caracterizou-se pelo uso de diplomacia interétnica que fortaleceu personagens como Juan Calfulcurá, durando até a década de 1870, quando o Estado argentino passou a incorporar os territórios antes negociado com os indígenas do Pampa.
O segundo artigo, do historiador André de Almeida Rego analisa a trajetória do índio João Baitinga, que viveu na aldeia de Pedra Branca e no Ribeirão (atuais municípios de Santa Terezinha e Amargosa, na Bahia), no Período Imperial. O artigo intitulado “João Baitinga: análise sobre protagonismo histórico, a partir da trajetória de um índio (Bahia, 1804-1857)”, examina, por meio de sua trajetória biográfica as perdas de direitos experimentadas pelos indígenas ao longo dos processos de formação do Estado brasileiro.
A historiadora Soraia Sales Dornelles apresenta em seu artigo questões resultantes de sua análise sobre a construção de dados estatísticos sobre as populações indígenas na segunda metade do século XIX, com base a província de São Paulo. A autora encara o desafio de interpretar a estratégia da descaracterização identitária sofrida pela população indígena na produção dos dados demográficos presentes ou ausentes nos Relatórios oficiais, que, deste modo, invisibilidade e oficializavam o desaparecimento dos indígenas e de seus descendentes. Seu artigo “A produção da invisibilidade indígena: sobre construção de dados demográficos, apropriação de terras e o apagamento de identidades indígenas na segunda metade do XIX a partir da experiência paulista” dialoga perfeitamente com o de autoria da também historiadora Ana Paula da Silva, que aborda as tessituras do processo de invisibilização da população indígena do Rio de Janeiro oitocentista, por meio da análise dos recenseamentos realizados na Província fluminense. A autora de “Demografia e Povos Indígenas no Rio de Janeiro Oitocentista” coteja ainda as informações censitárias aos relatórios dos presidentes da província e às correspondências oficiais de juízes de órfãos de modo, revelando o discurso oficial do „desaparecimento‟ indígena na prática das autoridades e de políticos interessados nos patrimônios indígenas.
O artigo a seguir, de autoria da antropóloga Izabel Missagia de Mattos aborda, por meio de um exercício histórico-etnográfico espacialmente situado, o ambiente e suas transformações ao longo da história da ocupação de uma região de fronteira nos altos dos rios Doce, Mucuri, Jequitinhonha e São Mateus, acompanhando os indígenas em suas relações com os adventícios, naquele contexto de transição para a República e de formação da nacionalidade brasileira. A categoria teórico-metodológica assume um caráter de centralidade no artigo intitulado “Povos dos Altos Rios Doce, Jequitinhonha, Mucuri e São Mateus (Minas Gerais): paisagens de “perigos” e “pobreza”, transformações e processos identitários”.
No artigo a seguir, o historiador Giovani José da Silva busca reconstituir as memórias de anciãos do povo Kadiwéu a partir das narrativas recolhidas por antropólogos ao longo do século XX e XXI. Em “Protagonismos Indígenas em Mato Grosso (Do Sul): Memórias, Narrativas e Ritual Kadiwéu Sobre a Guerra (Sem Fim) Do Paraguai”, o autor demonstra como, para os indígenas daquele povo, a Guerra do Paraguai jamais seria encerrada. Com efeito, por meio de rituais e outras técnicas mnemônicas, por sucessivas gerações e a despeito de transformações vividas, a memória social Kadiwéu continua a produzir e a reproduzir aquele evento histórico, pleno de significados identitários.
Adentrando o século XX, Cleube Alves Silva, em seu artigo “E os índios corriam por aí – Das lutas pela terra e de um povo indígena no norte de Goiás (1900- 1971)” descreve e discute a dinâmica de ocupação espacial dos Xerente desde os primeiros contatos com os colonizadores até o final do século XX. Procuramos ver a partir de quais contextos o povo Xerente foi se reconfigurando socioculturalmente para manter-se como grupo étnico portador de uma cultura e destinatário de um território.
Por meio de uma parceria interdisciplinar, o jurista João Mitia Antunha Barbosa e o historiador Marcelo Gonzalez Brasil Fagundes procederam, no artigo “Uma revoada de pássaros: o protagonismo indígena no processo Constituinte”, uma revisão bibliográfica sobre os movimentos indígena e indigenista brasileiros na década de 1970, visando a compreender o jogo de forças políticas atuantes no campo do indigenismo ao longo do processo que culminou com a Assembleia Nacional Constituinte e o texto da Constituição Federal de 1988.
E, encerrando o dossiê, o educador e historiador Roberto Kennedy Gomes Franco enfoca em seu artigo “A Experiência Histórico-Educativa entre Docentes Indígenas no Ceará / Brasil (1988-2018)” as reivindicações dos professores e professoras das escolas indígenas do Estado do Ceará, no Nordeste brasileiro. Tais reivindicações de uma escola “com os índios”, em contraste com uma escola “para os índios” encontram-se, por sua vez, relacionadas aos contextos contemporâneos de ameaça de genocídios e etnocídios que exigem uma educação escolar indígena posicionada na defesa dos direitos indígenas por território, trabalho, educação, saúde, entre outros meios mínimos necessários à produção da vida e da cultura.
Os artigos reunidos nos dois volumes do dossiê evidenciam – não apenas quantitativa, mas, sobretudo, qualitativamente – o crescimento da História Indígena no Brasil nos últimos 25 anos. Se em 1995 o saudoso John Manuel Monteiro escrevia a respeito dos desafios da pesquisa sobre a temática no país, alertando para as dificuldades de se encontrar fontes históricas e, ao encontrá-las, de se realizar uma leitura antropológica das mesmas, os percalços no tempo presente são outros. Em um momento histórico em que há a negação, oriunda de determinados setores conservadores e reacionários da sociedade brasileira, de direitos conquistados pelas populações indígenas localizadas em todos os recantos do país e consagrados pela Constituição Federal de 1988, nada mais urgente e necessário é a publicação de estudos que revelem o passado e o presente indígenas nas Américas. Afinal, não se pode falar em História do Brasil e / ou História da América sem se referirar presenças indígenas como protagonistas dessas trajetórias espaço-temporais. Trajetórias dolorosamente entrelaçadas e que não podem ser compreendidas encerradas em si mesmas…
Boas leituras!
Giovani José da Silva – Professor Doutor (UNIFAP)
Izabel Missagia de Mattos – Professora Doutora (UFRRJ)
Organizadores
SILVA, Giovani José da; MATTOS, Izabel Missagia de. Apresentação. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Rio Grande, v.10, n. 20, jul. / dez., 2018. Acessar publicação original [DR]
Protagonismos indígenas: diálogos entre História & Ciências Sociais em diferentes tempos e espaços coloniais / Revista Brasileira de História & Ciências Sociais / 2018
Na organização da coletânea História dos Índios no Brasil (1992), a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha atentava para o problema das fontes sobre o passado dos povos indígenas. Por meio de esforços de diversos pesquisadores, desde então, tem havido muitos avanços nesse sentido. O saudoso John Manuel Monteiro, um dos precursores mais atuantes nocampo da história indígena e do indigenismo no Brasil, contribuiu sistematicamente na organização de informações sobre as fontes em arquivos públicos nas capitaispaís, tendo coordenado a elaboração de um Guia de fontes para a história indígena e do indigenismo (1994). Mais recentemente, vale lembrar os esforços realizados na organização dolivro-catálogo resultante do projeto Catálogo Geral dos Manuscritos Avulsos e em Códices Referentes à História Indígena e Escravidão Negra no Brasil (RICARTE, 2017), que se somaàprodução de catálogo de fontes específico para o Estado do Rio de Janeiro (FREIRE, 1995 / 96).
Algumas facetas importantes do impacto da história sobre os povos indígenas podem ser observadas, por exemplo, em estudos a respeito de etnogênesese de processos de territorialização, que configuram a agência de homens e mulheres indígenas em relações sociaisgeradas no interior desituações coloniais.
Reunimosnesta primeira parte do dossiê sobre protagonismos ameríndios em diferentes tempos e espaços, trabalhos que abrangem questões referentes às inúmeras lacunas até hoje existentes sobre a indelével presença destes processosna história das Américas, no passado colonial, em fecundos diálogos entre História e Ciências Sociais (Sociologia, Antropologia e Ciência Política).
Com imensa satisfaçãoapresentamos esta primeira parte do dossiê Protagonismos ameríndiosem diferentes tempos e espaços, composto por oito artigos que revelam diálogos transdisciplinares entre História e Antropologia a partir de pesquisas cujos marcos espaço-temporais se conformam ao período colonial nas Américas (séculos XVI ao início do XIX). O primeiro artigo, de autoria de Chantal Cramaussel Vallet e Celso Carrillo Valdez, trata dos indígenas do Bolsón de Mapimí, que eram caçadores e coletores e compreendiam múltiplas parcialidades que receberam dos espanhóis distintos nomes. Por meio da biografia deSantiago Alonso os autores mostramcomoas lideranças entre aqueles povosforamduradourase contavam com uma ampla rede de alianças que lhes permitiam reunir forças bélicas consideráveis e escapar com facilidadepara fora do domínio espanhol.
Em “„A persuasão (que?) fazem os índios a este Governo‟: os Kiriri e os conflitos no „sertão de dentro‟ da América portuguesa (1677-1679)”, Ane Mecenas aponta que na segunda metade do século XVII, após a Restauração Portuguesa, intensificou-se o povoamento do sertão da América portuguesa. O processo visava à constituição de aldeamentos e à formação de alianças, com o intuito de garantir segurança no acesso comercial às rotas dos criadores de gado que seguiam da Bahia ao Piauí, bem como a constituição de um grupo de índios Kiriri que coibisse a formação de quilombos nas impenetráveis rotas do sertão. Ordens religiosas foram incumbidas da tarefa de organizar as aldeias, “disciplinar as almas” e fornecer mão de obra nas entradas para o sertão.
O terceiro artigo, intitulado “A evangelização calvinista dos indígenas no Brasil holandês: o poder cristalizador da leitura”, de Maria Aparecida de Araújo Barreto Ribas, aborda a evangelização calvinista dos indígenas pelos neerlandeses no Brasil holandês (1630-1654) e a especificidade de tal projeto que teve como característica fundamental a alfabetização dos nativos.
Rafael Ale Rocha, em “Os Aruã: políticas indígenas e políticas indigenistas na Amazônia portuguesa (século XVII)”, analisa a política adotada por grupos indígenas Aruã durante o século XVII. Tratava-se de uma “nação” que habitava a Ilha de Joanes (Marajó), o Cabo Norte (Amapá) e arredores e interagia com os mais diversos indivíduos e / ou grupos – portugueses, ingleses, holandeses, franceses, negros, mestiços, outros indígenas. O autor prioriza as respostas dos Aruã às políticas indigenistas adotadas pela Coroa portuguesa naquele rincão da Amazônia.
Leandro Goya Fontella, por sua vez, trata de uma análise demográfica em perspectiva comparativa, afirmando que entre as últimas décadas do século XVIII e as primeiras do XIX uma complexa trama histórica mergulhou a região platina em um contexto de endemia bélica que provocou a decadência demográfica do complexo guaranítico-missioneiro. A partir do tratamento serial dos assentos de batismos da Matriz de São Francisco de Borja e de informações censitárias coevas, é analisado como se desenrolou tal processo nas reduções orientais do rio Uruguai.
No artigo “Índios independentes, fronteiras coloniais e missões jesuíticas”, Maria Cristina Bohn Martins propõe-se a examinar o caso da “misión del sur” dos jesuítas no século XVIII, fazendo-o a partir de uma perspectiva que privilegia as expectativas dos nativos relativamente a ela. Isto é, através de uma inversão de enfoque e ponto de vista, a autora revisita um tema clássico retirando os indígenas da situação de invisibilidade em que eles foram colocados pelas fontes e pelas narrativas históricas tradicionais.
Max Roberto Pereira Ribeiro, em “MbabuçúOiconê: a profecia de Felicitas, tempo e história nas reduções do Paraguai”, trata das disputas coloniais entre Espanha e Portugal no século XVIII que resultaram em um novo tratado de limites na América meridional, firmado em 1750, em Madrid (Tratado de Madrid). O acordo entre as Coroas estabeleceu que a Espanha entregasse a Portugal um território composto por sete missões indígenas e houve da parte dos Guarani grande resistência àquele acordo, resultando em inúmeros conflitos.
Finalmente, em “A execução do Tratado de Santo Ildefonso e as atuações indígenas na fronteira platina”, Karina Moreira Ribeiro da Silva e Melo analisa como os indígenas envolveram-se ativamente nos trabalhos da comissão demarcadoradurante a execução do Tratado de Santo Ildefonso. Ao localizar os pontos por onde passaria a linha divisória, abastecer partidas com recursos oriundos dos povos, patrulhar e arriar gado nos territórios indivisos pertencentes aos seus departamentos, os indígenas demonstraram sua inserção em redes comerciais e políticas bastante amplas.
Os artigos reunidos para este primeiro volume do dossiê Protagonismos ameríndios em diferentes tempos e espaços retratam o vigor da História Indígena no Brasil e nas Américas no início do século XXI. Passados mais de 25 anos de sistemática produção historiográfica sobre os ameríndios no Brasil percebe-se queo palco da História– em feliz expressão tomada por empréstimo de Maria Regina Celestino de Almeida – passou a ser ocupado por estes importantes atores, há muito deixados nos bastidores. Como alertava John Monteiro, para que as trajetórias espaço-temporais tanto de indígenas, africanos e seus descendentes ou migrantes de partes do mundo não europeu não sejam mais invisibilizadas, contudo, ainda há muito a ser feito.
Esperamos cumprir com uma parte importante da divulgação técnica e científica da produção mais recente e qualificada, neste ano em que é celebrada uma década da existência da lei 11.645 / 2008, que obriga a transversalização de conteúdos em todos os componentes curriculares da Educação Básica com as temáticas indígenas e afro-brasileiras, notadamente a História, e que se celebra ainda 30 anos da primeira Carta Constitucional brasileira em que os povos indígenas surgem como sujeitos de direitos. Oxalá que as lutas travadas inicialmente por John Monteiro e outros para que a História Indígena fosse vista com a importância que lhe é devida não esmoreçam.
Boas leituras!
Giovani José da Silva – Professor Doutor (UNIFAP)
Izabel Missagia de Mattos – Professora Doutora (UFRRJ)
Organizadores
SILVA, Giovani José da; MATTOS, Izabel Missagia de. Apresentação. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Rio Grande, v.10, n. 19, jan. / jun., 2018. Acessar publicação original [DR]