No Tempo da Independência | Projeto História | 2022

Prospecto da Fortaleza de Sao Joaquim Rio Branco Fonte Fereira 1971 p.67 2
Prospecto da Fortaleza de São Joaquim, Rio Branco | Fonte: Fereira, 1971, p.67

O número 74 da Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História, da PUC/SP, traz a público o dossiê intitulado No Tempo da Independência. A revista, seguindo modernas políticas editorias, sempre com dois pareceristas às cegas, cujos pareceres são respeitados, dá sequência com novo dossiê, aberto a pluralidade teórica, regional e temática.

Abrimos o dossiê com o artigo de José Rogério Beier, pesquisador de pós-doutorado do Museu Paulista-USP, cujo título é Do sertão para o mar: o papel do Rio de Janeiro na “atlantização” da economia paulista nos tempos da Independência. Nele o autor busca refletir sobre a importância da praça mercantil do Rio de Janeiro no longo processo de “atlantização” da economia paulista, iniciado ainda em 1765, com a chamada restauração da capitania de São Paulo, mas que se viu grandemente impulsionado pela chegada da corte na então capital da América portuguesa em 1808. Nesse sentido, Beier busca relacionar a consolidação da lavoura canavieira exportadora na região do planalto paulista, a oeste da capital, à formação de um subsistema de comércio terrestre-marítimo responsável por comunicar as áreas produtoras até os portos de Santos e do Rio de Janeiro. Leia Mais

Relações de gênero e história: emoções, corpos e sexualidades | Projeto História | 2021

A virada epistemológica da historiografia na segunda metade do século XX, marcada por diversos movimentos sociais e uma grande ebulição política, econômica e cultural, possibilitou a emergência de uma categoria polissêmica, multifacetada e diretamente ligada às questões que discutem as relações de poderes na sociedade: os chamados estudos de gênero, categoria analítica cunhada por Joan W. Scott em seu ensaio “Gênero: uma categoria útil de análise histórica (1995). Em meio a essa renovação analítica, os estudos culturais na historiografia avançaram e propuseram mudanças epistemológicas fundamentais para a escrita da História. Tendo como ponto de reflexão as discussões de pesquisadoras como Joan Scott, Judith Butler, Joana Maria Pedro, Maria Izilda Matos, Rachel Soihet e Margareth Rago, a História precisou caminhar para um novo escrever e narrar sobre os corpos, os desejos, as emoções e as sexualidades. Dentro da perspectiva de uma então recente História cultural emergiram análises e críticas fundamentais aos alicerces de poderes, saberes e narrativas sobre o passado, provida de um olhar que entendia que “o pessoal é político” e histórico e, portanto, do ofício das/dos historiadoras/es. Leia Mais

História e visualidade no Brasil | Projeto História | 2021

O número 71 da Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História, da PUC/SP é dedicado as complexas relações entre a História e as visualidades no Brasil em diferentes períodos, regiões, grupos étnicos, registros e linguagens. Seguindo Michael Baxandall, interessou-nos uma história “historiadora” da arte, capaz de contemplar o contexto material de cada época, assim como as condições mentais, estéticas e culturais, atentos aos meios institucionais de produção e recepção das artes, em que as interfaces com o Estado e com públicos diversos fossem contemplados. As imagens e as obras de arte possibilitam um caminho de reflexão próprio que contribui para o estabelecimento de narrativas históricas plurais e diversas.

Abrimos o dossiê com o artigo de Elaine Dias e Natália Cristina de Aquino Gomes, intitulado O ateliê como autorretrato do artista: afirmação e tragédia nas artes e nos romances literários brasileiros, analisa as múltiplas facetas da representação do artista no ateliê em diferentes campos, como a arte, a literatura internacional e, ainda, a partir de exemplos brasileiros. Neste estudo, as autoras buscam explorar as intenções e diferenças que se podem verificar na composição dos artistas de suas imagens, mostrando como o local de trabalho dos artistas é também uma maneira de entender seu processo de criativo e modo como o local ocupado pelo artista na divisão social do trabalho é estabelecido. Leia Mais

História e Fotografia – modos de ver e contemporaneidades | Projeto História | 2021 (D)

Projeto Historia Historia e fotografia1

O caráter fluido da imagem fotográfica e a escrita da História são o tema deste dossiê. As interfaces históricas com a imagem técnica estática, analógica e/ou digital, são apresentadas em oito reflexões que emolduram discussões sobre as realidades e ficções erigidas a partir de recortes bidimensionais do mundo. Gestados em diferentes partes do Brasil, os artigos que seguem são um convite ao debate sobre modos de ver e regimes de visibilidade plurais.

A acuidade das histórias das imagens, de suas inscrições seminais, não compete a um consenso. Interessa-nos a partilha à Agamben sobre a contemporaneidade e o que nos cerca, nos aproxima, nos afasta. Interessa-nos o Kairós dos contos das imagens e seu tempo antagônico àquele de Cronos, a fim de evitar a nostálgica simbólica dos tempos idos e perceber o tempos vividos e não vividos por nós, suas agitações tempestuosas que incomodam e nos espaçam de uma noção de tempo peremptória.

A despeito de quase 200 anos de sua “descoberta”, a fotografia continua a despertar interesse e fascínio. Lançar luz sobre leituras imagéticas interseccionais, pois, se faz atual e urgente, especialmente diante da ascensão do seu alcance decorrente do ampliado acesso às mídias eletrônicas a um toque de distância, com a expansão de conexões sensíveis que ultrapassam mesmo a lógica dos hyperlinks e impactam nossos corpos.

Inicialmente, Boris Kossoy, pesquisador que figura entre os mais citados para pensar a fotografia no Brasil (Azoubel, 2019), problematiza a trama das representações fotográficas, suas realidades e ficções. Em “Fotografia e História”, ele examina de que forma a fotografia digital exacerba o potencial ficcional e estético das imagens e nos faz avançar sobre as reflexões que têm alicerçado investigações sobre o tema há mais de duas décadas.

Partindo dos “tipos” e “paisagens” contidos nos cartões-postais da coleção do cartofilista Augusto Oliveira, Cibele Barbosa reflete sobre um regime de visualidade marcadamente influenciado pela reprodutibilidade técnica da imagem. Em “De orientes e áfricas: visualidades coloniais nas imagens” ela sopesa tais registros para analisar o culto ao exótico e os olhares transnacionais sobre o “outro”.

Igualmente basilar para o estudo das imagens técnicas, a multitemática Lucia Santaella nos brinda com a discussão acerca dos registros gerados e/ou modificados com uso da tecnologia digital. Tratam-se, diz ela, de argumentos sobre as “incertezas conceituais acerca das categorias ontológicas e semióticas da fotografia” que decorrem de sua natureza metamórfica observada à luz da noção de “aparelho”, de Vilém Flusser.

Esse teórico é, aliás, a ponte para pensar o inconcebível na imagem de Joe Heydecker. Diogo Andrade Bornhausen apoia-se em escritos flusserianos ainda inéditos para tratar da fotografia como meio para uma crítica à imaginação banalizada por meio da problematização do fotodocumentário sobre as condições vividas pelo povo judeu no Gueto de Varsóvia (1941) como via para entendimento da realidade.

Rodrigo Leistner e Sílvia Mateus, por sua vez, ponderam sobre redes sociais, história e memória afrorreligiosa no que consideram híbrido de álbum fotográfico e diário: o Facebook. Ele e ela questionam como aquela comunidade faz uso dessa tecnologia para divulgação cultural de religiões de matriz africana no Rio Grande do Sul a partir de uma vídeo montagem de várias fotografias antigas.

Na esteira da constituição da memória, Francisco Alves Gomes, José Victor Dornelles Mattioni e Maria Conceição de Sant’Ana Barros Escobar nos estimulam a refletir sobre a trajetória das fantasmagorias do passado no acervo da família Fortunato, constituído entre os anos de 1920 a 1990, suas fotografias, santinhos e recortes de jornais descartados, de São Paulo à Roraima.

Seguindo para Londrina, o Paulo César Boni compartilha entusiasmado relato sobre a história da cidade fotodocumentada de 2001 a 2020. O amor pelos espaços urbano e rural por meio de micro-histórias visuais plurais é arrazoado a partir das transformações paisagísticas eternizadas nos registros de projeto original desenvolvido pelo Curso de Especialização em Fotografia da Universidade Estadual de Londrina (UEL).

Finalmente, os contornos entre Arte e Imaginário são debatidos sob a égide das influências renascentistas sobre a fotografia jornalística contemporânea e a partir do pensamento da pensadora Susan Sontag. Em “Fotojornalismo: entre a História, a Arte e o documental”, Vinicius Guedes Pereira de Souza e Maria Eugênia Sá Martin da Natividade discorrem sobre como registros de crises nacionais e internacionais são inspirados e/ou derivados de obras clássicas que habitam o imaginário coletivo. Eis um menu de encher os olhos e provocar a mente, não?!

Na seção de artigos livres, encontram-se elencados quatro textos que versam sobre racismo e esporte, na pesquisa que aborda a Liga de Futebol que homenageia José do Patrocínio, de autoria de Christian Ferreira Mackedanz, Daniel Vidinha da Silva, Luiz Carlos Rigo. Nesse texto, a importância daquela liga é abordada no momento pós-abolicionista na cidade sul rio-grandense para os operários e negros de baixa rende em face ao elitismo local a partir da comunicação como objeto de pesquisa, por meio de jornais e periódicos.

Em seguida, Nelson Tomelin Jr. e Maria do Rosário da Cunha Peixoto escrevem sobre a cidade amazônica de Coari e o impacto resultante dos mutirões que pleiteavam moradia própria, advindos do campesinato em busca de solo firme, evitando os estragos das enchentes dos rios. Em “É Uma Comunidade. É Uma Coisa Comum”, os testemunhos orais e as memórias traduzem os modos de viver e ser desses trabalhadores.

Ainda sob a ótica da memória enquanto ethos, Marcella Gomez Pereira, Felipe Eduardo Ferreira Marta e Edson Silva de Farias lançam luz à formação de movimentos sociais e à reforma agrária na parte sul da Bahia: suas relações com as técnicas agroecológicas durante os processos de ocupação, bem como o papel da educação como ferramenta de transformação em contextos de conflitos de terras.

“E isto atéqui tive que vos escrever por vosso avisamento”, quarto e último artigo da seção, é assinado por Jerry Santos Guimarães e Marcello Moreira e versa sobre a análise do segundo cronista-mor da corte portuguesa, Gomes Eanes de Zurara, no período medieval.

Duas resenhas encerram este volume da Projeto História. Na primeira delas, “Um capítulo na história da esquerda brasileira”, o livro “O horizonte vermelho” é abordado. Publicado pela Editora Sulina, em 2017, e assinado por Frederico Bartz, o texto é enfocado por Carlos Quadros. Na sequência, a análise de “Gordos, magros e obesos”, de Denise Bernuzzi de Sant´Anna, publicado pela editora Estação Liberdade, em 2016, por Renato Marcelo Resgala Júnior em “À mesa farta, a fome e a gula”.

Desejamos que você, cara leitora/leitor, aprecie a leitura deste conjunto de ideias.

Até breve,

Estefania Knotz Canguçu Fraga (PUC-SP)

Maria Thereza Soares (IEMA/ UERJ)

Diogo Azoubel (Seduc-MA/PUC-SP)


SOARES, Maria Thereza; AZOUBEL, Diogo. Apresentação. Projeto História. São Paulo, v.70, p.3-6, jan. / abr. 2021. Acessar publicação original [IF]

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Intolerância Religiosa, Laicidade e Política / Projeto História / 2020

O presente dossiê, intitulado “Intolerância Religiosa, Laicidade e Política”, traz um assunto muito atual no mundo político e na sociedade brasileira, o aumento das mais variadas formas de intolerância religiosa, racismo religioso, fundamentalismo religioso e questionamento da frágil laicidade do nosso país.

Com o findar da Ditadura Civil-Militar, novos atores religiosos entraram no cenário político brasileiro, impondo uma lógica concorrencial à Igreja Católica no campo político e social. O número de evangélicos cresceu exponencialmente e, também, os intitulados “sem religião”, enquanto o catolicismo perdeu fiéis. O Brasil passou de uma “hegemonia católica” para uma maioria de católicos. O campo religioso brasileiro pluralizou-se, inclusive com a ampliação de propostas religiosas não cristãs.

Nesta nova radiografia do perfil religioso brasileiro, novos formatos de intolerância surgiram. No campo político partidário, as bancadas evangélicas e católicas trabalham em conjunto na defesa de projetos de “escola sem partido” para impedir o debate das questões de gênero nas escolas, defendendo um ensino religioso confessional e a perseguição aos aspectos religiosos e culturais das religiões de matriz africana. Ou seja, há uma atuação política que impede que a laicidade do Brasil seja vivenciada conforme aponta a Constituição de 1988.

A laicidade consiste na não perseguição a qualquer forma de religião ou religiosidade, pelo contrário, é o direito do indivíduo, em seu aspecto particular, escolher ter ou não uma religião. O Estado precisa ser neutro em matéria de confessionalidade. Não cabe às autoridades beneficiar instituições religiosas autorizando o funcionamento de feriados religiosos, partidos confessionais, bancadas religiosas, concessão de rádio e TV para grupos religiosos, investimento de dinheiro público em empreendimentos de instituições confessionais, dentre outras atividades. O Brasil precisa de um projeto de governo que lute pelos direitos humanos e a laicidade é um dos pontos principais que precisa de uma revisão.

A capa1 que escolhemos, tomando os devidos cuidados com as associações, dialoga no sentido figurativo com o atual momento do Brasil. A cada dia muitas pessoas são mortas, presas, violentadas, estigmatizadas, recriminadas, ou ridicularizadas pela sua opção religiosa ou por não ter religião. Quanto mais o exercício da fé se afastar dos valores judaicocristãos, mais o fiel sofrerá intolerância religiosa.

Dito tudo isso, o presente dossiê apresenta textos de alta qualidade que discutem essa relação entre laicidade, política e intolerância religiosa, nos mais plurais temais atuais e ao longo da História do Brasil. São nove artigos do dossiê, três artigos da sessão livre, duas resenhas, uma entrevista e uma notícia sobre as pesquisas em andamento no Programa de História da PUC SP.

Abrimos o dossiê com o texto intitulado “A falsificação do jornal católico O São Paulo: Uma análise da reação midiática à edição Mea Culpa (1982)”, escrito pelos pesquisadores Fábio Lanza, José Wilson Assis Neves Júnior e Raíssa Regina Brugiato Rodrigues, todos estudiosos ligados à Universidade Estadual de Londrina. Este artigo analisa o processo de falsificação de uma edição do jornal católico O São Paulo (1982). Usando instrumentos teóricos e metodológicos das ciências sociais, os referidos autores utilizam a análise do discurso para entenderem como foram desenvolvidas as falsificações dos artigos do jornal analisado, e como e de que forma a intolerância religiosa aparece nos conteúdos.

Em seguida, temos o artigo ““A milícia dos remidos marcha impoluta”: Campanha de evangélicos assembleianos ao legislativo paranaense em 2018”, no qual foram analisadas dezenas de candidaturas, coletando informações nas redes sociais dos candidatos. A Assembleia de Deus é a maior instituição evangélica do Brasil. De forma descentralizada e plural, está presente em todos os territórios do país. Em termos políticos, é a instituição religiosa que consegue eleger o maior número de representantes dos poderes executivos e legislativos. Os autores nos mostram como este fenômeno da presença da AD na política ocorreu no ano de 2018 no processo eleitoral.

O artigo nomeado “A “Modernização” Política da Igreja Católica no Brasil (1850-1930): Uma aproximação a partir da teoria crítica de Jürgen Habermas”, discute de forma profunda as questões relacionadas à Igreja Católica e o Estado Brasileiro entre 1850-1930, período muito conturbado na história política do Brasil. Neste período, nosso país muda de regime político, passando da monarquia para o regime republicano, e ainda ocorreu a subida de Getúlio Vargas à presidência do Brasil. Independente dos episódios históricos, a Igreja Católica participou ativamente nas questões políticas, ora se aproximando como parceira do Estado, ora se posicionando contrária a algumas medidas.

O texto “Entre o Trono e o Altar: A questão religiosa em Portugal e no Brasil, notas para uma laicidade à brasileira” é fruto de uma pesquisa de pós-doutoramento pensando a questão da secularização e da laicidade em Portugal e no Brasil. O interessante deste texto é a apresentação de uma relação bem diferente estabelecida no Brasil, no tocante à intercessão entre religião e política no espaço público ocorrida em Portugal. A pesquisa, de certa forma, mostra aspectos próximos e distantes da construção histórica entre Igreja e Estado no Brasil e em Portugal.

O debate sobre a identidade do componente “ensino religioso” nas escolas públicas e como os grupos religiosos e não religiosos desenvolvem estratégias, negociam, discursam e articulam a defesa da sua visão sobre a existência ou não do ensino religioso na década de 1930, consiste a discussão do seguinte artigo, denominado “Laicidade e educação: O Pe. Leonel Franca S.J. e o debate sobre o decreto do Ensino Religioso na escola pública brasileira (1931)”. Com o advento da presidência do Getúlio Vargas, a Igreja Católica retoma o status de instituição religiosa mais beneficiada pelas autoridades brasileiras.

O artigo “O ensino religioso e a escola José Bonifácio: um estudo de caso da prática pedagógica desenvolvida no quilombo do Cria-ú no Amapá” discute a proposta didático-pedagógica da escola José Bonifácio, que se localiza no maior Quilombo do Estado do Amapá. O texto alerta para a necessidade de quebrar a resistência do corpo docente da escola e da direção em trabalhar os aspectos religiosos e culturais do quilombo. Há parteiras, benzedeiros, festas populares, rezas, ladainhas, missas, e outros aspectos da cultura afro-ameríndia que fazem parte do cotidiano do quilombo e não são pensadas pela escola como forma de ensino às crianças.

O texto intitulado “O ultraje a religião tradicional da família paraense: A separação Igreja-Estado no Brasil República e a prisão de Justus Nelson em Belém do Pará. (1889-1925)”, desvela como foi este rompimento e suas consequências na sociedade paraense, além de problematizar a prisão de Justus Nelson.

O historiador Ipojucan Dias Campos, ligado à Universidade Federal do Amapá, com o artigo “Políticas laico-religiosas: Casamento, família e divórcio na fabricação do Código Civil Brasileiro (Belém-PA, 1915)” discute as características do casamento, concepção de família e divórcio na sociedade paraense no início do século XX. A problematização se dá a partir do Código Civil Brasileiro aprovado na República Velha.

O artigo “Religiões, Laicidade e Ensino de História: Diálogos culturais para o trabalho em sala de aula”, discute aspectos fundamentais da necessidade da História das Religiões estar presente nas aulas de ensino de História, tendo como contribuição os aspectos teóricos e metodológicos da História Cultural. Com a pluralidade do campo religioso brasileiro, professores e pesquisadores precisam desenvolver estratégicas de transposição do conhecimento para que os alunos entendam, nos mais variados tempos históricos, a influência das religiões e religiosidades nas sociedades.

Iniciando a sessão de artigos livres, o artigo intitulado “Dilemas da propaganda socialista em Manaus no alvorecer do século XX”, escrito pelo pesquisador Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro, apresenta como a propaganda socialista foi feita em Manaus no século XX. De acordo com o autor, houve periódicos que se posicionaram a respeito da falta de leis trabalhistas e da exploração que os empregados eram sujeitos em seus postos de trabalho.

Os historiadores argentinos Laura Cucchi e Leornardo Hirsc assinam juntos o artigo “Conflicto político, diseños electorales y el problema de las minorías en la Argentina de fines del siglo XIX”, no qual dissertam a respeito dos conflitos políticos entre as minorias e as autoridades públicas na Argentina no início do século XIX. Os autores mostram as limitações da legislação vigente no período da participação política de grupos minoritários no contexto argentino.

A historiadora Flávia da Cruz Santos contribui para este número com o título “O conceito de divertimento na cidade de São Paulo (1828- 1867)”, no qual ela problematiza o conceito de divertimento na cidade de São Paulo no século XIX. As fontes utilizadas foram os jornais: A Phenix, Correio Paulistano, Diário de S. Paulo, Ensaios Literários, O Acayaba, O Farol Paulistano, e O Novo Farol Paulistano, além da literatura produzida por viajantes estrangeiros.

Passada a sessão temática e a sessão de artigos livres, o presente número publica duas resenhas. A primeira intitulada “Memórias da juventude na Rua Maria Antônia”, escrita pelo autor Gustavo Hatagima, sobre a obra “ABDALA JUNIOR, Benjamin. (org.) Um mundo coberto de jovens. São Paulo: Com-Arte, 2016”, e a outra resenha denominada “Religiosidade em trânsito. Práticas cotidianas do sagrado no Brasil da Primeira República, escrita pela autora Elena Pajaro Peres, sobre a obra “WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Práticas Religiosas, Errância e Vida Cotidiana no Brasil (Finais do Século XIX e Inícios do XX), São Paulo: Intermeios; USP-Programa Pós-Graduação História Social, 2018”. Ambas as resenhas trazem excelentes análises das obras supracitadas.

Na presente edição trazemos ainda a “Entrevista com Durval Muniz de Albuquerque Júnior: As Veredas Subjetivas de um Historiador”, feita pela historiadora Valéria Barbosa de Magalhães Daisy Perelmutter. A entrevista explora aspectos da sua vida particular, sua visão sobre diversos temas da historiografia, dentre outros assuntos.

E para findar esta edição, trazemos a notícia da pesquisa de doutoramento da estudante Adriana Bastos Kronemberger com o título “Vozes da militância – Nova Iguaçu nas décadas de 1970 e 1980”. A estudiosa objetiva compreender as particularidades das lutas do povo da cidade de Nova Iguaçu nas décadas de 1970 e 1980 ao lado de seu bispo, Dom Adriano Hypólito.

Boa leitura,

Nota

1Sobre a capa, o autor Claudinei Cássio de Rezende, explica que “A tela representa o momento exato em que a Santa Engrácia de Saragoça, mártir da Igreja Católica, é morta no ano 303 d.C. Antes de ser executada padeceu de castigos violentos da tortura. A ordem de sua execução partiu de Diocleciano (244 – 311 d.C), então imperador romano que promoveu a maior perseguição aos cristãos. Esta situação foi bem tratada historiograficamente por Edward Gibbon em sua obra escrita entre 1776 e 1778, “Declínio e queda do Império Romano”, em seu sexto capítulo. No que se refere à questão iconográfica, a escolha da pintura se alinha à temática da intolerância religiosa e da política. Bertolomé Bermejo (c. 1440 – 1500) foi um dos mais importantes artistas pré-renascentistas espanhóis, cujo estilo foi profundamente influenciado pela pintura flamenga quatrocentista. Seu retábulo tríptico “A Virgem de MontSerrat”, de 1485, guarda uma marca indubitável do estilo dos irmãos Van Eyck e de Rogier van der Weyden, o que atesta a informação biográfica de suas viagens para Flandres para conhecer a técnica do óleo – que viria a chegar no renascimento italiano por Antonello da Mesina e Hugo van der Goes nesta mesma época. Podemos dizer que o patrimônio pictórico barcelonês deve muito à obra de Bertolomé Bermejo, para quem ora prestamos a homenagem desta capa num tema tão importante quanto este, da tolerância e da misericórdia religiosa.”

Luiz Antonio Dias – Professor do Departamento de História da PUC / SP Orcid: http: / / orcid.org / 0000-0001-8834-442X

Marcos Vinicius de Freitas Reis – Professor da Universidade Federal do Amapá. Líder do Centro de Estudos Políticos, Religião e Sociedade – CEPRES.


DIAS, Luiz Antonio; REIS, Marcos Vinicius de Freitas. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.67, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Saúde, Segurança e Direitos do Trabalhador / Projeto História / 2020

Iniciamos incitando o leitor a lançar um olhar mais demorado sobre a imagem da capa que já é, de per si, uma apresentação. Trabalhando com a fotografia de Caio Guatelli, fotógrafo da Folha de São Paulo, seu autor, o professor Claudinei Cássio de Rezende, explicita que a escolha se deu por ser representativa destes tempos, em que a saúde e a segurança do trabalhador foram postas de lado. Trata-se de um entregador de aplicativos, revoltado durante uma manifestação contra o rebaixamento de suas condições de sobrevivência, mesmo que, com isso, aumente os riscos à sua saúde. Nada mais sintomático em uma imagem sobre esses tempos, e sobre o conjunto de ameaças vivenciados por trabalhadores.

Isso porque, enquanto se preparava o fechamento desta edição da Revista Projeto História, cujo tema é Saúde, Segurança e Direitos do Trabalhador, o mundo assistia a uma das maiores epidemias de sua história, afetando diretamente a humanidade em todo o planeta. Ao lado da Grande Peste que marca o fim da Idade Média e da Gripe Espanhola no começo do século XX, o mundo se defrontou com uma grave pandemia, capaz de promover a mortandade de cerca de três a cinco por cento dos que dela forem acometidos.

As quarentenas obrigatórias e voluntárias se ampliaram no mundo, e mais uma crise do capital, anunciada desde fins 2018, 1 mostrou a faceta mais cruenta inerente a essa forma de caminhar da humanidade. Certamente, a crise econômica não fora derivada do Corona Vírus, 2 mas sua erupção foi sentida de forma bastante agudizada em vários países do mundo. Premidos ante o dilema: salvar as economias ou as vidas, governos oscilaram entre ciclos de quarentenas e aberturas, ou deixaram à deriva seus povos, populações inteiras viram-se à beira do abismo. Campanhas se disseminaram no mundo, solicitando que não houvesse paralisações dos setores produtivos e de comércio, enquanto trabalhadores reivindicavam, no mundo todo, medidas substanciais de manutenção de suas vidas. Se, para tanto, estivessem impossibilitados de realizar aglomerações, em muitos países, essas continuaram presentes no quotidiano de suas vidas, fosse nos trajetos para o trabalho, no interior de suas miseráveis vivendas ou nos espaços desordenados das urbanidades a que se vêm relegados.

Nesse pêndulo, foram consideradas essenciais atividades econômicas que mantivessem o consumo em alta, numa clara ilusão de que o capitalismo engendra a si mesmo, quando, “na realidade, o capitalismo não engendra a si mesmo, mas explora a mais-valia do trabalhador”, conforme recupera Žižek (2008, p. 88, apud FONTENELLE, 2014, p. 211), autor que repõe os resultados das “análises de Marx sobre a produção do excedente de capital e sua expansão infinita na esfera da circulação. 3

Em todo o mundo, a consciência de que o capital não fora capaz de preservar vidas e se deteve em salvar economias e lucros se evidenciou. Fábricas de automóveis na Itália4 mantiveram suas atividades em meio à pandemia até explodirem greves de trabalhadores, contrariando suas direções sindicais e determinações do Estado.

Alguns países até realizaram campanhas visando a manutenção das atividades econômicas em meio à pandemia. Exemplo disso, na própria Itália- que teve como epicentro da epidemia o norte do país, com maior atividade industrial, o prefeito realizou campanhas, difundidas inclusive em redes sociais, com o lema, “Milão não pode parar”. Reino Unido, através do Primeiro Ministro Boris Johnson, Estados Unidos, sob a presidência de Donald Trump, iniciaram medidas de contenção verticalizadas, até que estudos de especialistas demonstraram que a mortandade seria alta o suficiente para promover, além da paralisação da economia, um alto índice de rejeição e revolta. Rapidamente, de posse de tais estudos, congressistas aprovaram medidas sociais de isolamento social, promovendo ajuda assistencial. Mas as contenções não foram suficientes, e trabalhadores acabaram se mobilizando e se concentrando nas ruas contra as medidas violentas do Estado, capitaneadas especialmente pelas polícias, mas não só. Dados apontados mostram que negros e latinos estão entre os mais afetados pela pandemia nos Estados Unidos, demonstrando que, embora a doença não tenha endereço e cor de pele, a falta de acesso aos sistemas de saúde, torna mais vulneráveis os pobres e negros.

No Brasil, além da negação da pandemia, incentivos às aglomerações promovidas pela Presidência da República, altos índices de trabalho informal, trabalhadores se defrontaram com o agravamento da crise no Sistema Único de Saúde e o aumento da violência policial. Relatórios já de 2019, publicados pelo portal G15 demonstravam que a atuação policial no Brasil era mais violenta nas periferias e que crescia exponencialmente o número de jovens negros assassinados. Tal violência institucional amplia a vulnerabilidade socioeconômica e acentua a exclusão aos direitos de cidadania, a que se somam, por um lado, o aumento de desemprego e, de outro, a redução dos direitos trabalhistas.

Nunca foi tão importante discutir como o tema da saúde e segurança do trabalhador, assim como seus direitos, foi colocada em diferentes momentos da história, o que é o objeto desse dossiê. Ou seja, voltarmos nossos olhares para o tema da Saúde, Segurança e Direitos do Trabalhador

Nesse sentido, abrimos o dossiê com o artigo de Ricardo Normanha intitulado A centralidade do trabalho em debate: notas para um balanço histórico e apontamentos para o presente e futuro da luta de classes, no qual o autor analisa a reestruturação produtiva e suas consequências no mundo do trabalho, recuperando a análise ontológica da centralidade do trabalho para a compreensão das formas complexas e também precarizadas de exploração da mão de obra.

Em seguida, Wanderson Fabio de Melo discute em, A Revolução Russa e o direito à moradia: De 1917 a 1945, as questões habitacionais na Rússia no período imediatamente posterior à Revolução Socialista, os déficits habitacionais e as consequentes políticas engendradas para resolver a questão de moradia para os trabalhadores russos, percebendo que o isolamento russo diante do mundo conflagrou situações inamovíveis no que tange à moradia.

Em Aspectos da modernização da agricultura durante a Ditadura CivilMilitar Brasileira (1964-1985): vínculos, métodos e estratégias, os historiadores Cintia Wolfart, Marcio Antonio Both da Silva e Marcos Vinicius Ribeiro se debruçaram na compreensão dos impactos das políticas para o campo implantadas no Brasil. A partir daí demonstram como as estratégias utilizadas pelos governos, responderam às demandas das oligarquias rurais, provocando a expropriação de terras dos pequenos proprietários, a ampliação da monocultura em detrimento da agricultura de subsistência. Resulta daí a expansão do complexo agroindustrial, ao mesmo tempo em que se promoveu a cooptação de amplos setores para tal política, através dos grupos 4-S, com intenso trabalho pedagógico educativo, corroborado pelo Estado brasileiro.

No artigo de Danilo Ferreira da Fonseca, intitulado Autoritarismo, ajuste estrutural e neoliberalismo: Ruanda após o genocídio de 1994, temos um panorama sobre o processo de implementação do neoliberalismo no pósgenocídio, demonstrando como, combinado com o autoritarismo da Frente Patriótica Ruandesa, as condições de vida dos trabalhadores se desdobrou em desemprego, fome, e de expropriação de suas terras ancestrais, impelindo-os na busca por trabalho na mineração.

Em Entre Engels e os dias atuais: abordagem crítica sobre as condições de saúde da classe trabalhadora no Brasil, Luziane Dias Simão, Leonardo Carnut e Áquilas Mendes, abordam as condições de saúde dos trabalhadores no Brasil contemporâneo, resgatando a análise de Engels sobre trabalhadores no século XVIII. Centram sua reflexão na questão da saúde da classe trabalhadora através dos periódicos publicados no sistema SIBI-USP, demonstrando que as condições de vida, mesmo com as tecnologias do século XXI, ainda permanecem precárias, restando-lhes a alternativa revolucionária como condição para superação das dificuldades enfrentadas.

Damián Andrés Bil, Sebastián Norberto Cominiello e Viviana Hansi, analisam o caso de um laticínio na Argentina para compreender a situação de crise no setor. O artigo, denominado, La crisis de acumulación en la Argentina a partir del estudio de caso de una empresa del sector lácteo, debruça-se no entendimento dos percalços enfrentados pela empresa diante especialmente da competitividade internacional.

David Maciel, em artigo Mudanças políticas e institucionais na crise da Nova República: rumo a uma nova institucionalidade política, analisa o democrático, posterior ao fim da última ditadura militar no Brasil, compreendendo que a manutenção da autocracia burguesa se deu através de uma nova institucionalidade democrática que manteve características autoritárias e fascistas. Destacando as mudanças operadas a partir de 2011 com o início de uma escalada autoritária, que se desdobra no golpe de 2016, conclui sobre o surgimento de uma nova institucionalidade política, da qual decorre uma crise na Nova República.

Encerramos o dossiê com o artigo Relações Internacionais e Questão Agrária: mundialização do capital, agronegócio e as lutas pela terra em Porto Nacional – Tocantins, de Fabiana Scoleso, que analisa a mundialização do capital e o consequente impacto nas relações entre capital e trabalho, exacerbado especialmente a partir da agenda neoliberal adotada na América Latina. A partir da exposição das concretude representada pelo Porto Nacional, no Tocantins, expõe como a financeirização da terra e o poder do agronegócio, ensejaram as novas configuração do campo, vinculadas à particular forma de desenvolvimento do capitalismo no Brasil, assim como a expropriação compulsória da terra, ensejou novas formas de lutas de classes ainda hoje vigentes. Ainda é de se notar que a integração regional adotada, particularmente com as commodities, são aspectos relevantes para demonstrar a atuação do Estado. Atuação esta que se desvela com investimentos estatais que beneficiam o agronegócio, em detrimento, inclusive dos povos originários da região.

No espaço dedicado aos artigos livres, abrimos com o texto de Cristiane Medianeira Ávila Dias, intitulado A Ditadura Civil-Militar Brasileira e a repressão além fronteiras, abordando o monitoramento efetuado pelo Centro de Informações do Exterior (CIEX) e pela Divisão de Segurança e Informações do Ministério das Relações Exteriores (DSI / MRE), sobre brasileiros, a partir do Golpe de 11 de setembro de 1973 no Chile. Nesse sentido, o artigo destaca a atuação de tais órgãos fora das fronteiras nacionais, demonstrando anuência dos demais estados, bem como a integração desses países na rede Condor.

Em seguida, trazemos o artigo de Walbi Silva Pimentel, Marcos Vinicius Freitas Reis e Fábio Py, intitulado Aspectos Sócio Histórico da Igreja Católica na Amazônia, em que analisam a presença da Igreja Católica e as diversas ordens religiosas ali colocadas para a catequização dos povos originários, negros e colonos desde o século XVI. O artigo aborda as diversas formas de atuação da Igreja, desde o início da colonização da região até o século XX, as contradições encontradas e os novos desafios com a separação entre Igreja e Estado no limiar do século XIX para o XX.

Frederico de Oliveira Toscano trouxe-nos o artigo O Inimigo é a Fome: breve histórico da escassez alimentar no Nordeste e do papel do Estado em seu enfrentamento, recorrendo à análise historiográfica de construção da associação do Nordeste brasileiro à fome, enfatizando a obra do geógrafo Josué de Castro, percebendo o papel de intelectuais na discussão de que não se trata, para aquela região, de um problema climático, mas de uma questão que deve ser enfrentada socialmente pelo Estado e pela sociedade.

O artigo Stanislaw Szmajzner: o único sobrevivente do campo de extermínio de Sobibor no Brasil, de autoria de Felipe Cittolin Abal, aborda o caso de Szmajzner, que migrou para o Brasil ao fim da Segunda Guerra Mundial. Seu artigo parte da infância desse sobrevivente até ser encaminhado para Sobibor, sua participação na revolta ocorrida no campo, e a vida no Brasil. Shlomo, como ficou conhecido, foi um dos que reconheceram Gustav Wagner, um dos participantes do genocídio impetrado. O trabalho teve como preocupação o resgate da memória, a seleção do que o autor considerou pertinente para a constituição do texto, e traz como desafio recontar a história de um sobrevivente individualmente, como expressão de um genocídio de grandes proporções.

Ainda com a preocupação de auxiliar na produção acadêmica dos pós-graduandos, a Revista Projeto História traz a seção Notícias de Pesquisa. Nesse número, Breno Ampáro Alvares Freire, em: Dissonâncias Perfeitas: o protagonismo dos músicos de orquestra rumo à institucionalização da categoria em São Paulo (1913-1949), analisou a atuação dos músicos de orquestra em São Paulo, em busca de tornarem-se uma categoria profissional, demonstrando as contradições existentes entre a atividade artística e a associação profissional desses músicos.

Por fim, trazemos a resenha do livro de Leandro Pereira Gonçalves, intitulado O passado e a atualidade do pensamento político fascista: análises sobre o catolicismo conservador de Plínio Salgado entre Brasil e Portugal, realizada por Pedro Ivo Dias Tanagino, como importante contribuição para a compreensão da atuação de Plinio Salgado.

Boa leitura,

Notas

1Os alertas começaram a circular em fins de 2018. No encontro de Davos em fevereiro de 2019, a “ diretora-gerente do FMI, Christine Lagarde, alertou(…), após dois anos de sólida expansão, a economia mundial está crescendo mais lentamente do que o esperado e os riscos estão aumentando. ‘Isso significa que há uma recessão global dobrando a esquina? Não. Mas o risco de um declínio mais acentuado no crescimento global certamente aumentou’, ressaltou”. Cf. CORRÊA, Alessandra. O mundo está à beira de uma nova grande crise econômica? BBC News Brasil, 2 / 02 / 2019. Disponível em: https: / / www.bbc.com / portuguese / internacional-46967791. Acesso em 04 / 08 / 2020.

2 “A COVID-19 é uma doença causada pelo coronavírus, denominado SARS-CoV-2, que apresenta um espectro clínico variando de infecções assintomáticas a quadros graves. De acordo com a Organização Mundial de Saúde, a maioria (cerca de 80%) dos pacientes com COVID-19 podem ser assintomáticos ou oligossintomáticos (poucos sintomas), e aproximadamente 20% dos casos detectados requer atendimento hospitalar por apresentarem dificuldade respiratória, dos quais aproximadamente 5% podem necessitar de suporte ventilatório”. Cf. BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Sobre a doença: o que é a Covid-19. Disponível em: https: / / coronavirus.saude.gov.br / sobre-adoenca. Acesso em 04 / 08 / 2020.

3 FONTENELLE, I. A. O estatuto do consumo na compreensão da lógica e das mutações do capitalismo. Lua Nova, São Paulo, 92: 207-240, 2014, p. 211.

4 Em março de 2020, quando a Itália se tornou o epicentro da pandemia mundial, algumas organizações de esquerda, especialmente, noticiaram a eclosão de greves na indústria automobilística na Itália, especialmente ao norte do país, região mais industrializada, e, portanto, mais afetada pela Covid-19. Conferir em: https: / / www.wsws.org / pt / articles / 2020 / 03 / 17 / ital-m17.html. Acesso em 04 / 08 / 2020.

5 Nos dias 22 e 23 de junho de 2020, o portal G1 trouxe as manchetes de aumento de letalidade provocada por policiais nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo, respectivamente, demonstrando, inclusive, a queda das taxas de homicídios na série histórica analisada. Conferir as reportagens em: https: / / g1.globo.com / rj / rio-dejaneiro / noticia / 2020 / 06 / 22 / rj-tem-maior-numero-de-mortes-por-policiais-em-22-anose-o-2o-menor-indice-de-homicidios-ja-registrado-pelo-isp.ghtml e https: / / g1.globo.com / sp / sao-paulo / noticia / 2020 / 06 / 23 / batalhoes-da-grande-sp-matam60percent-mais-em-2020-na-capital-aumento-de-mortes-por-policiais-militareschega-a-44percent.ghtml. Acessos em 04 / 08 / 2020

Jussaramar da Silva – Doutora e Professora da Rede Municipal de Ensino de Juiz de Fora / MG Pesquisadora do Centro de Estudos de História da América Latina e Caribe (CEHAL) da PUC-SP

Vera Lucia Vieira – Doutora e Professora da PUC-SP


SILVA, Jussaramar da; VIEIRA, Vera Lucia. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.68, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Fronteiras, sertões e território / Projeto História / 2020

O número 69 da Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História, da PUC / SP, traz a público o dossiê “Fronteiras, sertões e território”. Em linha com nosso projeto editorial, interessa-nos abrir espaço para multiplicidade teórica, temática e regional.

Esse número buscou jogar luz para a produção historiográfica acerca do Brasil de dentro, mas também de regiões afastadas dos centros de poder de outros países da América do Sul. Esse número pretende abrir espaço para os estudiosos das zonas interioranas, dos sertões profundos, das fronteiras em seus vários sentidos. Sertão, aqui, não significa apenas o semiárido nordestino, mas sobretudo o interior, variado e múltiplo, áreas culturais, históricas e geográficas cuja historicidade nem sempre tem o devido espaço na historiografia brasileira.

A ampliação dos programas de pós-graduação durante os governos Lula (2002-2010) e Dilma (2010-2016) foi notável, ampliando a produção historiográfica, inclusive em universidades localizadas no interior do país. Apesar da interrupção da expansão e, pior dos ataques a universidade, é preciso reconhecer que uma considerável produção intelectual. Mas é preciso difundir esse conhecimento, nascido, quase sempre o financiamento público.

Pensar as fronteiras, os sertões, os interiores, os territórios sempre em disputas a partir da história reconhece a inevitável interdisciplinaridade, aberto às conexões geográficas, artísticas (da pintura à literatura), geopolíticas (e cartográficas), sociológicas e simbólicas que a temática impõe, temática de nenhum modo presa a recortes temporais fechados.

Não é por outra razão, portanto, que abrimos o dossiê com o artigo Leituras da apropriação territorial europeia na sedimentação de identidades no Brasil, de Jorge Luiz Barcellos da Silva. Nele, o autor buscou identificar de que maneira as diferentes leituras das territorialidades se constituíram em ferramentas auxiliares na sedimentação de identidades no Brasil. Partindo da análise de pinturas de Ekhout e mapas com distintas representações da América portuguesa, Barcellos da Silva demonstra como essas representações do território e de seus habitantes instrumentalizaram a sistematização do processo da posse europeia em diferentes partes do mundo. No caso específico do Brasil, o autor argumenta que foram os fundamentos topológicos que enquadraram os discursos e práticas dando sentido às apropriações territoriais e ao estabelecimento de fronteiras, conferindo novos contornos ao entendimento do que seria o Brasil.

Logo em seguida apresentamos o texto de Gabriel Passetti, intitulado “La cuestión de limites”: intelectuais, diplomatas e a disputa pelas fronteiras entre Argentina e Chile (séculos XIX a XXI). A sensibilidade para temas latino-americanos é um firme compromisso da Projeto História, que não hesitou em nunhum momento em aceitar a proposta. No artigo, o autor coloca em foco as discussões acerca da linha internacional de fronteiras a partir de uma perspectiva comparada e conectada, dando protagonismo às conexões entre intelectuais, diplomatas, políticos e militares. O artigo apresenta o modo como a produção dos intelectuais sobre a questão dos limites entre Argentina e Chile foi levado à esfera pública, culminando na mobilização e construção de rivalidades e tensões internacionais que quase acabou levando os países à guerra em três ocasiões.

O terceiro artigo do dossiê, intitulado Visões sobre o humano: a fronteira-sertão do Brasil meridional (1889-1905), é assinado por Bruno Pereira de Lima Aranha. Neste trabalho, de notável qualidade, o autor se propõe a analisar os relatos das expedições brasileiras destinadas à fronteira com a Argentina entre 1889 e 1905, na atual província de Misiones (Argentina) e regiões sudoeste do Paraná e oeste de Santa Catarina, bem como o Rio Grande do Sul (Brasil). O objetivo é alargar a ideia de fronteira, tradicionalmente pensada a partir de um marco delimitador, inserindo-a em uma concepção baseada na experiência de fronteira móvel, caracterizada por uma borderland, idealizada por viajantes como um sertão a ser ocupado formalmente pelo Estado. O autor destaca as percepções acerca dss populações sertanejas desses espaços, caracterizada por diversas nuances, especialmente pela transnacionalidade do espaço, cuja demarcação, de fato, sequer havia ocorrido.

Na sequência apresentamos o artigo Reflexões sobre uma zona de fronteira no século XVII: a província do Guairá e Sertão dos Carijós, de Dora Shellard Corrêa. Neste trabalho a autora discute as relações de poder e o conhecimento que os europeus detinham sobre fronteiras dos impérios ibéricos localizadas na porção Sul do continente americano. Trata-se de um espaço indígena, localizado no atual estado do Paraná, mas que, na segunda metade do século XVI e primeiras décadas do XVII, configurava parte da província espanhola do Guairá, também conhecida como Sertão dos Carijós pelos portugueses. Seu objetivo é discutir esse movimento das fronteiras europeias na América durante o mercantilismo, destacando que a realidade do conceito de fronteira é muito mais complexa do que a que vem sendo descrita, sobretudo se levarmos em conta uma dinâmica espacial indígena à qual os portugueses e demais europeus que ocuparam a região tiveram que se adaptar.

O quinto artigo deste dossiê intitula-se A ferrovia e a ocupação do sertão paulista: a Companhia Paulista e sua linha tronco oeste, pesquisa de Cristina de Campos e Luciana Massami Inoue. As autoras analisam o papel das ferrovias na estruturação do território paulista durante o século XIX, destacando dois momentos: o primeiro, que seguia o ritmo do avanço do café pelo interior; e o segundo, quando as companhias ferroviárias passaram a antecipar as plantações. É neste segundo momento que o foco das autoras irá se concentrar, em especial no que diz respeito à linha tronco oeste da Companhia Paulista, que teriam constituído uma espécie de modelo de ocupação de sertão, de acordo com o que foi observado nas áreas por onde se constituíram as principais companhias ferroviárias paulistas.

O artigo intitulado A escola “Pluvífera” e as secas no Nordeste do Brasil: o caso do “Gargalheiras” (1877-1959), assinado por Yuri Simonini, Ângela Lúcia Ferreira e Adriano Wagner da Silva, trata da duradoura ressonância que as discussões e críticas feitas pelo Instituto Politécnico sobre as secas de 1877 no Nordeste tiveram no debate sobre a influência climática a partir da construção de grandes reservatórios. Recorrendo aos métodos e a contribuição historiográfica da História Ambiental, os autores utilizaram os relatórios governamentais a fim de detalhar as teorias surgidas no Oitocentos que acabaram por legitimar propostas e edificações de barragens levantadas no século seguinte como foi o caso de Gargalheiras, em Acari, no Rio Grande do Norte.

Em seguida publicamos O Nordeste brasileiro e o Noroeste argentino: o sertão cearense e o chaco seco santiagueño em meio às secas da década de 1930, assinado por Leda Agnes Simões de Melo. Nele a autora se dedica a uma análise comparada das coberturas jornalísticas da forte seca que atingiu o estado do Ceará, no Nordeste brasileiro, e a província de Santiago del Estero, no Noroeste argentino, durante a década de 1930. Os periódicos analisados pela autora foram o Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, e El Mundo, de Buenos Aires. Seu principal objetivo é investigar como as construções discursivas da cobertura jornalística de ambos periódicos estavam ligadas ao padrão de sociedade moderna desses territórios no decorrer dos séculos.

O oitavo artigo deste dossiê, escrito por de Juciene Batista Felix Andrade, intitula-se Os sertões em debate: fronteiras, secas e instituições. Nele a autora problematiza o tema das “secas” no Nordeste a partir de uma perspectiva historiográfica, propondo uma breve incursão nos reportórios de memória estabelecidos nos mais distintos suportes documentais. O destaque conferido pela autora à essa diversidade documental e narrativa acerca das “secas” serve para deslocar o olhar dos historiadores dos sertões de um repertório já muito empregado e consagrado, mais ligados à literatura e ao folclore, para outras temáticas, o trabalho, a economia, as técnicas, os corpos, etc. A pesquisa se vale de importante documentação, como os relatórios técnicos, plantas baixas, ofícios, telegramas, jornais, etc. A diversificação da problemática e das fontes contribuem para alargamentos e enriquecimento do que poderíamos chamar de história social dos sertões.

Em seguida apresentamos o artigo “Doutores” do Sertão: Discursos do III Congresso Médico do Brasil Central (1951), de Éder Mendes de Paula. Neste trabalho, o autor analisa os discursos proferidos durante o III Congresso do Brasil Central e V do Triângulo Mineiro, a fim de compreender as relações entre região e nação. Ao perceber a oposição de sentidos que os médicos atribuíam aos conceitos de saúde e doença nos estados do Brasil central em relação aos do litoral, o autor propõe uma reflexão acerca da construção das concepções de saúde e doença. A pesquisa também trata da própria identidade dos médicos, a partir de uma perspectiva sertaneja segundo as abordagens dos próprios participantes do evento em Goiânia no ano de 1951.

O artigo seguinte, escrito em formato ensaístico, intitula-se Memória, escrita de si e identidade nos sertões: ensaio sobre a busca por novas alteridades nas fronteiras, por Evandro Santos. Neste trabalho o autor parte da problematização acerca da dimensão social da produção do conhecimento científico para refletir acerca das possibilidades e limites da escrita da história desde os sertões. No que diz respeito à temática mais específica deste dossiê, o artigo investiga o impacto exclusivamente exterior sobre regiões fronteiriças, como os sertões, apresentando um estudo de caso do sertão do Rio Grande do Norte como resultado de uma pesquisa mais ampla sobre os sertões nordestinos.

O fechamento deste dossiê se dá com o artigo O Brasil sertanejo: a construção do espaço nacional em O sertanejo (1875) de José de Alencar, escrito por Artur Vitor de Araújo Santana e Natanael Duarte de Azevedo. Neste trabalho os autores partem da literatura de José de Alencar, em particular o romance O sertanejo. O objetivo é analisar a construção de um espaço nacional no qual o interior do Brasil é visto como uma paisagem autêntica e o vaqueiro é o principal personagem na formação social do país. Para tanto, Santana e Azevedo recorrem a uma análise mais internalista do romance, buscando caracterizar a geografia física sertaneja e relacioná-la aos debates e concepções da época sobre a nação. O estudo não deixa de abordar a recepção da obra de Alencar nos periódicos do Rio de Janeiro.

Na seção dedicada aos artigos livres, a Projeto História publica O Menino do Gouveia: a história real que inspirou o primeiro conto homoerótico brasileiro de 1914, de Valmir Costa. No artigo, o autor reconstitui o lançamento do primeiro conto homoerótico do Brasil, “O Menino do Gouveia”, lançado em 1914, pela revista erótica O Rio Nu (1898-1916). Pautada em distintos periódicos cariocas da época, a pesquisa revela que o conto é inspirado em fatos reais e que o nome Gouveia acabou por se transformar em gíria e mesmo lenda urbana no Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XX. O trabalho de reconstituição das condições de publicação e circulação do conto revela, dentre outros aspectos, os espaços e as opções sócios sexuais para a experiência da homossexualidade masculina na virada do século XIX para o XX.

Já o segundo artigo livre, chamado a A guinada pragmática da linguagem e “a invenção do cotidiano”, de Gerson Luís Trombetta e Fabrício Antônio Antunes Soares, nos apresenta as características gerais da “guinada pragmática da linguagem”, especialmente na filosofia de Ludwig Wittgenstein. Mais que isso, os autores também apontam como as teses centrais dessa “guinada da linguagem” influenciaram a obra de Michel de Certeau, acerca da narrativa historiográfica, postulando que a maneira como se dá o diálogo teórico entre Certeau e Wittgenstein abre perspectivas para a narrativa historiográfica que extrapolam as limitações empiristas.

A Projeto História, interessada em valorizar a produção de jovens pesquisadores, mantém há muitos anos a seção Notícias de Pesquisas, espaço que tem o objetivo de valorizar a produção de pesquisas em andamento. Este volume traz a pesquisa de mestrado de Bruna Carolina de Oliveira Rodrigues, intitulada O embaixador de Hollywood e o cinema brasileiro (1953 – 2000). Nela a autora reconstitui a trajetória de Harry Stone, um lobista dos interesses do cinema estadunidense no Brasil, durante o período em que este viveu no país.

Por fim, o volume 69 da revista se encerra com duas resenhas. A primeira, da pesquisadora Thays Fregolent de Almeida, mais ligada ao dossiê, Fronteiras, sertões e território, trata da obra coletiva Rondon: inventários do Brasil (1900-1930), organizada pelas professoras Lorelai Kury e Magali Romero Sá, em 2017. Já a segunda resenha, em linha com o projeto editorial da revista, comprometido com a pluralidade, abre espaço para a história da escravidão durante o período imperial no Brasil. Em Estado imperial, ordens religiosas, senhores e escravos em um contexto de crise, William de Souza Martins debate a tese de doutorado de Sandra Rita Molina, publicada em livro pela Paco Editorial em 2016.

É parte do esforço editorial da Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-graduados em História da PUC / SP criar espaços para que pesquisadores de outras universidades, de diferentes regiões do Brasil, e mesmo outros países, possam contribuir com suas pesquisas.

Esperamos que os leitores apreciem criticamente os trabalhos selecionados, e que eles possam ter recepção fértil, gerar novas pesquisas e outras inquietações.

Alberto Luiz Schneider

José Rogério Beier


SCHNEIDER, Alberto Luiz; BEIER, José Rogério. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.69, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Historiografia e História Intelectual Ibero-Americana / Projeto História / 2019

A Projeto História, revista do Programa de Estudo Pós-Graduados em História da PUC / SP, chega ao volume 64, cujo dossiê intitula-se “Historiografia e História Intelectual Ibero Americana”. Desde agosto de 1980 a revista tem contribuído com a difusão do conhecimento histórico no Brasil, por meio de um longevo programa de pós-graduação. No atual momento, quando a universidade está sob ataque de forças obscurantistas, nosso programa renova seu compromisso com a democracia, a pluralidade e o conhecimento, antídotos contra o autoritarismo que nos rodeia.

O debate sobre a historiografia e a produção intelectual em perspectiva representa uma importante dimensão dos estudos históricos, já consagrados como via de acesso aos diversos regimes de historicidade e ao repertório de interpretações do passado. A consciência histórica de uma época, bem como as forças em disputas e a própria dimensão política e cultural do saber manifestam-se nos testemunhos literários, ensaios acadêmicos e na memória visual e escrita de forma geral.

Por essa razão optou-se por abrir o dossiê com o artigo de Fernando Torres Londoño, professor dos Programas de Pós-graduação em História e em Ciência da Religião, ambos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. O professor assina o artigo “A historiografia dos séculos XX e XXI sobre os jesuítas no período colonial conferindo sentidos a uma presença: do nascimento do Brasil à globalização”, que tem como objeto de análise a historiografia produzida nos séculos XX e XXI sobre a atuação da Companhia de Jesus no período colonial. No texto, Londoño mostra que, nos últimos quarenta anos, os historiadores têm buscado superar paradigmas apriorísticos, ou seja, a favor ou contra os jesuítas. Tem sido buscada, em seu lugar, uma abordagem capaz de abarcar a complexidade desta importante ordem religiosa, desde o seu estabelecimento e atuação, ao longo de sua existência secular, mas também a partir da imagem que se formou e transfigurou nos discursos que repercutiram.

O segundo artigo, assinado por Fernando Vale Castro, professor de História da América do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, intitulado “Os americanismos nas páginas da Revista de Derecho História Y Letras e da Revista Americana”, realiza uma análise comparada de dois periódicos latino-americanos das primeiras décadas do século XX: a Revista de Derecho, Historia y Letras (1898-1924), fundada e dirigida em Buenos Aires pelo diplomata, intelectual e político argentino Estanislao Severo Zeballos, e a Revista Americana (1909-1919), editada no Rio de Janeiro e publicada pelo Ministério das Relações Exteriores, que teve no Barão do Rio Branco importante incentivador. Sabendo que estes tipos de periódicos eram uma espécie de estrutura elementar da sociabilidade intelectual — como afirma Jean-François Sirinelli — o texto busca elucidar como certas concepções de Americanismo circulavam naquelas páginas, a fim de apontar sua relevância no debate intelectual e diplomático sul-americano do período. Conferindo destaque para a contemporaneidade das preocupações que as nortearam, o estudo destaca o pioneirismo que as orientaram na formulação de um novo vocabulário político e a formação de novos circuitos intelectuais.

O professor da Universidade Federal de São Paulo, Leonardo Carnut, juntamente com a professora Áurea Maria Zöllner Ianni, da Faculdade de Saúde Pública da USP, assinam o texto “O pensamento político em saúde Latinoamericano: Floreal Antonio Ferrara e seus primeiros passos para repensar os caminhos da saúde coletiva”. Neste artigo, os professores reconstituem a biografia de Floreal Antonio Ferrara a partir do primeiro tomo de sua obra intitulada Teoria Política e Saúde. A partir de uma abordagem qualitativa mista, na qual se fez uso do levantamento históricobiográfico em conjunto com a análise do conteúdo da obra do autor biografado. Numa perspectiva bastante original, que procura somar diversos traços de sua personalidade pública e intelectual, os autores ressaltam a visão que Ferrara tinha sobre a vida política do país e do continente, sugerindo a importância em reler sua experiência no debate contemporâneo sobre o assunto.

Diogo da Silva Roiz, professor da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, estuda uma importante mutação na construção institucional da História como disciplina em seu artigo “Ser historiador no século XX: Alfredo Ellis Júnior entre o “autodidatismo” e a “profissionalização” do trabalho intelectual de História (1938-1956)”. Nele, o autor investiga a transição entre o autodidatismo e a profissionalização do trabalho intelectual do historiador no Brasil. Para isso, Roiz analisa a obra e a trajetória do paulista Alfredo Ellis Júnior, entre os anos de 1938 e 1956, e o ativo posicionamento político daquele autor com ênfase na chamada Revolução Constitucionalista de 1932, que resultou em duras críticas, esquecimentos e desinteresse de sua obra por boa parte da historiografia brasileira produzida após a década de 1980. O texto de Roiz busca compreender o modo como Ellis Junior incorporou as discussões sobre o estabelecimento da história enquanto campo disciplinar e a profissionalização do ofício do historiador, privilegiando o período em que ele lecionava no curso de História e Geografia da Universidade de São Paulo.

Na sequência, Paulo Augusto Tamanini, professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA) – por meio do artigo “O Holodomor e a memória da fome dos ucranianos (1931-1933): os ressentimentos na História” – busca, a partir de registros mnemônicos sobre o Holodomor, em uma perspectiva da cultura dos sentimentos e da visualidade, apreender a memória dos ucranianos acerca da fome de 1931-33. O texto busca compreender como o Holodomor ainda é “(res)sentido” pelos ucranianos. O autor também inventaria os esforços institucionais pelo reconhecimento do Holodomor como um genocídio.

O artigo intitulado “Pela mais digna de todas as revoluções”: o conceito de revolução na crise do regime monárquico brasileiro – de Juliano Francesco Antoniolli, doutor em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – busca refletir sobre o conceito de revolução, derivado da Guerra dos Farrapos, durante a crise do Império e a consequente ascenção dos ideais republicanos propagados a partir de 1870. O artigo parte da História dos Conceitos (de Reinhart Koselleck) para analisar o livro Guerra civil do Rio Grande do Sul, de Tristão de Alencar Araripe, bem como a propaganda republicana levada a cabo pelos jovens estudantes de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo.

O dossiê se encerra com a contribuição do pós-doutorando do Laboratório de Estudo de História das Américas (LEHA-USP), Renato Martins, autor do artigo “Ficção, História e Relações Internacionais na comparação das Américas de Francisco García Calderón e Sérgio Buarque de Holanda (1912- 1959)”. No texto, propõe uma reflexão comparada sobre as Américas a partir da escrita da história, da ficção e das relações internacionais realizadas pelo ensaísta e diplomata peruano, Francisco García Calderón (1883-1953), e pelo crítico e historiador brasileiro Sérgio Buarque de Holanda (1902- 1982). As comparações entre esses autores foram realizadas a partir de uma problemática enfrentada por ambos durante a elaboração de suas obras: o arielismo. Nesse sentido, Martins aponta para a importância da geração intelectual de 1898, na América Latina, bem como para os regimes de historicidade que caracterizaram uma modernidade latino-americana, propriamente dita.

Esta edição conta ainda com três artigos livres. O primeiro deles, intitulado “A diversificação do complexo cafeeiro e a produção paulista de alimentos na primeira república: uma análise por meio das mensagens dos presidentes do Estado de São Paulo”, de autoria do professor Paulo Roberto de Oliveira, da Faculdade de Economia e Administração da USP, trata da diversificação na economia cafeeira e produção de alimentos durante a Primeira República. O estudo foi realizado, principalmente, a partir da análise do corpus documental constituído pelas mensagens dos Presidentes do Estado de São Paulo no período, 1889-1930, e busca compreender a diversificação da economia paulista e seus limites, sobretudo no que diz respeito aos gêneros alimentícios.

Por sua vez, Juliana Figueira da Hora, Wagner Magalhães e Elaine Alencastro assinam o segundo artigo livre: “Memórias do patrimônio colonial: arqueologia do sobrado dos Toledos, Iguape-SP”, em que apresentam um estudo arqueológico, ao analisar as diversas ocupações do sobrado dos Toledo, em Iguape, no estado de São Paulo. Em sua pesquisa, os autores valorizam os grupos sociais que vivem na cidade as memórias ali vividas, a fim de reconstituir a “biografia” do local através de uma arqueologia histórica.

Por fim, o terceiro artigo – “Simples e naturalmente bela: a coluna “Segredos de Beleza de Hollywood” no Anuário das Senhoras (1941-1949)” – assinado pelas professoras Jaci de Fátima Souza Candiotto e Maria Cecilia Barreto Amorim Pilla, ambas da Universidade Federal do Paraná, toma como objeto de estudo a coluna Segredos de Beleza de Hollywood, de autoria de Max Factor Jr., publicada no Anuário das Senhoras entre 1941 e 1949. As duas autoras buscam evidenciar os padrões de beleza feminina do período e apontam para o fato de que conquistar a condição de ‘ser bela’, para algumas mulheres, balizava aquilo que se considerava como feminino e dos artifícios do “ser bela”, capazes de influenciar a relação entre o protótipo da “mulher moderna” e aquela outra, que é dona de si e suas escolhas.

Este número da revista traz ainda uma nota de pesquisa. Trata-se de “Silenciamentos e desvelamentos historiográficos sobre os Waimiri-Atroari e a FUNAI (1967-1985)”, de Henri Albert Yukio Nakashima, e ainda duas resenhas. Na primeira delas, chamada “Existem limites para a Biografia?”, Igor Lemos Moreira faz um balanço do livro O que pode a biografia, organizados por Alexandre de Sá Avelar e Benito Bisso Schmidt (São Paulo: Letra e Voz, 2018). Por fim, Ana Paula Nunes da Silva, em “Memórias soldadescas de um Brasil Holandês”, resenha o livro de Viagem ao Brasil (1644-1654): o diário de um soldado dinamarquês a serviço da Companhia das Índias Ocidentais, escrito por Peter Hansen Hajstrup no século XVII, cujo material foi organizado e preparado pelos historiadores Benjamin Nicolaas Teensma, Bruno Romero Ferreira Miranda e Lucia Furquim Werneck Xavier (Recife: Cepe, 2016). Assim, espera-se que os leitores possam apreciar os trabalhos selecionados para esse número da Projeto História. Os editores agradecem aos autores dos artigos e das resenhas pelo enorme esforço de pesquisa.

Alberto Luiz Schneider

Eduardo Holderle Peruzzo


SCHNEIDER, Alberto Luiz; PERUZZO, Eduardo Holderle. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.64, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Diálogos com a História: Estudos interdisciplinares / Projeto História / 2019

A segunda metade do século XX foi marcada por um novo alargamento do campo da História. Ainda que os Annales, já em sua primeira geração, tenham apontado para uma verdadeira “revolução” historiográfica, apresentando novos objetos, novas possibilidades de análise, novos problemas, novas metodologias e uma forte interligação entre as diversas ciências humanas, não resta dúvida de que esse processo se ampliou e, sobretudo, foi instrumentalizado na segunda metade do século XX. Esse alargamento tornou necessário, mais do que nunca, que se estabelecesse um diálogo com o referencial teórico-metodológico de outras áreas das ciências humanas. Pesquisas interdisciplinares buscam a integração de várias disciplinas e ramos do conhecimento para analisar um objeto, a fim de garantir maior profundidade analítica. Assim, o diálogo da história com a política, sociologia, educação, psicologia, literatura, antropologia e tantos outros campos do conhecimento, pode contribuir para lançar novas “luzes” sobre pontos obscuros de um determinado objeto. Dessa forma, a Revista Projeto História promove, neste Dossiê, um diálogo da História com várias áreas das ciências humanas.

A própria capa deste volume, uma arte de Claudinei Cássio de Rezende sobre pintura de Jean-August-Dominique Ingres, François Ier reçoit les derniers soupirs de Leonardo da Vinci, 1 1818, já nos remete à ideia da interdisciplinaridade. Leonardo da Vinci (1452-1519) talvez tenha sido o mais emblemático Homem do Renascimento. Ele não é apenas uma figura histórica memorável, a menção ao florentino na capa deste volume também diz respeito ao seu conteúdo: polímata, ninguém pôde ser mais “interdisciplinar” que Leonardo da Vinci, além disso, propomos uma justa homenagem por ocasião do quinto centenário de sua morte.

Ao longo deste volume, verificamos vários artigos que propõem uma discussão interdisciplinar, a começar pelo texto de Miguel Vedda, Alegorías de la Improvisación. A Propósito de los Cuadros de Ciudades en Calles en Berlín Y en Otros Lugares, de Siegfried Kracauer. O autor, especialista em Literatura Alemã e professor da Universidad de Buenos Aires (UBA), promove uma discussão sobre a vida urbana presente na obra de Siegfried Kracauer.

Na sequência, o segundo artigo deste dossiê apresenta uma discussão sobre uma obra de Jorge Amado – Os pastores da noite, um romance escrito às vésperas do Golpe Civil-Militar de 1964 – no qual verificamos o perfeito diálogo da literatura com a História e, também, uma “[…] discussão sobre a cidade e modos culturais do viver urbano, contribuindo especificamente com a obra aqui analisada para pensarmos a construção de ditaduras na sociedade brasileira”.

O artigo Literatura de cordel: conceitos, intelectuais, arquivos, analisa a produção intelectual sobre a literatura de cordel, promovendo uma discussão com a “literatura popular” e seu papel na construção da identidade nacional, mostra também o processo de criação de arquivos e instituições de pesquisa e como ocorre uma “monumentalização dos folhetos de cordel”.

Em seguida, ainda no campo da literatura, temos o artigo Culpas e traumas no pós-Segunda Guerra em O leitor, no qual os autores analisam essa obra – do jurista e literato alemão Bernhard Schlink – acerca dos traumas, culpas e memórias da Segunda Guerra Mundial.

No artigo seguinte – Ao Ritmo de Tambores e Maracás: Tambor de Mina e Pajelança no Maranhão de Meados do Século XX – o autor nos aponta sua preocupação em mostrar que no “[…] Maranhão de meados do século XX, […] observa-se que algumas modalidades de expressão das religiões de matriz africana começam, ainda que timidamente, a serem vistas, positivamente, como elementos da cultura nacional e regional”. No entanto, indica que apesar dessas mudanças, continua imperando preconceito e discriminação aos adeptos de religiões e religiosidades populares e de matriz africana.

O dossiê segue apresentando um artigo sobre vestuário e fotografia – Vestuário e Fotografia como fontes de pesquisa: uma abordagem interdisciplinar – que discute sobre algumas fontes empregadas nas pesquisas sobre moda, indumentária e vestimenta, indicando que o próprio traje se constitui como fonte importante, carregado de informações e, nesse sentido, quando já não mais existe o traje, a fotografia poderia assumir esse papel de documento histórico.

Hannah Arendt e o Diabólico Maquiavel, o sétimo artigo do dossiê, traz uma discussão sobre a concepção da filósofa alemã Hannah Arendt sobre Maquiavel a partir do conjunto dos textos da autora ao longo de sua maturidade intelectual, expressando prioritariamente as suas concepções em dois deles: um redigido originalmente em 1963, intitulado Sobre a revolução; e outro, Entre o passado e o futuro, por sua vez revisto e ampliado numa edição de 1968.

O artigo seguinte, intitulado A Composição do Ms. 10121 da Biblioteca Nacional de España (C. 1516-1543): O Livro dos Feitos entre a Epigrafia e a Paleografia, analisa um manuscrito sobre a vida do rei Jaime I de Aragão (1208-1276), um dos reis mais conhecidos do contexto territorial da coroa aragonesa. A partir de informações epigráficas e paleográficas do manuscrito e de propostas metodológicas voltadas para a ciência epigráfica e paleográfica, o autor do artigo, “[…] busca determinar o contexto de composição do manuscrito, principalmente considerando as características simbólicas de tais informações presentes no mesmo”. Concluindo que “[…] os aspectos simbólicos presentes neste documento devem ser considerados como principais para compreender o motivo de sua composição, ou seja, a partir de uma perspectiva interdisciplinar”.

Temporalidades de norte a sul: história de municípios narrada nos seus sites oficiais, o artigo que fecha a primeira parte do dossiê, analisa as narrativas históricas, existentes nos sites das prefeituras de duas cidades – Altamira no Pará e Foz do Iguaçu no Paraná – produzidas e divulgadas entre os anos 2012-2017. As narrativas foram problematizadas e os autores indicam que “[…] foi possível perceber a permanência de interpretações históricas hegemônicas no Regime de Historicidade futurista em nosso tempo presente”.

Entre os artigos livres, também podemos verificar uma discussão se aproximando da interdisciplinaridade, em especial, no artigo intitulado A “caixa-preta” da eucaliptocultura: controvérsias científicas, disputas políticas e projetos de sociedade, que discute os embates e disputas sobre o plantio de eucaliptos no Brasil.

Outros dois artigos completam essa seção, Da lógica de O Capital à “lógica” do capital: notas críticas a Helmut Reichelt, no qual o autor discute o pensamento de Helmut Reichelt e o artigo Charles Boxer e a Igreja Militante: Raça, Missionação e Império na Expansão Ibérica dos Séculos XVI e XVII, que apresenta um balanço da obra do historiador inglês Charles Boxer. Nesse artigo, o autor busca explorar o modo como Boxer compreendeu as políticas ibéricas de conversão dos nativos e seus entrelaçamentos com as próprias políticas de colonização.

O dossiê traz também duas resenhas – Entre a memória e a história: a influência estadunidense no Brasil em 1964 – sobre a obra 1964: O golpe, de Flávio Tavares, lançada em 2014 e As Marcas do Tempo no Espaço: Diálogos entre História e Geografia, que apresenta o livro de José D’Assunção de Barros – História, Espaço, Geografia: diálogos interdisciplinares – lançado em 2017.

Dentro da proposta da Revista Projeto História, de valorizar as pesquisas de seus pós-graduandos, temos duas Notícias de Pesquisas, textos de alunos da pós-graduação do programa de História da PUCSP, que apresentam as pesquisas em andamento. A primeira Notícia de Pesquisa é do mestrando Daniel Francisco da Silva, intitulada A atuação da imprensa na reorganização política em Pernambuco em 1954. Essa pesquisa, em andamento, tem como eixo temático a análise da imprensa pernambucana, atentando para sua atuação na reorganização política do estado após o suicídio de Getúlio Vargas, em agosto de 1954. A outra Notícia de Pesquisa, Formação política, organização e movimentos sociais: Encontros de Entidades Comunitárias (ENECOMs), foi produzida pela doutoranda Vera Lúcia Silva e trata das experiências de agricultores, pescadores, agentes de saúde, dentre outros trabalhadores, ligados a diferentes associações e instituições do campo e da cidade dos municípios cearenses de Camocim, de Barroquinha e Granja.

Finalizando o volume, gostaríamos de destacar a ótima entrevista, realizada por Glauber Biazo, com o professor Francisco de Oliveira, um dos grandes intelectuais brasileiros, que faleceu em 10 / 07 / 2019. Francisco de Oliveira trabalhou na SUDENE (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste) ao lado de Celso Furtado, e com o Golpe Civil Militar de 1964 foi afastado e sofreu prisões e perseguições. Em 1970 – e até 1995 – integrou o CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Também participou da fundação do PT (Partido dos Trabalhadores) e, posteriormente, do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade). Durante a década de 1980, foi professor do Departamento de Economia da PUCSP, saindo em 1988 para integrar-se ao corpo docente do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP. O professor Francisco de Oliveira nos deixa um legado de obras, lutas e militância e recebe, neste volume da Revista Projeto História, uma justa homenagem.

Nota

1 Segundo Claudinei Cássio de Rezende, autor da capa desse volume, “Em 1818, Pierre-Louis Jean Casimir (1771-1839), embaixador francês em Roma, encomenda a Jean Auguste Dominique Ingres (1780-1867) a pintura A morte de Leonardo. Ingres, o mais destacado pintor da école davidienne, faz o painel em óleo, de dimensão modesta (40 x 50,5 cm), conforme ordenação do comitente. Neste painel vemos Francisco I (1494-1547) de França recebendo em seus braços Leonardo da Vinci (1452-1519) em seu último suspiro”. Sobre a “forte interdisciplinaridade” de Leonardo da Vinci, Rezende, nos alerta que: “[…] Leonardo aprende a técnica do desenho e da pintura, atividades que poderiam já lhe atribuir um estatuto de genialidade ao seu tempo histórico, especialmente se considerarmos o seu Tratado da pintura como a primeira teorização da estética e da história da arte, antecipando Giorgio Vasari (1511- 1574). Leonardo considerava que a cópia das pinturas, resultando sempre em cópia da cópia de menor qualidade, não era o bastante para avançar a ciência naturalista da pintura: os modelos precisavam advir da própria realidade, do próprio estudo da natureza. Assim, Leonardo se torna um estudioso da botânica, da geologia, da anatomia animal, da anatomia humana (incluindo um original estudo sobre os embriões) e da física (da luz e sombra). Por consequência, estuda de modo geral toda a ciência, desenvolvendo uma teoria rudimentar das placas tectônicas, por exemplo. Projetos de máquinas voadoras, tanques de guerra, e até um protótipo de helicóptero são elaborados por Leonardo. Estudou a óptica e hidrodinâmica. Desenvolveu maquinaria de metalurgia que, não obstante, entrou para o mundo da indústria sem os devidos créditos ao mestre florentino. Na última década de vida, após a morte de seu mecenas Ludovico, retorna à Florença recémconquistada por Lorenzo II (1492-1519), até se instalar na corte francesa de seu último patrono, Francisco I. Foi este que, àquela altura, encomendou a Leonardo um leão mecânico que andava para frente, abria o peito e relevava um ramalhete de lírio. Leonardo, criador da robótica?”.

Luiz Antonio Dias – Professor do PEPG de História da PUC-SP. Editor Chefe da Revista Projeto História

Vagner Carvalheiro Porto – Professor da Universidade de São Paulo, Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. Editor da Revista do MAE-USP


DIAS, Luiz Antonio; PORTO, Vagner Carvalheiro. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.65, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Política, Cultura e Sociedade: temas e abordagens do Brasil Contemporâneo / Projeto História / 2019

O número 66 da Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pósgraduados em História, da PUC / SP, traz a público o dossiê “Política, Cultura e Sociedade: temas e abordagens do Brasil Contemporâneo”. Não se trata apenas de publicar pesquisas que abordem a Ditadura Civil-Militar (1964- 1985) e as lutas de resistência à opressão, mas também olhar o passado atento à delicada situação política pela qual atravessa o Brasil no presente, em quem velhos fantasmas que pareciam habitar o passado ressurgem, ameaçadores. Mais do que nunca, é preciso revisar o passado recente, que ainda não terminou de passar. Os autores e as autoras deste número desvelam e iluminam vários aspectos da vida brasileira, enriquecendo o debate público da história mais recente. A eles e a elas, os editores da revista e os organizadores do número agradecem.

A capa desta edição da Projeto, vale dizer, foi selecionada justamente para transmitir a tensão política vivida no Brasil durante os anos finais do regime militar. Trata-se de uma fotografia da Passeata dos Cem Mil, pela Avenida Rio Branco, Candelária e Palácio Tiradentes, na cidade do Rio de Janeiro. Da manifestação, organizada por entidades estudantis, participaram intelectuais, artistas e trabalhadores sindicalizados e milhares de estudantes. Publicada no jornal Última Hora, em 27 de junho de 1968, ao reportar a manifestação do dia anterior, a foto registra aquela que foi a última grande manifestação popular contra a ditadura que logo se enrijeceria, com a decretação do Ato institucional número 5 (AI-5), em dezembro daquele ano.

Abrimos o dossiê com o artigo dos professores Luiz Antonio Dias (PUC-SP) e Rafael Lopes de Sousa (UNISA-SP), intitulado A greve da Volkswagen (1979): o despertar do novo sindicalismo e os métodos de controle da vida operária, no qual os autores analisam as resistências dos trabalhadores da fábrica automobilística frente à ditadura civil-militar. No artigo, contextualizam o desenvolvimento da crise econômica do final dos anos 1970 e começo dos 1980, a fim de compreender a consolidação de um novo sindicalismo. Com isso, partindo dos acontecimentos que culminaram na greve dos metalúrgicos do ABC de 1979, esclarecem “as redes de informações e controle criadas pela empresa para vigiar e punir os operários”. Além disso, os autores buscam jogar luz sobre “a lógica de apoio e cooperação desenvolvida entre agentes públicos e privados” ainda no contexto da greve.

Em seguida, reproduzimos o artigo Entre aplausos e denúncias: as entidades de advogados gaúchos e a instalação da ditadura civil-militar (1964-1966), de Dante Guimaraens Guazzelli. Nele, o autor busca demonstrar como os advogados do Rio Grande do Sul, logo no início do regime civil-militar, em 1964, apresentavam posturas ambivalentes em relação à quebra da legalidade constitucional, ora apoiando ora se opondo ao sistema político. O artigo leva os leitores a compreender a complexidade da instalação da ditadura no país.

Como terceiro artigo do dossiê, apresentamos o texto do professor Pedro Henrique Pedreira Campos (UFRRJ), intitulado Ditadura, interesses empresariais, fundo público e “corrupção”: o caso da atuação das empreiteiras na obra da hidrelétrica de Tucuruí. O artigo discute os projetos dos empresários entre as décadas de 1970 e 1980 envolvidos em escândalos de corrupção. Partindo de uma reflexão teórica sobre o tema da corrupção, o autor problematiza a ocorrência desses casos durante o regime militar e trabalha, mais especificamente, analisando a atuação de empreiteiras na obra da usina hidrelétrica de Tucuruí (1975-1984), no estado do Pará. A hipótese do autor aponta para disputas entre o “fundo público para acumulação de capital e busca de maiores taxas de lucro” como uma explicação viável para se compreender o uso de práticas ilegais pelas empresas e estreitar relações com o Estado.

Já no artigo Estratégia discursiva da ditadura civil-militar brasileira (1964- 1985): a legitimação através da escola, assinado pela professora Rosimar Serena Siqueira Esquinsani (UPF-RS), propõe-se a discussão da escola como um dos meios empregados pela ditadura para operacionalizar o discurso que exaltava o patriotismo, o patrulhamento ideológico, o recurso à autoridade e a politização das datas cívicas, sempre no sentido de legitimar a ditadura. A autora parte de uma metodologia analítico-reconstrutiva, ao utilizar como fonte para embasar sua análise doze livros didáticos adotados nas escolas brasileiras entre 1964 e 1985. A pesquisa demonstra o empenho dos agentes do Estado em legitimar a ditadura, por meio do uso das escolas e dos conteúdos dos livros didáticos.

Na sequência, o artigo de Gustavo Bianch Silva problematiza a relação da Universidade Federal de Viçosa com a política econômica e o plano de desenvolvimento adotados durante a ditadura militar no Brasil. Segundo o autor “o modelo de modernização da agricultura ambicionado na universidade […] teve grande convergência com a concepção da modernização econômica elaborada pelos militares em seus governos”. A hipótese levantada pelo autor indica que o ponto de interlocução entre a universidade e a política de desenvolvimento dos distintos governos das décadas de 1970 e 1980 teria facilitado, por parte das lideranças acadêmicas, uma postura de adesão ao regime

O professor Reginaldo Cerqueira Souza (Unifespa-PA), no artigo Guerrilha do Araguaia: violência, memória e reparação, problematiza o movimento de resistência armada contra a ditadura organizado por militantes de esquerda do Pará, Maranhão e Tocantins, durante a Guerrilha do Araguaia (1972-74). Com base nas teorias da literatura de teor testemunhal e da psicanálise, empregando os conceitos de “trauma”, “repetição” e “esquecimento”, o artigo busca compreender as razões por trás do esquecimento social acerca da guerrilha no estado do Pará, o aumento da violência nessa região e a negação às vítimas do Estado o direito de reparação e memória.

No artigo intitulado História, Cultura e identidade: olhares sobre comunidades quilombolas no estado do Amapá, Elivaldo Serrão Custódio (UNIFAP), Silvaney Rubens Alves de Souza (UNIFAP) e Maria das Dores do Rosário Almeida (UnB), abordam o debate acerca da reforma agrária ligado ao processo de resistência política dos movimentos negros organizados desde a década de 1980. No artigo, os autores contextualizam a longa trajetória de luta pela sobrevivência dessas comunidades tradicionais, remanescentes de quilombos, ainda distantes das políticas públicas das ações afirmativas.

Para encerrar o dossiê escolhemos o artigo Rompendo fronteiras: movimentos e imprensa de direitos humanos no Cone Sul (1970 / 1980), de Heloísa de Faria Cruz, professora do Departamento de História da PUC-SP. Nele, a autora analisa uma série de publicações produzidas por entidades de defesa dos direitos humanos veiculados entre os anos de 1970-80 em países como Chile e Argentina. Seu objetivo é refletir acerca da atuação dessas entidades, bem como sobre a cultura política de resistência aos regimes ditatoriais vigentes nos países do Cone Sul, demonstrando como se constituiu a rede de movimentos em defesa dos direitos humanos, destacando a importância dos circuitos de comunicação que a sustentaram.

No espaço dedicado aos artigos livres, o texto Os institutos disciplinares, a legislação sobre menoridade e a formação de setores estatais especializados em assistência a menores em São Paulo (1900-1935), assinado por Sérgio C. Fonseca e Felipe Ziotti Narita, discute a institucionalização de setores especializados na gestão de serviços públicos de assistência social para menores em São Paulo, entre o início do século XX e a década de 1930. A partir de textos jurídicos, relatórios oficiais e impressos publicados pelos serviços de assistência, o artigo busca analisar os meandros dos dispositivos estatais no âmbito do desenvolvimento socioeconômico e demográfico. Evidenciam-se no texto, as “ramificações institucionais em diálogo com a formação de serviços de saúde, a profissionalização da assistência aos pobres e a legislação referente a protocolos judiciais e policiais destinados ao governo da população”, como apontam os autores.

O segundo artigo livre Releituras do Contestado: O reino místico dos pinheirais, de Wilson Gasino, e a crítica à história oficial, do professor Claécio Ivan Schneider (UNIOESTE) busca problematizar as relações entre história e a literatura na construção do romance O reino místico dos pinheirais, publicado por Wilson Gasino, em 2011. Para o autor, o romance pode ser lido como “um instrumento de denúncia contra aqueles que construíram e compactuaram com interpretações preconceituosas da história, […] e estigmatizaram milhares de sertanejos que até hoje lutam por sua terra, por sua cidadania, enfim, pelos seus direitos humanos”.

O volume traz ainda duas resenhas. O primeiro texto, Brasil, mostra tua cara, mais ligado à temática do dossiê é uma apreciação crítica de Victor Gustavo de Souza sobre o livro Sobre o autoritarismo brasileiro, publicado por Lilia Moritz Schwarcz e lançado em 2019. Em linha com o projeto editorial da revista, marcado pela pluralidade e abertura aos mais diversos temas, a segunda resenha abre espaço para história de São Paulo de fins do século XVIII. Em Um olhar renovado sobre a história dos capitães-generais de São Paulo: o governo de Martim Lopes Lobo de Saldanha (1775-1782) José Rogério Beier debate o livro de Lorena Leite, “Déspota, tirano e arbitrário”: o governo de Lobo de Saldanha na Capitania de São Paulo (1775-1782), também lançado em 2019.

A Projeto História interessada em valorizar pesquisas de jovens pesquisadores há muitos anos mantém Notícias de Pesquisas, espaço que tem o objetivo de valorizar a produção de pesquisas em andamento. Este volume traz a pesquisa de Thays Fregolent de Almeida, intitulada Modernos bandeirantes, antigos interesses: a Expedição Roncador-Xingu e a conquista da fronteira oeste (1938-1948). A autora investiga a Expedição Roncador-Xingu (1943- 1948) como parte da campanha Marcha para o Oeste, importante investimento político realizado pelo Estado Novo (1937-1945). No texto, os conceitos de “fronteira econômica” e “fronteira política” são articuladas com a apropriação do bandeirantismo como símbolo.

O volume 66 da revista se encerra com a entrevista que o investigador Marcos Antônio Batista da Silva realizou com o professor e pesquisador Bruno Sena Martins (CES) – Universidade de Coimbra. No texto são problematizadas questões relativas à difusão da cultura científica, a colonização, o racismo, as políticas de ação afirmativa e sustentabilidade. Bruno Sena Martins é investigador do Centro de Estudos Sociais, cocoordenador do programa de doutoramento Human Rights in Contemporary Societies, e docente no programa de doutoramento em Pós-colonialismos e cidadania global.

É parte do esforço editorial da Projeto História: Revista do Programa de Estados Pós-graduados em História da PUC / SP criar espaços para que pesquisadores de outras universidades, de diferentes regiões do Brasil e de outros países possam contribuir com suas pesquisas.

Esperamos que os leitores apreciem criticamente os trabalhos selecionados, e que possam ter recepção fértil, gerar novas pesquisas e outras inquietações.

Alberto Luiz Schneider – Professor do Departamento de História da PUC / SP

Márcia Juliana Santos – Doutora em História (PUC / SP). Professora de História da Escola Móbile


SCHNEIDER, Alberto Luiz; SANTOS, Márcia Juliana. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.66, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Patrimônio Cultural, História e Memória / Projeto História / 2018

É com grande satisfação que lhes oferecemos o volume 61 da revista Projeto História, que em 2018 completa 37 anos de atividades, em um percurso não isento de percalços, mas constantemente exemplar do empenho e dedicação de seus participantes. Para esta edição, ‘Patrimônio cultural, história e memória’ constitui o eixo do dossiê que compõe o corpo central do volume.

Não é a primeira vez que as reflexões sobre o patrimônio são colocadas nesta revista, mas acreditamos que no presente existem demasiadas questões e reflexões que envolvem esse conceito, tanto em relação ao seu uso, quanto aos abusos em relação aos elementos que nele estão contidos e relacionados.

Necessitamos de fato de uma abertura ao debate sobre as formas de pensar e de se agir a partir desse conceito. Pensar o patrimônio cultural em suas relações com a História e a Memória põe em primeiro plano questões ligadas aos conflitos e tensões sobre identidade, esquecimento, apropriação cultural, tradição, rememoração e resistência cultural, entre outras diversas noções que se entretecem nesse debate. Ao se debater patrimônio no momento atual superamos as leituras e os discursos que tinham como motor a celebração de valores e referências de memória de frações ou conjuntos sociais que privilegiam uma perspectiva parcial ou dominante que condiciona a seleção, a percepção e a manutenção do patrimônio. Pensar patrimônio enquanto manifestação de visões oficiais sobre a história ou a memória das sociedades não é mais aceitável, pelo menos para aqueles que pretendem uma compreensão e uma abordagem coerente e abrangente dos eventos e processos históricos relacionados a grupos humanos.

Muito já se escreveu sobre o tema e na atualidade muito mais se coloca em questão, principalmente por conta de polêmicas que envolvem a própria definição de patrimônio e sua aplicação ao universo de manifestações dos vários segmentos e grupos que compõem a sociedade; isso sem considerar as releituras críticas, as reelaborações e as transformações dos bens culturais consagrados dentro de uma perspectiva mais aberta ao debate dos significados e valores desses bens em uma sociedade cada vez mais marcada pela diversidade de posturas, identidades e discursos.

As discussões sobre o tema percorrem um longo caminho, desde a constituição do patrimônio histórico na Revolução Francesa, quando se estabelece um marco que passa a orientar pelas décadas seguintes as ações e percepções sobre a seleção, a celebração e a preservação dos monumentos históricos. Mas o conceito de patrimônio se alargou gradativamente, ainda que de forma irregular, em direção aos bens e manifestações culturais de caráter imaterial, retirando da concepção de patrimônio o seu caráter tradicionalmente material e monumental. Neste número procuramos construir uma trama que entrelaça alguns desses conceitos, pois o conjunto de artigos que formam o cerne deste dossiê lidam com aspectos bastante distintos do patrimônio cultural que, ao longo dos últimos trinta anos, assumiu novos sentidos e significados, enquanto que se recoloca diante de diversas perspectivas históricas.

Introduzimos nossa apresentação do dossiê tomando como ponto de partida um museu, que por si mesmo constitui um dos espaços que tem sua gênese institucional na época em que o patrimônio histórico toma forma e identidade primeira, no século XVIII.

O estudo sobre a trajetória e as perspectivas do Museu da Cultura da PUC-SP, feito pelo Prof. Carlos Gustavo Nóbrega de Jesus, se compõe como uma referência necessária para se pensar o museu e seu papel na recuperação, reconstituição e reinserção de memórias e experiências dos diversos grupos que constituem as sociedades. Aqui se propõe uma recolocação e uma releitura do Museu da Cultura dentro da instituição e da comunidade, pautadas nas práticas e propostas contemporâneas da museologia.

Em um segundo trabalho, desta vez por Wanessa Pires Lott, lidaremos com a questão do reconhecimento e preservação de espaços de práticas e crenças das comunidades negras de Belo Horizonte, tomando como objeto de tudo isso, dois locais de experiências distintas.

No terceiro artigo, Alessander Kerber parte do conceito de ativação patrimonial de Lorenç Prats para analisar a incorporação do compositor e cantor Carlos Gardel, ícone mundial do tango na Argentina, mas também ligado ao universo patrimonial uruguaio. Nesse sentido, o autor expõe as estratégias e ações que permitiram esse movimento, debatendo, para tanto, a questão das identidades culturais nacionais.

Aldo Jose Morais Silva nos leva em seu artigo à Feira de Santana na Bahia, onde investiga a ressignificação do hino da Feira, que foi concebido na década de 1920 e que não encontra um reconhecimento de seus elementos constituintes dentro da comunidade à qual se refere, apesar de ser um traço importante da cultura imaterial dessa mesma comunidade. O processo de ressignificação do hino assim é percebido como uma forma de recomposição de valores e sentidos para a comunidade em sua relação com seu patrimônio.

No bairro de Abadia, em Uberaba, originalmente a autora Sandra Dias discute a construção de sentidos e valores pela comunidade em um local marcado em sua história pela presença de instituições assistenciais e religiosas. Isso resultou na formação de uma identidade cultural local própria, contrastante com a de Uberaba, fundada em seus componentes intangíveis.

Já em outro artigo, Diogo de Souza Brito apresenta a narrativa oficial do principal órgão de preservação do Brasil hoje, o IPHAN, a partir de diferentes documentos, o que o possibilitou a delinear a trajetória da instituição entre dois momentos, a fase heroica e a fase moderna, representada por dois de seus dirigentes, respectivamente, Rodrigo Melo Franco de Andrade e Aloísio Magalhães.

O sétimo escrito deste dossiê nos traz o debate de Francisco Carvalho de Andrade sobre a arquitetura vernacular brasileira, que até o momento encontra reconhecimento limitado na esfera oficial ligada à preservação do patrimônio cultural. O autor destaca como a participação comunitária na elaboração dessas construções expressa o compartilhamento de valores e sentidos pelos seus agentes, materializados nas celebrações e manifestações dos grupos envolvidos, ressaltando, assim, a dimensão imaterial dessa prática como fio condutor de sua relevância no espaço patrimonial.

No último artigo deste dossiê lidamos com uma realidade presente, a destruição do patrimônio em situações de confronto bélico e choque de ideologias. Nesse ensaio, os arqueólogos Vagner Porto e Juliana Hora problematizam a ação e o discurso do Estado Islâmico, tomando como referência o valor do patrimônio como memória e o sentido da destruição dos sítios arqueológicos dentro de um conflito de fundo ideológico marcante. Num contraponto ressaltam a contribuição do mercado ilícito de antiguidades, consequência desse mesmo interesse por essa herança cultural no Ocidente, reforçadas por uma postura paradoxal das nações, que se declaram oposicionistas dessas práticas e que propõem ações preservacionistas, pautadas por uma visão ainda impregnada pelo colonialismo europeu.

Entre os artigos livres temos contribuições que conduzem a linhas bem distintas de reflexão. O primeiro estudo, elaborado por Sochdolak e Pochapsky, lida com a questão da violência contra animais no município de Mallet, no Paraná, entre as décadas de 1930-1950, partindo do reconhecimento filosófico de que “a violência é um fenômeno historicamente constituído e que, de alguma forma organiza as relações humanas”. Para tanto se utilizam de documentação de processos criminais do período, a fim de estudar a natureza e as motivações de tais crimes no contexto em questão.

O trabalho de Cesar Henrique Porto se coloca no campo dos estudos de alteridade, ao lidar com as representações dos muçulmanos e árabes na teledramaturgia brasileira, tomando como ponto de partida a telenovela ‘O Clone’, na qual são construídos modelos culturais da população árabe muçulmana que, na visão do autor, acabam por reforçar concepções imprecisas no imaginário popular sobre esse grupo, denominado indiscriminadamente como árabes ou turcos.

No terceiro trabalho da seção livre Otávio Barduzzi nos coloca diante da possessão demoníaca e sua caracterização como fenômeno antropológico na medicina do século XIX. O autor problematiza a possessão enquanto fenômeno cultural, que assume status diferenciado no cristianismo. Com a prevalência do pensamento científico / médico no século XIX, se analisa a inclusão da possessão no rol de patologias, sendo extraída de sua matriz cultural religiosa, na qual seria posteriormente reinserida.

O último trabalho dessa seção lida com a história da infância, onde Rosa Batista e Leonete Schmidt analisam a iniciativa do Círculo Operário Católico de Joinville para estabelecer uma creche. No recorte dado, que vai de 1936 a 1949, são discutidos os esforços e as concepções que deflagraram essa ação e sua importância para o estudo da infância no Brasil.

Finalizando o presente volume temos duas notícias de pesquisa, uma das quais trata do lazer dos trabalhadores na metrópole, avaliando a institucionalização do lazer na cidade de São Paulo. Em outra direção, a pesquisa de William Ferreira da Silva trata da problemática do suicídio na obra de Dostoiévski, tomando o livro “Os Demônios” como base para tal reflexão.

Assim, fechamos nossa modesta exposição deste volume, que esperamos fornecer a seus leitores a oportunidade de apreciar visões e reflexões enriquecedoras e instigantes, dentro do espírito de construção e difusão de ideias no campo histórico que orienta esta revista.

Álvaro Hashizume Allegrette https: / / orcid.org / 0000-0002-2222-7033

Luiz Antonio Dias https: / / orcid.org / 0000-0001-8834-442X


ALLEGRETTE, Álvaro Hashizume; DIAS, Luiz Antonio. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.61, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Instituições de memória, documentos e acervos históricos / Projeto História / 2018

O presente número da Revista Projeto História segue o rastro da contínua valorização que o Departamento de História e o Programa de Pós-Graduação em História da PUC-SP vêm dando às discussões práticas e teóricas acerca da preservação e divulgação dos acervos históricos, em seus diversificados suportes e suas instituições de memória. Tal preocupação já foi expressa de um modo um tanto específico no número anterior da revista denominado “Patrimônio Cultural, História e Memória”.

Agora, a revista de número 62, “Instituições de memória, documentos e acervos históricos” apresenta tal perspectiva a partir de um pressuposto diversificado, ou seja, com o intuito de evidenciar abordagens variáveis a respeito da relação entre acervos históricos, a sociedade e suas instituições que a custodiam, destacando, assim, o fato de estarem associadas aos construtores do patrimônio coletivo de grande valor simbólico, o que, por sua vez, nos permite salientar relações pautadas por contradições, ambiguidades e os conflitos de interesses que perpassam a sociedade.

No plano social e político, o momento pelo qual passa o país torna tal discussão ainda mais premente, pois ao mesmo tempo que nunca foi tão claro que o Patrimônio Cultural e suas instâncias são instrumentos de inclusão social, volta a ficar evidente que também funcionam como ingerências de interesses políticos e do poder, aquém das necessidades da comunidade que os cercam, podendo nesse caso funcionar como instrumento de práticas totalitárias e antidemocráticas.

Situação que marca uma regressão no campo epistemológico da preservação, pois como afirma Maria Pilar García Cuetos “métodos e práticas de conservação do património cultural envolvem a introdução no campo da conservação e restauro, valores monumentais de tolerância, respeito e diálogo entre culturas e o conceito de aspectos de desenvolvimento sustentável”.1 Essas problemáticas mereceriam ser mais discutidas na disciplina histórica, assim como nas ciências humanas como um todo e, nos dias atuais, tristemente, estão sendo colocadas em xeque por parte de grupos conservadores.

Por outro lado, deve-se levar em conta que hoje o caráter subjetivo da conservação e preservação é também evidente, e seria ingenuidade descartar a hipótese de que as práticas de preservação de acervos são socialmente construídas sob interesses vários.2 Tal situação tem seus dois lados da moeda, pois, infelizmente, ainda, nos deparamos com centros de documentação, arquivos, museus, bibliotecas públicas e ou de interesses públicos, geridos e ou organizados segundo interesses autoritários e particulares de seus gestores, que com tais práticas fazem um desserviço não só para pesquisa, para memória e para a história, como também para a democracia. O mais intrigante é que muitos desses partem de um discurso de defesa da preservação e divulgação dos acervos sob sua guarda, mas, na prática, de fato, fazem de tais acervos instrumentos quase particulares do uso do passado. Mas, também, tal plasticidade nos possibilita a enxergar os diversos atores nesse processo de preservação e conservação da memória, sujeitos que vão além dos técnicos e intelectuais, pois parte-se de uma noção de patrimônio aberta, na qual os objetos de memória se tornam objetos patrimoniais a partir do significado dado a ele pela comunidade. Não se parte então, de um valor fetichista dos objetos que teriam seus significados emanados única e exclusivamente deles próprios, na verdade poderia se enxergar a partir de tais acervos os multi-significados que refletiriam os diversos sujeitos que contribuíram para construí-lo, o que nos leva a conclusão óbvia que um Patrimônio ou acervo patrimonial não existe separado de um sujeito e ou de uma sociedade. O que possibilita, então, a dar voz aos atores anônimos dessa “construção”.

Assim, por exemplo, o mestre escravo taipeiro responsável por erguer as paredes das casas sedes das fazendas produtoras das monoculturas que dinamizaram os vários ciclos econômicos do Brasil, podem ser tratados como protagonistas tanto de acervos arquitetônicos, da cultura material, como da fonte escrita, a partir de inventários e testamentos feitos por seu senhores de engenho ou grandes produtores de café, documentos que tanto complementam as estantes de nossos arquivos e centro de documentação histórica. A valorização de tal visão democrática e problematizadora dos acervos históricos é condição teórica e social necessária nos dias de hoje, marcados por disputas ideológicas acerca do passado.

Dentro desta perspectiva ampla os artigos reunidos no dossiê “Instituições de memória, documentos e acervos históricos” se caracterizam por um ecletismo semelhante, marcado por abordagens metodológicas, documentais e teóricas. Instituições, acervos e propostas de discussões acerca do tema dão esse caráter variado aos artigos aqui apresentados, mas que compartilham de um ponto em comum, a relevância da preservação e conservação de tais acervos para o fazer-se histórico.

Nesse sentido é que Isabel Cristina Martins Guillen, ao abordar a intrínseca relação entre as manifestações performáticas da cultura popular e o processo de gentrificação do Bairro do Recife, salienta as políticas públicas que envolveram a preservação de práticas culturais no Carnaval, e em especial os maracatus-nação, no período de 1995 a 2015. Em linha semelhante, no segundo artigo aqui apresentado, Leandro Candido de Souza analisa alguns aspectos da patrimonialização dos bens que constituem o chamado Corredor Cultural do município de Santo André, observando particularmente a reorganização da identidade municipal que ele implica.

Em seguida a professora do Departamento de História da PUC-SP, Maria Antonieta Antonacci a partir do artigo “Memória e Patrimônio em ‘arquivo vivo’” apresenta debates e agenciamentos relacionados às culturas letradas e orais, com suas formas e lugares de memória, patrimônios culturais, salientando o relevante papel de memórias do corpo, vividas e compartilhadas em rituais, festas e performances.

Na sequência o professor João Paulo Avelãs Nunes, da Universidade de Coimbra, a partir das concepções do novo patrimônio cultural e da nova museologia, parte para o estudo de organizações como as Santas Casas da Misericórdia, para entender sua utilidade social e a visibilidade pública.

Também da Universidade de Coimbra, Fernando Tavares Pimenta analisa em seu artigo as políticas de classificação do património histórico- cultural de Angola, assim como procura fazer a problematização sobre o processo de construção de uma rede museológica nacional angolana.

Da Universidade da ISCTE-IUL de Lisboa a professora Paula André, Ana Nevado e Nádia Luis apresentam uma abordagem crítica fundada no quadro conceitual de Françoise Choay, Laurajane Smith, Fernando de Terán, Loes Veldpaus e Anna Colavitti, tomando como referência a requalificação da arquitetura e a regeneração urbana na cidade de Lisboa.

Jose Arbex Junior do Departamento de Jornalismo da PUC-SP coloca questões agudas sobre memória, história, mídia e sociedade no seu artigo: “Holocausto da memória: ‘Espetacularização’ esvazia o sentido crítico do registro histórico”.

Para fechar o Dossiê, Romina A. España Pardes, da Universidad Nacional Autónoma de México traz uma relevante discussão acerca do diário do político, jurista, e historiador mexicano José Fernando Ramírez, salientando a importância dos relatos de viagem para o exercício e a preservação da memória.

O número consta ainda com dois artigos livres “Diálogos d’alémmar: Elis Regina e a MPB desembarcam em Portugal” de Mateus de Andrade Pacheco, no qual o autor foca na incursão da cantora brasileira Elis Regina pela cena artística portuguesa e “A censura militar pelo prisma das matérias vetadas do jornal O São Paulo (1972-1978)” no qual Fabio Lanza e José Wilson Assis Neves Junior abordam a censura prévia militar imposta ao jornal O São Paulo durante a década de 1970, a partir da análise documental das matérias censuradas pela ditadura militar brasileira (1964- 1985).

Esperamos que os leitores possam apreciar tais escritos, levando em consideração que buscamos organizar um panorama variado e problematizado das Instituições de memória, seu documentos e acervos históricos.

Notas

1 CUETOS, M. P. G. Humilde condición. El patrimonio cultural y la conservación de su autenticidad. Gijón: Ediciones Trea, 2009.

2 MUÑOZ VIÑAS, S. Teoria contemporanea de la restaucion. Madrid: Sinteses, 2004.

Carlos Gustavo Nóbrega de Jesus – Departamento de História e Programa de Pós-Graduação em História da PUC-SP

Marcos Tognon – Docente Departamento de História-IFCH / UNICAMP


JESUS, Carlos Gustavo Nóbrega de; TOGNON, Marcos. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.62, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Tensões, disputas e diversidades, 1968-1988-2018 / Projeto História / 2018

Tensões – Disputas – Diversidades: 1968-1988-2018 / Projeto História / 2018

A história dos últimos 50 anos tem se revelado um complexo conjunto de forças políticas, econômicas e culturais em constante tensão. O surgimento de novos atores sociais (jovens, mulheres, negros, trabalhadores, dentre outros) tornou a cena pública um campo de tensão permanente, revelando-se em momentos icônicos, como em maio de 1968. As particularidades daquele tempo não se esgotam nas cenas parisienses. Vislumbramos grandes agitações nas ruas de Praga, em diferentes cidades do México, nos Estados Unidos ou mesmo nas ruas das cidades brasileiras.

O Ato Institucional Número 5, de 1968, inaugura a fase mais violenta e mesmo sanguinária da ditadura brasileira, contra a qual se levanta parte da sociedade civil brasileira. Vinte anos depois, o Brasil era outro. A nova conjuntura culmina na Constituição de 1988. A Carta mais democrática de nossa história não deixa de apresentar forte resistência dos setores mais conservadores.

A legitimidade do historiador para inventariar o passado, num momento em que o acesso aos documentos deixou de ser privilegio de seu ofício, para ser transferido a incontroláveis grupos de “saber” e “interesses” – que buscam construir ou fabricar uma versão oficial da história, a fim de convalidar no presente as atitudes contraditórias e muitas vezes suspeitas do passado – precisa ser retomada e novamente valorizada em suas bases epistemológicas, sob risco de vermos a história ser editada e reeditada em torno apenas de sua já conhecida e “infantil” obsessão pelas origens.

O ano de 2018, compreendido não como ano-calendário, mas como o tempo do agora, apresenta grande agitação política, marcada por discursos conservadores, como o golpe parlamentar de 2016, no Brasil, a eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos, o Brexit, na Inglaterra. No Brasil, é justamente a Constituição de 1988 que se encontra sob ataque. Os ataques a direitos fundamentais, o descaso com as regras democráticas, invasões de universidades, com censura a cursos e perseguições a professores, indicam que temos o dever de alertar sobre os riscos à jovem democracia brasileira.

O presente dossiê da Revista Projeto História busca justamente abrir espaço para esses três momentos políticos, certamente diversos e tensos, ora conservadores, ora críticos ao status quo. Com este dossiê, a revista do Programa de Estudos Pós-graduados da Universidade Católica de São Paulo almeja contribuir na divulgação de pesquisas de alto nível que enriqueçam o debate contemporâneo.

Nesse sentido é que se optou por abrir o Dossiê com o trabalho de Sheila Alice Gomes da Silva, que, ao se debruçar sobre as experiências e vivências das comunidades africanas na cidade de São Paulo, propôs uma série de reflexões acerca da exclusão e estigmatização das populações negras, resultantes da violência e do racismo. O trabalho de Sheila, a quem prestamos homenagem pelo seu precoce falecimento, busca valorizar os grupos sociais que relembravam a elite paulistana de seu passado escravista.

O segundo artigo, assinado pela professora do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Carla Reis Longhi, analisa a documentação de comunicação SNI-DEOPS / SP buscando refletir acerca do contexto político do ano de 1968 no Brasil. Partindo dos conceitos de política e cultura política, o artigo discute as lógicas autoritárias e estratégias discursivas empregadas pelo regime para a manutenção do poder e do autoritarismo.

Em seguida, o professor de Teoria da História da Universidade Federal do Amazonas, Gláuber Cícero Ferreira Biazo, em diálogo com a hermenêutica de Paul Ricoeur, analisa como documento uma entrevista de história oral de vida acadêmica realizada com a professora Dra. Leyla Perrone-Moisés, na qual sustenta que a teoria do conhecimento em história oral contribui para problematizações em torno da memória narrativa, pois esta é entendida como resultante do engajamento de um sujeito na experiência histórica e em suas relações com o outro e com o tempo.

O próximo artigo do Dossiê é assinado pelo professor de sociologia do Instituto Federal Fluminense, André Pizzeta Altoé, que toma como objeto de suas análises a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP), fundada em 26 de julho de 1960. Nesse trabalho, Altoé discute como a manutenção da misoginia nos moldes medievais foi um dos traços marcantes do catolicismo ultraconservador e de direita do período, resultando numa total falta de capacidade de atuar na sociedade, uma vez que negligenciou a adoção de valores modernos como a incorporação de mulheres em seus quadros.

Na sequência, Sérgio Luiz Santos de Oliveira, pós-doutorando em História Social pela FFLCH-USP, busca discutir a formação da Mocidade Trabalhista do PTB (1957-61), conferindo especial destaque à cidade de Belo Horizonte. De lá formou-se uma geração de ativistas que, anos mais tarde, acabaram se engajando em organizações como a ORM-POLOP e a AP, como Theotônio dos Santos, Vânia Bambirra e Herbert de Souza, o Betinho, todos com destaque na esquerda brasileira na década seguinte.

Da Universidade Estadual de Ponta Grossa, o professor Névio de Campos e o Dr. Eliezer Felix de Souza propõem discutir o Maio de 1968 na Universidade Federal do Paraná. Partindo da documentação arquivada no DOPS e das atas do Conselho Universitário da UFPR, os autores privilegiam a análise do movimento estudantil e sua correlação com acontecimentos antecedentes, bem como as expectativas que agitavam os estudantes. Como resultado explicitam-se as ações levadas à cabo pelos estudantes e as formas repressivas colocadas em prática pelas autoridades universitárias e policiais.

O Dossiê desta edição se encerra com o artigo da professora do Departamento de Sociologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Léa Guimarães Souki, o qual discute as permanências da cultura libertária de Barcelona – onde se teve a única experiência histórica do anarquismo como governo –, como característica marcante de experiências cooperativas e assembleístas dos bairros numa mescla com a Confederação Nacional do Tralbalho (CNT).

Esta edição conta ainda com três artigos livres. O primeiro, intitulado “Engels e a igualdade jurídica: notas acerca da questão da secularização da visão de mundo teológica no Direito”, o professor Dr. Vitor Bartoletti Sartori trata da questão da igualdade em Friedrich Engels, buscando explicitar as rupturas e permanências entre a visão de mundo teológica e a jurídica na obra do referido autor germânico. Já o segundo artigo, de autoria da professora Dra. Maria Izabel de Azevedo Marques Birolli, analisa os usos [e abusos] que se fez de dispositivos legais para dar suporte à prática, antiquíssima, da tutela de filhos alheios como criados domésticos, propondo uma interpretação de como a rede de criadagem que se formou no Brasil desde o período colonial entrou em crise nos anos 1920. Por fim, o terceiro artigo, assinado pelo professor Dr. Linderval Augusto Monteiro, da Universidade Federal de Grande Dourados, traz uma narrativa do primeiro caso de linchamento ocorrido na Baixada Fluminense após o período que ele denominou de “colonização proletária”, em 1970, no intuito de relacionar esse caso com as formas populares de colonização da Baixada e, também, refletir sobre as representações dos periódicos cariocas acerca dessa região na década de 1970.

Assim, espera-se que os leitores possam apreciar os trabalhos selecionados, levando em conta que os editores buscaram organizar um panorama variado capaz de problematizar questões de nosso passado (e de nosso presente) que apontam para um cotidiano de grande agitação política no Brasil e no mundo, esperando que tais reflexões possam nos servir como um alerta para os riscos à democracia brasileira.

Luiz Antonio Dias – Departamento de História PUC-SP

Alberto Luiz Schneider – Departamento de História PUC-SP


DIAS, Luiz Antonio; SCHNEIDER, Alberto Luiz. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.63, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Cidades e Culturas Urbanas / Projeto História / 2017

Cidades e culturas urbanas em memórias, linguagens e perspectivas de presente

A proposta temática sobre cidades e culturas urbanas, apresentada pela Revista Projeto História, surgiu do nosso interesse e da avaliação sobre a importância dos estudos que buscam dar visibilidade aos modos culturais de viver, considerados na multiplicidade de práticas, valores e sentimentos que caracterizam as diversas experiências sociais, lutas e resistências dos sujeitos históricos.

Ao priorizar o tema Cidades, volta-se o presente dossiê para a discussão sobre os processos de constituição das culturas urbanas. Trata-se de promover o debate sobre viveres e fazeres dos trabalhadores e grupos populares, sua vida material e simbólica, seus territórios de memória, seus projetos, dissidências, práticas, tradições e relações com o meio ambiente, além de articulações com outros grupos sociais. Isto implicou em não perder de vista os desafios teóricos e metodológicos propostos por diferentes registros (em suportes materiais diversificados) que se apresentam à pesquisa histórica na atualidade, como expressões de experiências de sujeitos sociais nas cidades, surpreendidos em sua diversidade profissional, étnica, etária e de gênero no confronto entre culturas e modos de viver e trabalhar.

Assim, também as pesquisas aqui apresentadas refletem sobre a cidade como uma categoria da prática social, como elemento constitutivo dos processos históricos e da construção de seus moradores, tendo explorado as várias articulações entre a concretude mais visível das cidades e sua dimensão imaginária, quer a reflexão se centre mais em uma ou em outra dimensão.

Das análises históricas desses artigos, observamos a noção de território como espaço vivido e inventado por sujeitos sociais, em processos por meio dos quais heranças e tradições rurais se reinventam na cidade, tornando-se dimensões importantes de sua constituição. Do mesmo modo, hábitos, costumes, tradições engendrados na cidade penetram as vivências rurais. Logo, processos de territorialização e desterritorialização (movimentos migratórios, lutas por posse de terra, lutas por habitação, trabalho) inscrevem a luta de classes na espacialidade. Nessa perspectiva, a noção de território, ao questionar a ideia de cidade e de campo como meros cenários de práticas e experiências, possibilita-nos a percepção de que as temáticas do urbano e do rural se entrelaçam com as do trabalho.

Nessa linha, Agenor Sarraf Pacheco, no atual número da Projeto História, apresenta artigo em que “acompanha o fazer-se do urbano e do rural em contínuas simbioses”, problematizando questões acerca dos viveres sociais pelo tema da cultura e suas festas na Amazônia marajoara de 1930 a 2000. Leonara Lacerda Delfino analisa experiências e articulação de fazeres sociais urbanos em “rituais de separação e de incorporação no além-túmulo” na Irmandade do Rosário de São João del-Rei, de 1782 a 1828. Rodrigo Otávio dos Santos apresenta análise dos quadrinhos de Chiclete com Banana, por perspectivas da formação política da juventude urbana brasileira de 1985 a 1990, destacados amplos diálogos sociais naquelas páginas. O autor Magno Santos aborda a “escrita da história das espacialidades e da cultura urbana da Cidade de Alagoas no oitocentos”, destacados os caminhos interpretativos sobre manifestações religiosas da época em relatos de viajantes e cronistas vinculados ao Instituto Arqueológico e Geográfico alagoano. A pesquisa de Verônica Sales Pereira apresentada neste volume traça paralelos temáticos entre a produção social da memória, movimentos migratórios em São Paulo e a questão da forte especulação imobiliária no bairro da Mooca, São Paulo, no início do século XXI. José Otávio Aguiar revaloriza em seu artigo dimensões de resistências de grupos sociais por reformas urbanas na cidade de Campina Grande, e possibilidades interpretativas no campo da história ambiental. Fechando o atual dossiê temático, Henry Marcelo Martins Silva problematiza “modernidade e exclusão na belle époque sertaneja”, e o papel de elites dirigentes no processo de formação do meio social urbano na cidade de São José do Rio Preto durante a chamada “primeira república” brasileira.

Na seção artigos livres, traz a revista importantes reflexões. Marcos Silva problematiza temas e amplas interfaces da literatura de Jorge Amado com a formação de um mundo histórico de paz social e econômica, e esperança política, na passagem dos anos 50 para a década seguinte do século XX. A partir da análise de difícil momento de desvalorização integral de conquistas de direitos das sociedades socialistas, em face das graves violências do totalitarismo estalinista, amplamente divulgadas naquelas décadas, o autor pensa problemas em torno do controle autobiográfico de Jorge Amado sobre sua própria obra, bem como a relevância do trabalho do escritor baiano para o ensino de história. Laura Antunes Maciel, a partir de documentação produzida pela “Comissão Rondon”, ressalta a presença de outros sujeitos e suas memórias, histórias não expurgadas de contradições, forjadas em meio ao ocultamento de experiências sociais de excluídos da sociedade. A autora pensa a produção da memória em torno do controle de projetos de formação de patrimônio, observadas perspectivas de disputas entre concepções de nação e de estado como lugares sociais recobertos pela ideologia do planejamento. Nessa mesma seção, Nelson Tomelin Jr. e Maria do Rosário da Cunha Peixoto apresentam experiências de resistência de trabalhadores e trabalhadoras na Amazônia brasileira a partir de processos trabalhistas travados na Junta de Conciliação e Julgamento da cidade Itacoatiara durante a ditadura, e no seu período posterior. Tomados tais processos como fontes, os autores problematizam as experiências de homens, mulheres, inclusive crianças, em difíceis disputas trabalhistas vivenciadas naquele momento social de acirrada luta de classes.

Na seção notícias de pesquisa, o atual número traz a contribuição de significativos relatos. Marilu Santos Cardoso nos fala de investigação no campo da criação musical nos anos de 1960 a 1990, e as implicações acerca da produção do esquecimento e da minimização da importância de artistas na sociedade autoritária brasileira daquele período. Matheus da Silva analisa resistências urbanas de trabalhadores na ditadura civil-militar em motins de 1983 contra a fome e o desemprego na cidade de São Paulo. Também nessa seção, Vanessa Miranda apresenta a trajetória de criação da AMISM – Associação de Mulheres Indígenas Sateré-Mawé, em Manaus, no período de 1995 a 2014. A autora, ao revalorizar a organização social de indígenas no estado do Amazonas, suas reivindicações por saúde e amplos direitos, como a participação política, evidencia perspectivas históricas da construção da democracia naquela cidade.

Destacamos ainda a colaboração de Giuseppe Roncalli Ponce Leon de Oliveira e Marinalva Vilar de Lima em resenha do livro “Ditaduras do cinema: Brasil, 1964 / 1985-1965 / 2006”, coletânea de textos organizada por Marcos Silva.

Finalmente, apontamos aqui o esforço de dar publicidade para relevantes trabalhos de pesquisa que enfatizam o espaço urbano como constitutivo de práticas sociais, tradições e hábitos conflitantes. Tais trabalhos desenvolvem reflexões sobre o exercício da escrita e da leitura, a respeito da produção musical e iconográfica, festas e rituais, comemorações e memórias, assim como outras formas de expressão e comunicação, dimensões importantes da construção das cidades e seus modos de vida.

O presente número reúne trabalhos que assumem as perspectivas de presente como campo de reflexão historiográfica e prática profissional. Afirmam esses pesquisadores a cultura como campo de construção de hegemonias e de projetos alternativos, articulando, em suas temáticas, modos de viver e trabalhar em diferentes espaços urbanos e temporalidades.

Maria do Rosário da Cunha Peixoto

Nelson Tomelin Junior.


PEIXOTO, MARIA do Rosário da Cunha; TOMELIN JUNIOR, Nelson. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.58, 2017. Acessar publicação original [DR]

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História, Linguagens e Movimentos / Projeto História / 2017

A Revista Projeto História, do Programa de Estudos Pós-Graduados em História da PUC / SP tem, historicamente, apostado na pluralidade teórica, temática e historiográfica, com particular ênfase na recuperação da historicidade e das vozes silenciadas. A revista também busca se afastar da endogenia, que muitas vezes marca a vida universitária. Nosso propósito é o de dar voz e vez a pesquisadores de outros estados do país e mesmo de outros países, em particular da América Latina. Nosso compromisso com uma sociedade aberta, democrática e includente não se dissocia do projeto de editorial, marcado pelo pluralismo, diversidade e diálogo com a produção intelectual em curso.

Esse volume da Revista Projeto História, intitulado História, Linguagens e Movimentos, buscou captar um traço decisivo da historiografia contemporânea: a multiplicidades de objetos de estudo. Dois elementos foram priorizados, por um lado as “Linguagens”, com ênfase nos estudos envolvendo as relações entre música, cinema, teatro, literatura e o periodismo. Conectado a isso, o dossiê da presente edição buscou valorizar os movimentos coletivos nos campos cultural, social, político e econômico. Conscientes dos riscos da “história em migalhas”, da hiperespecialização e do academicismo, buscamos aproximar as diferentes esferas da existência a fim de oferecer aos nossos leitores artigos que discutam assuntos diversos, que vão do debate econômico no Brasil do século XIX ao imperialismo norte-americano no Pós-Guerra. Da Igreja no medievo às relações culturais entre o Brasil e Portugal no século XX. Da imigração europeia às sensibilidades literárias em torno da experiência traumática da Segunda Guerra Mundial. Outra ênfase deste número está dedicada às conexões latino-americanas, dos embates entre bandeirantes e indígenas no interior dos impérios ibéricos às conexões entre Brasil e México ou ainda Cuba e Uruguai. Os artigos publicados possuem caráter interdisciplinar, capazes de colocar em diálogo diferentes temporalidades, saberes e tradições. Com esse dossiê, buscamos manter nossa tradição de promover um amplo debate sobre a diversidade historiográfica e a renovação da historiografia.

O artigo do professor Everaldo Andrade, intitulado “Mário Pedrosa e a construção do espaço imperial dos EUA sob o capitalismo monopolista” tematiza a trajetória intelectual empreendida pelo importante pensador brasileiro. O artigo analisa as linhas de força que levaram o país à uma ditadura militar em 1964, num contexto em que o capitalismo norte-americano desempenhou um papel decisivo na implantação de ditaduras no Brasil, bem como em outros países da América Latina, durante a Guerra Fria.

O artigo de Adailson José Rui, “O Caminho de Santiago no século XII: espaço de propagação dos ideais reformistas da Igreja”, discute o uso de fontes do século XII, principalmente do Liber Sancti Iacobi e da História Compostelana como espaço de propagação de ideias que visavam afirmar, entre os peregrinos, o poder do Papa e a centralização da Igreja em Roma. Estas discussões, inclusive o debate sobre o celibato, ensejaram um processo que acabaria por conduzir à reformas na vida da Igreja.

Leandro Mendanha e Silva e Paula Guerra aportam aos leitores da Projeto História o artigo “Encruzilhadas atlânticas: representações sobre Ângela Maria em Portugal, Angola e Moçambique”. No texto, os autores tematizam a maneira como a imprensa portuguesa tratou a passagem de Ângela Maria por Portugal e pelas chamadas “províncias ultramarinas”. As trocas artísticas e musicais nos jornais e revistas portuguesas sobre a relação Brasil-Portugal são importantes contribuições dos autores.

O artigo “A reforma da natureza e da agricultura: o exemplo dos inquéritos e dos congressos agrícolas no último quartel do Império”, de Roberta Barros Meira, investiga o inquérito realizado em 1874 pelos diferentes ministérios (Fazenda, Justiça e Agricultura), bem como os dois congressos agrícolas realizados em 1878. Essa documentação permite acessar o pensamento agrário brasileiro do último quartel do Império. Nesses discursos aparecem demandas nacionais ou regionais relacionadas a diferentes ângulos, como o ambiental, o político e o econômico.

O artigo intitulado “Indígenas, bandeirantes y fronteras coloniales ibéricas en América”, dos professores Hernán Maximiliano Venegas Delgado e Hernan Venegas Marcelo, representa uma contribuição internacional desse volume, pois promove uma análise da ação dos bandeirantes e resistências indígenas, apresentando um balanço da produção historiográfica sobre o tema, tanto em língua portuguesa quanto espanhola.

O texto do professor Ival de Assis Cripa, estudioso da história e cultura mexicana, “Quando a Ficção Se Confunde Com a História, Quando a Vida Parece Ficção: Manuel Benício, Heriberto Frías e suas estratégias originais de sobrevivência Intelectual”, tem como elemento central a análise da produção de dois intelectuais e periodistas – um brasileiro, Manuel Benício e, um mexicano, Heriberto Frías – que cobriram, respectivamente, a Guerra de Canudos e a Guerra de Tomóchic, ocorrida no México em 1892. Nesse artigo, o autor analisa artigos de jornal e obras literárias desses dois jornalistas, buscando refletir, dentro do espirito desse volume e de forma interdisciplinar, o que o autor intitula de “o embaralhamento entre o jornalismo e a literatura”, onde podemos acrescentar, também, a história.

Nessa mesma linha interdisciplinar vinculando história e literatura, temos o artigo “Entre enigmas e traumas: memória, história e literatura em três contos de Bernhard Schlink”, dos professores César Martins Souza e Luis Junior Costa Saraiva, que analisa três contos do escritor alemão Bernhard Schlink – A Menina com a Lagartixa, A Circuncisão e Johann Sebastian Bach em Rügen – vinculados à episódios traumáticos da Segunda Guerra Mundial, o texto apresenta uma discussão importante e atual sobre memória e silenciamento de episódios perturbadores e incômodos.

Finalizando os artigos diretamente vinculados ao tema do dossiê, temos “Quando sahir de caza, arme-te com o signal da Cruz”: instruções para a rotina de um menino cristão em um manual pedagógico português do século XVII”, da professora Giana Lange do Amaral e do professor Fernando Cezar Ripe que promove uma análise interdisciplinar, de um manual pedagógico português do século XVII, articulando uma discussão com a Educação, a Literatura de Comportamento Social, o discurso religioso.

Entre os artigos livres optamos por publicador o texto de Victor Andrade de Melo, Vivian Luiz Fonseca e Fabia Faria Peres, intitulado “Patrimônio esportivo: um tema de investigação”, por tratar de um debate entre o patrimônio esportivo e o processo de patrimonialização no Rio de Janeiro. Para os autores, essas ações contribuem para lançar novos olhares para o passado por meio do esporte impactando a maneira de se conceber a cidade através do estimulo às reflexões sobre o espaço público.

O texto de Almir Félix Batista de Oliveira, chamado “E o patrimônio no livro didático de História?” discute a temática do patrimônio cultural inserida no livro didático de História, em torno dos universos escolar e da sociedade. Para o autor, o papel educativo define a identidade e o caráter das relações passado-presente-futuro. Sendo necessário lembrar que a universidade precisa, cada vez mais, discutir o ensino de história, pois é uma das razões de ser da universidade.

O texto de Mariana Martins Villaça, “Cuba e a esquerda uruguaia: o Encontro da OLAS (Organización Latinoamericana de Solidaridad, 1967) nas páginas de Marcha”, apesar de incluído na seção de artigos livres, também dialoga com o tema do dossiê, ao apresentar uma análise do periódico uruguaio de esquerda Marcha, buscando mostrar “[…] os embates entre as organizações políticas a respeito de quais delas integrariam o Comitê uruguaio para participar do Encontro da Olas (Organización Latinoamericana de Solidaridad) em Havana, em 1967, representando, assim, a “vanguarda” da esquerda uruguaia naquele momento”. Nesse trabalho verificamos uma interessante discussão sobre imprensa, cultura e movimentos.

O último artigo desse volume, de Silvana Seabra Hooper, intitulado Geração e Juventude: O debate sobre a geração AI-5, apresenta uma análise do conceito de “geração” e promove uma discussão sobre as características dos jovens que viveram a violência do Ato Institucional nº 5, em 1968.

O volume conta também com uma excelente entrevista, realizada pela professora Jussaramar da Silva, em junho de 2016, com a jornalista Leneide Duarte-Plon, autora da obra “A tortura como Arma de Guerra – Da Argélia ao Brasil: Como os militares franceses exportaram os esquadrões da morte e o terrorismo de Estado”. Essa entrevista gira em torno de outra entrevista, que a jornalista fez com o general francês Paul Aussarresses. Esse militar atuou no Brasil como adido militar e foi um dos responsáveis pela disseminação, em território brasileiro, da Doutrina da Guerra Revolucionária ou Doutrina de Guerra Suja.

No fechamento do volume, temos a Notícia de Pesquisa, “Boas maneiras para crianças e jovens: O controle dos corpos na civilidade erasmiana no século XVI” de Ana Luísa Pisani com tema diretamente vinculado à proposta desse dossiê temático, através do pioneiro trabalho literário do humanista do século XVI, Erasmo de Rotterdam, em especial o livro de etiqueta direcionado para jovens.

Esperamos que as páginas dessa revista possam contribuir, mais uma vez, para o debate historiográfico através de uma leitura agradável e instigante. A pluralidade e a diversidade deste volume é nossa aposta no debate, na abertura e no diálogo historiográfico, teórico e temático.

Luiz Antonio Dias

Alberto Luiz Schneider

Os editores


DIAS, Luiz Antonio; SCHNEIDER, Alberto Luiz. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.59, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Revoluções, Revoltas, Resistências / Projeto História / 2017

Cem anos após o acontecimento mais marcante na história social do trabalho, a Revolução Russa, a Projeto História assume o compromisso de levar ao leitor um volume inteiramente dedicado à temática Revoluções, revoltas e resistências. Este é, acima de tudo, um compromisso com a totalidade objetiva da história neste momento decisivo das lutas sociais diante da mais aviltante ofensiva do capital contra o trabalho. Revoluções, revoltas e resistências alude à temática do trabalho e ao seu filósofo mais substantivo, Marx, nas vésperas de se completar duzentos anos de seu nascimento. Vale notar todas as séries de adulterações do pensamento marxiano que desde a época contemporânea ao próprio filósofo já ocorriam. Marx era e continua a ser objeto de um conjunto de interpretações e leituras sumariamente equivocadas, cujo âmbito de gradações tem a envergadura do mais baixo reducionismo stalinista ao mais complexo debate gnosiológico, sem deixar de passar pela detração consciente originada na apologética do capital. Desfigurações desta monta são notadas especialmente nos momentos de crise estrutural do capital, transformando o filósofo do trabalho num monstro quasimodesco, uma foz delta na qual todos os ódios deságuam.

István Mészáros, o mais importante filósofo marxista desde György Lukács, teve protagonismo na análise da ordem sociometabólica do capital, nas questões da ideologia e, especialmente, na definição da particularidade do mundo pós-capitalista que se ergueu na União Soviética e que, agora, urge à problemática da emancipação a remoção deste pesado entulho. Mészáros morreu no outubro em que se completou o centenário da Revolução Russa e deixou uma obra inacabada, o que desnuda o seu vigor: aos 86 anos, Mészáros escrevia Para além do Leviatã, que, segundo ele próprio, tratava-se do seu mais ambicioso projeto intelectual, uma monumental crítica do estado que seria composta em três partes: o desafio histórico; a dura realidade; e a alternativa necessária. Por seus materiais preparatórios, sabemos que o desafio histórico de superar o capital é uma montanha do tamanho do Everest, que a dura realidade é tentativa de elaborar uma alternativa sociometabólica viável cuja tônica é a criação de um modo de produção inteiramente novo, com instrumental produtivo igualmente inédito e superior ao do capital, evitando, deste modo, sua recalcitrância e transcendendo radicalmente em sua essência a hierárquica divisão social do trabalho1.

Um dos méritos de Mészáros é apresentar a alternativa sociometabólica viável não como um postulado ético abstrato ou uma utopia revolucionária idílica, mas como uma possibilidade concreta. Muita vez reduzido a sonho bucólico ou comunismo primitivo, o desenvolvimento técnico-produtivo potencializa o próximo salto da humanidade em seus complexos organizativos. Esta é a verve que anima o artigo inicial do dossiê deste volume da Projeto História, composto pelo pesquisador Claudinei Cássio de Rezende. Neste artigo, intitulado A regência do capital sem capitalismo nas sociedades pós-capitalistas, o debate é em torno de István Mészáros e sobre o ineditismo da experiência socialista, verificado na análise do conjunto das sociedades pós-capitalistas, e apresentando a teorização de José Chasin sobre a barbárie do socialismo de acumulação. Luiz Antonio Dias, por sua vez, traz Notícias do outubro vermelho, de co-autoria de Rafael Lopes de Sousa, apresentando-nos os limites da imprensa brasileira – ainda muito dependente de agências internacionais – a partir da cobertura do Jornal Estado de S. Paulo logo após a sucessão revolucionária de 1917. Nesta ponte entre a revolução internacional e a questão nacional temos a análise de Yuri Martins Fontes sobre A Revolução Russa e a revolução latino-americana, tratando com especial atenção da recepção teórica no nosso continente da ideia de revolução a partir dos anos 1920. Recomposição importante que acentua a necessidade de se entender as estratégias revolucionárias dos processos de 1905 e de 1917, matéria tratada por Alessandro de Moura em O movimento operário russo e suas revoluções: as estratégias de 1905 e 1917. Marly Vianna, autora que é referência nacional sobre a Insurreição de 19352, trata da Importância da revolução socialista de outubro para o PCB. José Arbex Jr., autor premiado com um Jabuti3, junto a Danilo Nakamura escrevem sobre Os camponeses russos sob o olhar da intelligentsia revolucionária dos séculos XIX e XX. Neste artigo, os autores traçam o itinerário da organização populista (narodniki). O último artigo do dossiê trata das Cidades e tensões: movimentos sociais urbanos em São Paulo e a retomada dos territórios de luta em tempos de mundialização do capital, de Fabiana Scoleso.

Na seção de artigos livres, temos Denise Simões Rodrigues abordando Política, memória e educação na Amazônia paraense nos períodos colonial e imperial à luz da teoria de Cornelius Castoriadis, que é seguido por Damián Andrés Bil que aborda, em espanhol, A crise mundial do setor automotivo (1978-1982) e os efeitos sobre o complexo na Argentina. Elizangela Barbosa Cardoso escreve sobre Infância, Médicos e Mulheres em Teresina nas Décadas de 1930 e 1940, encerrando esta parte. As resenhas de Iago Augusto Martinez de Toledo e de Paulo Fernando Souza Campos apresentam novidades editoriais sobre o revisionismo histórico e a liquidação do pensamento revolucionário – perspicaz análise deste jovem pesquisador em tom de ensaio –, no primeiro, e sobre feminismo, etnia e classe, no segundo.

Em outubro realizamos na PUC-SP, coordenado por Antonio Rago Filho e seu núcleo, um grandioso seminário internacional sobre os 100 anos da Revolução Russa, contando com a presença de Michael Löwy, Tariq Ali, Tamás Krausz4, Miguel Vedda, Alan Woods, Sean Purdy, Osvaldo Coggiola e dezenas de outros estudiosos mundialmente reconhecidos por esta área de atuação intelectual.

Notas

1 Cf. o prefácio de Claudinei Cássio de Rezende na obra SANTOS, Antonio Carlos dos. Eric Hobsbawm e a Revolução Russa. Curitiba: Editora Prismas, 2017

2 VIANNA, Marly. Revolucionários de 1935. São Paulo: Expressão Popular, 2007.

3 Prêmio Jabuti de melhor livro de reportagem por ARBEX, José. O século do Crime. São Paulo: Boitempo, 1998.

4 Destacamos a publicação da biografia de Lenin por Tamás Krausz pela Boitempo Editorial, intitulada Reconstruindo Lenin, fruto de mais de quatro décadas de trabalho deste historiador húngaro.

Antonio Rago Filho

Carlos Gustavo Nobrega de Jesus


RAGO FILHO, Antonio; JESUS, Carlos Gustavo Nobrega de. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.60, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Stuart Hall / Projeto História / 2016

Em lutas culturais com Stuart Hall

Em singular e significativa “abordagem dialógica da teoria”, Stuart Hall – intelectual militante com densas reflexões sobre o mundo contemporâneo –, em atenção a políticas de representação advindas de diásporas africanas pós Segunda Guerra a ex-metrópoles, alavancou discussões em torno de lutas culturais, sob dinâmicas interdisciplinares, na expansão dos estudos culturais britânicos na década de 1960. Ainda encaminhou expressivas análises nos primórdios dos estudos pós-coloniais, com intuições políticas relacionadas a desdobramentos interrelações local e global, desde anos 1990, enunciando rearranjos da globalização na longa duração do expansionismo Ocidental.

Nascido na Jamaica, em 1932, com 19 anos Stuart Hall foi para Inglaterra, estudar literatura em Oxford, tornando-se um teórico cultural de impacto na cultura contemporânea, enquanto personalidade anglojamaicana de prestígio na plêiade de pensadores hifenizados, forjados “entre-lugares” de fluxos migratórios a centros europeus. Fez da Inglaterra seu promontório. De onde ouviu, viu, sentiu, leu e discutiu em convívio com redes de imigrados de todos os alcances do Império, acompanhando insurgências e fazendo circular ideias, imagens, ritmos, artes, estilos que traduzem tensões transcontinentais e interculturais na vazante de poderes coloniais.

Em diversificada produção, com ensaios político-intelectuais, conferências, entrevistas, filmes, documentários, recorrendo a metáforas, simbologias, estratagemas de “sistema de representação”, construiu abordagens críticas a políticas culturais e intervenções ocidentais reincidentes em colonialidades raciais. Empenhado em fazer-se entender em suas críticas a modos europeus de pensar culturas negras e diásporas, produziu questionamentos contínuos a projeção da supremacia ocidental desde enunciados, registros, preconceitos e depreciações de seus Outros.

Além tais táticas, vale reter como seu sistema de pensar e formar arquivos críticos ao fazer-se ocidental, com suas abstrações universais e discursivas em tratados teóricos, construiu reflexões e empirismo lógico na agilidade de ensaios, conforme necessidades conjunturais, históricas, sem adotar produção intelectual em convencionais teses, tratados, livros. Em diálogos e contundentes debates, recorrendo a análises levantadas por diversos intelectuais, produzia argumentações precisas.

Nas controvérsias da nova esquerda marxista, diante perdas de seculares expectativas de lutas sociais na Europa, a diáspora negra personalizada em Stuart Hall assumiu pesquisas, discussões, intervenções nos marcos do Centre for Contemporary Cultural Studies, em Birmingham, encaminhando questionamentos culturais perante atitudes imperiais. Abrindo frentes pioneiras de reflexão, trilhadas por estudiosos centrados em culturas populares – seu ângulo de interesse desde sempre –, deteve-se em dialética de identidades subjacente à recepção de signos e símbolos culturais, à dinâmica de traduções culturais aqui agora e a deslocamentos de poderes em jogos semelhança / diferença, potencializando legados teórico-analíticos que “fizeram diferença”.

Assim renovou estudos em relação a diásporas africanas, articulando ritmos, imagens, gestuais, em ampla gama de reflexões sobre lógica de culturas negras, lutas raciais, redes de racismo, seus sentidos históricos e contínuas transgressões.

Nesta homenagem da revista Projeto História ao legado da ação político intelectual de Stuart Hall – em crítica ao eurocêntrico desde estudos culturais, pós-coloniais, antirracistas –, reunimos tradução, entrevista tratando raça / gênero, depoimento, artigos, pesquisas, que pluralizam suas contribuições além das fronteiras nacionais ou disciplinares, convencionais registros, engessamentos alheios a lutas culturais. Ao estimular estudos sobre temáticas e dinâmicas culturais negras, Hall referendou a diáspora africana e o Novo Mundo na base do mundo moderno, da cultura contemporânea, das artes e embates midiáticos.

Sem pretensão de abordar a polissemia de seu legado teórico-cultural, lembramos questões que levantou e discutiu, revigorando abordagens históricas, de ciências sociais e humanidades, de modos de pensar e fazer avançar compreensões de embates político-culturais, pontuando desafios assumidos, heranças transmitidas e a ser atualizadas em seus continnuun, como sinalizam autores e textos aqui reunidos.

Longe de definir ou teorizar cultura, cientes que questões culturais não seriam abordadas “através de um processo de osmose acadêmica”, ou pelo chamado “sistema cultural” enquanto “redes de normas e valores abstratos”, vigentes em áreas de estudo na Inglaterra de 1960, Richard Hoggart e Stuart Hall pensaram cultura em termos de suas expressões materiais e sensíveis de comunicação. Desde “mudanças nos modos de vida de sociedades e grupos, de redes de significados que indivíduos e grupos usam para dar sentido e comunicarem-se uns com os outros: o que Raymond Williams chamou ‘modos totais de comunicação – que sempre são modos totais de vida’, onde ‘a cultura popular cruza com a cultura erudita’ e o ‘poder atravessa o conhecimento ou processos culturais antecipam a mudança social”.1

Percebendo que movimentos sociais estimulam “movimentos teóricos”, que conjunturas históricas reverberam em teorias como “momentos reais na evolução da teoria”, sem abrir mão do teórico, Hall argumentou – “Quero sugerir uma metáfora diferente para o trabalho teórico: uma metáfora de luta, de combate com os anjos (…), metáfora que vocês podem interpretar o mais literalmente possível” –, pois “A única teoria que vale a pena reter é aquela que você tem de contestar, não a que você fala com profunda fluência.” Pensando o “trabalho intelectual como interrupção”, tratou das interrupções de gênero e de raça que “arrombaram” os estudos culturais em seus desdobramentos históricos e teóricos,2 como abordam autores e artigos deste Projeto História.

Empenhado “que os estudos culturais colocassem na sua agenda as questões críticas de raça, a política racial, a resistência ao racismo, críticas à política cultural”, alertando para a construção histórica de imaginário racial que “permeou toda história do imperialismo”, em “ferrenha luta teórica [e] combate interno contra um silêncio retumbante, mas inconsciente”,3 do reducionismo econômico de lutas de classe, Hall produziu análises sob o foco de lutas culturais.

Voltou-se aos interstícios classe, raça, gênero, cultura, etnia, meios de expressão e comunicação, sem esquecer agenciamentos político ideológicos. Ainda posicionou-se para que “a questão racial não ficasse restrita” aos que “a estudavam enquanto comércio escravo; fortunas familiares que permitiram a revolução do século 18; estudos do movimento antiescravagista ou que eram especialistas em história e administração colonial”.4

Em combates por descolonização mental e deslocamentos de poderes, acompanhando a “virada linguística” dos anos 70, prestou atenção à “descoberta da discursividade e importância crucial da linguagem e da metáfora linguística para qualquer estudo da cultura; à expansão da noção de texto e textualidade quer como fonte de significado, quer como aquilo que escapa e adia o significado; à heterogeneidade e multiplicidade de significados; ao poder cultural e a própria representação, como local de poder e de regulamentação; o simbólico como fonte de identidade”.5

Desde estudos frente às “novas formas de globalização (…) em história de longa duração e com representação cultural sempre estruturada de forma binária”, evidenciando trânsitos econômicos e políticos desde inícios dos anos 90, em “virada teórica” situou: “o global e o local são duas caras do mesmo movimento, um trânsito de uma época da globalização dominada pelo estado-nação, as economias nacionais e as identidades culturais nacionais – até algo novo”.6

Em dinâmica onde as margens convertem-se em espaços com poder, usando novos meios de expressão e contatos interligados, acessando “meios para falar por si mesmos”, vislumbrou crescente poder cultural descentrado. Como os “sujeitos do local, da margem, só podem entrar na representação” – por assim dizer – “recuperando suas próprias histórias ocultas”, não podendo falar da expansão racial-colonialista do mundo ocidental “sem esquecer o momento no qual não tinham voz, descobriram que, efetivamente, tinham uma história a contar, que tinham linguagens que não eram as línguas do amo, nem as línguas da tribo”.7

Tornando notório o potencial de contra-narrativas, de artes, memórias, histórias em outras linguagens, que carregam filosofia, ética e estética avessas a colonialidades racistas, articulando episteme crítica à decolonialidade de saberes, Hall sentiu o mundo descolonizar-se pelas bordas e agiu para respaldar representações em línguas e linguagens locais, prenhes de histórias singulares em suas expressões e meios de comunicação. Em análises com erudição, envolvido em debates sobre significado e peso simbólico de artes e literaturas em textos intertextuais, interculturais, em conteúdos abertos a fazeres híbridos, revelou um pensamento mundo em fronteiras extra-ocidentais.

Daí situar-se enquanto ator e autor visceralmente em choque com representações eurocêntricas de história, comprometido em fazer emergir auto-representações em histórias locais. Engendrando múltiplos espaços novos ou refazendo antigos, as percebidas injunções local / global já introduzem alterações profundas em museus, acervos de patrimônios culturais, exposições artísticas além razão greco-romana e renascentista, promovendo críticas a práticas de arquivo ocidental, que ignorou saberes e poderes em modos de ser e lutar em expressões rítmicas, gestuais, iconográficas, performativas entre letra / voz / imagem / sons.

Além tudo que já foi dito e a dizer em relação a Stuart Hall, sua grande contribuição teórico cultural advém de seu voltar-se à diferença histórica desde análises de poderes simbólicos, de seus significados e (re)significações em dinâmicas culturais de lutas por viveres alternativos ou outros “sentirpensares”.8 Hall representa o voltar-se à materialidade histórica desde respaldo em reais alteridades, em conexões cosmos / corpo / cultura ou aproximações distintivas, simbolicamente expressas em direção a concretizados viveres em outros modos de ser, pensar, sentir e estar no mundo. Nessa direção, adensou estudos culturais, questionou limites do pós-colonial, sinalizou potenciais memórias e histórias em linguagens marginais, fluentes desde refazeres local / global, tornando-se voz crítica a rearranjos de poderes e saberes em meio a racismos plurais, incluindo e excluindo em seu perverso remake.

A opção por traduzir e publicar na revista Projeto História 56 – O Ocidente e o Resto: discurso e poder –, prende-se não só à ausência de tradução em línguas latinas desse estudo. Mas na intenção de divulgar, entre nossos estudantes, leitores, pesquisadores e interessados em estudos culturais, a trajetória política e intelectual de Stuart Hall em direção a falares e cantares pós-coloniais. Esse texto traduz como desconstruiu práticas de representação da supremacia ocidental na modernidade. Superioridade forjada ao marcar distância e menosprezo a modos de ser, viver, pensar dos que aqui estavam ou foram jogados, escravizados, colonizados. Mesmo enegrecidos, penalizados, resistem na reinvenção de suas culturas e valores, enquanto elites locais e globais usam seus saberes, energias, riquezas materiais e espirituais.

Notas

1 HALL, S. Raça, cultura e comunicações: olhando para trás e para frente dos Estudos Culturais. Revista Projeto História, vol. 31, São Paulo, 2005, p. 15.

2 HALL, S. Estudos Culturais e seu legado teórico. In: _____. Da Diáspora: Identidades e mediações culturais. SOVIK, L. (org.). Belo Horizonte: EDUFMG, 2003. p. 204.

3 ibid., p. 210.

4 HALL, op. cit., 2005, p. 18.

5 HALL, op. cit., 2003, p. 211.

6 HALL, S. Lo local y lo global: globalización y etnicidad. In: Stuart Hall Sin garantias: Trayectorias y problemáticas en studios culturales. RESTREPO, E; WASCH, C.; VICH, V. (eds.). Colombia / Equador: Envión editores, Universidad Andina Símon Bolivar, Instituto de Estudios Peruanos, Instituto de Estudios Sociales y Culturales, Pensar, 2010. p. 508.

7 ibid., p. 515.

8 Expressão de MIGNOLO, W. Habitar la frontera: sentir y pensar la descolonialidad (Antologia, 1999-2014). CARBALLO, F.; ROBLES, L.A. (eds.). Barcelona: CIDOB / UACJ, 2015.

Amailton Magno Azevedo

Maria Antonieta Antonacci


AZEVEDO, Amailton Magno; ANTONACCI, Maria Antonieta. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.56, 2016. Acessar publicação original [DR]

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Alteridade: Territórios da diferença / Projeto História / 2016

Alteridade: Territórios da diferença / Projeto História / 2016

A alteridade é um conceito fundamental para se pensar a construção do mundo moderno, bem como as interações e embates sociais e políticos provocados pelo colonialismo e pela expansão do capitalismo. Resulta deste processo uma grande mobilidade de populações e de viajantes. Eles transformaram a crônica de suas andanças e dos encontros culturais vivenciados em um gênero literário – os relatos de viagem – com ampla circulação e um imenso impacto no pensamento filosófico e científico. Os fluxos migratórios atuais, provocados por questões econômicas e sociais, por guerras e perseguições, também integram esse quadro. Alteridade pressupõe a construção de imagens especulares, que deflagram diferenças, opõem as antípodas da civilização, definindo suas marcas e fronteiras. É um fenômeno que, ao mesmo tempo, constitui identidades: as que definem o mundo narrado e visitado e as que forjam uma autoimagem de sua cultura, revelando expectativas e separando o homem dito civilizado dos Outros, vistos como selvagens. A alteridade está, portanto, numa zona de fronteira móvel e incerta; ela se institui, em geral pela comparação, enquanto processo de definição do Outro, mas também do próprio Eu, ainda que pelo simplificador recurso da inversão. Está presente nos embates, nas experiências, nas representações e nas diversas performances de gênero, que vão muito além de uma suposta divisão binária entre homem e mulher apenas. É fator que coloca, inevitavelmente, os indivíduos e os grupos frente à diferença, nos mais variados âmbitos: sexual, étnico, nacional e de classe. Até mesmo a própria historicidade, que os separa irremediavelmente do passado, pode ser entendida por meio dessa chave. O objetivo deste dossiê é pensar a alteridade em uma dimensão ampla, isto é, em seu poder de constituir o mundo a partir da diferença, que tanto pode induzir ao combate de identidades entendidas como irredutíveis, quanto promover o diálogo entre diferenças percebidas como comunicáveis.

Tendo em vista as reflexões realizadas acima, o presente dossiê reúne uma série de artigos que visam discutir as relações entre alteridade e identidade, as separações ou aproximações entre o Eu e o Outro, ou ainda as possibilidades de mediações entre essas instâncias.

O primeiro artigo, realizado por Drª Carolina Depetris, do Centro Peninsular en Humanidades y Ciencias Sociales, de Mérida, Iucatã, da Universidad Nacional Autónoma de México, trata da produção de um conhecimento sobre o território, produzido por viajantes e conquistadores, tendo como estudo de caso a Patagônia argentina. Em seu trabalho, a professora Depetris, autora de inúmeros textos sobre as relações entre a literatura de viagem, o saber científico e a poética, se questiona sobre a produção de um conhecimento geográfico sobre uma região vista pelos europeus como um espaço remoto do globo, que alimentou duas grandes lendas, a dos patagões, supostos gigantes que teriam habitado a região, bem como a Cidade dos Césares, uma espécie de Eldorado meridional. Analisando relatos de viagem dos séculos XVIII e XIX, a autora observa com imensa acuidade como essas lendas foram reelaboradas e substituídas pela busca de uma verdade científica, que não obstante eram suportadas por estruturas retóricas e literárias que mesclavam ciência e ficção, conhecimento geográfico e mitos, na composição de saberes sobre o espaço.

Na sequência, o dossiê traz um texto que enfoca a realidade indígena americana, mas, mais do que isso, reflete sobre uma personagem cuja trajetória acumula diversas condições de subalternidade do ponto de vista social. Tratase de um artigo sobre Micaela Bastidas, uma mulher mestiça (filha de negro e índia), que vivia no Vice-Reino do Peru em fins do período colonial, uma sociedade patriarcal e cujo poder era exercido por colonizadores (brancos) espanhóis. Em Tensões interculturais e lutas anticoloniais na sociedade andina: autodiscurso e representações de Micaela Bastidas, Claudia Luna, professora da área de Literatura Latino-Americana da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), traz à luz a participação ativa da personagem citada, nas rebeliões coloniais indígenas ocorridas entre 1780 e 1781, o que acarretou em sua condenação e execução de forma exemplar (o enforcamento e o esquartejamento). Evidencia a intrigante situação de Micaela Bastidas que, a despeito de declarar-se analfabeta e monolíngue, deixou cartas e proclamas por meio das quais posicionou-se frente às rebeliões andinas. Sua memória, construída por meio de documentos fílmicos e literários, é também objeto desta análise. A perspectiva da autora, entretanto, se diferencia daquela que, a despeito de pretender reler e rememorar a personagem como heroína, acabava por enquadrá-la tradicionalmente em funções secundárias, não protagônicas, como a de “mulher e acompanhante” de Tupac Amaru, geralmente reconhecido como principal líder das rebeliões. Ao contrário, Claudia Luna destaca as atuações desta mulher, mestiça, supostamente analfabeta e monolíngue, mas que, paradoxalmente, agiu de maneira imperativa, recebendo, por isso, pena capital.

Deixamos o espaço hispano-americano para adentrar a América Portuguesa, mas permanecendo, ainda, no período colonial e na temática indígena. Esta porção do continente é representada em artigo que trata das relações de alteridade nas interações entre colonizadores e indígenas. No artigo A luta pelo reconhecimento na América Portuguesa: relações entre indígenas e colonizadores nas Minas Setecentistas, Fernando Gaudereto Lamas, da Universidade Federal de Juiz de Fora, aborda as relações entre colonizadores e indígenas na Capitania de Minas Gerais entre os séculos XVII e XIX a partir do conceito de alteridade, o que lhe permite pensar como se constroem os princípios da diferença entre índios e brancos, e como essa diferença se reflete numa condição subalterna do indígena, o que o autor chama de uma alteridade negativa, o reconhecimento da diferença do indígena situado no campo da negatividade. A alteridade indígena é reconhecida mas para acantoná-lo no lugar da inferioridade. O autor traz uma novidade aos estudos coloniais ao incorporar o conceito de alteridade, quase nunca utilizado pela bibliografia especializada, bem como ao trazer a teórica Judith Butler, aparentemente restrita a temas contemporâneos, para pensar as relações entre conquistadores e conquistados na América portuguesa.

No mesmo período, o artigo de Alberto Luiz Schneider, do departamento de História da PUC-SP, intitulado Os paulistas e os outros: fama e infâmia na representação dos moradores da capitania de São Paulo nas letras dos séculos XVII e XVIII, dá a conhecer as múltiplas dimensões de alteridade entre os paulistas a partir da legenda negra, que associava os estes personagens à rebeldia, à mestiçagem, logo ao “sangue infecto”. Esta era uma imagem produzida por jesuítas e intelectuais, que identificavam nas gentes de São Paulo – ou da Rochela paulista, fazendo referência a La Rochelle, o bastião protestante da França – colonos ingovernáveis, entendidos até mesmo como um grupo étnico distinto. O autor reconstrói em seu texto, com erudição e sensibilidade analítica, alguns aspectos da formulação dessa imagem dos paulistas fazendo também uma leitura da reconstrução dessa legenda negra realizada por intelectuais como Frei Gaspar da Madre de Deus e Pedro Taques, criando o mito do paulista brioso, valente e arrojado, o herói bandeirante, cujas estátuas manchadas de tinta vermelha são de incômoda atualidade.

Na sequência, entramos no território paulistano, para conhecer sobre a presença de negros e negras no centro da cidade, no último quartel do século XIX e início do XX. O artigo de Fabia Barbosa Ribeiro, professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), intitula-se Vivências negras na cidade de São Paulo: entre territórios de exclusão e sociabilidade. Baseado em fontes orais, aborda as sociabilidades negras em torno dos homens e mulheres da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de São Paulo. As entrevistas realizadas pela autora dão conta de mostrar como ocorriam as circulações pelo espaço, as atrações frequentadas e os preconceitos enfrentados pelos negras e negras no centro da cidade no período mencionado. Ademais, Fabia Barbosa deslinda o tema da permanência de africanos e afrodescendentes no centro da cidade, criando uma ligação entre a virada do século XIX para o XX – quando foi marcante a presença de ex-escravos que sofriam com as políticas de urbanização e as discriminações amparadas na visão do determinismo biológico – e a entrada no XXI, momento de retomada de fluxo da imigração de africanos e haitianos. Ontem, como hoje, tais personagens foram / são olhados como Outros, como estranhos e subalternos, o que leva a autora a considerar que estão em diálogo permanente com a situação da alteridade.

As questões raciais no transcurso do século XIX para o XX também são foco do artigo de Maria das Graças de Andrade Leal, professora da Universidade Estadual da Bahia (UNEB), sobre o intelectual afro-baiano Manuel Querino (1851-1923). A autora se detém sobre a vida e a obra deste escritor, definindo os principais temas e fases de sua produção: uma primeira, que se estende até 1916, na qual aborda em textos de diversos gêneros o ambiente artístico (incluindo as artes populares, manuais), no período republicano, enfocando principalmente sujeitos excluídos, negros e mestiços, sobre os quais pesaram preconceitos e discriminações; a segunda fase, que marca a etapa final de sua vida, é caracterizada pela produção de trabalhos voltados à recuperação de práticas e tradições africanas, o que confronta as perspectivas deterministas coetâneas, que alegavam inferioridade dos afrodescendentes. Outro ponto de destaque no artigo são as apreciações de Querino sobre a República, guinada política que não teria trazido, segundo o intelectual, grandes mudanças para as camadas populares. Além disso, o artigo também coloca em questão algumas críticas feitas ao autor estudado, baseadas na ideia de que ele não havia produzido seus textos dentro de normas profissionais. Finalmente, destaca a sua produção memorialística e reflete sobre como ela significou o resguardo de noções e aspectos do patrimônio e da cultura negra da Bahia.

Do universo intelectual e artístico da Bahia na primeira metade do século XX, passamos a uma discussão sobre o mesmo tema – os intelectuais e as artes – mas no México nos anos de 1920-30. O enfoque recai sobre um dos mais intensos processos verificados em termos de mudanças culturais do período: a emergência das vanguardas artísticas em território latino-americano. Neste contexto foram deflagradas as necessidades de afirmação, no terreno artístico, das identidades próprias do continente, sem que se ignorasse as filiações com as correntes estéticas europeias, movimento que implicou uma complexa rearticulação – com suas devidas reinvenções – das tradicionais relações entre “as margens e o centro”. O artigo de Romilda Costa Motta, professora do Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp), intitulado Vanguardas estéticas mexicanas: embates e polêmicas envolvendo o binômio identidade e alteridade fornece, em sua primeira parte, um bom panorama da arte de vanguarda na América Latina, situando-a em seus contextos social, político e cultural de produção. Localiza o leitor na diversificada seara de textos, manifestos e obras artísticas do período, para chegar ao cerne de seu artigo com uma análise instigante do debate entre dois grupos vanguardistas mexicanos nos anos 1920-30: de um lado os muralistas, e de outro, os artistas do círculo de Ulises, deslocados para um outro grupo chamado de Contemporáneos. O que dividia estas duas tendências era, basicamente, a adesão ao nacional e às camadas populares, pelo primeiro (os muralistas), e uma conexão com o cosmopolitismo pelo segundo (Ulises / Contemporáneos). As tensões resvalaram em ofensas pessoais, que ganharam repercussão pública, uma vez que expressas em obras (murais e poemas) que atingiram grandes alcances. Dentre os aspectos utilizados como meios de ataque estavam os julgamentos de membros do primeiro grupo sobre as orientações sexuais de artistas pertencentes ao segundo grupo. Estes enunciados revelam paradoxos curiosos, uma vez que mostram como certos setores das vanguardas artísticas reiteraram padrões morais tradicionais. Alteridade e identidade, aqui, são termos utilizados para localizar não só as complexas relações entre diferentes continentes (Europa / América), mas também as relações de classe e gênero. Antonieta Rivas Mercado – mecenas cultural no México no início do século XX -, Digo Rivera – um dos mais importantes muralistas mexicanos -, e Salvador Novo – poeta do grupo Ulises / Contemporáneos – são colocados em destaque para mostrar que as relações nas artes envolviam dois campos – o público e o privado -, em primeira medida colocados como opostos, mas cujas fronteiras, na verdade revelaram-se bastante fluidas e porosas.

Encerrando o dossiê, Paulo Ricardo Kralik Angelini, professor da Faculdade de Letras da PUC-RS, em artigo intitulado A doença do Brasil: imigração, estereotipização e transgressão no paraíso tropical, traz uma discussão de extrema atualidade. Trata-se da questão da imigração, especificamente a imigração brasileira em Portugal, país com o qual supostamente partilhamos cultura e língua comuns. Por meio de uma análise da literatura contemporânea portuguesa, o autor examina a forma como esses romances ainda apresentam o Brasil e os brasileiros por meio da chave do exotismo, do paraíso tropical, da sensualidade e da sexualidade exuberante. Utilizando-se da crítica pós-colonial, Angelini demonstra como os estereótipos organizam uma leitura sobre o imigrante brasileiro, ou sobre a paisagem brasileira, identificando neles uma ameaça à identidade portuguesa. Esta ameaça se dá sobretudo pela disruptura da mulher sensual e pelo espaço idealizado de fruição e evasão, elementos interpretados pelo autor como uma reedição de antigos clichês e incompreensões. Ao lado da aludida sensualidade, essas representações aparecem nos textos como se fossem uma “doença” do Brasil, o que demonstra uma relação cultural marcada ao mesmo tempo pela atração e repulsa.

Esta edição apresenta ainda três artigos livres. Jussara Parada Amed, pós-doutoranda do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), em artigo intitulado Júlia Lopes de Almeida, um novo ambiente para as mulheres: descobrir-se escritora no Brasil, nos traz a trajetória desta escritora de finais do século XIX, que participou da criação da Academia Brasileira de Letras, fazendo referência ainda ao ambiente literário feminino desta época. Léa Carrer Iamashita, do departamento de História da UnB, no artigo Saber médico no Brasil: Noções de degeneração e eugenia no debate educacional da década de 1920, analisa o conhecimento médico e o papel da eugenia no projeto republicano de educação e modernização do país. Finalmente, Carlos Eduardo Millen Grosso, doutor em História pela UFSC, em seu texto intitulado Fabricação da verdade em indagações policiais de defloramento, descreve os modos de produção de justiça para o crime de defloramento em Porto Alegre no final do século XIX e início do século XX, seguindo as etapas de produção da indagação policial para averiguação do ato, demonstrando os recursos utilizados pelos profissionais do sistema de justiça criminal, especialmente policiais, médicos legistas e delegados de polícia.

Os estudos apresentados mostram a ampla abrangência e diversidade temática que o conceito de alteridade pode abarcar. Acreditamos, assim, que este dossiê contribui para as reflexões críticas sobre o tema. Desejamos a todos uma ótima leitura.

Amilcar Torrão Filho (PUC-SP)

Stella Maris Scatena Franco (USP)


TORRÃO FILHO, Amilcar; FRANCO, Stella Maris Scatena. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.57, 2016. Acessar publicação original [DR]

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Experiências e Histórias Infanto-Juvenis / Projeto História / 2016

Nota dos editores

Ao longo da preparação dessa edição da revista Projeto História, a autora e Profa. Dra. Tania Mara Tavares da Silva, da Universidade Federal da Cidade do Rio de Janeiro (UNIRIO), veio, lamentavelmente, a falecer. Por esse motivo, acreditamos que, o artigo na sequencia publicado, seja uma das últimas contribuições escritas da Profa. Tania. Com esse artigo queremos homenagear e lembrar a colega que agora passa a ter longa vida com seus escritos e reflexões.

Tania se identificava com a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC / SP), com suas discussões, com seus projetos e estava entusiasmada e planejando desenvolver seu Pós-Doutorado no Programa de Estudos Pós-Graduados da referida universidade. Infelizmente sua morte deixa para trás essa intenção, mas reviverá na publicação deste número da Projeto História.

Como forma de homenageá-la reproduzimos também a nota abaixo elaborado pelo GT HISTÓRIA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE da ANPUH-SP, do qual ela era participante.

Nota do Grupo de Trabalho de História da Infância e Juventude da Associação Nacional de História – seção São Paulo (ANHPU-SP), manifesta seu profundo pesar pelo falecimento da Profa. Dra. Tania Mara Tavares da Silva.

A colega e amiga Tânia era colaboradora e entusiasta das atividades do GT tendo participado de inúmeras atividades organizadas pelo GT Infância e Juventude, sempre com muito afeto, alegria e companheirismo.

O GT lamenta muito a perda da estimada amiga e abraça fraternamente a família.

São Paulo, 19 de abril de 2016

Assina,

GRUPO DE TRABALHO DE HISTÓRIA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE ANPUH-SP

A construção social da infância e da juventude moderna não começa com a “invenção do sentimento moderno de infância, como preconizado por Phillipe Ariès no clássico “História Social da Criança e da Família”, e muito menos ela é a expressão unívoca de uma única forma de ser criança e adolescente na modernidade. Como sabemos a modernidade não foi um único, homogêneo e obrigatório modo de constituição sócio histórico, ela representou conflitos, exclusões. Cada vez mais, os aspectos múltiplos da formação social contemporânea são levados em consideração nos estudos históricos, desvelando a complexidade e as diferentes modernidades vividas e forjadas na concretude da experiência.

Os estudos das dimensões históricas de infanto-juvenil, sempre entendido como constituinte intrínseco da vida social, permitem perceber o mundo multifacetado em processo de mudança vinculase às modificações, e também às permanências, do lugar social destinado a esse setor social. No caso do Brasil, essa mudança sempre precisa ser compreendida em relação com especificidades da formação sócio-histórica nacional: ex-colônia de Portugal; período que se reconhece no Império e na República a colônia como símbolo do atraso sociedade associada a valores forjados no período escravista e que tem consequência no período pós-escravista; economicamente dependente e periférica no sistema capitalista internacional; multirracial; com representações identitárias assentadas, arraigadas (índio, negro, branco); às especificidades regionais.

A infância e a juventude, assim, não podem ser compreendidas como “consequências” da modernidade, mas como componente intrínseco da construção e delineamento do que viria a ser as várias feições da modernidade. Nesse sentido, os artigos reunidos neste Dossiê oportunizam perceber infâncias indígenas, pobres, de classe média, institucionalizadas (FEBEM), ilegítimas, infratoras, abandonadas, trabalhadora, escolarizada; permitem identificar variadas perspectivas e representações construídas sobre o universo infanto-juvenil, desde o olhar dos adultos; oferecem visibilidade para crianças e adolescentes como sujeitos de suas experiências e da vida social.

Os textos revisam fontes de diferentes tipologias como periódicos, jornais, livros de época, publicações oficiais, institucionais (Fundação Nacional e Estadual do Bem Estar do Menor, Fundação Nacional do Índio, Serviço de Proteção aos Índios, Serviço de Psicologia Aplicada, Instituto Interamericano da Criança), boletins, legislação, textos jurídicos, relatórios, Anais de eventos, processos judiciais. A partir dessas variadas fontes, os autores puderam perceber a complexidade histórica envolvida com as experiências envolvendo as crianças e os adolescentes no passado brasileiro e internacional. Esse universo documental também permitiu identificar a mobilização dos adultos na tentativa de controlar, definir padrões de conduta e domesticar gerações de pessoas que viveram suas infâncias entre 1850 e até últimas décadas do século XX.

A questão do reconhecimento da paternidade e dos direitos das crianças decorrentes dessa condição na primeira metade do século XX, no Brasil, através da problematização de textos jurídicos e da legislação de época, é o tema central do artigo “Infância, Família e Mulheres: Processo Civilizador” escrito por Tania Mara Tavares da Silva (ver nota). Debatendo o tema do reconhecimento da paternidade e das consequências da qualificação jurídica discriminatória de crianças nascidas de uniões livres (casais não casados oficialmente) ou de mães solteiras, ou de relações “ilegítimas” (mães ou pais casados que tem filhos fora do casamento), o texto revisa a historiografia sobre o tema, destacando como o assunto foi sendo objeto de limitações em nome de uma certa ordem social e moral. A partir da análise de textos jurídicos de época e de dados judiciais sobre o reconhecimento da paternidade, são exploradas diversas dimensões da problemática questionando permanências e mudanças na sociedade atual na relação entre Estado e crianças.

Dá-se sequência ao dossiê com o artigo “A Febem, o Código de Menores e a “pedagogia do trabalho” (Pernambuco, 1964-1985), do historiador Humberto Silva Miranda, no qual analisa os argumentos que foram apresentados pelo Estado e pelas elites, para justificar a criação da Fundação Estadual do Bem Estar do Menor (de Pernambuco), argumentos que enfatizavam a necessidade de uma nova instituição que vocalizasse as diretrizes da Política Nacional do Bem-Estar do Menor. As novas diretrizes são apresentadas criticamente Humberto e legitimavam o desenvolvimento de um aparato institucional de controle e de intervenção social sobre crianças e adolescentes pobres sob o argumento de promover o bem-estar por meio da privação da liberdade (retirando de circulação crianças e adolescentes, internando-os) e da educação para o trabalho. As fontes utilizadas para a produção da reflexão foram periódicos, livros de época, publicações oficias da Fundação Nacional do Bem Estar do Menor e da Fundação Estadual do Bem Estar do Menor (de Pernambuco).

No artigo “Educação e trabalho na escolarização das crianças indígenas no Brasil (décadas de 1950 e 1960)”, a pesquisadora Sueli Soares dos Santos Batista problematiza a estruturação da educação indígena, destinada às crianças de comunidades indígenas, ao longo do século XX, desde a criação do Serviço de Proteção ao Índio, passando pela FUNAI, e chegando a reestruturação dessa educação com a Constituição de 1988. A autora identificou como a educação destinada às crianças indígenas esteve focada até 1988 na capacitação para o trabalho, como uma forma, segundo imaginavam seus elaboradores, de inserção dos indígenas como trabalhadores agrícolas, em especial, na sociedade brasileira. Refletindo criticamente sobre essa concepção de educação, aponta as dificuldades para o seu desenvolvimento, ao longo do tempo, pelo Estado brasileiro. Indica a nova concepção de educação indígena a partir de 1988 e os desafios atuais para a sua viabilização. A documentação utilizada na pesquisa está centrada em fontes de instituições dedicadas à assistência ao índio no Brasil (SPI, FUNAI) como boletins, legislação, impressos, relatórios.

Buscando desnaturalizar os processos escolares e a construção da subjetividade infantil, Mirian Jorge Warde, propõem no seu artigo “A criança e o tempo: Prescrições do Serviço de Psicologia Aplicada (São Paulo, 1931-1933)”, refletir sobre as iniciativas do Serviço de Psicologia Aplicada, órgão vinculado à Diretoria Geral do Ensino do Estado de São Paulo, em 1931, como forma de)racionalizar, padronizar e massificar a escolarização das crianças no Estado. Por meio da análise das fichas elaboradas pelo Serviço, é destacado como a produção de dados a respeito da criança, da família, das rotinas e dinâmicas escolares, auxiliaram na orientação do processo educativo em vista de torná-lo mais racionalizado e otimizado numa lógica produtivista / fabril numa São Paulo em franca industrialização e crescimento populacional.

A criação do Instituto Disciplinar em São Paulo nos anos iniciais do século XX mobilizou diversos agentes do campo jurídico e médico, que por meio de seus posicionamentos e visões de mundo, propuseram medidas e instituições direcionadas às crianças e aos adolescentes dos setores empobrecidos da sociedade. As pesquisadoras Kátia Cibelle Machado Pirotta e Fernanda Broggi, no artigo “O Instituto Disciplinar e a discriminação da infância em São Paulo”, analisam como o saber médico, marcadamente eugênico e higienista, foi apropriado por juristas nas argumentações que embasaram a criação do Instituto Disciplinar, destinado a atender adolescentes encaminhados pela justiça criminal. As autoras utilizaram fontes legislativas (discursos e leis estaduais), livros de época, entre outros materiais.

A circulação de ideias e criação de laços intelectuais-científicos envolvendo o tema da atenção à infância, em especial a saúde infantil e a educação ao ar livre, entrelaçando a América do Sul e a Europa, foram os assuntos analisados por Helvio Alexandre Mariano e Carmem Lúcia Sussel Mariano no artigo “O debate sobre a infância na Quinzena Social de Paris de 1928 e o processo de criação do Instituto Interamericano del Niño”. Os autores apresentam uma interessante relação entre a atuação do Instituto Interamericano del Niño e o Dr. Luis Morquio, diretor do mesmo, e a a atuação de Morquio internacionalmente, em especial, na “Quinzena Social de Paris” de 1928, na qual ele presidiu o “Congrès International de L`Protection de L`Enfance” ocorrido no interior da referida quinzena. As fontes utilizadas, anais dos eventos e boletins do Instituto, permitem perceber a constituição de um campo internacional envolvido com o tema da infância e sua saúde, relativamente dinâmico e com reflexos na América e na Europa.

Buscando acompanhar trajetórias de crianças e adolescentes no Rio Grande do Sul, nas décadas finais do século XIX, José Carlos da Silva Cardozo, no artigo “Os menores de idade no Juízo dos Órfãos de Porto Alegre (Século XIX)”, dedica atenção à fontes judiciais envolvendo processos de Tutela e, através delas, alcança perceber significativos registros sobre a vida, os dilemas, as dificuldades de crianças e adolescentes. Com leitura cuidadosa e “à contrapelo” dos documentos, o artigo apresenta diversas dimensões da vida daquelas crianças e adolescentes objeto da intervenção judicial: as atividades e o cotidiano; atividades laborais; arranjos familiares; circulação por diferentes regiões e situações sociais; como o mundo dos adultos e das instituições se relacionam com os pequenos.

As representações da infância em jornais do Estado do Paraná, na segunda metade do século XIX, foram os objetos da atenção de Juarez José Tuchinski dos Anjos, no artigo “A imprensa periódica e a construção da infância na província do Paraná (1854-1889)”. A análise dos jornais buscou perceber as múltiplas representações de infância e das experiências infantis em circulação e em processo de configuração no Paraná, tendo predominância olhares românticos, positivos que enfatizavam a inocência; mas também expressavam perspectivas críticas e desabonadoras do modo de viver de algumas crianças (que jogavam pedras, as peraltas, “diabinhas”). A apresentação de variadas dimensões da infância permite perceber como essa faixa etária e os sujeitos infantis viviam e eram percebidos de modo cada vez mais complexo e atencioso dos adultos, os quais buscaram, frente a tais crianças e a novas formas de viver a infância, constituir mecanismos para compreendê-los, e atuar e controlá-los em uma sociedade cujas mudanças estavam cada vez mais acelerando-se.

Na seção de artigos livres, de fluxo contínuo, como expressão da política editorial da publicação, são apresentados os textos intitulados: “O meu lembrar pelos meus direitos: memória e direito à cidade em uma favela do Rio de Janeiro”, de Mauro Amoroso e “Higiene do corpo e Higiene da mente: algumas raízes da psiquiatrização da educação no Brasil”, de Alexandre Fernandez Vaz e Lara Beatriz Fuck.

Ao lado dos artigos selecionados, consta ainda do dossiê a apresentação de pesquisa relacionada aos estudos históricos do mundo infanto-juvenil de autoria de historiador José Pacheco dos Santos Júnior (“O valor do trabalho infantojuvenil em um tribunal sertanejo (1964-1972)”. Também faz parte da edição, a pesquisa “A missão na literatura: a Redução jesuítica em “a fonte” de O Tempo e o Vento”, do pesquisador Francisco Carlos Ribeiro.

Por fim, compõem a seção resenha, que nessa edição consta a colaboração de Paulo Brito do Prado, com o texto “Da beleza se faz história e outras coisas mais”.

Esse número da Projeto História expressa o desenvolvimento pelo qual a área de estudos da infância e da juventude e sua história tem passado, e procura ser uma pequena colaboração para o estímulo, continuidade e expansão do campo, manifesta também o esforço de pesquisadores em dar vitalidade à temática. Esforço este que se junta as problemáticas observadas na PUC / SP, suas linhas de pesquisa do Pós Graduação: Cultura e Cidade, Cultura e representação, cultura e Trabalho, assumindo um posicionamento crítico de várias questões presentes na cidade como a menoridade penal, na PUC / SP também se constituiu um Comitê da Verdade que exigiu o reconhecimento de familiares de cidadãos que foram mortos no período, torturados, silenciados, o que se deseja é o direito a História a exercer cidadanias que revelam o que esteve ocultado pelos donos de poder, também às iniciativas do Grupo de Trabalho em História da Infância e Juventude da Associação Nacional de História (ANPUH) em nível nacional e regional (ANPUH-SP).

Boa leitura.

20 de abril de 2016

Olga Brites. E-mail: olgabrites@uol.com.br

Eduardo Silveira Netto Nunes. E-mail: edunettonunes@hotmail.com


BRITES, Olga; NUNES, Eduardo Silveira Netto. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.55, 2016. Acessar publicação original [DR]

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Exílios: deslocamentos e transnacionalidade / Projeto História / 2015

O exílio nos compele estranhamente a pensar sobre ele, mas é terrível de experienciar. Ele é uma fratura incurável entre um ser humano e um lugar natal, entre o eu e seu verdadeiro lar: sua tristeza essencial jamais pode ser superada, embora seja verdade que a literatura e a história contem episódios heroicos, românticos, gloriosos e até triunfais da vida de um exilado. E, eles não são mais do que esforços para superar a mutiladora da separação.

A cena se torna mais terrível e lastimável, multidões sem esperança, a miséria das pessoas “sem documentos” subitamente perdidas, sem uma história para contar… negociações, guerras de libertação nacional, gente arrancada de suas casas e levadas as cutucadas, de ônibus ou a pé, para enclaves em outras regiões, o que esta experiência significa? Não são elas, quase por essência irrecuperável?

…o exílio é uma solidão vivida fora do grupo: a privação sentida por não estar com os outros na habitação comunal. Como então alguém supera a solidão do exílio sem cair na linguagem abrangente e latejante do orgulho nacional, dos sentimentos coletivos, das paixões grupais? O que vale a pena salvar e defender entre os extremos do exílio, de um lado, e as afirmações amiúde teimosas e obstinadas do nacionalismo, de outro? O nacionalismo e o exílio possuem atributos intrínsecos? São eles apenas duas variedades conflitantes da paranoia?

SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio

A longa citação se justifica pela importância que as questões dos exílios adquirem na nossa contemporaneidade, gerando inquietações sobre territórios, deslocamentos violentos e se constituindo num campos de tensão, violência e xenofobia. Terrível de experienciar, fratura incurável, marco de tristeza insuperável, os exílios arrastam multidões subitamente perdidas, sem documentos e esperança. Desencadeados por guerras, totalitarismos, genocídios e exclusões, milhares são e foram empurrados para derivas por territórios transitórios, vivenciando um descontínuo não pertencimento e enfrentando a urgência da busca por reconstruir a vida, vínculos e sentidos. Estas vagas recentes tornaram o século XXI, a “era do refugiado, da pessoa deslocada, da imigração em massa”. (SAID, 2005)

Desde finais do século XX, que se vivencia um processo marcado pela aceleração das transformações e intensificação dos deslocamentos que enfrentam fronteiras e limites territoriais, provocando crises e tensões internacionais. Estes deslocamentos contemporâneos desfizeram barreiras e criaram um ambiente híbrido, cosmopolita e transnacional, colocando a difícil a tarefa de recuperar uma história que considere os esparsos registros, memórias e reflexões de homens e mulheres que partiram para o exílio – entendido em sentido amplo, não apenas o desterro político. Vivendo na instabilidade e em situações precárias, seria possível dizer que esses outsiders foram sensíveis analistas das crises políticas, econômicas e culturais dos tempos sombrios, a que se refere Hannah Arendt. Sua posição de estrangeiros, apátridas sem raízes os transformou em observadores privilegiados das mudanças – frequentemente vezes dramáticas – que afetaram o mundo e suas próprias vidas.

Os fluxos de deslocados, transitando ideias, saberes e projetos, permanece impactando nossa contemporaneidade e gerando a necessidade urgente de reflexões sobre a historicidade desses processos. Assim, são estas questões emergentes que levaram a publicação deste dossiê da Revista Projeto História, intitulado Exílios: deslocamentos e transnacionalidades.

Este volume apresenta pesquisadores do Brasil e de diferentes países, que analisam aspectos diferenciados da temática, colocando novas indagações, ampliando visões e trazendo contribuições para dinamizar conexões entre história passada e a atualidade. Desta forma, os exílios se constituem num amplo espectro de lutas gerando inquietações e desafiando reflexões, possibilitando a ampliação de um campo de investigações aberto a revelar experiências presentes e passadas, e contribuindo para a renovação temática e metodológica.

Nos artigos deste dossiê despontam exímios conhecedores do seu ofício, são pesquisadores inovadores, com diferentes interpretações e com a proposta de recuperar silêncios e invisibilidades. Para tanto vasculharam arquivos, numa paciente busca de indícios, sinais e sintomas, constituindo um mosaico de referências documentais, cuja análise crítica permitiu esmiuçar o implícito, descortinando o oculto, recobrando criticamente memórias, transgressões e controles, dando visibilidade a múltiplas experiências e práticas culturais. Estes escritos encontram-se fundamentados em investigações meticulosas, eruditas, temperadas pela sensibilidade e criatividade dos autores. Os trabalhos reunidos nesse volume apresentam questões próprias dos estudos sobre a experiência exilar e que são de extrema relevância.

Nos textos de Villares e Jensen o tema da solidariedade entre os grupo exilados é apresentado com especial qualidade, uma vez que as redes de acolhimento são associadas aos projetos políticos que circulam nos espaços transnacionais da América e Europa.

Essas redes de solidariedade reaparecem com força no texto de Teresa Schneider Marques, mas, com a especificidade de tratar de um caso envolvendo exilados brasileiros, mais precisamente exiladas. Marques aponta para a difícil condição do feminino no ambiente do exílio e através de um texto pleno de possibilidades encontra um ângulo de observação original da experiência exilar.

Ressaltando as tensões históricas dos que partiram do Brasil para o exílio, temos no artigo “Do exílio, um futuro para o Amazonas. João Daniel e o aproveitamento das riquezas do rio”, de Fernando Londoño que rastreou a experiência e os escritos dos padres da Companhia de Jesus expulsos do Grão Para e Maranhão no século XVIII. Já em “O exílio de Plínio Salgado em Portugal: a Vida de Jesus e a composição do apostolado político”, Leandro Gonçalves recuperou a trajetória pliniana no exílio. Seus textos demonstram o controle dos autores sobre os temas que analisam e provocam o leitor a refletir sobre as dinâmicas intensas da circulação de ideias, tema próprio do campo dos estudos sobre o deslocamento de intelectuais.

Este volume conta com a entrevista de Daniel Aarão Reis que, nessa oportunidade, faz pela primeira vez um balanço sobre a experiência de seu exílio apontando para esse momento como lugar central na sua trajetória intelectual.

O dossiê se completa com a apresentação das pesquisas sobre o tema que se encontram em andamento, de autoria de Antonio Gasparetto Júnior, Guilherme Ignácio Franco de Andrade e Daniela Adriana Garces de Oliveira. Por fim, a resenha, de Érica Sarmiento da Silva, á obra “Inmigracion y retorno. Españoles en la ciudad de México 1900-1936”.

Ainda se somam no volume os artigos de José Weyne Freitas Sousa,“Secas e socorros públicos no Ceará”; Meize Regina Lucena Lucas, “Cinema e censura no Brasil: uma discussão conceitual para além da ditadura” e de Francisco das Chagas Santiago, “Dos lugares de memória ao patrimônio: emergência e transformação da ‘problemática dos lugares’”.

Este conjunto de escritos preenchem lacunas ao investigar os ocultamentos, recobrando múltiplas possibilidades de vivências e representações, mudanças, permanências, tensões e, quiça, possibilidades e perspectivas.

Boa leitura

Maria Izilda S. Matos

Maurício Parada

30.10.2015


MATOS, Maria Izilda S.; PARADA, Maurício. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.52, 2015. Acessar publicação original [DR]

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História, Infância e Juventude / Projeto História / 2015

Esta coletânea de artigos sobre História, Infância e Juventude traduz reflexões a respeito das formas de viver a infância e a juventude em diferentes momentos. Nestas vivências não há oposição absoluta entre passado e presente, tampouco um tempo se reduz no outro. Ao longo dos anos historiadores, pedagogos, médicos, jornalistas, estudiosos do tema pretenderam dar visibilidade aos sujeitos que tiveram suas experiências ocultadas, muito porque eram consideradas apenas como vivências em transição à idade adulta, está carregada de significação e sentido. Novos estudos revisitaram fontes e memórias problematizando a infância e a juventude presente nelas, direta ou indiretamente, e, a partir disso, esses sujeitos históricos ganham visibilidade através de diferentes materiais pesquisados como imprensa, processos crimes, inventários, registros de batismo, estatísticas, prontuários médicos, fichas escolares, mobiliários, literatura, produção de campos de saber (pediatria, pedagogia, entre outros), dados estatísticos sobre mortalidade infantil e juvenil, por exemplo.

As questões envolvendo crianças, adolescentes e jovens são muito abrangentes, e vê-los como sujeitos de direitos ainda é um desafio presente numa sociedade que ainda vê a criança, de modo especial, apenas como o “futuro da nação”, esquecendo-se das experiências infanto-juvenis no presente cotidiano carregado de misérias, abusos, violências, privações, maltrato, pouca efetividade – em muitos casos – dos direitos à educação e saúde.

Muitas são as práticas de repressão e desqualificações que atingem diretamente os mais pobres, a evidência da desigualdade entre sujeitos leva a práticas violentas, sobretudo de jovens que muitas vezes são mortos sem direito a despedida dos familiares, revelando uma seletividade na violência e um “genocídio de jovens negros” como explicitam anualmente estudos como o Mapa da Violência.

A despeito de todas as dificuldades, hoje, depois de 25 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente, vemos ONGs, governo, sociedade civil, jovens e adolescentes, ativistas, desenvolvendo práticas comunitárias de valorização da experiência dos sujeitos, que permitem ter alento quanto à uma sociedade que respeite e promova a dignidade humana desde antes do nascimento e considere a vida como intensa em todas as fases do desenvolvimento pessoal e social. A redução da mortalidade infantil, a expansão da escolarização, a ampliação do atendimento de saúde, a vacinação em massa, o reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos ativos, entre outras medidas, tem permitido, em termos comparativos com os anos anteriores ao ECA, uma melhoria na vida de milhares de crianças. Espaços de experimentação na valorização da dignidade humana infanto-juvenil são inúmeros, um deles é o caso dos CEU’s (Centro de Educação Unificado da Prefeitura de São Paulo), que cria e disponibiliza toda uma ambiência cotidiana que intensificam a formação humanizada e os vínculos da escola com a comunidade local propiciando o ensino de línguas estrangeiras, atividades artísticas (corais, peças teatrais), o uso do espaço aos finais de semana pela comunidade da região, podendo ali construir sociabilidades, estratégias para trabalhar, saindo assim da condição de miséria absoluta.

Contemplamos no dossiê várias experiências infantis, relatos de internação na infância, a questão do ensino de História é evocada como parte da formação da infância e juventude, a imprensa escrita é usada para avaliar suas propostas de ser criança, a menoridade penal é discutida como tema que vem de outros períodos e ganha contornos precisos no presente, diferentes estados são evocados na experiência da infância.

A ideia é abrir espaços de discussão entre diferentes áreas e entre historiadores que debatem o tema e ao fazê-lo pensam numa mudança histórica que pensa a criança e jovem como agentes ativos e não passivos, pensamos em tirá-los do anonimato.

Os artigos reunidos nesse dossiê tratam de diferentes dimensões da temática da História da Infância e da Juventude, inúmeras fontes, bem como abordagens, expressando a densidade da experiência histórica que envolvem direta ou indiretamente jovens e crianças. Imagens encantadas ou cristalizadas desses sujeitos são rechaçadas artigo por artigo, deixando evidente que existem múltiplas infâncias e juventudes.

Pensando na multiplicidade das experiências infantojuvenis, a antropóloga colombiana Ximena Pachón, com o artigo “La persistente presencia de los niños combatientes em la história de Colombia”, apresenta reflexões a respeito da participação de crianças e adolescentes nos principais conflitos armados da Colômbia ao longo do século XX (1º Guerra de los Mil Dias – 1899-1902; 2º Guerra Civil “La Violéncia” – 1946-1965; 3º Guerra Civil atual – 1966-2015). Contrariamente a uma história da infância idealizada, são problematizadas inúmeras situações vivenciadas no contexto da sociedade colombiana em circunstâncias vinculadas diretamente à guerra (crianças arregimentadas para a luta armada) ou em momentos afetados pelas lutas. A experiência de violência e da guerra são apresentados como fatores que tangenciaram a participação de crianças e jovens no conflito, o que destaca para as múltiplas formas de experienciar a infância na sociedade latino-americana.

O debate sobre a Redução da Maioridade Penal para menos de 18 anos é antigo no Brasil, remonta o fim do século XIX e, ao longo do século XX, inúmeras foram as ocasiões em que esta proposta esteve colocada por setores reacionários. Olga Brites e Eduardo Silveira Netto Nunes, expõem no artigo “Contra a redução da maioridade penal no Brasil: o Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Osasco, fim dos anos 1970”, uma análise sobre a mobilização popular e de comunidades periféricas contrárias a propostas de redução da maioridade penal que estavam tramitando no Congresso Nacional em fins da década de 1970. O texto centra a sua reflexão na atuação do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Osasco e sua articulação com grupos periféricos na defesa dos direitos de crianças e adolescentes e na mobilização contra os projetos de lei reduzidos a idade penal. O tema da infância, neste caso, ganhou uma representatividade improvável, pois, ao se defender as crianças e os adolescentes, o Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Osasco tencionava em diferentes frentes o governo civil-militar autoritário então vigente.

Através do artigo “Ana Maria Machado: inventando o futuro. A utopia de um mundo de paz e tolerância: reflexões sobre infância e juventude”, Maria do Rosário Cunha Peixoto desenvolve a análise sobre a obra “O Canto da Praça”, de Ana Maria Machado, livro direcionado ao público infantojuvenil, publicado pela primeira vez em 1986, destacando a estruturação sensível da narrativa, pela qual advoga possibilidade de uma sociedade pacífica, justa, tolerante. Ao pensar a literatura infantil como um dos espaços de construção da subjetividade nas crianças, o artigo desvela a forma como o livro construiu representações do tempo, das ambiguidades, na perspectiva de respeitar a criança e suas experiências impor a ela uma “infantilização que não é dela”.

O enfoque adotado por Nelson Tomelin Júnior, no artigo “Infância contada entre muros”, analisa as reminiscências de pessoas idosas que vivenciaram parte de suas trajetórias em instituições psiquiátricas e divisaram suas experiências com diagnósticos diversos que as classificavam como doentes psiquiátricos. A partir de depoimentos orais, principalmente, o autor reflete as vivências de cinco idosos tangenciando momentos de solidão, sofrimento, alegria, solidariedade, afeto, tristeza, pelas quais essas pessoas passaram, destacando as memórias sobre a infância, tensionando muitos olhares que atribuem ao diagnóstico de uma doença psiquiátrica, a transformação do sujeito em “doente”, pelo que não seriam portadores de subjetividade. Ao acessar e valorar as reminiscências desses idosos, permite ao leitor desvendar trajetórias de vidas segregadas pela doença psiquiátrica e “esquecidos” da história.

Tratando de outra dimensão da memória histórica e da relação desta com as crianças e os adolescentes, Marcos Silva, no artigo “Entre o espelho e a janela”, problematiza, no formato de um ensaio crítico, a ideia de que o conhecimento histórico necessita ser reconhecido como um “Direito à História”, pelo qual crianças e adolescentes teriam o direito subjetivo a acessar dimensões das experiências compartilhadas socialmente. A história vivida seria trabalhada no sistema de Ensino, de forma complexa, diversificada, múltipla e crítica. A educação fundamental seria o espaço para reestabelecer os liames e a ligação entre as gerações na sociedade, não como um processo laudatório dos “grandes feitos”, mas sim como um exercício constante de revisitação às tensões, conflitos, lugares sociais, lutas, e diversidade de interesses em disputa em cada contexto histórico.

O papel das representações sociais sobre os jovens de classe média na revista Realidade foi o objeto central do artigo de Silvia Arend intitulado “Jovens brasileiros nas páginas da Revista Realidade”. Arend realiza uma análise sobre as representações veiculadas na Revista Realidade relativas à infância e à juventude, focando as relações de trabalho e familiares envolvendo esses grupos etários. A construção de uma “juventude” de classe média, consumidora e leitora da Revista, e de temas a ela pertinente é desvelada pela autora ao longo do texto, projetando clareza sobre assuntos em circulação e que povoaram as mentes de segmentos sociais juvenis de classes médias, por vezes pouco estudados sob a ótica da História da Infância e da Juventude.

Tratando ainda dos processos de escolarização no Brasil, Iranilson Buriti de Oliveira, no texto “Como canários nos alçapões”, procura analisar as representações construídas na obra Doidinho de José Lins do Rego, sobre a vida infantil de crianças no Internato de Seu Maciel, em Itabiana, Paraíba, estória ambientada em fins do século XIX e início do XX. O autor desvela aspectos da cultura escolar como o autoritarismo nas relações entre adultos e crianças, assim como entre professores e alunos, narradas com riqueza de detalhes nos escritos de Rego, desvelando como foi sendo instituída a escolarização no Brasil republicano, sob o signo da violência e do desrespeito à subjetividade infantil.

Ao lado dos artigos selecionados, consta do dossiê uma entrevista que registra as experiências de um protagonista importante nos debates sobre os direitos das crianças e dos adolescentes no Brasil, o jurista Dr. Antônio Fernando Amaral e Silva, na qual desvela bastidores inacessíveis na mudança do antigo sistema da Situação Irregular para a Doutrina da Proteção Integral, bem como expõem reflexões acerca dos percalços e conquistas na luta pela efetividade desses Direitos, hoje ameaçados por inúmeras pautas conservadoras como a redução da maioridade penal.

O dossiê conta ainda com a apresentação de pesquisa relacionadas à temática da infância e da juventude de autoria dos pesquisadores Ivannsan Zambrano Gutierrez, Thiago de Faria e Silva.

Essa edição da revista conta ainda com quatro artigos livres, resultado da política da revista de fluxo contínuo de contribuições, são eles: “Michel de Certeau e os limites da representação histórica”, de João Rodolfo Munhoz Ohara; “O meu lembrar pelos meus direitos: memória e direito à cidade em uma favela do Rio de Janeiro”, de Mauro Amoroso; e, “Higiene do corpo e Higiene da mente: algumas raízes da psiquiatrização da educação no Brasil”, de Alexandre Fernandez Vaz, Lara Beatriz Fuck.

Por fim, compõem a edição duas resenhas elaboradas por Maria Nicolau, Alexandra Dias Ferraz Tedesco, versando sobre contribuições historiográficas atuais.

O conjunto de textos dessa edição colabora com a difusão e a expansão dos estudos de História da Infância e Juventude somando-se a outras iniciativas como o Grupo de Trabalho em História da Infância e Juventude da Associação Nacional de História (ANPUH) em nível nacional e regional (ANPUH-SP).

Boa leitura.

20 de dezembro de 2015

Olga Brites. E-mail: olgabrites@uol.com.br

Eduardo Silveira Netto Nunes. E-mail: edunettonunes@hotmail.com


BRITES, Olga; NUNES, Eduardo Silveira Netto. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.54, 2015. Acessar publicação original [DR]

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Exílios: Política, Cultura e Resistência / Projeto História / 2015

Exílios – Política – Cultura – Resistência / Projeto História / 2015

“El exiliado mira hacia el pasado, lamiéndose las heridas; el inmigrante mira hacia el futuro, dispuesto a aprovechar las oportunidades a su alcance.”1 (Isabel Allende)

“Pode-se arrancar o homem de seu país, mas não se pode arrancar o país do coração do homem” (John Roderigo dos Passos)

Exilar-se é desterrar-se. É fratura e rompimento. É um deslocamento involuntário e traz consigo o sentimento de perda. É deixar para trás todo um repertório de afetividades não rompidas, porém distantes geograficamente, isolando o exilado de qualquer contato com seu país de origem. Temporário? Eterno? Uma mistura imponderável de elementos da legislação com acontecimentos do contexto histórico o dirão. Seja qual for a temporalidade, o indivíduo, nessa reelaboração forçada, pelo próprio sofrimento experimentado, já deixa de ser o mesmo. Consequências terríveis provoca o exílio.

Em Atenas, durante a Antiguidade Clássica, o exílio era imposto como defesa da democracia. Chamado de ostracismo, representava uma punição forte, que bania o cidadão por dez anos da convivência com seus pares.

Passados mais de dois mil anos, a política e seu mais cruel desdobramento, a guerra, continuam produzindo exilados, com seus silêncios significativos ou suas falas eloquentes. Diferente do emigrado, o exilado, mesmo aquele auto exilado, é obrigado a vivenciar um sofrimento solitário, no qual as novas relações afetivas, difíceis de serem conquistadas, não substituem a mágoa da ausência das anteriores.

O exilado, não raro, é obrigado a se reinventar completamente, sem esquecer os padrões de cultura que são mantidos pela saudade. Essa palavra intraduzível que, no falar de Lévi-Strauss, remete à rememoração de seres, coisas, lugares, e que é uma tomada de consciência impregnada do sentimento agudo de sua fugacidade. Um aperto no coração que a lembrança de certos lugares, físicos ou da memória, nos mostra que não há, no mundo, nada de permanente e nem de estável em que possamos nos apoiar. Somos, portanto, exilados em potencial.2

Este número da revista Projeto História nos apresenta, neste segundo número da temática “Exílio”, uma importante polifonia de assuntos e interpretações substanciosas de autores que nos fazem vivenciar o significado do exílio.

O dossiê Política, Cultura e Resistência: Exílios é composto por uma gama de estudos que possibilitará a reflexão do pesquisador. O Investigador Titular do El Colegio de la Frontera Sur, Enrique Coraza de los Santos, abre o dossiê com uma visão conceitual em perspectiva comparada sobre o exílio através dos casos na Espanha, México, Argentina e Uruguai. Com o mesmo olhar, a especialista em estudos latino-americanos, Silvia Dutrénit Bielous, identifica nos anos 70 observações pautadas entre México e Uruguai, estabelecendo uma importante reflexão sobre as encruzilhadas do exílio.

Na esfera conceitual, o especialista em história intelectual, Maurício Parada, destaca as várias possibilidades entre esse meio com o exílio, estabelecendo uma vasta relação entre a história, exílio, política e intelectualidade, buscando analisar três trajetórias em especial, Otto Maria Carpeaux, Villém Flusser e Stefan Zweig.

No âmbito do contexto varguista e hitlerista, Marlen Eckl, analisa os efeitos do Decreto-Lei n° 383, de 1938 para os alemães. Partindo desse princípio, no artigo Entre resistência e resignação – as atividades políticas do exílio de língua alemã no Brasil, 1933-1945 é possível verificar os obstáculos que os exilados encontraram no Brasil.

Concluindo a primeira seção, Luis Roniger, destaca a importância analítica do exílio como uma experiência geradora de aberturas conceituais, institucionais e de sociabilidade. No artigo, o pesquisador da Wake Forest University, estabelece algumas reflexões, demonstrando a singularidade do caso brasileiro em uma perspectiva transnacional.

O dossiê conta com Alfredo Moreno Leitão e Geny Brillas Tomanik na seção Projetos, que apresentam resultados de suas pesquisas. O primeiro com aspectos em torno do salazarismo e a segunda com interpretações sobre o exílio espanhol.

Há ainda a resenha de duas obras ligadas a temática do dossiê. Francisco Osvaldino Nascimento Monteiro, apresenta ao público, a obra de Victor Barros, Campos de Concentração em Cabo Verde: As Ilhas Como Espaços de Deportação e de Prisão no Estado Novo, enquanto Estela Cristina Mansilla, apresenta a obra de Silvia Dutrénit Bielous, La Embajada Indoblegable. Asilo Mexicano en Montevideo durante la Dictadura.

Para fechar o número, os editores e organizadores, apresentam três artigos na seção livre. Partindo do Método Documentário de Análise de Imagens, Vinícius Liebel, busca o exercício de análise de uma charge do semanário nacional-socialista Der Stürmer. Luis Carlos dos Passos Martins, objetiva analisar como a imprensa carioca abordou o crescimento acelerado e desordenado das cidades brasileira durante o Segundo Governo Vargas, causando o aumento das “favelas” na Capital Federal e fechando o número Silvia Liebel estabelece uma importante análise, destacando à chamada “guerra dos sexos” nos inícios da impressão na Europa moderna.

Desejamos uma ótima leitura e boas reflexões historiográficas!

Notas

1 “O exilado olha para o passado, lambendo as feridas; o imigrante olha para o futuro, disposto a aproveitar as oportunidades a seu alcance”.

2 LÉVI-STRAUSS, Claude; MENDES, Ricardo. Saudades de São Paulo. Companhia das Letras, 1996.

Leandro Pereira Gonçalves (PUCRS)

Yvone Dias Avelino (PUC-SP)


GONÇALVES, Leandro Pereira; AVELINO, Yvone Dias. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.53, 2015. Acessar publicação original [DR]

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Direitos Humanos, História e Cidadania / Projeto História / 2014

A discussão sobre os Direitos Humanos é vasta e pode ser proposta por diferentes caminhos e áreas do conhecimento. Podemos tomar os Direitos Humanos em sua dimensão conceitual, buscando compreender o que lhe definiu em sua formação; podemos tomar os direitos em seu percurso histórico, analisando diferentes contextos, buscando compreendê-los na relação com as questões próprias da condição humana no tempo / espaço recortados refletindo, assim, não só sobre as especificidades de cada tempo, bem como, sobre as problemáticas do mesmo tempo em diferentes espaços. Podemos, ainda, analisar como os diferentes Estados articularam a questão dos direitos em seu aparato jurídico-legal ou como foram apropriados por suas populações na vivência cotidiana, na ponderação sobre costumes e direitos. Estes encaminhamentos, entre muitos outros, demonstram a riqueza, complexidade e atualidade do tema.

Fábio Konder Comparato (2010), ao ponderar sobre a ‘afirmação histórica dos direitos humanos’ foi buscar na antiguidade clássica o nascimento desta ideia, em seu entendimento conceitual, identificando-a com a construção da noção de pessoa. Apropriamo-nos de sua citação de Ésquilo ao se referir a Prometeu:

Ouça agora as misérias dos mortais e perceba como, de crianças que eram, eu os fiz seres de razão, capazes de pensar. Quero dizê-lo aqui, não para denegrir os homens, mas para lhe mostrar minha bondade para com eles. No início eles enxergavam sem ver, ouviam sem compreender, e, semelhantes às formas oníricas, viviam sua longa existência na desordem e na confusão(…). Faziam tudo sem recorrer à razão, até o momento em que eu lhes ensinei a árdua ciência do nascente e do poente dos astros. Depois, foi a vez da ciência dos números, a primeira de todas, que inventei para eles, assim como a das letras combinadas, memória de todas as coisas, labor que engendra as artes. (Ésquilo apud COMPARATO, 2010, p.14).

O trecho elucida a visão mítico-religiosa sobre a pessoa, aspecto este fundamental mas que aqui não será aprofundado e elucida, também, a passagem para a visão filosófica, destacando o momento de diferenciação humana, pela apropriação do conhecimento e a capacidade de elaboração racional. Vemos que a reflexão era cara aos gregos e base para a discussão sobre a condição humana, moldada pela articulação entre o percurso de construção da autonomia humana e sua condição racional. Esta associação calcada, então, no princípio da racionalidade, instituiu a ideia de uma essência comum à pessoa, um fundamento igualitário, que se mostrou uma base segura para a posterior construção da noção de direitos. Assim, os seres humanos, através da razão que lhes possibilita autonomia, se diferenciam dos outros seres e se equivalem entre si. O princípio da igualdade é definido e sobre este aspecto nos interessa, fundamentalmente, a unidade possibilitada pela razão, independentemente das celeumas criadas a partir da discussão sobre as características da mesma, que gerou as vertentes dos inatistas e empiristas e a posterior crítica de Immanuel Kant a ambos.

Ao mesmo tempo, a condição de autonomia pressupõe a vontade e, logo, a liberdade, dois outros aspectos constituintes da condição humana, anunciando assim, a demarcação do princípio da liberdade. Temos aqui, inicialmente, a liberdade proposta por Aristóteles calcada na ideia da autodeterminação pois, livre de constrangimento e atuação isenta da pressão da necessidade, assim vinculada à vontade; mesmo se considerarmos as divergências em relação à este conceito, a associação entre liberdade e vontade possibilitou a construção de um sistema valorativo que, associado à razão, viabilizaria a noção dos direitos como valores essenciais.

Esta foi a base para a conceituação dos direitos naturais, referindo-se à pessoa humana na sua universalidade e anterior à definição em lei. Neste sentido, como dito, os direitos humanos são universais e naturais; contudo, são também históricos, já que compreendidos e delimitados historicamente, o que explica sua reelaboração, por exemplo, no séc. XVII, pelos teóricos do ‘jusnaturalismo’ ou Teoria dos Direitos Naturais e as perspectivas dos contratualistas. Esta elaboração teórica é uma seara complexa que não pretendemos alongar e apenas indicamos que, apesar de composta por diferentes teóricos, com visões muitas vezes contrapostas entre si, como serão os casos de Locke e Hobbes ao ponderar sobre o contrato social e o papel do Estado, ainda assim, vemos a permanência do eixo central da reflexão sobre a condição humana e seus direitos.

O século XVIII trouxe, essencialmente, a preocupação com o poder, ponderando sobre as melhores formas de exercê-lo, no respeito à liberdade do cidadão. Observemos aqui o debate sobre as formas de organização do Estado, tendo como base o princípio dos direitos naturais. Contudo, devemos lembrar que direitos naturais e direitos de cidadania são distintos. Enquanto os primeiros são entendidos como universais e naturais, os segundos estão atrelados à organização específica de cada Estado, em seu arcabouço jurídico-político e em sua constituição histórica. Assim, apesar de em muitos momentos, os direitos humanos e os direitos de cidadão poderem se equiparar, eles não são necessariamente sempre iguais e justapostos.

Vemos que o debate perpassa a história da humanidade e o percurso histórico nos mostra a complexidade do tema, em suas historicizações e suas dificuldades pois estes direitos naturais ou fundamentais foram continuamente alienados. Até o século XX esta discussão não estava disseminada como política de Estado, apesar de já presente em importantes momentos, como na Independência Americana em 1776 e na Revolução Francesa em 1789, momentos estes que reafirmaram a importância dos direitos essenciais do homem, alçando-os ao debate político.

O século XX ou suas grandes tragédias pressionarão o aprofundamento da questão. Como colocou Arendt “Os dias que antecedem e os que se seguem à Primeira Guerra Mundial não são como o fim de um velho período e o começo de um novo, mas como a véspera de uma explosão e o dia seguinte” (Arendt, 1989, p. 300). Nesta obra a autora discute o período das duas grandes guerras, justamente analisando o processo de desmontagem dos direitos e a deformação da condição humana, a partir do assombro em relação às diferentes formas de destruição desta condição impostas neste contexto de guerras e entre guerras.

Não foi por acaso que 1948 se tornou muito significativo para esta questão. A Declaração dos Direitos Humanos de 1948 mostrou-se um importante marco, ao reforçar os princípios essenciais dos direitos humanos, já destacados em seu artigo 1º. ‘‘Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade” (2009), e, também por aprofundar a reflexão sobre os direitos, buscando garantir a universalidade dos direitos civis e direitos políticos pois, ao internacionalizar o debate, viabilizou ‘à pessoa física a qualidade de sujeito do Direito além das jurisdições domésticas’ (ALVES, s / d, p. 1).

Vemos que a questão dos direitos se tornou uma discussão jurídica, perpassando as relações entre Estados e, devemos lembrar que a declaração foi uma carta recomendatória e apesar de ratificada por muitos países não garantiu o reconhecimento dos pactos que a compõe. Segundo Alves (s / d), o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos só foi aprovado na ONU em 1966 e o Pacto Internacional sobre os direitos Econômicos só foi aprovado em 1976, ambos não receberam a adesão de todos os países, situação esta que explicita a continuidade das restrições aos direitos humanos em diferentes países.

A expressão mais visível deste processo se dá na conformação dos Estados autoritários que cerceiam os direitos pelo aparato legal – jurídico do Estado. O Brasil foi exemplo disto, durante a ditadura civil-militar, contexto este posterior à aprovação da Declaração de Direitos Humanos de 1948 e no contexto da aprovação do primeiro pacto citado. Ainda no mês de abril de 1964, através do Ato Institucional no. 1, restringiu os direitos políticos de seus cidadãos a partir das cassações de mandatos; expurgos de militares e funcionários públicos e suspensão de direitos políticos por até dez anos. A continuidade da ditadura, com os outros Atos Institucionais, estendeu a repressão com a tessitura de um forte aparato repressivo, calcado em dois claros pilares, a tortura e a censura como formas de vigilância e controle e definindo na forma da lei o Estatuto do Cassado, condição esta que tirava os direitos políticos dos cidadãos; proibia a participação em manifestações públicas e estruturava uma condição de liberdade vigiada, demonstrando a fragilidade dos direitos fundamentais, pós 1948, situação esta não restrita ao Brasil pois, se considerarmos apenas a América Latina, veremos outros caso de ditaduras no mesmo período (Argentina – 1966; Peru e Panamá- 1968; Equador- 1972; Chile- 1973; Uruguai- 1976).

Mas, como dito, a lei e a ação do Estado são a expressão mais visível do desrespeito aos direitos humanos. Marx demonstrou o contínuo processo de reificação do ser humano, no modo como as relações produtivas se estabeleceram com o capitalismo, demonstrando a enorme distância entre os princípios filosóficos e a práxis. Assim, considerar os direitos humanos em seus aspectos essenciais e naturais, relacionados à dignidade humana e associá-los à discussão sobre os modelos econômicos e sobre os direitos do cidadão, diretamente vinculados ao corpo-jurídico de cada Estado, nos ajuda a compreender a extensão e complexidade do debate. Há controvérsias quanto à anterioridade dos direitos naturais em sua relação com o Estado e no modo como se corporificam nos aparatos jurídicos dos mesmos. Esta complexidade aparece também na identificação de uma classificação dos direitos no corpo da lei.

Quando retomamos a carta constitucional brasileira de 1988, por exemplo, vemos que sua organização parte do entendimento de que os direitos humanos se constituem em âmbitos distintos e demarcados. Em seu Titulo II ‘Dos Direitos e Garantias Fundamentais’, temos a existência de três ordens de direitos, arroladas no texto constitucional, ordens essas também assumidas pelo Dicionário de Política (Bobbio, 1999) ao ponderar sobre o conceito de direitos humanos: os direitos civis, relativos aos direitos individuais; os direitos políticos, que como o próprio nome indica, são os direitos da prática política, da condição de cidadania, direitos estes que estabelecem as relações cidadão-Estado e os direitos sociais, relacionados ao direito ao trabalho e suas condições, ao direito à assistência em seus diferentes aspectos. É interessante observarmos as fraturas existentes ao se pensar sobre os direitos, esfacelando o ser humano em parcelas realizáveis isoladamente.

Partindo da reflexão sobre as condições dos Estados constituídos identificamos desrespeitos contínuos e explícitos aos direitos humanos, seguidos de conflitos e enfrentamentos na luta pelos mesmos. Partindo, por sua vez, das relações entre Estados e culturas, questões estas exacerbadas na lógica da globalização, observamos os enfrentamentos no intuito do alargamento deste mesmo debate. A questão parece nova, mas já estava contida em seus pressupostos iniciais. Como discutido por Benevides Soares:

Partimos da premissa de que a igualdade não significa uniformidade, homogeneidade. Daí, o direito à igualdade pressupõe -e não é uma contradição- o direito à diferença. Diferença não é sinônimo de desigualdade, assim como igualdade não é sinônimo de homogeneidade e de uniformidade. A desigualdade pressupõe uma valoração de inferior e superior; pressupõe uma valorização positiva ou negativa (…). a diferença é uma relação horizontal, nós podemos ser muito diferentes (já nascemos homens ou mulheres, o que é uma diferença fundamental, mas não é uma desigualdade; será uma desigualdade se essa diferença for valorizada no sentido de que os homens são superiores às mulheres, ou vice-versa, que os brancos são superiores aos negros, ou vice-versa, que os europeus são superiores aos latino-americanos e assim por diante). (BENEVIDES SOARES, 1998, p. 46).

Anterior em seus pressupostos, mas recentes em seus enfrentamentos estão as discussões que perpassam as relações entre igualdade e respeito à diversidade, discussão esta presente em diferentes movimentos sociais. Estas são questões abordadas neste número da Revista Projeto História, questões propostas dentro da amplitude que o próprio tema possibilita.

Tomamos inicialmente as questões de Estado, considerando que ela nos remete, por um lado, às condições de cidadania, articulando os direitos civis e sociais aos direitos políticos, já que propostos na relação com o Estado. Esta relação requer ponderações pois, por um lado, é difícil imaginarmos, hoje, direitos instituídos que não passem pelo Estado, em sua normatização e aparato jurídico-legal; por outro lado, duas questões se colocam. Primeiro, como ponderar sobre direitos humanos tratados, como visto inicialmente, como direitos universais e naturais, se nos referimos a direitos que ao final são políticos, propostos em cartas constitucionais, que são locais? Segundo, em continuidade à questão colocada, como ponderar sobre direitos políticos numa lógica contemporânea que se propõe globalizada e que em termos econômicos dissemina o modelo neoliberal?

Os artigos propostos neste número da Revista Projeto História dialogam com estas questões. O artigo inicial de Danilo Fonseca articula dois importantes aspectos: o processo de transição de um Estado autoritário para uma lógica democrática, num modelo claramente neoliberal, logo, de perfil globalizado. Ao problematizar a questão dos direitos humanos na África do Sul pós-Apartheid demonstra a permanência de violações no percurso de inserção do país no Estado democrático de modelo neoliberal. Para estabelecer esta reflexão, retoma o período do Apartheid (e devemos lembrar que a África do Sul foi um dos oito países que se absteve na votação da Declaração dos Direitos Humanos em 1948), analisando as lógicas de violações, percorrendo o período de negociações da transição para o período democrático, analisando suas transformações e permanência. Aqui se articula, então, o debate sobre o processo histórico e sobre as modificações das relações Estado-cidadão.

Ponderar sobre a relação cidadão-Estado nas lutas pelo alargamento dos direitos humanos é, como visto, antever um processo contínuo de enfrentamentos. O artigo ‘A NOSSA LUTA É POLÍTICA’: um percurso dos movimentos comunitários brasileiros nos anos 1970-1980’, como o próprio título indica, foca no processo de luta, analisando as características dos enfrentamentos dos anos 1970 / 80 no Brasil, corporificados como movimentos sociais, demonstrando a riqueza, fluidez e fragmentação próprias destes tipos de movimentos que se buscaram políticos mas não inseridos no diálogo partidário. É interessante que o primeiro alargamento do debate, neste caso, se dá pela configuração do espaço de luta, o cotidiano, espaço este também fragmentado e muitas vezes lido como o lugar da passividade.

Justamente o espaço do cotidiano expõe os maiores conflitos, relativizando por um lado, a efetivação dos princípios reafirmados na Declaração dos Direitos Humanos e sedimentando, por outro lado, a complexidade do tema presente na relação direitos universais-diversidade cultural. Considerando o primeiro aspecto, a efetivação dos direitos humanos, apresentamos o artigo ‘Tráfico de drogas, brigas de gangues e homicídios em série: biografia de um jovem em conflito com a lei’, que desnuda as entranhas de nossa sociedade no trato aos direitos humanos através da biografia e história oral de um jovem rendido ao tráfico no Rio de Janeiro. Apesar do ator central do artigo ser o sujeito da quebra de direitos, participando do tráfico, roubando e assassinando, é também, claramente, o sujeitado do sistema, explicitando as perversidades desta lógica capitalista neoliberal, que intensifica a exclusão e o lugar e papel do Estado nestas dinâmicas.

Considerando, por outro lado, a relação direitos humanos naturais e universais e diversidade cultural, propomos outros artigos que refletem sobre problemáticas culturais, que passam ou não como demandas para o Estado e que indicam a importante reflexão sobre a correlação de direitos humanos e costumes, cultura e memória. Este é o caso do artigo de Helvio Alexandre Mariano que discute os processos de exclusão, exílio e resistências culturais através da obra de Edward Said.

Mesmo os artigos da seção ‘Diversos’ que não precisam estar diretamente relacionados com a temática do Dossiê, refletem sobre questões que dialogam com nossa temática central, em abordagens que passam pela discussão sobre o direito à construção da identidade como forma de humanidade, ou o direito ao acesso ao conhecimento como efetivação da cidadania ou o oposto disto, nas ações de censura e cerceamento à produção cultural.

Referências

ALVES, J. A. L. A Declaração dos Direitos Humanos na Pós-Modernidade. Disponível em: http: / / www.dhnet.org.br / direitos / militantes / lindgrenalves / lindgren. Acesso: 06 / 2015.

ARENDT, H. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

BENEVIDES SOARES, M. Cidadania e Direitos Humanos. CP Cadernos de Pesquisa, n° 104, 1998.

BOBBIO, N. et al. Dicionário de Política. Brasília: Editora UNB, 1999. [12ª Ed.]

COMPARATO, F. K. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2010. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 2009. Disponível em http: / / www.dudh.org.br / wpcontent / uploads / 2014 / 12 / dudh.pdf. Acesso: 06 / 2015.

Carla Reis Longhi


LONGHI, Carla Reis. [ Direitos Humanos, História e Cidadania]. Projeto História, São Paulo, v.51, 2014. Acessar publicação original [DR]

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História e Esportes / Projeto História / 2014

Este número da Projeto História parte de um pressuposto aparentemente incontornável: as relações entre história e esporte são antigas e amplamente reveladoras dos receios e sonhos de cada cultura. Por isso, a importância do seu estudo é inegável.

Entretanto, é relativamente recente a profusão de pesquisas históricas sobre as atividades de esporte e lazer. Conforme a entrevista aqui publicada do historiador Georges Vigarello, desde as últimas décadas do século passado, o tema adquiriu uma relevância inusitada dentro dos meios acadêmicos, dando lugar a teses, eventos, revistas científicas e livros que abordam desde a história das práticas esportivas tradicionais, até aquelas inventadas ou modificadas na época contemporânea.

De fato, compreender as relações entre história e esporte tornouse um dos grandes desafios para a pesquisa acadêmica. Diferentes pesquisadores dedicaram-se a questionar os significados e as funções culturais dos jogos e competições esportivas, mas também das experiências lúdicas, distantes dos estádios e clubes profissionais. É quando as referências clássicas de autores como Norbert Elias e Marcel Mauss foram consideradas à luz das novas maneiras de conceber o corpo e os meios de comunicação de massa, o desempenho físico e a técnica esportiva.

Cada vez mais amplamente, portanto, a investigação das atividades esportivas possibilitou a construção de uma história das emoções e de uma história do corpo, mas também contribuiu para renovar o entendimento das relações entre os gêneros, os países e as culturas. O tema “esporte” favoreceu, cada vez mais, a análise dos meandros do poder político e do funcionamento das instituições que o asseguram. E ainda, proporcionou subsídios para o entendimento sobre como a ciência e a técnica modificaram o espaço natural e a rotina das cidades, as noções de rendimento físico e de saúde, especialmente no decorrer dos dois últimos séculos.

Mas esta história, como tantas outras, é complexa e nem sempre evidente ao primeiro olhar. Este é o eixo central do presente número da Projeto História: mostrar o quanto a relação entre história e esporte é rica em problemas e, portanto, desencadeadora de temas essenciais ao entendimento da época contemporânea. Nesse sentido, o artigo do pesquisador alemão Hans Ulrich Gumbretcht, aqui publicado, evidencia o quanto os estilos esportivos são reveladores da história de cada país mas, também, de suas ambiguidades e da riqueza cultural que os caracteriza. Na entrevista realizada com o historiador Georges Vigarello, a história do esporte diferencia-se de uma análise dos esportes, embora ambas se complementem mutuamente. Especialista em história do corpo, Vigarello ressalta o lugar do heroísmo valorizado na atividade esportiva atual, assim como a importância do estudo sobre os esportes entre os historiadores.

A complexidade do tema envolve, também, a relação entre esporte e escrita. Entre a cultura dos gestos e a história dos jogos há um vínculo histórico cuja riqueza foi explorada pelo sociólogo e antropólogo português, Nuno Domingos, em seu artigo sobre o futebol em Moçambique colonial. Nele, pode-se observar como, em contextos coloniais, o futebol funcionou como um espaço para “negociar a modernidade”. Já no Brasil, o futebol pode ser repensado a partir de uma disputa entre raças e segundo as rivalidades entre nações, tal como mostra o artigo de Sérgio Settani Giglio, Marcel Diego Tonini e Katia Rubio, intitulado “Do céu ao inferno”. Defendendo a tese de que “o futebol é o grande ritual brasileiro”, o artigo de Martin Curi estuda etnograficamente as manifestações durante a Copa das Confederações em 2013.

Certamente o futebol é um dos esportes que, especialmente a partir do último século, mais chama a atenção dos povos e dos meios de comunicação de massa. No artigo dos pesquisadores franceses Jean Jacques Courtine e Claudine Haroche, a presença das multidões nos estádios, evocadora do antigo medo das massas ignaras, remete o leitor aos textos de Gustave Le Bon mas, igualmente, o faz refletir sobre a invenção de um “novo homem dos estádios” globalizado. O futebol possui portanto uma história densa, cujas tensões nem sempre são lembradas nos momentos espetaculares dos grandes triunfos e derrotas. Fábio Franzini revela algumas articulações históricas entre o Brasil político, militar e futebolístico. Dentro dessa complexidade esportiva, existem ainda os bastidores do jogo. O artigo de Hirata e Freitas Júnior mostra algumas das tensões ocorridas na tramitação Lei Pelé e as trajetórias de sua institucionalização.

Além do papel preponderante do futebol nas sociedades contemporâneas, existem jogos e esportes que também revelam sua rede de tensões históricas e de simbolismos essenciais para a compreensão de cada cultura. O artigo de Estefania Fraga e Felipe Marta privilegia o estudo da tradição das artes marciais segundo uma pesquisa junto a imigrantes japoneses em São Paulo. Investigação original, que mostra o quanto uma atividade física expressa os desígnios de uma cultura e de uma trajetória imigratória.

Entretanto, os séculos XIX e XX foram pródigos em “esportivizar” uma série de experiências que, durante anos, existiam em forma de festas e brincadeiras. O texto de Douglas da Cunha Dias e Carmen Lúcia Soares exemplifica o quanto algumas experiências nas águas de Belém do Pará passaram a ser vistas como “esportes”, dignos de uma cidade que, no começo do século passado, voltava-se a “domesticar a natureza”, segundo os pressupostos de uma burguesia florescente. Além disso, algumas das primeiras experiências esportivas brasileiras foram rigorosamente analisadas por Victor Andrade de Melo, que trabalha com diferentes fontes de pesquisa e discute as representações esportivas na capital do Império brasileiro, numa época em que já existiam agremiações esportivas, corridas de cavalo e regatas.

Ao alinhavar o curso da história à experiência do futebol, do remo, das artes marciais, das corridas e junto de uma miríade de atividades próximas ou totalmente infiltradas pelo esporte, fica claro que o gosto por torcidas e estádios não nasce pronto. Muitas vezes uma modalidade esportiva tem origem

em jogos educativos informais, noutras, ela brota da gratuidade de brincadeiras antigas, cujas bordas escapam para o lado das disputas por mais espaço, ou simplesmente por um tempo mais elástico, dentro do qual é aberta a possibilidade de risos e, sobretudo, do convívio coletivo.

Denise Bernuzzi de Sant’Anna

Estefania K. Fraga


FRAGA, Estefania K.; SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 49, 2014. Acessar publicação original [DR]

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Memória, Ditaduras e Direitos / Projeto História / 2014

Os estudos e a reflexão sobre a memória social e as relações entre História e Memória constituem área relativamente recente dos estudos históricos. Como propõe Josephina Cuesta, em um balanço sobre a questão, diferentemente de outros cientistas sociais, que, desde o início do século XX, incorporaram os temas da memória ao seu repertório de discussões, seria somente a partir da década de 1960 que os historiadores passam a abordar de forma mais sistemática as questões políticas, teóricas e metodológicas postas nesse campo.

Não obstante, nas últimas três décadas, e em grande parte acompanhando as demandas sociais, a memória emerge como um campo profícuo da reflexão histórica, e a área registra uma notável expansão de estudos internacionais e também nacionais sobre as relações entre Memória e História. Indagações sobre a matéria própria da memória social, seus modos de produção e transmissão, as questões da lembrança e do esquecimento, a natureza dos testemunhos, a memória como campo de disputas e o papel da memória nas disputas sociais informam o estudos de diferentes temáticas. Pesquisas sobre a construção e a institucionalização de identidades nacionais e comunitárias, o papel das comemorações e da invenção de tradições, o papel dos símbolos e lugares de memória em diferentes situações e contextos, bem como sobre os processos de institucionalização de memórias e lutas sociais articulam-se à reflexão de campos diversos, tais como os da História Social e Cultural, da nova História Política, da História Pública e da chamada História do Presente. A expansão das fontes estudadas, festas, símbolos diversos, monumentos, calendários, artes gráficas e visuais, fotografia, pintura, publicidade e, principalmente as fontes orais, faz emergir uma pluralidade de sujeitos, questões e temas.

Para o que aqui nos interessa, vale também notar que a emergência de preocupações culturais e políticas voltadas para a discussão de memórias relativas ao passado recente é um fenômeno que ganha força na contemporaneidade em alguns países da Europa, sobretudo após a queda do Muro de Berlim, bem como em vários países da América Latina, após a experiência de ditaduras recentes.

De acordo com essas informações da Anistia Internacional, desde os anos de 1970, mais de 40 comissões da verdade ou similares foram estabelecidas ao redor do mundo, a maioria delas nos últimos 20 anos. A grande parte dessas comissões, propostas sob a visão da justiça de transição e visando à luta contra a impunidade e ao estabelecimento de procedimentos de reparação a vítimas de processos de violência institucional, propugnou pelo estabelecimento de mecanismos nacionais efetivos para a documentação da verdade sobre o arbítrio e os crimes perpetrados, propondo também a socialização do conhecimento sobre razões e circunstâncias que levaram às violações de direitos humanos nas situações sob investigação.

É significativo assinalar que, com essas comissões, muitos desses países assumiram como tarefa e dever de Estado a recuperação, a preservação e a publicização da documentação sobre os períodos de violência institucionalizada. Nesses anos, particularmente na América Latina, identificaram-se movimentos de grande vitalidade na área, os quais se articularam a importantes lutas políticas contra o arbítrio e a impunidade, bem como àquelas pelo direito à verdade e à memória. Em vários desses países, as lutas tiveram / têm como dimensão importante a organização de suportes de memória da repressão e da resistência produzidos nos períodos ditatoriais, dando origem ao desenvolvimento de inúmeros projetos e à organização de instituições diversas voltadas para a ação, a pesquisa e a reflexão sobre a história desses períodos.

No Brasil, passados mais de 50 anos do Golpe de 1964, a discussão pública sobre os anos da ditadura brasileira e da transição ainda é profundamente marcada pela herança autoritária imposta pelo pacto conservador da abertura, que propõe o perdão institucional aos responsáveis pelo terror de Estado e que se manifesta na prática cotidiana e contínua da violação de direitos humanos de nossa sociedade. Apesar disso, há de se reconhecer que, no decorrer da última década, principalmente a parir da aprovação do PNDH-III, em 2009, e da Lei Geral de Acesso à Informação e da Comissão Nacional da Verdade, em 2011, as questões propostas pelas articulações entre memórias da ditadura, história e cidadania ganharam força crescente no debate público em diferentes espaços da sociedade brasileira.

Desde então, assim como os demais espaços sociais, as universidades e a produção acadêmica têm sido insistentemente confrontadas e interpeladas por diferentes agentes sociais, e têm respondido a essas demandas. Nos últimos anos, nas diversas áreas das Ciências Humanas, a produção acadêmica sobre o período da ditadura cresceu vigorosamente em quantidade e qualidade. Particularmente no campo das relações entre Historia e Memória, há de se indicar que a historiografia sobre o período tem avançado significativamente, assumindo a pesquisa e a reflexão sobre uma grande diversidade de temas, questões, espaços, práticas e vozes antes inaudíveis ou invisibilizadas, e que nos aproximam muito mais de uma História Social e Política sobre o período e de suas repercussões na vida contemporânea. Há ainda que destacar a criação em várias universidades do país de Comissões da Verdade universitárias assim como o envolvimento de muitos professores nos trabalhos de pesquisa das várias comissões estaduais e na comissão nacional. Também a PUC-SP criou sua Comissão da Verdade que durante os últimos dois anos atuou articulada à outras comissões e buscou contribuir para a pesquisa e a reflexão histórica sobre aqueles anos de exceção. Este número da Projeto História articula-se tanto à discussões recentes propostas pelo Departamento de História como aos trabalhos da Comissão da Verdade da universidade.

Buscando contribuir para esse debate, este número da revista Projeto História aborda as relações entre Memória, Ditaduras e Direitos. A proposta é a que a divulgação de pesquisas e reflexões em circuitos mais amplos nos ajude a aproximar o trabalho de historiadores da importante agenda pública trazida pelas lutas em favor do direito à memória, à verdade e à justiça em nosso país. Busca também salientar a importância da reflexão histórica em um terreno no qual sentidos e significados encontram-se ativamente em disputa na sociedade brasileira na atualidade.

A revista traz a contribuição de historiadores e outros cientistas sociais que exploram diferentes ângulos da questão em relação à ditadura no Brasil e também em outros países da América do Sul e da Europa.

Os artigos de Ana Maria Sosa González e Enrique Padrós remetem às discussões sobre as ditaduras nos países do Cone Sul. O estudo de González nos propõe uma avaliação comparativa das políticas de memória implementadas recentemente no Uruguai e no Brasil, apontando seus caminhos e estratégias, bem como suas relações com políticas de afirmação dos direitos humanos nesses países. Ao discutir a atuação de historiadores e outros cientistas sociais nesse processo, aponta desafios atuais enfrentados nessa aproximação entre a academia e esses processos políticos. O artigo de Padrós, por sua vez, com base em pesquisa detalhada na documentação e em entrevistas de militantes do CLAMOR – Comitê pelos Direitos Humanos no Cone Sul, grupo que atuou com sede em São Paulo entre os anos de 1978 e 1991, aborda as situações de violação de direitos e violências perpetradas pelas ditaduras recentes em diversos países da América do Sul no contexto da atuação no Comitê e suas ações de denúncia do arbítrio e de auxílio e solidariedade aos perseguidos políticos nesses regimes no Cone Sul. O texto examina as lutas de resistência empreendidas pelo CLAMOR e pela rede de solidariedade constituída por entidades de defesa dos direitos humanos à qual o Comitê se articulava, como também aponta a dramática situação dos exilados e perseguidos políticos na região naquele período. Aqui, vale lembrar, que este precioso acervo do CLAMOR, nominado Memória do Mundo pela UNESCO , encontra-se aberto à consulta pública no CEDIC – Centro de Documentação da PUC-SP – e por sua importância para o período sugere inúmeras outras abordagens sobre as ditaduras no Cone Sul.

Como indicado anteriormente, a atuação da Comissão Nacional da Verdade no Brasil, entre 2012 e 2014, constitui marco importante no desenvolvimento das lutas pelo direito à memória, à verdade e à justiça no país, e seu encerramento recente coloca inúmeras questões sobre os desdobramentos desse processo na conjuntura em que vivemos. Procurador atuante na área e estudioso dos direitos humanos, Marlon Weichert apresenta, em seu artigo, um minucioso resumo do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade tornado público em dezembro de 2014. Além de descrever de forma densa e sintética os principais conteúdos, conclusões e recomendações do relatório, realiza um balanço sobre as dificuldades enfrentadas pela Comissão. O artigo também propõe uma avaliação fundamental e instigante sobre as expectativas e os desafios que a CNV não conseguiu atender, e examina as contribuições que seu relatório trouxe para o processo de justiça de transição brasileiro.

Dada a sua importância na configuração das relações de poder em nosso país, a presença e a atuação dos meios de comunicação nos processos de disputa em torno das memórias sobre a ditadura, bem como nos processos da transição, têm mobilizado fortemente a reflexão sobre os processos de constituição e a instituição de memórias sobre o período. Nesse campo, destacam-se, particularmente, as análises da imprensa como força social que atua na produção de hegemonia, articula uma compreensão da temporalidade, propõe marcos e diagnósticos do presente e que, a todo o tempo, propõe a afirmação de sentidos selecionados e a ocultação de outros. Dentro dessa perspectiva, a atuação da imprensa e os seus impactos nos processos de afirmação e transmissão de memórias da ditadura civil-militar no Brasil, a sua atuação como espaço de legitimação ou oposição aos regimes, são aqui tratadas sob diferentes ângulos e veículos.

O texto de Carla Luciana da Silva, com base na análise da revista VEJA em 1969 / 70 e 2014, problematizando a relação entre a imprensa, a memória histórica, as práticas discursivas e a produção da hegemonia, analisa como a revista atua na conformação e atualização de consensos sobre a repressão, a violência e a presença de opositores do regime, dos trabalhadores e dos movimentos sociais na cena política do país.

Percorrendo uma trajetória similar, a discussão proposta pelo artigo de Luiz Antonio Dias e Rafael Lopes Sousa, que destaca a pesquisa realizada nos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, tem como eixo central o Golpe de 1964. Analisando a recepção pelos dois jornais ao golpe civil militar de 1964, em momentos de sua efetivação, e depois em tempos de sua “comemoração” ou “rememoração”, nas efemérides de 2014, desenvolve argumentos sobre a reescrita do passado por aqueles jornais e desvenda seus argumentos e caminhos de justificação e legitimação daqueles eventos no presente.

Por outro lado, o artigo de Maria Izilda Santos Matos, tematizando a questão do exílio político e as ações de oposição ao regime salazarista no Brasil, problematiza como a imprensa pode se constituir em espaço de articulação e manifestação de propostas críticas e dissidentes. Em meio ao estudo da presença portuguesa em São Paulo (1920 / 70), destaca as experiências de um grupo de portugueses que, no exílio, levou à frente ações de oposição ao regime salazarista tendo como canal de expressão política o jornal Portugal Democrático.

Encerrando a seção de artigos, o texto de Marijane Lisboa, ao discutir pesquisas recentes sobre aspectos até hoje negligenciados da memória coletiva do genocídio nazista e os percursos da memória coletiva a seu respeito em situações específicas, nos situa na memória como campo de disputa móvel, que implica recordação, esquecimento e manipulação em momentos e situações históricas diversas. Destacando os desafios de se lidar com memórias sensíveis e traumáticas, propõe a reflexão crítica sobre os usos e os abusos da memória, bem como sobre a promoção de políticas de memória que sirvam à construção de sociedades democráticas.

Finalmente, na composição deste número da revista, cumpre salientar as contribuições trazidas por pesquisas em andamento sobre o período. Também abordando as relações entre imprensa e memória, tendo como material de pesquisa o jornal argentino Clarín, a pesquisadora Micaela Iturralde analisa a posição editorial e as estratégias discursivas desse periódico frente às violações dos direitos humanos, e indaga sobre tratamento dado pelo jornal às questões da violência política e aos “desaparecidos” durante a ditadura militar na Argentina (1975-1983).

Problematizando as políticas de segurança e as ações dos agentes do Estado, a questão da violência institucional e da violação dos direitos humanos também é discutida por Tiago Santos Salgado, em sua pesquisa sobre a Venezuela em períodos mais recentes.

Ao final, o texto de Viviane Tessitore relata a pesquisa sobre a história do projeto Brasil: nunca mais, que mapeou a repressão política durante a ditadura militar no Brasil, a partir dos processos contra presos políticos no início da década de 1980, e que se desenvolve no interior do projeto Brasil: Nunca Mais Digital, o qual, trazido a público recentemente, viabilizou a consulta virtual àquele valioso acervo sobre a repressão durante a ditadura no Brasil.

Heloisa de Faria Cruz


CRUZ, Heloisa de Faria. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 50, 2014. Acessar publicação original [DR]

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Primavera dos Povos / Projeto História / 2013

A Primavera Árabe reluziu em pedaços do céu de uma parte do planeta, acendendo um facho de luz sobre a necessidade de refletir o entusiasmo que causa nos espectadores (como aludia Immanuel Kant), nas multidões, nas classes desprezadas, e, por conta da própria presença das massas nos espaços públicos, o conforto e a simpatia que provocam a solidariedade humana. As sucessivas manifestações populares redundaram em transformações sociais, políticas e comportamentais, pondo abaixo longas tiranias que se consideravam eternas, acima do bem e do mal, e intangíveis, com sua aura de santidade. Caso exemplar do jovem engenheiro tunisiano, Mohamed Bouazizi, que foi destratado, humilhado, surrado, por armar sua barraca de frutas na praça, mera tentativa de garantir a sua sobrevivência, protestando, de modo radical, em carta destinada á sua mãe, dizia que a vida não seguira o fluxo sonhado por ela, o destino lhe escapara, o mundo caminhava em sentido contrário, para em seguida imolar-se, ateando fogo em seu próprio corpo, denunciando em plena praça pública o futuro ausente, a insensibilidade e atrocidades dos dominantes. Como um estopim de um arsenal de explosivos acumulados, um gigantesco protesto serial detonou uma ditadura de 24 anos. Ben Ali teve de fugir para evitar o pior. Eram fins de 2010 e inícios de 2011.

Na seqüência, após 30 anos, o ditador Hosni Mubarak é deposto no Egito, as manifestações se sucedem na Líbia, Iêmen, parte considerável do Magreb, convulsionando o mundo, revoltados os jovens, as mulheres e homens, de todas as idades, que se agruparam nas ruas como numa rede a culminar em praças públicas, sem temer a forte represália que poderia puni-los, não pelos deuses, mas pelos que, no poder, deveria representa-los.

As tiranias teriam que prestar contas com a Ágora, denunciados em seus privilégios, desmandos, torturas, aviltamentos, barbáries, sempre destinados aos mais pauperizados e excluídos, a fim de garantir seus privilégios e ganâncias para suas nobres famílias e também os mais próximos.

Uma das particularidades desses poderes é a fusão da condição de proprietário de indústrias com a de militar! Uma burguesia típica por sua condição social, mas também disposta no exército, na posse do exercício da repressão militar e como o sustentáculo da religião. Caso, por exemplo, do Egito. A sincronia dos protestos, não ficou nas redondezas do Magreb. Na Espanha, Los Indignados saíram vociferando sobre os políticos e seus interesses mesquinhos. Milhões foram lançados ao desemprego. Com a falência dos bancos, suas habitações hipotecadas foram simplesmente retiradas sem nenhuma devolução e acertos dos investimentos feitos. Em Portugal, com a recessão econômica, redução demográfica, baixa produtividade e a política de austeridade ditada pela troika, constituída pela Comissão Européia, o Banco Central Europeu (BCE) e o Fundo Monetário Internacional (FMI ) reduziu os salários e os níveis de emprego, abrindo a chancela para as multidões se revoltarem na terra de Saramago. Na Grécia, os jovens anarquistas, destemidos e raivosos, reviraram o mundo aparentemente solidificado e enfrentaram a polícia e o aparato repressivo do Estado nas ruas. Em Nova York, o movimento Occupy Wall Street deu lições da chamada “cidadania burguesa” denunciando e desnudando a irracionalidade do sistema do capital. Tudo que é sólido desmancha no ar!

Em 1848, em janeiro, ocorria na Lombardia uma revolta contra a ocupação estrangeira, austríaca. Também na Sardenha, nos Estados papais, e no reino de Nápoles, as revoltas se alastravam. Em fevereiro, a Monarquia de Luis Filipe, redentor dos banqueiros, era posta abaixo pela ocupação do Hotel de Ville. Em março, sucedia a revolta na Prússia, e, numa série impressionante, sempre em escala crescente, irrompiam motins em Viena, Budapeste, Saxônia, na Croácia, na Polônia, com os trabalhadores e estudantes na dianteira. O mundo europeu assistia á Primavera dos Povos. Para os conservadores, foi o “ano louco”! As classes proprietárias da cidade e do campo não tiveram dúvidas ante o levante operário e suas barricadas. Os massacres de junho, em Paris, foram a reposta armada contra as barricadas, a contrarrevolução armada até os dentes, com seu poderio bélico contra a ousadia popular de perspectivar um mundo novo. O aceno futuro da construção de uma nova sociedade socialista contagiada por bandeiras vermelhas balançadas nas ruas, prédios, palácios. Segundo Ferdinand Claudín, 1848 foi “A Revolução mais européia de toda história da Europa”. Para Marx, em seu Discurso no Aniversário do People’s Paper, no ano de 1856, as revoluções que se alastravam histórico e se multiplicaram de modo espontâneo, naquele período histórico, “proclamaram de forma ruidosa e ao mesmo tempo confusa, a emancipação do proletariado, esse segredo do século XIX e de sua revolução.” No século dezenove, os camponeses exigiam o fim das cobranças, impostos, cargas feudais. As revoltas populares davam seu troco, devolviam a fatura histórica.

De Paris, o canto do galo gaulês despertará uma vez mais a Europa! Mas, o que dizer quando, do continente africano, se estendendo por inteiro até a comunidade regida pelo euro, os efeitos da crise estrutural do capital que conduzem o primeiro mundo a vivenciar às mazelas do antigo terceiro mundo? Da Grécia até a Islândia, de Barcelona a Lisboa, da Praça Taksim a Roma – com o recente movimento I Forconi, as multidões passam a ocupar as praças públicas, denunciando os desmandos dos ditadores, a impotência e a morosidade da política parlamentar, o engodo dos grandes partidos dominantes que protelam as decisões que envolvem o sofrido cotidiano das camadas subalternas, dos camponeses, da juventude sem emprego, dos aposentados e dos funcionários públicos. O canibalismo da contrarrevolução ainda é a única resposta das classes dominantes? Por quais razões a humanidade se cala ante a matança de 3 mil pessoas no Paquistão, por drones, as armas voadoras invisíveis, que exterminam de modo indistinto, e que se sabe boa parte de crianças, a mando do Império de Obama?

Walter Benjamin escreveu, em 1925, sobre as armas do futuro. Anteviu os atuais sofisticados drones, bombas inteligentes e submarinos, armas invisíveis que nos atingem pelo céu, pelo mar e pela terra. No apogeu de progresso vaticinou: “A guerra vindoura terá um front espectral. Um front que será deslocado fantasmagoricamente ora para esta ora para aquela metrópole, para as ruas, diante da porta de cada uma de suas casas. Ademais, essa guerra, a guerra do gás que vem dos ares, representará um risco literalmente de ‘tirar o fôlego’, em que esse termo assumirá um sentido até agora desconhecido. Porque sua peculiaridade estratégica mais incisiva reside nisto: ser a forma mais pura e radical de guerra ofensiva.”1

Calcados em extensa historiografia e fontes documentais diversas e inéditas, os autores que compõem o presente volume tratam das diversas manifestações sociais que eclodiram pelo mundo todo, inaugurando um novo ciclo da Primavera dos Povos, a começar pelo mundo árabe. Alguns a situam no levante ocorrido na Tunísia em 2010, e rapidamente assolaram o norte da África e o Oriente Médio, varrendo o mundo árabe com desdobramentos na Península Árabe e no Golfo Pérsico, passando pela agitação na Argélia, Marrocos e principalmente na Líbia. Conforme um dos autores que os analisa neste volume, “Espalhou-se para o Iêmen, o Barein, a Jordânia e ecoou até a conservadora e puritana Arábia Saudita”. Manifestações nos países como Argélia, Jordânia e Marrocos, levaram os governantes a, rapidamente, realizar reformas políticas e concessões socioeconômicas.

As mais diversas interpretações são aventadas pelos analistas aqui presentes, mas alguns atributos parecem lhes ser comuns: a luta contra regimes e instituições dominantes, que vai desde a indignação contra a arrogância das forças imperialistas ocidentais e contra as evidências das articulações de poderes transnacionais que se articulam supra nações; o clamor por transformações não só políticas, mas também sociais e econômicas profundas que culminaram por evidenciar diferenças culturais arraigadas entre os contendores; o desencanto com líderes que nada apresentavam para alterar situações que expressassem a defesa de interesses nacionais; as evidências da corrupção; o aumento da desigualdade e da pobreza, assim como a indiferença ante o aumento da miséria.

Destacam ainda o pano de fundo que se revela na concentração e centralização do capital em escala planetária, que resulta no aumento geral da produtividade dada a automação generalizada do processo de trabalho, resultando na reestruturação ampla da vida social e na desocupação, também generalizada, da população economicamente ativa. Recuperando o conceito de Marx, destaca um dos autores nesta revista, trata-se da classe trabalhadora que se põe para este capitalismo como uma “população sobrante”, sobressalente, que não tem “utilidade imediata para o capital como produtor de mais valia em condições de produtividade média”, seja lá em que condições específicas se encontrem. Uma automação dos processos produtivos que expressam o conhecimento de ponta a que chegou a humanidade: a informática e a computação introduzidas no mundo do trabalho. Assim, a população sobrante reivindica participação nas relações de poder, na ampliação dos direitos de cidadania expressa a sua condição de exclusão não só do mundo do trabalho, mas do acesso á própria vida. De fato, a considerar os dados apresentados pelos autores no presente volume da Projeto História, o crescimento do “precariado”, isto é, “conjunto de trabalhadores jovens-adultos altamente escolarizados inseridos em relações de trabalho precário como falso trabalho independente (os falsos recibos verdes), os contratos a prazo e o trabalho temporário, revelam tal exclusão.

Assim, por exemplo, explicitam que, só na Europa, comparando dados de desemprego de 2012 com os do ano de 2013, observam uma tendência expressiva e preocupante: o desemprego aumentou em 1.673.000 na Europa dos 27 e em 1.644.000 na zona euro. “O que significa que o ‘presente puro’ não existe; ele é apenas ‘o passado consumindo o futuro’”, diz o autor citando Bérgson, ou ainda István Mészáros, para o qual a temporalidade do capital é uma “temporalidade decapitada”.

Mas, dialeticamente, a informatização une os mundos, e sob o signo dos novos meios de comunicação, as formas de manifestações inovam e se agilizam. A importância destes últimos também recebe destaque quase que unânime entre os autores aqui presentes e, conforme um deles é uma realidade que expressa imensas redes segmentadas, policêntricas, nem sempre integradas ideologicamente, mas que se “mantém latentes em períodos de baixo fluxo de informação e, graças á rapidez da comunicação por Internet, podem converter-se, sem complexidade organizativa, em forças eruptivas poderosas quando decidem atuar de forma articulada”. Nestas redes barreiras até há pouco intransponíveis são vencidas, como a das línguas, a do monopólio das comunicações, a da censura, coerção e poder aquisitivo. O acesso á comunicação aventou a real possibilidade de formas democráticas existirem e como que impulsionou mais uma vez, sua utopia. Ícones das comunicações, até há pouco inquestionáveis como a Press TV iraniana, ou a Russian TV, ou a CNN, BBC, passaram a ser objeto de questionamentos deixando suas afirmações de serem consideradas verdades absolutas e se tornando objeto de desconfiança.

Também os analistas oficiais do ocidente, assessores das decisões políticas, muitos dos quais se revelaram incapazes de entender a complexidade dos mundos orientais e asiáticos, por suas diferenças e variedades entre países, viram suas assertivas questionadas pelas ágeis comunicações entre os jovens. Ansiosos por esclarecimentos passaram a perguntar diretamente aos protagonistas dos levantes e vice-versa, flagrados pelos celulares os fatos quase que eram transmitidos concomitantemente, livres dos empecilhos das editorações e dos censores das empresas monopolistas da comunicação. “Twitter e Facebook eram usados para marcar protestos e trocar informações. Os celulares foram amplamente utilizados para capturar imagens dos protestos, das agressões e da ação dos militares. Logo, os vídeos eram postados em sites estrangeiros, sobretudo no Youtube.”

Neste movimento, análises que explicam a Cultura da Mídia, enfatizando a Convergência e a Inteligência Coletiva dela decorrentes, e que “associam seus produtos como mercadorias criadas para atender aos interesses de seus controladores – gigantescos conglomerados transnacionais” necessitaram rapidamente incorporar o processo desregionalizador e transfronteiriços do ciberespaço. Recuperando a citação de um analista presente nestas paginas, para Pierre Lévy a “principal conseqüência do desenvolvimento dessa nova cultura gerada através do ciberespaço (…) são os aspectos civilizatórios ligados ao desenvolvimento da multimídia”. Além dos exemplos acima, cumpre também um papel civilizador as charges cujas críticas atravessaram fronteiras e se uniram á denuncia das tiranias e arbitrariedades de toda ordem. Vai nesta direção a preocupação do autor em entender, por exemplo, o dialogo entre as “charges produzidas pelo brasileiro Carlos Latuff e o sírio Ali Ferzet” e como “ foram receptores de ideias, propagaram as causas políticas e mobilizaram pessoa”.

Mas um dos aspectos inéditos deste volume é a preocupação dos autores em situar estes diferentes levantes, assim como de outros que se estenderam a todo o mundo, no mesmo pano de fundo da crise mundial do capital, sua historicidade. Com tal intuito demonstram a preocupação em situar para o leitor que tais levantes e lutas não espocaram de um dia para o outro, a historicamente, mas buscaram suas raízes na historia de cada uma das especificidades tratadas.

Assim, por exemplo, destaca o autor como, no Egito, a Sociedade dos Irmãos Muçulmanos (SIM), movimento de massas caracterizado por forte apelo islâmico, (…) que se associou às causas populares, como a autodeterminação e valores tradicionais da sociedade egípcia, representados por uma elaboração particular do discurso religioso”, agia desde 1948, quando chegou a cerca de um milhão de membros distribuídos por todo o país. Esta organização acabou por catalisar o descontentamento popular nos anos de 2010, com o aumento da exclusão social, política e econômica. Demonstra ainda a heterogenidade do mundo muçulmano, tão pouco reconhecida no ocidente, pois enquanto o SIM aceitava desde os primórdios de sua organização, membros de todas as classes sociais, o Wafd, tido como o partido liberal, “era inteiramente dominado por membros da elite egípcia .

A incapacidade do presidente Morsi de concretizar as promessas de campanha de garantir “Pão, liberdade e justiça” ao povo, resultaram, segundo o analista, em que em um ano, o apoio de 13 milhões de eleitores se transformou em uma rejeição assinada por 22 milhões de pessoas, em 2011, muitas das quais concentradas na Praça Tahir.

A mundialização das lutas, levantes e sublevações contra governos opressores, ditadores, tiranos de toda espécie que expressam a transformação do ideal da democracia em uma utopia desvairada será analisada em continuidade no segundo e terceiro volumes desta coleção. Mas seria incompatível com a demonstração de que tais manifestações são expressão da mundialidade da crise do capital, se nos detivéssemos á Primavera Árabe.

A repressão aos trabalhadores rurais se mantém dramática na região do Araguaia. São grileiros, jagunços, pistoleiros, as forças policiais procurando reprimir as diversas lutas sociais na região. Como procurou-se demonstrar, a repressão ao camponês durante a guerrilha foi intensa, profunda e procurou destruir a base da sociabilidade camponesa. Queimar roças, expulsar os camponeses de suas casas, impedir que a sociabilidade camponesa se desenvolvesse e que os laços de solidariedade se fortalecessem foram formas repressivas utilizadas contra essa população ontem e hoje. A resistência desse segmento social, entretanto, manteve-se e se difundiu. Falar da guerrilha do Araguaia, para os camponeses, transformou-se na possibilidade de amplificar a divulgação de suas demandas e da dramática questão camponesa no Brasil.

As circunstâncias que moveram as greves operárias na década de 1980 se baseiam fundamentalmente em razões salariais e condições de trabalhos feridas diretamente pela política econômica da ditadura militar. As manifestações operárias denunciaram e tentaram combater a superexploração do trabalho, configurado na política salarial e no seu arrocho, motivo pelo qual adquire caráter político imediato. Por isso as greves precisam ser analisadas não como simples “aventura”, mas como um movimento que foi capaz de avançar no que tange aos temas assimilados e estratégias elaboradas.

Nota

1 BENJAMIN, Walter. O capitalismo como religião. Tradução Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013, p. 69.

Vera Lúcia Vieira

Antonio Rago Filho


VIEIRA, Vera Lúcia; FILHO RAGO, Antonio. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 46, 2013. Acessar publicação original [DR]

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Teoria, Política e História: Motins e Revoluções / Projeto História / 2013

Há que começar por um agradecimento. Graças à Pinacoteca do Estado de São Paulo, abrimos esse número da revista Projeto História com a imagem de “Campo de Batalha n.º 13”, de 1974. Esta obra compõe a impactante série de pinturas do artista brasileiro Antonio Henrique Amaral (1935), tendo como nucleação e tematização uma fruta exuberante de coloração verdejante, amarelada e também que se transmuta em tons marrons, que “engorda e faz crescer” e que adquire vários significados nas pinturas intituladas “Campo de Batalha”. Dessa maneira, as bananas com suas formas e conteúdos se diversificam, se deslocam, dando conotações a essa fruta que em nosso cotidiano pode significar desde o símbolo fálico ou uma pessoa amedrontada e retraída, uma ameaça racista ou uma “República das Bananas”, ou algo muito barato, vendido no mercado “a preço de banana”. Contudo, não é assim que o artista plasma nossa fruta tropical em suas pinturas. Ao evocar os seus vários tempos e mutações que se traduzem em formas e cores, acompanhamos a sua potência, o seu verdejar, assim como seu amadurecimento com o amarelo ouro combinados com tons marrons, de nossa energética “fruta nacional”. A obra “O primeiro de N…” (1973) já está trançada com os elementos compositivos que Antonio Amaral soube como ninguém extrair símbolos e representações. As cordas, as várias formas e recortes da fruta, de lado, de frente, no cacho, em rodela… Desde a “Boa vizinhança”, de 1968, lá está ela como representação do enlace cultural e do “imperialismo sedutor”: uma banana se estende entre as duas bandeiras, a estadunidense e a brasileira. Em “Detalhe com corda” (1972), a banana figura sob um fundo amarelo, com o cacho cortado e pendurado sob uma corda com seus vários nós que a deixam flutuar, a banana suspensa. A partir de outros quadros, como “As duas suspensas” (1972), a fruta aparece em seu amordaçamento… Na série “Campo de Batalha” transparece o confronto entre uma peça bela, mas frágil, que pode ser despedaçada por objetos cortantes. A arma bruta que não pode florescer é uma força que se impõe a qualquer resistência da fruta. Como o corpo humano que algemado, amarrado, torturado e vilipendiado, é silenciado pelos aríetes cortantes das tiranias.

“A morte no sábado – Tributo a Vladimir Herzog (1975)” é a apresentação radical do terrorismo oficial, do dilaceramento total da carne e do espírito humano, sob a indigna tortura usada por torturadores treinados para o “mal radical”, filhos da autocracia burguesa que se valeram de todos os meios para reprimir e aniquilar seus “inimigos internos” numa “guerra prolongada” da autocracia do capital. Carnes, pedaços, vísceras, espetadas com garfos e facas, tais como as frutas frágeis e doces, que empreiteiros da tortura só podem combater, às escondidas, de modo covarde, o seu algoz sempre enjaulado e que tem de se apresentar amordaçado, assim com seus instrumentos, estiletes cortantes, furam sangram, despedaçam a carne e o espírito que irradiam a liberdade.

A Pinacoteca, a partir de 7 de dezembro de 2013 até 23 de fevereiro de 2014, nos brindará com as exuberantes obras desse artista generoso, para alguns um “tropicalista radical”, que expôs em várias cidades da América Central e Latina, como Buenos Aires, Bogotá, Santiago do Chile, La Paz, entre outras e, também, em Otawa, Washington e Nova York.

Acolhendo vários artigos que tratam de manifestações sociais, sublevações e revoluções, há que registrar em nossa história política recente a irrupção dos mobilizações sociais de junho, que adentraram nas praças públicas, inicialmente com a bandeira da redução das tarifas dos transportes públicos e que foram simplesmente criminalizados com rajadas de bombas lacrimogêneas e balas de borracha, com outros tantos de instrumentos de repressão, como o cerco, as trauletadas com choque elétricos e as prisões. Com isso, propiciaram o agigantamento das ações populares que também partiram para o enfrentamento. Na multidão ressaíam a coragem e o vigor dos jovens, mas também de trabalhadores assalariados, precarizados, desempregados, vindos de vários sítios, com forte adensamento das periferias, que conscientes dos destratos em sua vida cotidiana, saíram a somar as reivindicações pela melhoria do trânsito, conforto e mobilidade urbana, mas, também os antigos temas como moradia, educação, saúde, segurança, entre outros. Com sua criatividade e espontaneidade, a movimentação se alastrou para todo o país, dando nova qualidade às intervenções políticas, resistindo à brutalidade policial e encurralando os principais dispositivos políticos, colocando-os na defensiva. Tomados de susto, os partidos de esquerda se viram obrigados a, inicialmente, entender esse fenômeno histórico-social. Reconhecendo que as organizações operárias ficaram à margem dessas mobilizações sociais. As principais centrais como a CUT e a Força Sindical estando atreladas ao antigo cupulismo e concluio com o governo, ficaram desarmadas e sem condições de disputar a hegemonia do movimento. Se a crise estrutural do capital aberta em 2008 e atingindo a acumulação nos pólos centrais do sistema, como os EUA e a Comunidade Europeia, aparentemente “poupou” as economias subalternas como as formações venezuelana, argentina e a brasileira, todavia, por conta da própria retração econômica e dos rearranjos das economias centrais, com o crescente processo inflacionário e declínio da produção interna, trouxe a possibilidade da radicalização da classe trabalhadora, dos setores alinhados à esquerda, anticapitalistas, mas também de grupos de extrema-direita, com sua reacionária “marcha da família”, contra o “comunismo” e a criminosa bandeira de “volta da ditadura militar”.

No artigo de Gilberto Calil temos uma consistente reflexão sobre as mobilizações inaugurados em junho de 2013. O autor revela o caráter pluriclassista, a riqueza das reivindicações, a inexperiência dos novos militantes e a concomitante disputa de bandeiras e espaços nas praças públicas, identificando três posições principais, a saber, a oposição de esquerda, a conservadora em suas diferentes tendências e o paredão em torno da defesa do governo petista. Além disso, o historiador se debruça sobre a atuação da imprensa que classificando os manifestantes como “vândalos”, passa a querer ditar rumos “pacíficos” ao movimento. Desse modo, a imprensa, assim como os governantes dos Estados e municípios, acreditavam em tipificar as manifestações como sendo ações depredatórias, criminosas e que atentavam à ordem social e seu direito de ir-e-vir. Todavia, começam a reagir a seus próprios enunciados com o agigantamento do movimento. Perdendo credibilidade com a divulgação instantânea de vídeos, a força policial em ato bruto, começaram a “suavizar” o discurso direcionando-o ao combate à corrupção. “Já era possível perceber que a radicalização repressiva gerava efeitos contrários, como fermento para o crescimento das manifestações.”, escreve Calil. As manifestações foram se multiplicando e no seio delas, o autor identifica a irrisória participação da extrema-direita. Do lado das centrais, reconhece que houve um “fiasco histórico” no Dia Nacional de Lutas, do 11 de julho, com os sindicatos atrelados à concepção de “conciliação de classes” em torno do governo Dilma Rousseff.

Questionando a doutrina aceita por reconhecidos teóricos sobre a existência de uma “diferença qualitativa a distanciar a autoridade da força violenta de um poder político não legítimo”, o texto teórico que referencia este volume, de autoria de Savio Vaccaro, da Università degli Studi di Palermo, analisa a intrínseca relação que as configura, justificada por uma modernidade que se contrapõe ás tradições, divulgada por vias de comunicação cada vez mais complexas e simples e que, entre outros aspectos, citando Kojève, encontra respaldo na inversão: “a justiça, (que) deveria ser o pressuposto fundante do Estado, (…) é, pelo contrário, um efeito contingente deste”.

A pertinência de tal discussão se explicita nos estudos de especialistas que compõem este volume nº 47 da Projeto Historia, cujo título Motins e Rebeliões nos remete ás diferentes expressões das lutas de classes teorizadas por autores como Carlo Ginzburg, Keith Thomas, Robert Mandrou, Roger Chartier, George Rudé, entre muitos outros. Em que pesem as diferenças entre tais autores, encontra-se unanimidade na percepção de que, ao longo da historia da humanidade, para os segmentos dominantes, tais manifestações nada mais eram do que a expressão de turbas, ralés ou desclassificados, precipitando-se em “condená-los a uma abstração desmaterializada”. A importância da historiografia analítica que repõe a instrumentalidade de tais levantes na dinâmica social, justificadas tanto em nome da fé, no dizer de Mandrou e / ou Ginsburg, quanto impelidos pela fome, conforme E. P. Thompson, ou mesmo na que se revela nas análises que a Projeto Historia selecionou para a composição deste número. Conforme se constatará de sua leitura, a dimensão que se pode atribuir a rebeliões chega até o reconhecimento destas em organizações culturais contra o fascismo, nas associações de imigrantes para fazer frente á empecilhos legais até as processualidades históricas como as lutas retratadas no conjunto da obra de Che Guevara, por exemplo. Lutas que se contrapuseram a Estados ditatoriais, como nos casos chileno ou na articulação da direita na Argentina aqui retratados. A retrospectiva contida nos textos que apresentam, desde a leitura marxiana sobre a Revolução de 1848, a Revolução dos Cravos em Portugal, a Revolução Francesa e o anarcossindicalismo italiano, articulam os aspectos teóricos que respaldam a conotação acima aludida.

A expressão da relação entre autoritarismo e violência encontra-se o texto de María Inés Tato, da Universidade de Buenos Aires, a qual analisa como conservadores e nacionalistas, respaldados na bandeira da Constituição Nacional e na defesa das tradições, usaram o recurso extremo da interrupção do governo democrático por meio de golpes de estado. Frente á tradição politica liberal as ações destes segmentos autocratas demonstram seu desapego pela democracia de massas e o conseguinte autoritarismo político que perduraram ao longo do século XX naquele país, perpetrando golpes de Estado desde 1930 e compartilhando posições em gabinetes e administrações militares.

Que as rebeliões têm muitas formas, se comprova com a leitura do artigo de Angela Meireles de Oliveira a qual traça um panorama das “associações de intelectuais que lutaram contra o fascismo no Brasil, Argentina e Uruguai entre 1933 e 1939”, as quais, apesar de suas diferenças e características próprias, tiveram em comum uma importante atuação no âmbito da cultura e no mundo artístico, além do proposito de contrapor-se á ideia de que o antifascismo seria fruto da ação exclusiva dos partidos comunistas ou da coordenação da Internacional Comunista (IC). Resgata a autora o surgimento de tais associações desde Paris, onde fora criado em 1934 o Comitê de Vigilância de Intelectuais Antifascistas (CVIA), onde ocorrera o Congresso de Escritores pela Defesa da Cultura (Paris, 1935 e Espanha, 1937), a Associação de Escritores e Artistas Revolucionários (AEAR) e a Associação Internacional pela Defesa da Cultura (AIDC), que se contrapuseram ao projeto de Stalin de extinção da União Internacional de Escritores (UIER ou MOPR, em russo). No mesmo diapasão, conforme a autora, no momento de ebulição da luta antifascista no Brasil, em torno da Aliança Nacional Libertadora (ANL) “cabia ao Centro de Defesa da Cultura Popular (CDCP), também chamado de Liga de Defesa da Cultura Popular e ao Clube de Cultura Moderna (CCM) as propostas e ações naquele campo”. No mesmo momento, a partir de 1935, no cone sul, “as lutas antifascistas passaram a ocorrer em sincronia, a partir da criação, por exemplo, na Argentina, da Agrupación de Intelectuales, Artistas, Periodistas y Escritores (AIAPE) e do Comitê de Vigilância dos Intelectuais Antifascistas (CVIA) e da criação da Confederação dos Trabalhadores Intelectuais do Uruguai (CTIU), que deu origem à AIAPE no país.

Carine Dalmás, em “Frentismo cultural dos comunistas no Brasil e no Chile: literatura, escritores e virada aliancista (1935-1936) aborda a constituição desse movimento intelectual, cuja denominação procura sintetizar as intervenções dos comunistas brasileiros e chilenos nos debates artísticos e literários de seus países com o propósito de tornar o terreno da produção cultural um local de articulação e difusão social das suas propostas políticas. Comparativamente, Dalmás salienta que a partir da ampla tendência de stalinização dos partidos comunistas, seus autores, tanto no Brasil como no Chile, orientaram os debates e produções literárias a partir da influência da União Soviética. Entretanto, diante das diferenças entre as trajetórias dos dois partidos e também de seus quadros intelectualizados, ocorreram impasses que diferenciaram esse processo. Elisa de Campos Borges, em “O Governo de Salvador Allende no Chile: atuação dos trabalhadores e a organização de novas relações de trabalho”, destaca as conexões entre a implementação de parte da linha programática da coalisão de esquerda Unidade Popular (UP), com a alteração das relações entre trabalhadores e a direção das indústrias a partir do processo de estatização do setor produtivo, e as expectativas geradas para o proletariado chileno, sobretudo no que tange às mudanças no cotidiano do trabalho. Se, por um lado, a criação de um sistema participativo no interior das fábricas possibilitou a melhoria das condições dos trabalhadores e a mobilização de classe, como destaca a autora, por outro tal espaço gerou conflitos e disputas na implantação do programa do governo popular.

As alternâncias das condições dos imigrantes bolivianos na Argentina é o tema principal deste estudo da pesquisadora da Universidade Nacional de Buenos Aires, Carolina Crisório. A este título, a autora, respaldada na diferenciação entre imigrantes ilegais e clandestinos, analisa como o Estado argentino oscilou, desde a formação da nação até os dias do MERCOSUL, entre sua aceitação ou rejeição de bolivianos, chilenos, paraguaios e mesmo brasileiros, através de leis e regulamentos que se foram superpondo contraditoriamente ao longo do século XX. Segundo ela, tal alternância de conduta por parte do Estado e, inclusive as reações xenófobas e condutas discriminatórias da população argentina esteve diretamente vinculada ás oscilações entre desenvolvimento e crises do capitalismo e das ondas ditatoriais vivenciadas naquele país. Assim controlados, estes imigrantes tendem a criar associações, superando rivalidades e competições no mercado de trabalho e suas diferenças culturais.

A título de refletir sobre a importância do conjunto dos diários de Che Guevara para o entendimento de todo o processo revolucionário cubano e sul americano entre o período de 1945 a 1967, Luiz Bernardo Pericás nos traz uma erudita e pertinente reflexão sobre o reconhecimento dos diários como fonte documental essencial para a analítica historiográfica. A partir do próprio Che, o autor rememora desde diaristas ingleses do século XVIII, perpassando por escritos de pioneiros e imigrantes norte americanos do século XIX e XX, e por conhecidas obras derivadas de anotações como as de um Dostoievsky, Camus, Lord Byron, Kafka, Flaubert, Graham Greene, Virginia Woolf e André Gide. Segundo Pericás, Che mantinha consigo, ao longo de suas jornadas, os escritos do californiano Jack London cujos diários, escritos em fins do século XIX, retrataram “em cores fortes os medos, as angústias, as alegrias e as esperanças de toda uma geração naquele final de século XIX”. Demonstra assim, além de uma densa analise do conjunto dos escritos de Che Guevara, como a literatura se apropria de “forma ‘diário’” e sua importância historiográfica.

No artigo “O Nacionalismo em Bolívar e Martí”, Mônica Dias Martins e Manuel Domingos Neto analisam as fundamentações do discurso com forte conotação nacionalista de dois líderes mais notórios no processo de Independência latino-americano. A rigor, os conceitos e formato de nação, nacionalidade e estado nacional estavam em formatação e ebulição no século XIX e a construção da identidade nacional na América Latina, continente com uma população multifacetada, foi um enorme desafio. Os autores deste trabalho identificaram as proximidades entre o discurso nacionalista dos libertadores da América e a ideia de internacionalidade.

No trabalho “Errico Malatesta e o Fascismo”, Nildo Avelino aborda a análise crítica deste anarcossindicalista italiano acerca da escalada do regime de Mussolini, através de seu jornal Volontà, publicado em Ancona. Tendo como foco os microfascismos ao invés do macro, as reflexões de Malatesta permitem compreender um viés do Estado Liberal, cuja utopia do self-government se aproxima da vontade de governo dos estados totalitários. E a legitimidade deste discurso repousa numa pretensa antítese do autoritarismo, cujo imaginário projeta para as cenas de “…arames farpados cortando os céus e da luz dos holofotes projetada sobre corpos esquálidos.” Avelino demonstra, através de Malatesta, portanto, a genealogia desse “canto da sereia” do Estado democrático contemporâneo.

Em “Novamente, a Revolução Francesa”, Oswaldo Coggiola atualiza alguns aspectos centrais que circundaram esse processo histórico mais abordado pela historiografia. Cada geração renova as discussões acerca dos acontecimentos do passado, seja pelo acúmulo de conhecimentos e descoberta de novas fontes, mas, sobretudo, pelas novas visões decorrentes das questões políticas e ideológicas dos anos mais recentes.

Os interesses e celebrações em torno da Revolução Francesa, uma vez institucionalizada, são geralmente circunscritos ao ano de 1789, na aliança de um amplo leque de setores políticos e sociais – povo, burguesia e monarquia constitucional -, entretanto ocorre a tendência de negação do caráter contraditório e instável desse compromisso político. “Não é só a revolução quem devora seus filhos: os filhos da revolução também devoram sua mãe, quando necessário”, enfatiza Coggiola. No trabalho “A Revolução dos Cravos, a dinâmica militar”, Lincoln Secco reflete acerca do processo revolucionário português de 1974 a 1975 a partir de seu impacto sobre as forças militares através do estudo das disputas políticas na longa duração. O chamado Movimento das Forças Armadas – MFA -, denominação dada pelos capitães do exército português foi fundamental nesse contexto, e Lincoln Secco sintetiza as motivações e reivindicações dos militares em três Ds: “Descolonização, Desenvolvimento e Democracia”.

Em “A Revolução Alemã de 1848 nos artigos da Nova Gazeta Renana”, Lívia Cotrim, aborda o decurso do movimento na Alemanha acompanhado das análises marxianas expostas nos textos do jornal fundado por Marx e Engels, incluindo os vínculos e contrapontos com as insurreições de fevereiro e junho na França, determinado pelo caráter burguês das relações de produção e também da monarquia francesa, “em contraste com a conservação, na Alemanha, de condições econômicas e políticas ainda semifeudais, estando a burguesia alijada do poder”.

Se na França, a derrota do proletariado nas jornadas de junho foi a vitória dos setores mais conservadores da burguesia, na Alemanha o processo terminou com a derrota tanto dos setores populares como da própria burguesia, com a manutenção da combinação das formas capitalistas e pré-capitalistas de exploração do trabalho, bem como a “fragmentação e uma forma de estado autocrático que exclui o exercício direto do poder por aquela classe”.

Em síntese, o conjunto das leituras deste volume da Projeto Historia remete á conotação de que, quaisquer que sejam as mobilizações sociais contra as dominações que se apresentam das mais diversas formas, tempos e espaços, observa-se, em comum, a reação desqualificadora e a violenta repressão.

Antônio Rago Filho

Vera Lucia Vieira


VIEIRA, Vera Lúcia; FILHO RAGO, Antonio. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 47, 2013. Acessar publicação original [DR]

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Diásporas / Projeto História / 2012

Deixando de lado temáticas sobre africanos enquanto escravos, pés e braços de senhores, novas perspectivas acenam para estudos em torno de circuitos Europa / África / Brasil, privilegiando mediações culturais da diáspora negra. Sugerem memórias e heranças, saberes e fazeres no Atlântico, como narrativas deslocadas da História Universal. Estudos tangidos pelas teorias da independência e descolonização (afrocentrismo, nativismo, negritude, pan-africanismo), hoje em superação, cedem espaço a reflexões permeadas por epistemologias da decolonialidade de saberes e poderes, pelo post-colonialismo e descentramentos identitários. As práticas sociais e culturais de escravos, ex-escravos, colonizados e ex-colonizados apontam para a demolição de discursos que glorificaram a expansão e a imagem de progresso e civilização euro-ocidental.

Do lado de lá do Atlântico Sul, as Áfricas e suas múltiplas historicidades nos legam uma usina de saber-fazeres e filosofias que se prolongam em litorais, matas, pantanais e florestas, fábricas e asfaltos brasileiros. Do lado de cá da margem, impossível pensar o Brasil sem esses prolongamentos. Impossível sim, pois, quando tratamos de artes, poesia, música, culinária, religião, mundo afetivo e sensível, a presença do negro africano em torno dessas questões se faz sentir de modo explícito e vigoroso.

Não seria exagero afirmar que as culturas brasileiras guardam forte pertença de valores negro-mestiços. Além das pesquisas sobre Colônia, Império e República, nosso cotidiano atual escancara, aos olhos dos vivos, seja no espaço público, quanto no privado, esse legado inegável – uma arqueologia na contra-corrente do instituído. Mas nada de pureza africana – muito pelo contrário-, o negro enlaçou-se de modo plástico por todos os poros da vida brasileira; suportou e ainda suporta racismos, segregações à moda tropical, mas resiste a extermínios físico e cultural pelas bordas, periferias, margens e subúrbios das metrópoles brasileiras. Permanece, de modo mágico-religioso, a recriar todo o mapa geo-histórico das culturas do Brasil.

Os textos desta Projeto História já revelam uma variada gama de expressões negro-diaspóricas no mundo do Atlântico, emergentes nas traduções, artigos, resenhas, entrevista e notícias de pesquisa. Daí, nossa homenagem a Esiaba Irobi, poeta e dramaturgo nigeriano que contribuiu nessa direção. Qual seja, investir na reinvenção de tradições africanas no Novo Mundo. Sua originalidade no modo de lidar com escritas performáticas refutam premissas do cartesianismo ocidental e o trabalho deste artista e pensador, recentemente falecido, rompe centros estabelecidos na produção do conhecimento, como com todas as fronteiras aprisionadas nas dualidades sistêmicas.

Amailton Magno Azevedo

Maria Antonieta Martinez Antonacci


AZEVEDO, Amailton Magno; ANTONACCI, Maria Antonieta Martinez. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 44, 2012. Acessar publicação original [DR]

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Gênero e Subjetividades / Projeto História / 2012

A categoria / perspectiva gênero despontou frente às criticas ao conceito / teoria do patriarcado e em face da insuficiência dos corpos explicativos da persistência das desigualdades entre mulheres e homens.

O termo gênero é polissêmico e seu delineamento encontra-se envolto em polêmicas, apesar disso, observa-se certa unanimidade em aspectos que caracterizam a categoria como: reconhecimento do caráter relacional, constituição histórica, social e cultural, presença de instâncias de poder, além de identificar que os valores e características atribuídos a homens e mulheres são internalizados através de processos de subjetivação.

Apesar de a categoria gênero ser utilizada como sinônimo de mulher, ela é essencialmente relacional, subentendendo que a compreensão do feminino e do masculino não se viabiliza em separado e que estas relações são constituintes das culturas, encontrando-se marcadas por relações de poder, hierarquias e assimetrias que permeiam a trama social.

A expansão da incorporação da categoria / perspectiva de gênero gerou novas indagações, renovação temática, metodológica possibilitando a descoberta de temas, testemunhos, documentos, temporalidades e estratégias metodológicas. Ampliaram-se os questionamentos sobre a naturalização biológica e os universalismos, reconhecendo as diferenças como históricas, sociais e culturais, demonstrando que os comportamentos, sensibilidades e valores aceitos numa certa sociedade, local e momento, podem ser rejeitados em outras formas de organização e / ou em outros períodos.

Nesse sentido a perspectiva de gênero – relacional, posicional e situacional –, desestabiliza certezas e amplia as possibilidades de críticas sobre a noção de natureza humana, permitindo o questionamento de clivagens e a descoberta de subjetividades até então pouco visíveis e insondadas. Os questionamentos dos universalismos contribuíram para tornar os sujeitos mais plurais, desfazendo noções abstratas de “mulher” ou “homem” enquanto identidades únicas e a-históricas, para pensa-las como múltiplas, mutantes e diferenciadas no plano das configurações de práticas, prescrições, representações, apropriações e subjetivações.

As críticas às noções de identidade e papéis de gênero permitem observar subjetividades plurais, com suas contradições, migrações e fluidez, colocando-se como um desafio para a historiografia: problematizar a noção de sujeito universal e unitário.[1]

A subjetividade carrega a noção de “sujeição”, marcada pela imposição coercitiva de modelos culturais hegemônicos, através dos quais objetiva-se moldar, regular e controlar. Todavia, o processo de subjetivação não é um destino inexorável de serialização de indivíduos, comporta possibilidades de apropriação e reapropriação, subentendendo sujeitos agentes que recusam, selecionam e escolhem. Escolhas estas que, embora não sejam ilimitadas, abrem possibilidades para construção e reconstrução, permitindo a autonomia criativa.

A produção de subjetividades envolve instâncias individuais, coletivas e institucionais, circunstâncias histórico-sócio-culturais e biográficas (trajetória de vida e de trabalho) que atingem instituições, percepções e articulações. Num processo em que elementos são captados e reproduzidos, também rejeitados, adaptados, trocados, selecionados e eleitos, envolvendo contradições e tensões através das quais sujeitos reformulam suas propostas, práticas, representações e sentimentos.[2]

Dessa forma, brotam antagonismos e reconciliações entre as normas que se desejam impor e as práticas criadas e recriadas, mantendo-se as manifestações autônomas, vigorosas e inventivas, produzidas e experienciadas num processo histórico dinâmico e infindável, gerando subjetividades multifacetadas e multidimensionais que contém o gênero na sua transversalidade.

Este dossiê encontra-se permeado destes debates e discussões, o que demonstra a vitalidade da temática e o avanço das pesquisas. Reúne investigadores de diversas regiões do Brasil, contando com participações internacionais, um artigo inédito de Joan Scott, “Usos e abusos do gênero”,[3] apresentando reflexões sobre os debates dos últimos 30 anos.

Isto não deveria surpreender, pois as palavras têm histórias e múltiplos usos. Elas não só são elaboradas para expressar certas concepções, mas elas também têm diferentes efeitos retóricos. Embora minha primeira reação à controvérsia francesa sobre gênero tenha sido rejeitar a confusão da crítica católica, eu me percebi atraída pela reflexão sobre os múltiplos e conflituosos significados que gênero foi adquirindo no curso de sua adaptação relativamente recente numa referência gramatical a um termo que denota a relação social dos sexos. Em vez de (como eu equivocadamente pensei) tornar-se mais claro ao longo do tempo, gênero se tornou mais impreciso; o lugar de contestação, um conceito disputado na arena da política.

Dentre tantas possibilidades de análises sobre gênero e subjetividade percebe-se que corpo, desejos, emoções, representações, masculinidades, feminilidades, feminismos, memória e envelhecimento, cotidiano, sensibilidades, família e violência permeiam os artigos do presente dossiê.

Gabriela Cano focaliza as ansiedades de gênero a partir do processo de ingresso de mulheres em profissões classicamente pensadas como masculinas, tais como medicina e direito. As questões do feminismo foram problematizadas por Rachel Soihet, no artigo “Mulheres moldando esteticamente suas existências: feminismo como alavanca para uma sociedade mais justa”.

Ana Carolina Eiras Coelho Soares tece reflexões a respeito das representações da masculinidade heteronormativa a partir do romance inacabado de José de Alencar “Ex-homem”. Este escritor é foco de outro artigo intitulado “Gênero e mercado matrimonial em Senhora de José de Alencar” de Valdeci Rezende Borges, cuja análise centrou-se nas representações masculinas e femininas criadas no romance em questão. Ana Maria Marques apresenta uma análise da produção discursiva sobre envelhecimento e gênero nos anos 1980, através da leitura da revista Manchete. Enquanto Raquel de Barros Miguel discute o corpo na publicidade no artigo “Os cuidados de si e os cuidados do outro: lugares de gênero na publicidade da revista Capricho (décadas de 1950-1960)”.

As relações de gênero e a importância da família é a temática dos escritos de Antonio Otaviano Vieira Junior, “Família, violência e gênero: cotidiano familiar no Ceará (1780-1850)”. Do mesmo modo, Cristina Donza Cancela, da Universidade Federal do Pará, analisa as trajetórias amorosas e as dinâmicas da conjugalidade, no período da borracha na Amazônia.

A preocupação com a memória se destaca em outros artigos como: “O sentido da Memória e das relações de gênero na história da migração de mulheres camponesas brasiguaias” de Losandro Antonio Tedeschi; “Entre a História e a Memória: Práticas masculinas no Piauí oitocentista” de Pedro Vilarinho Castelo Branco. As masculinidades são analisadas também em “Viril, produtivo e honrado: a construção da identidade masculina em colégios católicos”, de Roseli Terezinha Boschilia.

Em “Desenvolvimento regional na perspectiva de gênero”, Temis Gomes Parente deu enfoque nas relações de gênero das falas das populações impactadas pela construção do reservatório da Usina Luís Eduardo Magalhães, no Tocantins.

Denise Bernuzzi de Santanna nos brinda com uma entrevista inédita com Anne Cova, investigadora no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, colocando a História das mulheres em debate.

Este dossiê também apresenta comunicações de pesquisa recentemente desenvolvidas, como as experiências das mulheres em Aragarças e Barra do Garças (1970 A 1990). Já priorizando as questões do corpo e da sexualidade, destacam-se “Despindo corpos: sexualidade, emoções e os novos significados do corpo feminino no Brasil entre 1961 e 1985” e “A moral dos Corpos: desejos, dispositivos e subjetividades em Fortaleza (1910-1950)”. As representações do feminino aparecem na literatura de Erico Veríssimo em “Gota de orvalho, na coroa dum lírio: Jóia do tempo” e no “Jornal das Senhoras: um projeto pedagógico: mulher, educação, maternidade e corpo (Rio de Janeiro a segunda metade do século XIX)”.

Compõe o volume, resenhas sobre obras lançadas recentemente “A nova História das Mulheres no Brasil”, publicação organizada por Carla Bassanezi Pinsk e Joana Maria Pedro; “Moça educada, mulher civilizada, esposa feliz: Relações de gênero e História em José de Alencar” de Ana Carolina Eiras Coelho Soares e a análise de gênero de Tatiana Luiza Souza Coelho sobre “Só dói quando eu rio: o risível sob os traços de Ziraldo no Pasquim”.

Recomendaria aos leitores deixarem-se levar numa viagem através dos tempos, desvendando os segredos destas múltiplas histórias, observando experiências femininas e masculinas no passado através das análises argutas e dos questionamentos destes investigadores.

Notas

1. BUTLER, Judith. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. Nova York-Londres, Routledge, Chapman & Hall, 1990.

2. GUATTARI, Félix e ROLNIK, Suely. Micropolítica – Cartografia do desejo. Petrópolis, Vozes, 1986.

3. Texto gentilmente traduzido por uma das organizadoras: Ana Carolina Eiras Coelho Soares.

Maria izilda Santos de Matos

Ana Carolina Eiras Coelho Soares


MATOS, Maria Izilda Santos de; SOARES, Ana Carolina Eiras Coelho. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 45, 2012. Acessar publicação original [DR]

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Viagens, Viajantes e deslocamentos / Projeto História / 2011

Enfim chegamos à estação Saint Paul

Imagino que estou na estação de Nice

Ou desembarcando em Londres Charing Cross

Encontro todos os meus amigos

Bom dia Eis-me aqui.

Blaise Cendrars

Blaise Cendrars, poeta nascido na Suíça, esteve muitas vezes no Brasil: em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Minas Gerais. Em cada visita, registrou suas impressões em poemas, em cartas, em livros, em seu diário etc. Foi um viajante e um homem de seu tempo; circulou por diferentes lugares do mundo e o Brasil esteve em seus roteiros, espaço este marcado por um tempo, espaço– tempo lembrado e perpetuado por seus registros, disseminados talvez por seus leitores, interlocutores permeados por um imaginário, recheado de expectativas que preenchiam uma representação europeia sobre o outro e que, por fim, foi recuperado por historiadores numa leitura que precisou ponderar sobre o texto (formas de registro, conteúdo, contexto: espaço–tempo) e seus sentidos. O tema das Viagens, Viajantes e Deslocamentos, proposto para o número 42 da Projeto História, aborda o olhar e o registro sobre um outro espaço, um outro tempo e outros sujeitos históricos, o que nos encaminha para uma teia de questões que lidam com visões de mundo, representações que se constituem em registros que passam por metodologias e teorias, documentos e suas abordagens, configurando uma rica discussão historiográfica. Diferentes questões se entrecruzam nesta abordagem.

Nossa epígrafe retoma um célebre viajante ou “uma criatura desenraizada” nas palavras de Sevcenko[1] o que explica a citação, ao anunciar identificação e não estranhamento; Cendrars expressa, em alguns de seus poemas, sua paixão pela cidade de São Paulo, recuperada e discutida por Sevcenko na reconstituição da São Paulo urbana nascente no contexto do século XX. A paixão de Cendrars, aqui citada, denota uma relação viajante–viagem que se inicia com o estatuto do próprio viajante, constituído no intuito da viagem, seguido de seus registros e impressões. Os viajantes tiveram motivações distintas para suas viagens, demarcadas por interesses comerciais, culturais ou científicos; motivações estas que marcaram uma postura. Como discute Amilcar Torrão Filho [2], todo viajante precisa de um método e de uma teoria. Estes definem a mediação entre o olhar, ou seja, o sensório e o lugar, estabelecendo um campo organizado, uma cartografia do olhar na tentativa de sentir e perceber o outro. Esta cartografia orienta o olhar e pode aproximar o viajante de seus leitores, como enunciado por Said ao discutir sobre a construção da noção de “orientalismo”, na qual lemos: “o principal para o visitante europeu era uma certa representação europeia – compartilhada pelo jornalista e por seus leitores franceses – a respeito do Oriente e de seu destino atual”.[3] Antes mesmo de dizer sobre o outro, o viajante expõe os seus próprios esquemas mentais através de seu método, explicitando referências culturais. A literatura de viagem suscita, então, em primeira instância, a retomada da perspectiva do viajante. Em Cendras, o seu olhar buscava impressões imediatas, o registro do outro no ato da observação, quase numa ânsia de não perder a referência deste outro:

Era a estética que ele estabelecera no seu último livro, Kodak, segundo o qual o poeta deveria repercutir o choque instantâneo da realidade exterior em seus órgãos sensoriais, sem dar tempo para que a consciência ou a imaginação diluíssem aquele instante fragmentário na representação simbólica ou no substrato da tradição cultural.[4]

O registro traduz um método em Cendrars; apesar da afirmação de que o registro deveria preceder a interpretação, vemos o método expresso na cartografia do olhar de um modernista, um defensor dos fragmentos, das rupturas, na desmontagem das linguagens. O poeta procura explicações, origens e sentidos, tais quais outros modernistas como Picasso em sua leitura das máscaras africanas ou Gauguin, com a busca do primitivismo, denotando assim perspectivas culturais delimitadas por seu tempo–espaço, concernentes a uma visão de mundo e expressa em seu método de observação. Ao mesmo tempo, Cendrars demonstra seu projeto pedagógico, imbuído do caráter civilizatório europeu, ao receber artistas brasileiros em seu país, tecendo contatos, apresentando espaços, enfim, oferecendo o ambiente modernista europeu como referência cultural para a produção artística brasileira. O projeto transparece, se faz ver. Neste caso, Miceli [5] nos mostra como os modernistas brasileiros, viajantes na Europa e aprendizes dos europeus, reproduziram talvez a perspectiva do Grand Tour e viajaram para se alimentar, absorvendo a visão modernista pautada também por um olhar, o olhar da nação em construção, do viajante que busca sua própria identificação. Neste percurso, se mostraram mais tradicionais que os seus mestres, rompendo menos com a linguagem figurada, numa composição de valorização da Nação. Neste caso, o universo destes viajantes é o universo da Nação nascente, em construção, referenciada pelo modelo europeu civilizatório.

Destarte, os viajantes não são agentes neutros, carregam diferentes projetos em suas bagagens e orientam seus olhares com especificidades. Em muitos casos, o viajante, como indivíduo de passagem, toma o especial como regra. Quando Peter Burke, em Cultura Popular na Idade Moderna, discute sobre as festas, chama atenção de que eram momentos especiais, em que as pessoas buscavam sair da rotina (comiam e bebiam mais, usavam roupas e utensílios especiais). “Dentro das casas, muitas vezes os jarros, copos e pratos mais ricamente decorados só eram usados em ocasiões festivas, e assim as peças remanescentes podem enganar o historiador, se não for cuidadoso, quanto à qualidade da vida cotidiana no passado”.[6] A utilização das descrições de viajantes para reconstituir esse cotidiano pode apresentar algumas armadilhas. Mas esses problemas e armadilhas não são dos viajantes e de seus relatos, são problemas para os historiadores que precisam considerar que todo relato de viagem é um documento permeado de intencionalidades e especificidade próprias de seu tempo–espaço. São as bagagens do viajante e por isto o projeto de viagem se historiciza. No caso de Cendrars, no contexto do início do século XX, num país republicano e recente que se coloca o problema da identidade nacional, o caráter pedagógico é o da busca da especificidade desta Nação, o que lhe é próprio e inusitado. Teoria e método, assim, indicam o caráter do projeto do viajante e a viagem, historicizada, permite reconstituir a própria historicidade das diferentes viagens. Podemos perceber pela definição tempo–espaço a mudança de lugares, de roteiros, de intenções, bem como então, de registros e percepções.

Nesse sentido, seria interessante apresentar a obra de Theodor Bry, Americae Tertia Pars, terceiro volume das Grandes Viagens, do século XVI – que descreve nativos, rituais, aspectos culturais, sem jamais ter visitado a região. Ele fundamenta sua obra a partir de relatos de viajantes, em especial Hans Standen e Jean de Léry.

As imagens de rituais antropofágicos, tão pitorescos e interessantes ao Velho Mundo, estão amparadas na sua própria ideia de antropofagia, dos rituais de bruxaria. Laura de Mello e Souza7, Inferno Atlântico, mostra isso em Léry: “[…] na passagem em que Léry associa o ritual tupi do litoral brasileiro ao sabá europeu das bruxas -, a relação entre os ritos ameríndios e a demonologia é inequívoca”.[8] Bry representa os tupinambás utilizando caldeirões, algo pouco provável, assim como a presença constante de mulheres nesses “festins diabólicos”. São referências aos rituais europeus, assim sua forma de “ver” e “relatar” acaba sendo influenciada pelo seu acreditar, por aquilo que supõe ser.

Ainda dentro desse mesmo processo histórico – expansão marítima e colonização – cabe destacar outras obras. Na obra de Sérgio Buarque de Holanda,[9] Visão do Paraíso, temos inúmeros relatos de viajantes. Existia na Europa a crença na terra, distante, onde os homens não adoeciam. A crença na existência de paraísos perdidos entre mares impiedosos justificava a busca do Éden durante as navegações. Viagens reais e ficcionais – como as de Sir John Mandeville – fomentaram o mito, que acabou sendo reforçado pelas descrições de viagens e viajantes reais, como a descrição de Américo Vespúcio, em 1502: “Terra amena, de arvores infinitas e muito grandes, que não perdem folha, aromáticas, carregadas de saborosos frutos, e salutíferos para o corpo […]”.

Na carta de Caminha, a descrição também é semelhante:

“[…] a terra em si é de muito bons ares […]. Águas são muitas: infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar dar-se-á nela, tudo, por bem das águas que tem.” Essa visão está fundamentada naquilo que o viajante procurava encontrar: o “Paraíso”: “Tinha também o Senhor Deus feito nascer da terra todas as castas de árvores agradáveis à vista, e cujo fruto era gostoso ao paladar: e a árvore da vida no meio do paraíso […]”.[10]

Não podemos deixar de destacar, também, a obra Viajantes do Maravilhoso, de G. Giucci, que busca na Odisseia inspiração para discutir a viagem de Cristóvão Colombo em direção ao desconhecido. Aqui temos uma visão diferente do “outro”. Os viajantes – Ulisses ou os modernos, nesse caso representado por Colombo – tem como correto, certo e justo o seu espelho, assim o ciclope Polifemo, como os ameríndios, são bestializados a priori. “Várias vezes o viajante curioso manifesta seu interesse em verificar se os colossos se atêm às regras de hospitalidade. Mas o gigante dissipa toda fantasia bucólica ao confrontar-se violentamente com os estrangeiros”.[11] Isso também ocorreu com os ameríndios, para uns habitantes do paraíso, para outros seres demoníacos.

Em seu diário, Antonio Pigafetta – escritor italiano que acompanhou Fernão de Magalhães na primeira viagem de circunavegação – tem uma visão oposta à de Caminha sobre os nativos. Ele apresenta a “libertinagem das moças – algumas vezes, para conseguir uma faca de cozinha ou outro instrumento de corte, nos ofereciam como escravas uma ou duas de suas filhas” e também o traço definitivo para comprovar a “bestialidade”, a antropofagia, “comem muitas vezes carne humana, porém, somente de seus inimigos.”[12]

Essas descrições, mais do que apresentar povos e terras, são excelentes fontes para entendermos o pensamento do homem europeu dos séculos XV e XVI. No contexto do Grand Tour o destino era a própria Europa, prioritariamente a Itália; neste momento, os lugares e roteiros demonstram a busca do lazer alimentado de cultura e conhecimento, numa perspectiva clara do que se entendia por conhecimento e cultura. Aqui, a narrativa de viagem é essencialmente descritiva e o viajante é um aprendiz e uma referência; o lugar é o urbano, construído. Aqui podemos vislumbrar os motivos das viagens, os destinos escolhidos, os registros, tanto em seu conteúdo, quanto em sua forma, reconstituindo um imaginário europeu próprio do século XVIII. Estas narrativas elucidam uma perspectiva civilizatória europeia, no alimento da própria civilidade:

O culto ao antigo que acompanhou o Grand Tour à Itália também não se esgotava na viagem, tendo desdobramentos posteriores à chegada dos viajantes a seus países, especialmente na Inglaterra, onde eles eram em maior número e mais ativos. Um desses desdobramentos foi a fundação de sociedades reunindo pessoas com interesse em antigüidades. A Society of Dilettanti, fundada em 1734 por um grupo de gentlemen que havia viajado em um tour à Itália, tinha como preocupação central promover a investigação e a publicação dos resquícios das grandes civilizações do passado. [13]

Afinado neste diapasão, o texto de Mikael Dumont, O Atlântico dos Emigrantes Franceses (séculos XVII e XVIII): Experiências Humanas da Travessia, explicitam a travessia oceânica pelos franceses e a modificação estrutural que a sociedade era forçada a atravessar: o poder deixa de se entificar na monarquia e passa a se entificar no capitão. As vicissitudes da travessia eram tão graves que faziam os emigrantes desejarem a terra a todo custo.

O Brasil também participará dos roteiros de viagens no contexto do final do século XIX e início do XX. Há, aqui, um ponto de inflexão que norteará estas viagens, presente numa postura cientificista nascente. Estes viajantes assumem a perspectiva cientificista e buscam não mais o alimento cultural, mas o experimento, a observação, saindo do reconhecido e caminhando para o exótico; ocorre uma mudança do interesse do mundo urbano para o ambiente natural e o registro do outro assume um caráter mais pedagógico, coadunandose com um contexto de Nação nascente.

A historicidade das viagens expressa as marcas da relação tempo–espaço, mas independentemente do momento, as viagens e seus viajantes propõem uma discussão de alteridade. Vemos aqui a busca do outro, o que significa muitas vezes a busca de si próprio, a construção do eu–nós na oposição do outro–eles. Said, em sua discussão sobre a construção do orientalismo pelo ocidente, demonstra esta tessitura:

Além disso, o Oriente ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente) com sua imagem, ideia, personalidade, experiência contrastantes. Mas nada nesse oriente é meramente imaginativo. O oriente é uma parte integrante da civilização e da cultura material europeia. [14]

Esta alteridade é constituída na demarcação das fronteiras, territoriais, econômicas, políticas e culturais, visível em seus símbolos, inserida em sistemas classificatórios perceptíveis na observação dos elementos que compõe o todo da viagem: seu planejamento, roteiro, registro e retorno, como observado nos diferentes registros sobre as viagens do Atlântico acima comentadas. A construção do outro e a demarcação do eu–nós passa pela própria narração da viagem, o que remete à importância do registro, do texto. Alguns aspectos perpassam o mesmo. O primeiro é o da consideração dos relatos de viagem na relação que estabelecem com os seus autores, os viajantes.

O artigo de Laís Guaraldo proposto neste volume, Delacroix no Marrocos e a Inversão do Exótico, faz esse trabalho de situar o viajante e seus relatos, quando mostra os registros do pintor – letras e imagens – na viagem ao Marrocos (Missão Diplomática, 1832) e as mudanças em suas concepções do “exótico”. A busca pelo pitoresco é comum e constante, no entanto, o conceito de pitoresco pode se alterar.

O segundo aspecto resvala na posterior apropriação das narrativas de viagem como texto historiográfico. Quando observamos as obras de Debret, sobre o Rio de Janeiro, em especial sobre os negros, temos um retrato desse cotidiano, registrado pelo viajante e analisado pelo historiador.

A obra Marchand de Tabac, de 1835, mostra uma cena muito interessante: alguns negros, acorrentados pelo pescoço, defronte a uma loja de tabaco, um desses negros está dentro da loja, supostamente comprando tabaco. Esse relato apresenta elementos fundamentais para compreendermos melhor o cotidiano dos escravos nos centros urbanos. Nesse caso, percebemos certa “mobilidade” desses indivíduos. Mesma “mobilidade” foi percebida por Sidney Chalhoub,[15] no livro Visões da Liberdade. Quando ele mostra possibilidades de intervenção do escravo em suas vidas, o quadro de Debret é um excelente argumento.

Aliás, essa obra nos apresenta outro grupo de viajantes e suas histórias: os escravos envolvidos no tráfico interprovincial. A partir de 1850, duzentos mil escravos foram transferidos para o sudeste brasileiro, através de vários atravessadores (com a utilização de procurações, substabelecimentos, para evitar os impostos e escrituras de compra e venda). Os escravos transferidos, na maioria dos casos, nasceram no Brasil e possuíam uma família. A vinda para o sudeste configurava-se como a primeira experiência traumática da escravidão. Buscando recompor algumas histórias, Chalhoub tenta entender essas viagens e descrever situações, como a do escravo Bráulio, que tenta fugir da escravidão no sudeste para voltar ao antigo cativeiro. Esse aparente paradoxo só pode ser entendido a partir da compreensão desse sujeito histórico.

Cabe destacar que os estudos sobre tráfico negreiro e escravidão dos últimos anos, sobretudo a partir da década de 1980, ampliaram essa discussão, introduzindo o indivíduo na história, tornando-o sujeito histórico de fato e de direito. Dessa forma, o negro poderia passar da condição de “mercadoria” à condição de viajante – contrariado, é bem verdade – mas também ele capaz de nos trazer relatos do que viu e do que viveu. A obra de Marcus Rediker [16] se junta a outras que mostram essas histórias. Quando ele nos apresenta depoimentos – de tripulantes, de observadores diversos, dos escravos – dá feições aos números. Algumas histórias são simples quase banais, mas mostram o horror da escravidão, do cativeiro, do “tumbeiro”. A captura e escravidão inicial no interior africano era o primeiro ato da tragédia, muitos morreram nesses choques e sequer estão computados nos números assustadores de perdas humanas. O segundo ato era a viagem em um navio negreiro.

Jaime Rodrigues, em sua obra De Costa a Costa, nos apresenta alguns relatos de viajantes acerca dessas embarcações, descritas como infectas, repletas de pessoas “o teto era tão baixo e o lugar tão apertado que eles ficavam sentados entre as pernas uns dos outros, formando fileiras tão compactas que lhes era totalmente impossível deitar ou mudar de posição, noite e dia”.[17] É importante destacar que essa embarcação era tida como uma das melhores do período (século XVIII). Recompor esse cenário só é possível mediante os relatos desses viajantes, desses indivíduos diretamente relacionados ao processo histórico.

Nesse sentido, cabe destacar o artigo de Amilcar Torrão Filho, que apresenta uma discussão sobre as formas como a literatura de viagem foi utilizada pela historiografia brasileira. Em seu artigo Bibliotheca Mundi: Livros de Viagem e Historiografia Brasileira Como Espelhos da Nação quando mostra a obra de Von Martius – Como se deve escrever a história do Brasil – de 1845, percebemos o espanto e estranhamento desse autor – e tantos outros – com a mistura racial existente no Brasil. Martius buscava, como se fosse possível, uma visão imparcial, “do de fora” para emitir suas opiniões. Mas como cita Amílcar Torrão, “formas de ver são formas de pensar”.

Na obra de Fréderic Mauro, O Brasil no tempo de Dom Pedro II, [18] temos um exemplo dessa situação. O autor, através de relatos de viajantes, tenta recompor o Rio de Janeiro do século XIX. Os visitantes, antes de aportarem, deliciam-se com a visão paradisíaca da cidade. No entanto, o que mais apontavam nas suas descrições era a insalubridade. Um porto antigo, com escadas podres, detritos jogados na baía, transformada, assim, em uma grande fossa. As ruas eram utilizadas como sanitários pelos negros e deposito de lixo por todos. Temos nesse caso, uma visão de “atraso” calcada na ideia de “progresso” que estava ocorrendo na Europa. O final do século XVIII e, sobretudo o XIX, foram tempos de “limpar”, de “purificar”, como bem mostra Corbain.

Apesar de influenciados pela “forma de pensar”, estes são relatos fundamentais para tentarmos montar o mosaico do século XIX. O historiador tem a função de inserir as peças corretas e, mais, não poderia descartar aquelas destoantes, pois elas podem fornecer subsídios para a compreensão do pensamento estrangeiro sobre o Brasil e o que subsidiou essa visão.

Por fim, destacamos um último viés deste emaranhado de questões possíveis ao se ponderar sobre viagens e viajantes: a perspectiva do viajante que se estabelece nas novas paradas. Este passa por diferentes processos de olhares, significações e re-significações e a experiência, de viagem, se transforma agora em diáspora, como se vê no artigo de Jeffrey Lesser e Raanan Rein, Laços Finais. Novas Abordagens sobre diáspora na América Latina do Século XX: Os Judeus como Lentes.

No artigo de Maria Izilda Santos de Matos, intitulado A Diáspora Portuguesa: mulheres imigrantes portuguesas, é possível observar a análise de perseguições e expulsões ocorridas entre as décadas de 1920 e 1940. Com relação a esse artigo, é interessante pensar a relação do estado, do nacional, com esses viajantes, com esses estrangeiros. Temos, ao longo da nossa história, um constante “atrair” – imigrantismo no século XIX – e “afastar” – medidas restritivas da década de 1930.

Isso também ocorreu com o negro. Como aceitá-lo, posto que necessário, sem incluir ao povo brasileiro. Importante destacar que a questão negra, a questão das raças, do povo brasileiro, perpassa alguns artigos dessa revista. Nesse sentido, podemos destacar o texto O Brasil de Silvio Romero: uma leitura da população brasileira no final do século XIX, de Alberto Luiz Schneider, que mostra como Romero vislumbrava a questão racial no Brasil, seu equilíbrio entre a defesa da modernização e a defesa do nacional e da própria miscigenação racial.

Outros artigos, não menos importantes, compõem este dossiê, como A Memória da Catástrofe como unificadora do acontecimento e da experiência, de Fabiana Fredrigo e Laura de Oliveira, que é, não obstante, um depoimento sobre testemunhos do holocausto. Caminhos físicos, imaginários e simbólicos, de Adriana Vidotte e Adailson José Rui, relaciona o culto a São Tiago e as peregrinações a Compostela. O artigo de Ricarda Musser, Mulas, bondes y ferrocarril, analisa viajantes e viagens no Império brasileiro. O texto de Carlo Maurizio Romani, Um Eldorado fora de época, discute as expedições à região do Amapá no final do século XIX. Os artigos Luanda, Precisão do Olhar e Canibalismo: Georg MarcGrave e a História do Altântico Sul, de Ineke Phaf-Rheinberger e Intrahistoria de la Revolución Mexicana, de Carolina Depetris, também compõem de modo substancial este dossiê sobre Viagens, Viajantes e Deslocamentos.

Notas

1. SEVCENKO, Nicolau. Pindorama Revisitada. São Paulo: Peirópolis, 2000.

2. TORRÃO FILHO, Amilcar. A Arquitetura da Alteridade. São Paulo: Hucitec, 2010. Viagens, Viajantes e Deslocamentos. 17

3. SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: companhia das Letras, 2007.

4. SEVCENKO, op. cit. 2000, p. 88.

5. MICELI, Sérgio. Nacional Estrangeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

6. BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Cia das Letras, 2010, p. 244.

7. SOUZA, Laura de Mello e. Inferno Atlântico. São Paulo: Cia das Letras, 1993.

8. LÉRY, Jean. Viagem à terra do Brasil. São Paulo: Ed. Itatiaia. EDUSP, 1980, p.42.

9. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso. Os motivos edênicos do descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: Edusp, 1969.

10. Gênesis 2, 2-9.

11. Cf. a obra de Giucci. Cf. CORBIN, Alain. Saberes e Odores: o olfato no imaginário social nos séculos XVIII e XIX. São Paulo: Cia das Letras. E Cf. também PRIORI, Mary Del. Esquecidos por Deus. São Paulo: Cia das Letras, 2000.

12. PIGAFETTA, A. A primeira viagem ao redor do mundo. trad. Jurandir S. dos Santos. Porto Alegre: LPM, 1985, p. 58 e 59.

13. SALGUEIRO, Valéria. ‘Grand Tour: uma contribuição à história do viajar por prazer e por amor à cultura’ in Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 22, n. 44, 2002, p. 301.

14. SAID, op. cit. 2007, p. 28.

15. CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

16. REDIKER, Marcus. O Navio Negreiro: uma história humana. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

17. RODRIGUES, Jaime. De costa a costa. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 133.

18. MAURO, Frèdèric. O Brasil no tempo de D. Pedro II. São Paulo: Cia das Letras, 1991.

Carla Reis Longhi

Luiz Antonio Dias


LONGHI, Carla Reis; DIAS, Luiz Antonio. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 42, 2011. Acessar publicação original [DR[

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Música e Artes / Projeto História / 2011

O universo das obras e manifestações artísticas e, nele, a arte dos sons, tem recebido atenção crescente dos historiadores e historiadoras a fim de desvelar os vários elementos que constituem culturas híbridas, culturas hegemônicas, como enfatizava Raymond Williams, modos determinados de viver, estruturas de sentimentos particulares e os processos infinitos de objetivação criativa nas experiências vividas que apontam para engates entre passado e presente e que remetem às questões humano-societárias. A arte tem a potencialidade de revelar os determinantes sociais que situam destinos individuais e criticam formas sociais de controle e agenciamentos humanos. Está claro que a esfera da arte em sua processualidade histórica, em especial no mundo da modernidade, alcançou uma autonomia estética que, muitas vezes, opõem a obra produzida às posições políticas dos criadores. O que não contradiz, de forma alguma, que as obras de arte possam simplesmente flutuar sobre a vida cotidiana sem ter quaisquer condicionamentos histórico-culturais. Não se trata de absolutizar o seu âmbito, mas sim de recusar uma perspectiva utilitarista, pragmática, e por que não referir o seu desfibramento, concepção e prática que mutila a obra de arte, segundo seu modelo redutor e mecanicista, que dilui o específico do estético e a função social da arte, tornando-a um transmissor politicista, como mero reflexo passivo de uma dada situação social. Isto não significa a anulação do partidarismo da arte, mas a recusa de uma arte impregnada dos contornos da política. Lukács fez desse combate um bom combate. As orientações do fenômeno do stalinismo, os equívocos do proletkult simplesmente, em sua época, vitimizaram artistas e seus produtos.

O fato de as obras de arte – sejam em suas expressões mais grandiosas, sejam daquelas menores ou mesmo sem qualquer aferição de autenticidade – ficarem submetidas à lógica do grande capital, às necessidades do mercado, não implica que a arte desapareça do horizonte. “Mas o que faz com que a arte seja autêntica? O que constitui a liberdade do verdadeiro artista? […] André Gide constatou certa feita que toda literatura autêntica de nosso tempo nasceu em oposição à sua época. Isso é totalmente verdadeiro tanto para a forma quanto para o conteúdo”, escrevia Lukács.[1] Esta forma de combate não se restringe, é certo, apenas à sobrevivência do artista e de sua arte, ao escape dessa subordinação, mas diz respeito ao modo determinado da vida cotidiana, aos fenômenos coisificadores que a cercam, aos produtos das próprias relações sociais regidas pelo capital. Hegel supôs que esse fenômeno de dessubstancialização da arte decorria de uma forma social decadente. Algo que se movia nas contradições de seu presente impediam a arte de ser uma plenificação consciente. Para o filósofo idealista,

O pensamento e a reflexão sobrepujaram a bela arte. Se nos comprazemos com queixas e recriminações, podemos tomar tal fenômeno por uma decadência e imputá-lo ao excesso de paixões e interesses pessoais, que tanto afugentam a seriedade quanto a serenidade da arte; ou podemos lamentar a miséria do presente, o estado intrincado da vida burguesa e política, que não permite que o ânimo aprisionado a interesses mesquinhos possa libertar-se para os fins superiores da arte.[2]

Nicolas Tertulian aclarou essas determinações do plano estético ao mostrar que arte em seu poder mimético não significava de modo algum uma mera reprodução mecânica da vida, uma apreensão neutral e indiferente, mas, ao revés, sua tônica está na própria vocação da arte em intensificar a subjetividade. A substância revigorante da subjetividade realçada nas obras de arte é a humanitas, a essência humana que barra os estranhamentos e ancora a integridade humana contra os aviltamentos e toda sorte de efeitos reificadores. Súmula lukacsiana: grandeza artística, realismo autêntico e humanismo estão indissoluvelmente unidos. A negação da intervenção transformadora do artista em nossos tempos tem revelado um traço de impotência e uma natureza postiça de sua visão da arte. O filósofo romeno assegura que para o autor da Estética: “a arte tem por missão propor uma representação plenamente objetiva do mundo olhado da perspectiva única de sua conformidade com as aspirações humanas.”[3] Recorde-se que para Lukács, a criação artística é, ao mesmo tempo, descobrimento do núcleo da vida e crítica da vida. A maneira mais adequada, expressiva e elevada da produção da autoconsciência da humanidade.

Mesmo reconhecendo que a música tenha a “divina finalidade” de mover os afetos e paixões humanas promovendo a decantação de nossa alma numa elevação humanista, sua capacidade de nos envolver e tomar por inteiro, como também o de apontar o dever-ser no interior das tramas históricas dos destinos individuais; todavia, a arte dos sons pode ser destinada a servir a outras finalidades, a outros atributos históricos. Usos sociais que motivaram teleologias vis e infames, como a de insuflar atos de barbárie, de monstruosidades como a guerra, de violência, de tortura e de outras finalidades irracionais. Assim como o nazismo se valeu da música para afirmar a sua pretensa superioridade rácica, sua identidade germanista, outras ditaduras – como as que vicejaram no Cone Sul – também se valeram do uso da música na prática da tortura, mesclando os sons dos martírios e tormentos de suas vítimas com a audição de músicas; músicas, inclusive, de autores de grandiosa relevância para a humanidade, como as de Bach. Podemos fazer referências a inúmeras situações nas quais a música foi utilizada de forma torpe, pragmática, distorcida, transformando canções em hinos patrióticos, guerreiros, que além da coesão que articula de modo indistinto classes sociais antagônicas, produzem cantos de guerra, desencadeando sentimentos violentos, servindo de molde para indivíduos conformistas que apodrecem sob a própria pele e se tornam apologéticos da ordem social. Os processos culturais reificadores – como aqueles disseminados em tempos de paz pela indústria cultural, simplesmente, despojam a arte de sua função desfetichizadora, reduzindo seu papel humanista à mera reprodução da crosta aparencial da vida social coisificada, aderindo aos estranhamentos humanos, se amoldando a atos de conformismo, de humilhação e até mesmo agindo no fortalecimento dos sentimentos religiosos.

Num trabalho pioneiro, recém-lançado, intitulado Música e Humilhação, Susan Forster analisou cerca de duzentos e vinte acórdãos proferidos pelos Tribunais Regionais do Trabalho para identificar os conteúdos específicos que motivaram os trabalhadores e trabalhadoras a solicitarem indenização por afronta à dignidade humana, por danos morais, por humilhações. Ao não cumprimento das metas propostas pelas empresas, os funcionários eram humilhados, devendo passar por sessões musicais; “músicas” que os colocavam em situações bizarras, por vezes rebolando e fazendo micagens em torno de uma garrafa, zombeteados por seus colegas, obrigados a “cantar” e a “dançar”, num nítido caráter depreciativo da imitação com motivos sensuais e eróticos; ou até mesmo eram obrigados a enfrentar papéis de subalternidade, como os de se passar por “escrava Isaura”. Baseando-se numa formulação de A Montanha Mágica – que a princípio nos causa suspensão –, Forster cita uma passagem de Thomas Mann que diz: “Há na música um elemento perigoso, senhores. Insisto no fato da sua natureza ambígua. Não exagero ao declarar que ela é politicamente suspeita”.[4]

Para entender esse aviso do grande romancista, há que relembrar as formulações de um dos principais compositores do século XX, ante a tragédia do desabamento das torres gêmeas e suas conseqüências genocidas. Karlheinz Stockhausen, o célebre músico reconhecido por levar “às últimas conseqüências a idéia da composição com séries. Queria trabalhar com os 12 sons da escala cromática, límpidos, filtrados de qualquer conteúdo ou ranço do passado, raciocínio esse que estendeu à organização rítmica e às intensidades […]”. Em sua maturidade, “criou obras grandiosas que contavam com participação de quatro helicópteros; outras, como a da Exposição de Osaka, onde a música era distribuída pelos espaços da mostra com sonoridades específicas para cada local”. Todavia, este músico que buscava romper com todas as tradições, com o nosso passado musical, acabou por se voltar a uma espécie de arte indesejada, idêntica àquela que Walter Benjamin inscreveu em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica e combateu uma manifestação de arte concebida na máxima: “A guerra é bela!”. O maestro Júlio Medaglia relembrou que após os acontecimentos da implosão das Torres Gêmeas, no dia 11 de setembro de 2001, em Nova York, Stockhausen “disse que naquela cidade ocorreu o maior de todos os espetáculos e que nós, músicos, que pretendemos conduzir pessoas a delírios estéticos ‘não somos nada perto daquilo’.”[5]

Recorde-se também, apenas como dimensão de exemplaridade, o arrepio dos germanistas puristas à sonoridade provinda dos negros, como o blues e o jazz! A superioridade racial ditando também aqui a sua superioridade, imputando a outras culturas meros “sintomas de arte degenerada”, e sua mescla traduzindo impurezas! Por outra parte, em contraste flagrante a essa visão do mundo nazi-fascista, há que qualificar os esforços do maestro argentino Daniel Barenboim e do escritor Edward W. Said (1935-2003) – origem judaica e palestina, respectivamente –, que juntos esgrimiram com seus aríetes, escritos e, fundamentalmente, com suas músicas, desarmaram os espíritos, fortalecendo-os na solidariedade, a fim de juntar povos em permanente estado de guerra. São esforços poéticos, alguns dizem, mas gigantescos. Barenboim teve a ousadia e coragem de reger Wagner – considerado um músico por excelência “nazista”, em plena Jerusalém. Claro está que foi hostilizado. Num teatro para se ouvir música e ser hostilizado significa ser amplamente vaiado. E, mais tarde, cobrado! Em Diálogos sobre música e teatro – Tristão e Isolda, o condutor argentino deixa transparente sua posição:

Não acredito no nacionalismo cultural nesse sentido. Percebi que na expressão da música wagneriana existe alguma coisa que se adapta de modo mais natural à sensibilidade alemã do que à sensibilidade latina ou eslava, sem dúvida. Mas ao mesmo tempo acho que a essência de Wagner é plenamente acessível a um italiano, assim como a essência de Verdi é plenamente acessível a um alemão.[6]

Conforme se lê nas primeiras páginas deste número da Projeto História, intitulado “Música e Artes”, esta área da produção humana é tomada enquanto expressão da correspondência entre “fenômenos singulares e pressupostos universais que outorgam à obra de arte sua peculiaridade enquanto esfera autônoma e normativa”. Para expressar concretamente como tais aspectos se manifestam na produção acadêmica, os textos que compõem este volume abarcam o universo da música, do teatro e do cinema, bem como a análise de romances e de poesias, cujas funções sociais se alteram conforme o particular desenvolvimento do capitalismo, assim como se alteram seus significados culturais.

Embora tais dimensões não esgotem a campo da arte enquanto estética, ou seja, enquanto essencialidades particulares que expressam a universalidade humana, tais artigos permitem ao leitor dimensionar um campo de reflexões inéditas e renovadoras na historiografia.

A começar pela objetivação da música como metonímia que revela a exclusão na ordem escravocrata ainda em fins do Império. No caso em tela, trata-se dos escravos cuja vida na capital do Império, efetivamente, era “regada de muita música”, expressas nos batuques e cânticos que ecoavam pela noite adentro, escondidos dos olhos, mas soando aos ouvidos, conforme relatos dos viajantes.

A música como expressão da insatisfação popular, como denunciadora dos problemas cotidianos da população pobre, também urbana, aparece novamente na análise de outro autor centrado em revelar como na década de 1940, os sambas tratavam de temas como guerra e racionamento de gêneros alimentícios. Mas tal analista vai além ao demonstrar como tal musicalidade revela “um combate sem tréguas, a favor da regeneração social do samba”,[7] expressando também uma contraposição a postura de intelectuais brasileiros que, na época, o queriam “civilizar”. Ainda neste texto adentra o autor na análise do humor enquanto crítica social e à ideologia do trabalho predominante naqueles anos do estadonovismo. Não por acaso, ressalta, um dos maiores sucessos deste gênero musical em fins dos anos de 1940, se denominava: “Trabalhar, eu não”.

Mesmo quando a subjetividade está mais à vontade, o respeito pela objetividade é uma condição prévia e sine qua non, o que possibilita aos autores reconhecer a arte como constituinte de um “mundo”, um “microcosmo”, e reveladora das essencialidades espirituais a que se refere Lukács, em nossa seção de traduções.

Assim é que, tomando-se músicos e compositores por sua expressão subjetiva, como o faz o autor que analisa a musicalidade de um Pixinguinha e de um Caymmi, reconhece-se como esta realiza o “ponto de fuga de uma interpretação dualista e genérica – onde – Música Negra, seria a expressão do conhecimento oral e, Música Ocidental- a expressão do conhecimento escrito”. Conforme enfatiza o historiador aqui presente, “com Pixinguinha, esse esquemão é demolido”. Com Caymmi, esclarece, não só observa-se o início de “canções praieiras que anteciparam os jovens músicos urbanos e burgueses da bossa nova”, como se observa o experimentar de possibilidades harmônicas através de seu violão, traçando “temporalidades distintas instituídas nos saberes, vivências e memórias afro-indígenas no espaço da Bahia”.[8]

Outro exemplo de como a subjetividade “se faz e se realiza pelo reconhecimento da realidade objetiva”, está na análise dos versos de Ernesto Nazareth, cotejada com a produção literária de um dos mais eminentes modernistas, Mário de Andrade. Neste texto se demonstra como este músico e compositor carioca de fins do século XIX e começo do XX, soube traduzir o comportamento da sociedade carioca, a urbe carioca dos idos de 1871 a 1934, período em que viveu. Conforme ressalta o historiador,

a análise de aspectos da vida e da obra de Ernesto Nazareth traz pontos importantes para o debate, tais como: linhagens da música carioca; a estética pela determinidade histórico-social e expressão dos modos de vida; dimensões ideológicas aparentemente pares mas que pulsam em diferença quanto ao nacional e o nacionalismo no início do século XX; a função social do músico e sua arte. [9]

Tal objetivação é reconhecida também por outro autor cuja análise ressalta a trajetória do violonista Aníbal Augusto Sardinha,[10] fazendo menção ao rádio como o grande meio de comunicação de massas. Apesar do reconhecimento histórico da importância da música e de outras manifestações artísticas como expressão da concretude social brasileira em cada particularidade, a produção historiográfica sobre o tema ainda está em seu estágio inicial, resumindo-se a análises que recuperam apenas aspectos aparentes de tais manifestações, faltando-lhes a capacidade de revelá-las enquanto “construção de uma objetividade corpórea plena de significado concreto, individualizada como mundo”, ou mesmo analisar os limites que as impedem de serem reconhecidas enquanto arte. É o que se deduz da análise da autora que trata da historiografia sobre a história da música no Brasil. Conforme afirma, apesar da produção literária musical ser vasta do ponto de vista quantitativo, “obras dedicadas à história da música brasileira são poucas […] ao longo do século XX”. A partir de uma vasta retrospectiva sobre a historiografia da musica, a autora conclui que o enquadramento desta como disciplina escolar e sua análise por docentes vinculados à área, sem preocupações em situá-la enquanto produto histórico resulta, principalmente a partir da segunda metade do século XX, em uma analítica que “raramente se utiliza de procedimentos analíticos vigentes no campo da história”, isentas de aproximações com teorias ou sem abordar documentos originais, “permanecendo quase que como um gênero literário”0.[11]

Também o olhar sobre a historiografia produzida sobre o cinema no país, demonstra que poucos se debruçaram em uma análise que descortine a sua importância enquanto expressão das particularidades sociais ao longo do século XX. A maior parte da produção que analisa, pouco aborda sobre o cinema silencioso das primeiras décadas do século XX, “permanecendo os documentários e toda uma produção nacional de não ficção praticamente desconhecidos do publico em geral.”[12] Mesmo a crítica cinematográfica que foi ganhando, ao longo do século XX contornos distintos, seja pelas severas críticas, seja por seus adeptos, também se mantêm no ostracismo enquanto objeto de estudos acadêmicos. Assim, conclui o autor, “a estética deste gênero cinematográfico ainda está para ser descoberta pelos estudiosos do nosso cinema”. Sequer o reconhecimento de que foi tal tipo de cinematografia, o da não ficção em suas mais variadas expressões (os filmes naturais ou de cavação, os cinejornais ou filmes atualidades e os documentários), o responsável por sustentar o cinema nacional por mais de cinco décadas, dando até subsídios para a produção de filmes de enredo neste período. Em seu artigo, o autor resgata ainda os primeiros críticos de cinema, considerando-os responsáveis pela fixação de preceitos que até os dias atuais norteiam as considerações de tais profissionais. Neste sentido, destaca que tais críticos, já no começo do século XX, evidenciaram a percepção da importância da “sétima arte” como veículo de propaganda nacionalista, acompanhando o diapasão de muitos militares e intelectuais que, naquele momento da primeira guerra mundial, enfatizavam a importância de proteger o cinema nacional e sua utilização para a propaganda patriótica, “contribuindo para edificar a nação”. Assim defendiam a organização de uma indústria cinematográfica no Brasil, sob os auspícios do Estado, conforme entendiam que ocorria nos Estados Unidos, Alemanha e Itália, o que perdura até por volta da década de 1950. A partir da década de 1960, em que pese a concorrência com o cinema estrangeiro presente desde a década anterior, observa-se, deduz o autor pautado na análise de farta documentação, a “construção de uma nova cultura cinematográfica no Brasil”. A história do cinema ganha novos contornos a partir deste momento, diz ele, “mais independente de padrões estrangeiros e voltado para a reflexão em torno da estética”. Tomando-se a história como categoria central são

publicados os primeiros livros sobre o cinema nacional […] que mapeiam a produção, escrita a biografia dos homens e mulheres que deram início à atividade no país, organizadas as informações sobre as salas de exibição e seu público, feito os primeiros balanços sobre a política e a legislação adotadas para o setor.

Mas nem neste momento ou nos seguintes, reconheceu-se, por exemplo, a estética das chanchadas. Estas são analisadas em outro artigo, tomadas enquanto expressão de uma industria cultural de divertimentos, que “lutava por uma hegemonia político – cultural do país, protagonizada pelos cinemas carioca e paulista nas suas versões da Atlântida e da Vera Cruz”.[13] Nesta sua empreitada, a autora resgata as similitudes entre a figura do malando, do palhaço e a do caipira sintetizados nas chanchadas são entendidos como expressão de “uma visão carnavalizadora” do mundo em que “pilantras” (o típico malandro virador da chanchada), “jecas” e “palhaços” interagem a partir das relações de trocas simbólicas entre a cultura erudita e a cultura popular, entre o folclore e o cinema, entre o circo e o teatro, “entre a música e o rádio, e assim por diante, revelando-se, portanto, uma estrutura imaginária da sociedade brasileira”.

Em contraposição à perspectiva da arte que expressa a tragédia humana pelo riso, mesmo que seus autores não se dêem conta disto, temos o cinema novo que, na expressão do entrevistado Carlos Diegues, assume objetivamente a função social de sua produção cinematográfica:

a gente queria mudar a história do cinema, mudar a história do Brasil, mudar a história do planeta. Com a ditadura militar a gente viu que isso era impossível. A ditadura militar, na minha opinião, enterrou o Cinema Novo. Entre outras coisas porque a matéria prima do cinema brasileiro era a realidade brasileira e naquele momento a realidade brasileira ficou proibida pela ditadura.[14]

O cinema está presente também no artigo que aborda a trajetória cinematográfica nos anos 1950.[15] No mesmo período, “em que qualquer expressão musical indicava, pela própria conjuntura, a posição pró ou contra a ditadura”, no dizer de outra autora, outras expressões artísticas assumem a dimensão da denúncia social à política vigente. É o que fica demonstrado na análise do Movimento que ficou conhecido como o MPB. É o que conclui o texto no qual a autora observa o panorama da música popular no Brasil dos anos 60 e 70 do século passado.

Cada um a seu modo, esses artistas pareciam ter um recado a dar, e serviam-se da música (assim como outros serviram-se de tintas, pincéis, máquinas de escrever…), para passar seus recados, posicionamentos, esperanças. Essa ânsia em dizer algo está presente no que encontramos nos repertórios de Elis Regina e Taiguara, por exemplo, mas também naqueles voltados ao excitamento de uma revolução comportamental, visíveis na experiência da Jovem Guarda assim como na do grupo musical Mutantes. Nos quatros exemplos aqui lembrados, o que temos são diversificadas formas de posicionamento crítico e político frente ao instituído.[16]

O vínculo entre a concretude social e a criação estética transparece também, embora com outro foco, em outro texto, no qual se aborda o impacto da difusão de novas tecnologias na cultura musical, inclusive atribuindo-se à esta produção humana, finalidades práticas. Concomitantemente à introdução de fonógrafos, gramofones, máquinas de escrever, mimeógrafos, estereoscópios, cinematógrafos e mais um grande sortimento de aparelhos e apetrechos de comunicação, que expressavam o advento da modernidade, à música se atribui poderes terapêuticos que iam desde a cura de doenças, cicatrizando ferimentos, acalmando crianças, até a “catequese de selvagens” e ao “incentivo para soldados em guerra”.[17] Desta forma, a autora demonstra como a revista Echo “busca criar um mercado de consumo no Brasil para as novidades industriais importadas – principalmente para as máquinas de reprodução sonora – no início do século XX”, disseminando novas práticas culturais. Até mesmo os problemas resultantes dessa insipiente tecnicidade, eram considerados benéficos, como se observa curiosamente, que tal veículo de informações sobre variedades divulga que choques elétricos faziam bem à saúde.

A continuidade das reflexões que enfatizam o impacto da tecnologia na produção cultural do país, encontra-se no artigo de outro colaborador presente nesta edição da revista, o qual resgata a importância do rádio enquanto meio predominante de comunicação de massa até o advento da TV já em fins da década de 1950. Analisando programas musicais da década de 1940 e 1950, os autores destacam a importância de “mestros e instrumentistas como personagens” centrais “deste universo musical da Era do Rádio, não só por atuarem ao lado dos cantores, mas também pelo fato de trabalharem nas mais importantes emissoras de rádio do período”, como foi a Rádio Nacional do Rio de Janeiro, a Tupi do Rio de Janeiro e São Paulo e a Gazeta de São Paulo, particularmente nas décadas de 1940 e 1950”, à exceção de um “Heitor Villa-Lobos, provavelmente pelo fato de estar a frente do projeto do canto orfeônico, por quase todo o primeiro governo Vargas (1930-1945)”.[18]

A literatura poética, a ficcional e a teatral são outras dimensões da arte presentes neste tomo da Projeto História que, com este número, completa 27 anos de lançamentos ininterruptos. Conforme salienta uma autora centrada em objetivar o estreito entrelaçamento entre a realidade, a criação e a narração na obra literária de Lima Barreto, sua “obra literária está inseria e é inseparável do mundo real” de modo indissociável.[19] Neste sentido, contrapondo-se à historiografia que trata desse literato, o artigo apresenta como Lima Barreto dá forma literária às personagens do mundo urbano, redimensionado pelas novas relações de trabalho e pela violência da ditadura daquele momento. A trajetória de personagens pobres que, advindos do mundo rural, tracejam sua ascensão social no urbano e para os quais tais esforços incluem aproveitar-se do jogo de influências vigente no interior dos segmentos dominantes no poder político. Um jogo que incorpora alguns em detrimento dos milhares que “não recebiam as graças do Estado” e que têm que enfrentar a burocracia quando se lhes impõem a necessidade de resolver problemas na esfera pública. A presença “pobresremediados, pretos-brancos, mulheres-crianças, moços-velhos” nos romances deste autor dá um “quadro geral dos grupos que compunham a realidade social do início do século”. Tais grupos sociais compõem o quadro da exclusão revelado pelo romancista, cuja revelação do social não se resume a eles. Conforme salienta a analista, Lima Barreto também incorpora na condição de excluídos os “beneficiários por extensão desse poder”, os “remediados”, pois esse os apresenta humilhados e falsos, pois “precisavam dissimular tanto a situação de subalternidade quanto a percepção de que eram diariamente mortificados pelo medo e pelos humores daqueles ‘sagrados’ que ocupavam momentaneamente um cargo superior”. Assim, conclui a autora do artigo, evidencia-se que era o Estado que havia se transformado no “mais forte desmoralizador do caráter”.

Daí a associação que o romancista faz entre os vícios e o Estado como corrosivos do caráter: “mais que os vícios, o álcool, o jogo, a morfina, a cocaína, o tabaco”, era o Estado que tirava a “dignidade, todo o nosso amor-próprio, todo o sentimento da realeza de nós mesmos”. O papel da corriola, dos adeptos e admiradores do candidato era “provar dedicação”, porque para isso eram pagos, e o excesso de bajulação – “pugilato de bajulações” na expressão do escritor – fazia parte do pacote.

A perspectiva de revelar como o romance recria a historia se encontra em outro artigo cujo autor analisa a obra Iracema, de José de Alencar.20 A originalidade do texto está não apenas em situar tal obra no interior da produção de intelectuais cearenses do fim do século XIX, os quais demonstram a preocupação em “compor narrativas sistematizadas sobre o passado” daquela região, destacando sua importância naquele presente e “conferindo-lhe legitimidade para o futuro”. Fundam assim, conforme se revela destes romancistas, a “pátria cearense”. Em outro artigo a relação entre o romance e concretude social, se revela ainda, mas em outros termos. Conforme salienta sua autora, que analisa a produção de intelectuais brasileiros de fins daquele século XIX, “as palavras, no romance e na história, tinham a ambição de colocar a terra, o homem e a luta numa trama temporal”. Salienta o autor que tais intelectuais demonstram o cotidiano vigente no Brasil, mas perpassado por sentimentos vicejantes na Europa: “a melancolia, o pessimismo, a morbidez, […] a solidão”. Assim, diz a analista, os cronistas finisseculares, afeitos aos problemas da época, registraram, em seus escritos, um Brasil que, na esteira do capitalismo, tentava ser moderno, adotando idéias vindas da Europa. Como contadores de histórias, eles reconstruíram “os acontecimentos com suas sensibilidades, com sua capacidade imaginativa e seus sentimentos de solidão”.[21]

O tema da relação entre a produção estética e a realidade, aparece mais uma vez em outro artigo que retoma uma questão já identificada nos artigos deste numero da Revista: o do engajamento por alguma causa política, agora revelado pelo teatro. Com a preocupação principal de analisar a atuação de grupos teatrais da década de 1960 e 1970, revelando suas formas de confronto com a ditadura no Brasil, este demonstra como dramaturgos “intervêm criticamente na esfera pública, trazendo consigo não só a transgressão da ordem e a crítica do existente, mas também a crítica do modo de sua inserção no modo de produção capitalista e, portanto, a crítica da forma e do conteúdo de sua própria atividade”. Apesar dos reveses que sofreram com o advento da ditadura de 1964 “as experiências do teatro operário do Arena, dos Centros Populares de Cultura (CPCS), do Oficina e do Opinião, em busca do político e do popular, carrearam um amplo movimento cultural que envolveu grupos, diretores, autores e elencos”, confrontando pela arte, a ditadura que oprimia a maioria da sociedade.[22]

Com a junção de música e do teatro atuaram enquanto protesto contra o regime e expressaram tanto a tristeza dos retirantes fugindo da seca quanto souberam gestar metáforas que mostravam a relação entre tal miserabilidade humana e os algozes do poder, de que a canção Carcará foi a mais emblemática.

A incorporação dos marginalizados e a perspectiva da participação igualitária transparece, conforme a visão desse artigo, na construção quase que coletiva das apresentações teatrais do grupo Opinião, denotando que todos estavam irmanados “de maneira inescapável, à mesma realidade opressiva”. Tal engajamento é reconhecido na produção teatral ao longo de toda a ditadura, sendo também analisado como isto contribuiu para o movimento que se articulou visando a recuperação da democracia no pais, já em fins da década de 1970 e seguinte, através dos metalúrgicos que as “leram e representaram de acordo com seu repertório sociocultural” e as demandas daquele momento histórico, ressalta a analista. A este, informa ainda, veremos associado o teatro produzido na “periferia urbana” que indica a incorporação de “novos públicos, novas temáticas, novas linguagens e a dinamização de canais não convencionais de comunicação que transgrediam as normas do sistema, na década de 90”.

A perspectiva analítica do engajamento do teatro é reconhecida ainda em outro artigo, este agora de um colaborador estrangeiro. Recuperando uma peça teatral elaborada por José Martí, o autor demonstra como tal peça se propõe unificar de forma massiva os mais diversos setores sociais em torno das independências unificadas das regiões latino americanas, conforme o ideal de Simon Bolivar e o do próprio Martí. O autor do artigo recupera como Martí recebeu das autoridades cubanas, em 1877, a incumbência de escrever uma peça teatral que pudesse ser encenada por ocasião das comemorações da independência daquele país e de “toda a America Central”.[23]

O resultado foi a peça cujo título já demonstra quais eram os principais problemas enfrentados por aqueles povos: como denominação principal temos Patria y libertad, e como subtítulo: Drama indio. Conforme salienta o analista “desde ese encabezamiento queda claro que para el joven exiliado cubano la independencia era asunto también de los pueblos originarios, no sólo de los blancos, durante el desarrollo de la trama”e que mais do que protagonistas, estes eram os principais. Nota ainda o autor do artigo que os personagens não são fictícios, ou seja, Martí recuperou personagens atuantes nas lutas daqueles idos de 1821, assim como fatos históricos dos quais foram protagonistas, como que comprovando sua tese do protagonismo dos povos originários na confecção da trama real das independências. Os vencidos na trama ficcional são, não por acaso, os representantes do colonialismo, identificados como um sacerdotes, um nobre e os funcionários da coroa espanhola. Na peça também está presente outro problema enfrentado por aqueles povos: o do racismo que, calcado em preceitos escravocratas, denuncia como o medo aos negros era usado para manter a divisão entre os cubanos de origem étnicas distintas.

Marshall Berman, ao comparar as produções espirituais em nossa modernidade, alinhou-as em suas múltiplas formas da sensibilidade moderna no interior de um “turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambigüidade e angústia”,[24] e que se ancora numa unidade paradoxal, numa “unidade de desunidade”, onde mal o novo se manifesta e tudo parece se volatizar, o que se vivifica imediatamente desaparece, torna-se caduco, petrificado, porque sob a ordem humano-societária do capital, essencialmente destrutiva e corrupta, particularmente em nossos tempos sombrios, “em nossos dias, tudo parece estar impregnado do seu contrário”.[25]

Notas

1. LUKÁCS, György. “Arte livre ou arte dirigida?”. In: Marxismo e Teoria da Literatura. Tradução Carlos Nelson Coutinho. São Paulo, Expressão popular, p. 274.

2. HEGEL, G. W. F. Cursos de Estética – vol. I. Tradução Marco Aurélio Werle; Revisão técnica Márcio Seligman-Silva. São Paulo: Edusp, 1999, p. 34-35.

3. TERTULIAN, Nicolas. Georg Lukács – Etapas de seu pensamento estético. Tradução Renira Lisboa de Moura Lima. São Paulo: Editora UNESP, 2008, p. 240.

4. MANN, Thomas apud SUSAN C. FORSTER. Música e humilhação: uma visão através das ações de indenização por dano moral. São Paulo: Blucher Acadêmico, 2011, p. 9. Na parte 4, conclusiva, a autora elucida essa máxima de forma sintética: “A execução de música durante episódios de violência institucionalizada é fenômeno recorrente na história. A música foi utilizada nos campos de concentração da Alemanha Nazista e nas salas de tortura e interrogatórios dos centros de detenção da ‘Guerra contra o Terror’, para citar os acontecimentos recentes mais representativos. Em tais centros de detenção, foram utilizadas inclusive técnicas destinadas a atingir suscetibilidades de cunho cultural e de gênero e a causar humilhação sexual. E, não custa lembrar que, apesar da imensa variedade de música disponível e a facilidade de acesso em decorrência das modernas tecnologias, o repertório utilizado pelos militares norte-americanos foi bem restrito. As músicas mais executadas nestes episódios são produtos da Indústria Cultural norte-americana e incluem algumas músicas infantis”. FORSTER, S.C. op. cit., 2011, p. 169.

5. MEDAGLIA, Júlio. Karlheinz Stockhausen, 1928-2007. In: Concerto – Guia mensal de música erudita, janeiro / fevereiro, 2008, p. 12.

6. BARENBOIM, Daniel & CHÉREAU, Patrice. Diálogos sobre Música e Teatro. Tristão e Isolda. Tradução Sérgio Rocha Brito Marques. São Paulo, Martins Fontes, 2010, p. 121.

7. Cf. neste volume: Adalberto de Paula Paranhos. Espelhos partidos: samba e trabalho no tempo do Estado Novo.

8. Cf. neste volume: Amaílton Magno Azevedo. Elogio das Ritmas negras e mestiças: tropicalismos acústicos na contemporaneidade.

9. Cf. neste volume: Henri de Carvalho. A obra de Ernesto Nazareth: síntese da particularidade histórica e da música brasileiras.

10. Cf. neste volume: Sérgio Estephan: Aníbal Augusto Sardinha: O Garoto e a Era do Rádio no Brasil.

11. Cf. neste volume: Carla Blomberg. Histórias da Música no Brasil e Musicologia: uma leitura preliminar.

12. Cf. neste volume: Cássio Tomaim. Entre Insultos e Nacionalismos: o documentário na crítica cinematográfica brasileira (1920-1950).

13. Cf. neste volume: Gilmar Rocha: “Eternos Vagabundos”: malandros, palhaços, e caipiras no mundo da Chanchada.

14. Cf. a seção Entrevista, neste volume.

15. Cf. nesta seção: Meize Regina Lucena Lucas. Por amor ao cinema: História, Crônica e Memória na invenção de um certo olhar.

16. Cf. neste volume: Eleonora Zicari Brito. A Música Popular Brasileira nos Conturbados Anos de Chumbo: entre o engajamento e o desbunde.

17. Cf. neste volume: Daniela Palma. Gramofones e Gadgets para os lares do Brasil: consumo, cultura e tecnicismo na Revista O Echo.

18. Antonio Maurício Dias da Costa e Edimara Bianca Corrêa Vieira. Na periferia do sucesso: rádio e música popular de massa em belém nas décadas de 1940 e 1950.

19. Cf. neste volume: Rita de Cássia Guimarães Melo. Lima Barreto: a criação da identidade dos remediados.

20. Cf. neste volume: Francisco Regis Lopes Ramos. José de Alencar: entre o romance e a história.

21. Cf. neste volume: Marina Haizenreder Ertzogue. Solidão, Narrativa e Imaginação no Fin-de-Siècle: história e sensibilidade através de crônicas.

22. Cf. neste volume: Kátia Rodrigues Paranhos. Arte e Experimentação Social: o teatro de combate no Brasil contemporâneo.

23. Cf. neste volume: Pedro Pablo Rodriguez. El Poema de 1810: José Martí ante las independencias hispanoamericanas.

24. BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar. 19.ª reimpressão. Tradução Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo, Companhia das Letras, 2003, p. 15.

25. Idem, Ibidem.

Antonio Rago Filho

Vera Lucia Vieira


VIEIRA, Vera Lúcia; FILHO RAGO, Antonio. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 43, 2011. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

 

Patrimônio e Cultura Material / Projeto História / 2010

A coletânea de textos aqui apresentada tem como meta primordial problematizar as noções de História, Memória, Patrimônio e Cultura Material. Considera-se Patrimônio e Memória, assim como cultura material concebida, segundo Michel de Certeau, artes de fazer, modos de apropriação e utilização de objetos que inventam e reinventam o cotidiano, fazem parte de relações de poder, expressam disputas, conflitos, colaborações e alianças entre os agentes sociais envolvidos com estas questões.

Este campo da historiografia integra as reflexões do Departamento de História da PUC / SP já há algum tempo, consubstanciada, primeiramente, na criação do Centro de Documentação e Informação Científica “Prof. Casemiro dos Reis filho” (CEDIC) em 1980, ao qual foi conferida uma vocação interdisciplinar desde seu nascimento. O acúmulo resultante destas reflexões teve um impacto social maior quando passou a participar dos debates sobre a atuação de órgãos públicos como o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arquitetônico e Turístico do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT) e do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da cidade de São Paulo (CONPRESP). Conforme situa um dos artigos deste dossiê, citando a museóloga e historiadora da arte Lygia Martins Costa, em texto de 1992, dividiam-se os bens que compunham o patrimônio cultural brasileiro tradicionalmente em duas categorias: os bens imóveis e os bens móveis. Os bens imóveis compreendiam o acervo arquitetônico, urbanístico e natural protegido, que, por sua natureza irremovível, se prendiam ao contexto em que se inseriam. Os bens móveis formavam-lhe o contraponto.

As discussões sobre as novas dimensões reconhecidas como patrimoniais, ensejaram a revisão de posturas que expressavam uma concepção de História que privilegiava as classes dominantes. Desde a criação do SPHAN, em 1937, os órgãos públicos envolvidos com o patrimônio urbano haviam adotado uma política cultural que enfatizava como digna de preservação da memória social apenas as ações dos que considerava como os grandes homens da História do país. Contrário a tal postura, Nestor Garcia Canclini afirma, no interior deste debate:

O Patrimônio cultural serve, assim, como recurso para produzir as diferenças entre os grupos sociais e a hegemonia dos que gozam de um acesso preferencial à produção e distribuição dos bens. Os setores dominantes não só definem quais bens são superiores e merecem ser conservados, mas também dispõem dos meios econômicos e intelectuais, tempo de trabalho e de ócio, para imprimir a estes bens maior qualidade e refinamento.[1]

Ou seja, questiona-se a ideia de uma nação única e hegemônica, contrapondo-se à compreensão de patrimônio cultural como a “expressão do que um conjunto social considera como cultura própria”,

que sustenta sua identidade e o diferencia de outros grupos – não abarca apenas os monumentos históricos, o desenho urbanístico e outros bens físicos; a experiência vivida também se condensa em linguagens, conhecimentos, tradições imateriais, modos de usar os bens e os espaços físicos. Contudo, a quase totalidade dos estudos e das ações destinados a conhecer, preservar e difundir o patrimônio cultural continuam se ocupando apenas dos monumentos (pirâmides, locais históricos, museus).[2]

Privilegiar o conceito de patrimônio atribuído por especialistas, algumas vezes, é afastar a possibilidade das camadas populares acumularem saberes que podem intervir naquilo que parece já estar dado. Quando se pensa em tradições populares, elas aparecem para o poder público como práticas que devem ser destituídas de seus sentidos originais, “folclorizando” experiências que figuram congeladas no tempo e no espaço, não se pensa nas tradições como espaço em movimento, tornando a admiração acrítica, destituída de uma força que potencialmente transforma, “trata-se de se reconhecer que, neste saber fazer, preservar, difundir, aprender e refazer práticas são elementos indissociáveis”.[3]

Sendo assim, é importante que os historiadores que atuam como profissionais em órgãos públicos responsáveis pela preservação do patrimônio histórico e cultural ou nas escolas e universidades reflitam sobre as diferentes práticas que embasam políticas públicas, concepções de ensino, memória e patrimônio, das quais resultam projetos diversos de sociedade. Projetos estes que implicam na reprodução de interesses dominantes ou que, de outro modo, delineiam perspectivas de uma sociedade transformada incluindo experiências de outros sujeitos e suas histórias, respeitando multiplicidades e diferenças, estas também com direito à Memória e à História.

No Departamento de História da FCS / PUC-SP esta disciplina faz parte de nossa reforma curricular desde 2007, enfatizando a importância do tema para os profissionais da História, que permaneceram durante muito tempo com escassa participação na tomada de decisões nesta área.

Muitos acervos documentais que nos ajudam a refletir sobre experiências diversas e evocar a História a contrapelo necessitam de incentivos para sobreviver. Lembramos de alguns que procuram preservar experiências que se ligam aos movimentos sociais como o CEDIC da PUC / SP, o Centro de Documentação e Memória (CEDEM) da UNESP, o Centro de Documentação e Pesquisa Vergueiro (CPV), o Arquivo Edgar Leuenroth, da UNICAMP, apenas para citar alguns em São Paulo. É preciso reconhecer e garantir a existência e autonomia destas instituições, para que elas cumpram sua missão intelectual e política, tornando pública a possibilidade de muitas experiências.

A perspectiva assumida no Brasil sobre o patrimônio como o conjunto de “bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade”, conforme artigo 16 da Constituição Federal, expressa a abrangência inicialmente colocada. Tal perspectiva afirma-se nos liames dos artigos componentes deste número, cujas reflexões permitem, não apenas recuperar a cultura material das mais diversas concretudes sociais, mas também o patrimônio que revelam.

Um dos principais temas do debate contemporâneo sobre a preservação e o restauro dos bens culturais abarca, a “dimensão urbana da tutela”, sobretudo, conforme atesta um dos autores, a partir da década de 1960. “Como toda ação modificadora em um artefato de interesse cultural pressupõe o reconhecimento e entendimento prévio de suas especificidades como premissa para fundamentar qualquer proposta, o reconhecimento de bens cada vez mais complexos tem nos colocado diante de grandes desafios interpretativos e operacionais”.

Também incorpora um novo olhar aos museus, nos quais é possível recuperar como estes “operaram as narrativas de memórias expressas em suas coleções permanentes, e dá pistas sobre a complexidade gerencial que afeta os museus de arte contemporânea na atualidade”. Ou o reconhecimento de que são “lugares de memória” os arquivos audiovisuais. Conforme os autores aqui presentes, “muitas vezes preservadas em cinematecas, outras vezes em arquivos pessoais, essa documentação variada foi geralmente acumulada, ao longo de anos, por personalidades ligadas à cultura de um país”, o que se estende também às instalações industriais, máquinas, ofícios, sítios. Enfim, nos alertam eles, no caso do Brasil, “estes parecem ser os vieses temáticos que se cruzam na questão patrimonial, e predominam atualmente em trabalhos e tese acadêmicas: a história da técnica, a perspectiva socioeconômica e análise arquitetônica”.

Revela-se assim uma tessitura, conforme indica outro autor, citando Françoise Choay, de “expansão ecumênica das práticas patrimoniais” 4 que gera uma “crescente especialização dos conhecimentos e das práticas relativas ao patrimônio cultural, expressos em documentos, cartas e recomendações internacionais, em normativas jurídicas nacionais e em métodos e técnicas de preservação – inventários, planos de gestão e salvaguarda, restaurações, ações de conservação preventiva, acondicionamentos, etc.” Uma preservação que passou a considerar também a relação da atividade humana com o meio ambiente. Adentramos assim à difícil relação entre patrimônio cultural e natural “não por sua realidade e importância intrínseca, mas por seus valores estéticos, na mesma direção que o patrimônio cultural” é enfrentada neste número por mais de um autor, trazendo assim uma grande contribuição aos novos pesquisadores, voltados para o tema. Neste sentido, por exemplo, situa um deles, como a apropriação da água como bem privado desde o período colonial, contribuiu para o “assoreamento de rios, para o processo de extinção de algumas espécies e para o desvio, e até mesmo a completa destruição, de alguns corpos de água”.

A identidade patrimonial inerente à constelação latino-americana se revela nas reflexões da especialista da Colômbia, que demonstra como louças, selos, moedas e objetos de uso cotidiano, nos quais foram cunhadas figuras representativas dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade tornam-se “objetos patrióticos” porque “servirão para educar e incentivar os sentimentos republicanos ou imperiais em todos os níveis sociais”.

Também perpassa o conjunto dos textos, como que em uma transversalidade, a relação entre patrimônio e cultura material, para cuja elucidação se arroga os “herdeiros dos Annales: Daniel Roche e Jean-Marie Pesez. Roche assinala que a cultura material viabiliza-se pela produção e pelo consumo. Para Pesez, é no acontecimento sócio-econômico que podemos encontrar as linhas centrais da cultura material”.5 Desde o reconhecimento da leitura “como um instrumento de decodificação do patrimônio cultural de um grupo, de suas relações de pertencimento, dos seus legados intergeracionais” até “fotografias de automóveis e caminhões pelas ruas de uma cidade, por exemplo; ilustrações valorizando chamadas publicitárias através dos jornais escritos, reproduzindo imagens que se constituíram em objetos do desejo de parcelas da população; matérias veiculadas nesses mesmos jornais dando conta de condutas desviantes de populares em contato com estes objetos; os trabalhos de memorialistas que nos conduzem por espaços da cidade sobre os quais, muitas vezes, não temos outras informações”, revelam a cultura material espectral dos que os produziram. Assim como a revelam registros parlamentares da virada do século XIX para o XX que contribuem para a compreensão da especificidade dos processos de autonomização da esfera jurídica em relação à religião no Brasil, ou em outra perspectiva, “anúncios frequentes e pulverizados nos jornais, testemunhando, na dimensão cotidiana, uma faceta da dinâmica ampla de generalização e diferenciação do consumo no contexto das grandes cidades brasileiras ao longo da segunda metade do século XX”. A perspectiva da cultura material, tomada pelo autor neste último exemplo traz para os leitores o clássico conceito de “infra-economia” de Fernand Braudel.6 A filmografia científica “dedicada principalmente à medicina e dentro desta à cirurgia cardíaca” permite ao autor “pensar a temática da ciência e da tecnologia e sua inserção em nossa sociedade”. A mesma base documental revela, para outro autor o quanto, na America Latina, a “história e a prática da fotografia têm evidenciado questões vitais a respeito das relações entre o poder e as culturas, da representação da cultura e seus significados, e as conexões entre intenção, expectativa e conteúdo”,7 assim como permitem reflexões sobre a categoria sertão, para o que outro historiador insere ainda literatura, música, e fotografia. Referimo-nos particularmente à cultura material recuperada dentre as mais de 60.000 fotografias que Pierre Verger capturou com sua Rolleiflex.

É nesse universo que se insere a presente edição de Projeto História sobre patrimônio e cultura material, que assume um caráter urgente ao contribuir para uma reflexão conceitual e política transformadora, reflexão tão importante para os profissionais de história e para o exercício da cidadania por todos.

Notas

1. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº 23, Rio de Janeiro, DPH / SMC, 1994, pg. 95.

2. Idem, p. 114.

3. BRITES, Olga. Memória, Preservação e Tradições populares, in O Direito à memória – Patrimônio Histórico e cidadania, São Paulo, DPH, Secretaria Municipal de Cultura, 1992, pp.17-20.

4. CHOAY, F. A alegoria do patrimônio, São Paulo, Estação Liberdade, UNESP, 2001, p. 207.

5. Conferir ROCHE, Daniel. História das Coisas Banais – Nascimento do Consumo nas sociedades do século XVII ao XIX. Rio de Janeiro, Rocco, 2000, p. 11; PESEZ, Jean-Marie. A história da Cultura Material. In LE GOFF, Jacques. CHARTIER, Roger. REVEL, Jacques. A Nova História. Tradução Maria Helena Arinto e Rosa Esteves. Coimbra, Portugal, Almedina, s / d., p. 110-143, p. 113.

6. BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVIII, vol. 1, As estruturas do cotidiano: o possível e o impossível. São Paulo, Martins Fontes, 1995.

7. LEVINE, Robert. Image and Memory: Photography from Latin America, 1866-1994, in Hispanic American Historical Review, 79.3, 1999, p. 536-538.

Olga Brites

Mariza Romero


BRITES, Olga; ROMERO, Mariza. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 40, 2010. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

 

História, Historiadores, Historiografia / Projeto História / 2010

I

O leitor poderá observar no presente dossiê como os autores, ao refletir sobre os fundamentos historiográficos que nortearam a análise de seus temas específicos, os situaram no interior das novas e também antigas preocupações inerentes ao historiador: a recuperação do real a partir das abstrações razoáveis possíveis, dados os vestígios históricos disponíveis e o instrumental analítico selecionado.

Desde o debate na antiguidade grega sobre os problemas dos métodos para o resgate da história, concepção que recupera a necessidade da questão de caminhar a partir da identificação dos pontos considerados frágeis na argumentação do historiador – e “não na mera desqualificação da obra como um todo” –, até os debates atuais postos no campo da gnosiologia sobre a verdade e a história, ficam objetivados no presente dossiê.

A perspectiva da validação historiográfica a partir do argumento, ou como meros embates discursivos, nos quais as opiniões se equivalem, e que, por vezes, remete o historiador ao campo da literatura, é contraposta à da cientificidade deste campo do conhecimento, capaz de objetivar a dinâmica histórica em suas contradições internas, a posição relativa de cada uma das diversas forças sociais em permanentes e distintos embates em dadas particularidades históricas. A identificação dessas tendências arrima a mobilidade de ação do ser social, porquanto a abdicação desta o torna mero expectador.

O espectro gnosiológico que hoje assume a primazia no campo da historiografia parece conferir validade à crítica de Políbio a Timeu sobre o “direito de criticar com o objetivo de conferir valor aos próprios argumentos por meio da correção ou redimensionamento dos argumentos alheios”. Tal “guinada hermenêutica” confere ao termo historiografia sentidos muito distintos, conforme aponta um dos autores presentes neste dossiê.

“Ora aparece nomeando um certo ajuntamento de obras históricas, sinônimo então de bibliografia especializada, ora surge identificando linha de pesquisa voltada para os estudos de história da história, ou seja, exame consistente das obras enquanto manifestação cultural ancorada em contextos históricos específicos (…). Entretanto, as extrapolações para os contextos mais gerais quando muito terminam por marcar a temporalidade das obras, mas não sua historicidade”.[1]

Será que poderíamos agregar a esta reflexão a de outro autor que considera ser a produção historiográfica um “museu do saber” que “aspira uma unidade estética, cuja finalidade é dispor uma aparência e um reconhecimento dos objetos com os quais as várias especialidades se envolvem”? Ou seja, sequer se resgata o preceito de Walter Benjamin, recuperado aqui por outro autor, de que, “o narrador colhe o que narra na experiência própria ou relatada. E transforma isso outra vez em experiência dos que ouvem sua história”? Ou ainda, cumpre a historiografia a função de controle sobre o saber, parafraseando os termos de Foucault, conforme assertivas de outros aqui presentes? Deixamos a pergunta ao leitor, esperando que este dossiê incentive as reflexões.

A ampla diversidade de abordagens, métodos, instrumentos, documentos a compor hoje o campo historiográfico a que nos remete o conjunto dos textos, poderia ser também interpretado como a expressão de uma crise dos sujeitos historiadores? É notória, diz o autor, a situação de “crise” que a disciplina história enfrenta.

“(…) Desde os anos da década de 1970, com a emergência do pós-estruturalismo, a corporação de historiadores enfrenta desafios compreensivos inesperados oriundos dos estudos da linguagem e da semiologia, reconhecidos como linguistic turn ou semiotic challenge. Além da fragmentação disciplinar há a ameaça de um relativismo fantasmático pairando no horizonte das pesquisas”.[2]

Ou, contrapondo-se a tal ideia, revela-se uma profícua retomada da historiografia que, imbuída de novos recursos e mais livre para buscar os fundamentos de suas interpretações, não apenas amplia a base conceitual, parte em busca de novas evidências históricas e também revisita com maior frequência historiografias, ou consagradas, ou esquecidas, ou pouco reconhecidas no momento mesmo de sua produção.

Exemplo desta retomada são os balanços, como, por exemplo, o que analisa a produção historiográfica sobre a Revolução Russa. Ao retomar desde os autores clássicos até as principais obras mais recentes, “incluindo as que tentativamente parecem marcar novos paradigmas de investigação no período pós-soviético”,[3 ]as visualiza no interior dos diferentes contextos históricos em que cada produção historiográfica ocorreu e, assim identifica as dificuldades para a objetividade analítica nas reflexões sobre tal tema.

A mesma questão sobre a objetividade está posta no texto que analisa a produção historiográfica sobre o missionário jesuíta José de Anchieta, cujas biografias, segundo o historiador, desde os séculos XIX e XX tiveram o “objetivo de evidenciá-lo (…) como precursor da nacionalidade brasileira, guardião da moral e exemplo de santidade (…) e de destacar condutas consideradas fundamentais para a sociedade brasileira em diferentes momentos da história política brasileira”,[4] cumpre a finalidade de defender sua beatificação, que, para se consolidar demanda ainda que se evidenciem os milagres requeridos para sua canonização.

Um viés historiográfico apontado também no balanço sobre outro tema, ainda que totalmente diverso, se evidencia na historiografia sobre o movimento Punk dos anos 70 com a perspectiva de “um acontecimento social que abalou a sociedade e a cultura num panorama de mudanças estruturais profundas em curso na América do Norte e na Inglaterra”,[5] mas cuja perspectiva analítica tende a reduzi-lo a um movimento de jovens de classe média. Já outro analista demonstra como um debate sobre os indígenas no Brasil revela “uma reflexão política e uma operação historiográfica sobre identidade nacional e o futuro da formação social brasileira”, [6] durante a segunda metade do século XIX. A análise dos embates entre o etnólogo alemão Curt Nimuendaju e o intelectual paraense Jorge Hurley expressa como tais autores intervieram na conformação de políticas sobre as questões indígenas e como foram capazes de definir um campo historiográfico sobre a questão.

Se, por um lado, o reconhecimento da diversidade hoje posta na reflexão dos historiadores leva alguns a enfatizarem que se trata de uma crise e outros a perceberam aí uma profusão de novas possibilidades para o historiador, por outro lado, um terceiro grupo se detém sobre os conceitos produzidos pela historiografia.

Uma pergunta, não obstante, se impõe: produz a historiografia conceitos cuja pertinência está na capacidade de expressar o real concreto e cuja validade se põe a partir de novas evidências empíricas abstraídas pelo historiador quando este se permite ampliar seu espectro analítico?

Ratifica esta questão, verbi gratia, os artigos que debatem o tema das fronteiras. Um dos analistas desvela como tais conceitos necessitam ser revisados à luz da geopolítica. Pois a transnacionalização do capital obriga os historiadores a reconhecer que as noções de territorialidade / fronteiras, antes restritas ao Estado-nação, hoje se expressam na inter-relação entre as mais diferentes culturas e sociabilidades. Ou, conforme outro, a conceituação é sempre relativa em face de novas evidências antes não destacadas, como ocorre, segundo o exemplo, quando se contrapõem as informações sobre fronteiras provinciais no Brasil, grafadas em mapas cartográficos, aos dados advindos de outras documentações. Adentrando ainda à discussão sobre estratégias, métodos e instrumentos analíticos, este mesmo ressalta que, como qualquer outro elemento iconográfico, a analítica cartográfica revela uma historicidade particular, “construída em função de elementos culturais próprios e pertinentes ao momento de sua criação”.[7]

O que remete às discussões sobre os aspectos metodológicos que envolvem outro tipo de material iconográfico, muitas vezes tomado, assim como ocorre com a cartografia, como simples material auxiliar a corroborar ou não informações advindas de outras fontes documentais, a fotografia. Desde a clássica discussão sobre a correspondência ou não entre a concretude social e a representação que dela fica gravada na imagem, ou sobre os limites postos pelo foco da imagem, até o seu reconhecimento como expressão de uma dada forma de interação com o mundo naquele momento, observa-se a preocupação dos analistas com a validade de suas fontes documentais e os métodos mais apropriados para seu tratamento. Revelam estas, conforme se coloca o autor, a essência dos modos de interagir, mas não a essência das coisas com as quais se interagiu?

Observa-se assim que tais historiadores situam no interior da discussão o impacto que trouxe para os analistas, a ampliação do corpus documental validado também enquanto expressão das vivências cotidianas nos mais diversos tempos, incluindo-se aí o primado do reconhecimento das informações verbalizadas para os historiadores ou dos relatos de vidas privadas grafados em correspondências particulares. Pois também para a história oral se requisita um campo analítico próprio, metodologias de pesquisa e de análise particulares, principalmente quando, segundo o autor, se tem por objetivo “preparar documentos gravados e transcritos para serem utilizados pelos pesquisadores do futuro”.[8] Centrando a análise, sempre no campo gnosiológico, encontramos em outro analista um exemplo que explicita os questionamentos sobre a relação entre a história e a história do ponto de vista dos resultados da abordagem. Conforme suas reflexões, com o intuito de desvendar os discursos de poder utilizados no confronto conhecido como a revolução constitucionalista de 1932 em São Paulo, observa este que a historiografia “concentrou seus esforços em diretrizes opostas, recaindo, ora no sentido de elucidar a luta de classes, ora na valorização do caráter espontâneo do levante”, mas que, mesmo assim, acabam por reproduzir “a plataforma aburguesada que se arvorava como revolucionária, embora não primasse por mudanças significativas no país”.[9]

É interessante observar que, das reflexões sobre o campo conceitual, se pode abstrair certa ênfase na percepção do que configura a identidade de um país, de uma nação. Coloca-se assim outro aspecto do embate. Enquanto uns ressaltam, conforme apontado acima, o desaparecimento do Estadonação, para outros, a ênfase atual está no reconhecimento das identidades políticas, nacionais, culturais. Neste sentido, o texto mais representativo nos parece ser o que retoma a obra do historiador francês Fernand Braudel: L’Identité de la France (1986). Representativo também do conjunto dos aspectos fundam este dossiê: o debate historiográfico, as correntes ou tendências em curso ao longo do século XX, a validação de múltiplas e distintas fontes, a pertinência ou não das abstrações formuladas a partir dos dados empíricos, a interdisciplinaridade, enfim, o corpus que resulta da relação entre historia, historiadores e historiografia.

Situando, assim como a maior parte dos historiadores deste número de revista o fazem, o discurso historiográfico de Braudel nas circunstâncias que o condicionam, o autor demonstra como esta obra expressa a necessidade posta naquele momento para os franceses, de reafirmar uma identidade nacional que respondesse a dois imperativos: as contradições de uma conjuntura internacional marcada pela Guerra Fria que conjugava uma pregação pela paz com uma política militarista contra países que questionavam o capitalismo e para a manutenção do mapa artificialmente desenhado após a segunda guerra. Por outro lado, punha-se o imperativo de redesenhar a memória sobre o colonialismo exercido pela França nas regiões afro-asiáticas em um momento em que esta nova ordem mundial em construção reeditava os valores civilizatórios de uma Europa mediterrânea. Ou seja, reafirmando o conceito de longa duração, “Braudel constrói um discurso político ao redor da identidade francesa visando relativizar as contradições da história nacional (…). Na França da virada dos anos 80, o debate girava em torno do ensino de História, da dissolução da memória nacional e da perda dos grandes referenciais, fazendo com que os historiadores se voltassem aos temas nacionais. Ou seja, o livro encaixou-se como uma luva!”.[10]

O mesmo teor reflexivo encontra-se em outro artigo que retoma como a construção do discurso sobre a modernidade no período do Estado Novo no Brasil, com o claro intuito de configurar “identidades individuais e coletivas” foi apropriado também por “práticas disciplinares – ciência, tecnologia, epistemologias – que, em um movimento simbiôntico, procederam a uma troca com ambientes institucionalizados e institucionalizantes edificando aquilo que será conhecido como moderno”,[11] o que faz a partir da recuperação da trajetória intelectual do historiador Alfredo Ellis Júnior, entre 1938 e 1956.

Temos, por fim, mais dois artigos travando debate acerca da contribuição historiográfica de Capistrano de Abreu. Num primeiro, é discutido o movimento de ruptura na própria obra do historiador cearense, o que enseja a sua recolocação como divisor de águas de toda uma geração historiográfica brasileira – desde a primígena ideia de uma revolução burguesa à brasileira, até sua posição como protopositivista; num segundo momento é identificado, pela autora do artigo, o papel de Capistrano de Abreu em José Honório Rodrigues.

II

Há que pontuar algumas questões que se apresentam nesse espectro de confluências e divergências no campo historiográfico. Ao se contrapor às formulações de Ferdinand Lassale, o autor do Manifesto Comunista de 1848 se vale dos estudos magistrais do filósofo Giambattista Vico (1668-1744). O filósofo napolitano escreveu a obra ímpar A Nova Ciência, publicada pela primeira vez em 1725. Reescreveu-a pela terceira vez no ano de sua morte, em 1744, nos legando categorias da história que fez Jules Michelet, Herder e o próprio Marx, tomá-lo como referência teórica. Uma delas explicitada por Marx em O Capital que – ao refletir sobre os instrumentos de produção e da tecnologia – se pergunta: “Será que não merece igual atenção a história da formação dos órgãos produtivos do homem social, da base material de toda organização social específica?”. Recorde-se que Marx não abandonava por um só instante a determinação histórica dos seres sociais e das coisas existentes. Nessa direção, o filósofo alemão formula outra questão: “E não seria mais fácil reconstituí-la já que, como diz Vico, a história dos homens difere da história natural por termos feito uma e não a outra?”.[12]

Ao destacar que o homem só pode conhecer aquilo que faz, Vico acrescentava que sendo Deus o criador da natureza só ele poderia conhecê-la a fundo. Verum et factum convertuntur. Por essa razão, nós conhecemos o efetuado praticamente, o homem é um ser autoproducente. Alguns autores reconheceram certas afinidades entre Marx e Vico, como Adrienne Fulco que faz convergir, entre outras, o impulso à objetividade, ao reconhecimento das determinidades concretas que se encontram no mundo in flux. Ambos, acrescenta Fulco, também “compartem a crença de que a consciência é a característica distintiva do homem; o centro essencial de sua humanidade. Para ambos, a consciência, em sua forma mais geral, é a capacidade de todo homem de conhecer-se a si mesmo e ao mundo que o rodeia. A consciência, com efeito, não é somente uma atividade própria da mente, mas também uma atividade de caráter social determinada”.[13]

Pense-se, nesse último passo, nas contribuições do filósofo húngaro György Lukács, autor de Prolegômenos para uma ontologia do ser social, [14] no que tange ao papel da consciência nos lineamentos histórico-materialistas inscritos na obra de Marx. “A ontologia marxiana se diferencia da de Hegel por afastar todo elemento lógico-dedutivo e, no plano da evolução histórica, todo elemento teleológico. (…) Aqui, no plano ontológico, não existe nada análogo. Todo existente deve ser sempre objetivo, ou seja, deve ser sempre parte movente e movida de um complexo concreto. Isto conduz, portanto, a duas consequências fundamentais. Em primeiro lugar, o ser em seu conjunto é visto como um processo histórico; em segundo, as categorias não são tidas como enunciados sobre algo que é ou que se torna, mas sim como formas moventes e movidas da própria matéria: ‘formas do ser, determinações da existência’”.[15]

Vico escrevera que “Somente os homens fizeram esse mundo (…). Mas tal mundo surgiu, sem dúvida, de um espírito quase sempre diverso, às vezes inteiramente contrário e sempre superior às finalidades particulares que os homens haviam proposto”.[16] Marx dispõe essa síntese histórica para seus correligionários em sua correspondência, e, de forma mais apropriada a sua visão do mundo histórico, na obra O 18 de brumário de Luís Bonaparte, quando analisa as determinantes histórico-sociais do golpe de Estado de 2 de dezembro de 1851 desferido por Luís Bonaparte em analogia com o golpe do tio, principia-a com essa refutação de qualquer finalismo a reger o processo histórico: “Em algumas passagens de suas obras, Hegel comenta que todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da história mundial são encenados, por assim dizer, duas vezes. Ele se esqueceu de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. (…) Os homens fazem a sua própria história, contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhe as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram. A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos”.[17]

A interpretação de Agnes Heller pode lançar luz à improcedência dos autores que insistem na imputação de determinismos à concepção marxista da história e do caráter teleológico inscrito no processo histórico. “A teoria segundo a qual os homens fazem sua própria história, mas em condições previamente dadas, contém as teses fundamentais da concepção marxista da história: por um lado, a tese da imanência, e, por outro, a da objetividade. À primeira vista, o princípio da imanência implica no fato da teleologia, ao passo que o princípio da objetividade implica naquele da causalidade; os homens aspiram a certos fins, mas estes estão determinados pelas circunstâncias, as quais, de resto, modificam tais esforços e aspirações, produzindo desse modo resultados que divergem dos fins inicialmente colocados, etc.”.[18]

Essa posição dialética, cuja premissa se assenta no fato de que as ações humanas constituem o ponto em que se resolve momentaneamente a tensão constante entre liberdade e necessidade, foi ressaltada por uma das principais historiadoras brasileiras, Emília Viotti da Costa, em seu estudo sobre a rebelião de escravos em Demerara, em 1823. Numa parte mais desenvolvida, atada à concepção materialista, salienta: “A história é feita por homens e mulheres, embora eles a façam sob condições que não escolheram. Em última instância, o que interessa é a maneira como as pessoas interagem, como pensam e agem sobre o mundo e como, ao transformar o mundo, transformam a si mesmas”.[19]

Tal imputação de finalismo no processo histórico também foi refutada por István Mészáros, porquanto “A abertura radical da história – a história humana – criada historicamente é, então, inescapável, no sentido de que não há meio de se predeterminar, teórica ou praticamente, as formas e modalidades da automediação humana, porque as condições teleológicas complexas dessa automediação, através da atividade produtiva, só podem ser satisfeitas – uma vez que estão sendo constantemente criadas e recriadas – no curso dessa própria automediação. É por isso que todas as tentativas de produzir sistemas de explicação histórica nitidamente fechados e encerrados em si próprios resultam ou em alguma redução arbitrária da complexidade das ações humanas à simplicidade grosseira de determinações mecânicas ou na superposição idealista de um tipo ou outro de transcendentalismo a priori à imanência do desenvolvimento humano”.[20]

Contra outra visão de história bastante disseminada, o mundo se passaria no tropo, um dos mais renomados intérpretes da micro-história, o historiador Carlo Ginzburg vem estabelecendo um consequente embate contra os cépticos que professam o relativismo do conhecimento histórico. Além disso, o historiador italiano se insurge contra os riscos do negacionismo, corrente reacionária que tenta negar a existência do Shoah (Holocausto), da fustigação, massacre e genocídio de milhões de indivíduos de origem semita pelo terrorismo oficial do estado nazista.

Ao ser questionado por Perry Anderson sobre o uso da palavra “prova” ao invés de “testemunho”, Ginzburg mostra para a primeira sua ineliminável presença na pesquisa histórica. Dessa maneira, alinha que “Provare (provar) significa, por um lado, ‘validar’ e, por outro, ‘experimentar’, como observou Montaigne falando de seus próprios ensaios. A linguagem da prova é a de quem submete os materiais da pesquisa a uma aferição permanente: ‘provando e confirmando’, como rezava a famosa divisa da Academia (científica florentina) del Cimento. (…) Caminhamos às apalpadelas, como o luthier que bate delicadamente, com os nós dos dedos, na madeira do violino: uma imagem que Marc Bloch contrapôs à perfeição mecânica do torno, para sublinhar o inextirpável componente artesanal do trabalho do historiador.”[21]

As teses cépticas têm o condão de reduzir toda historiografia a uma dimensão narrativa ou retórica, desprezando, com isso, o trabalho concreto e específico do historiador. O relativismo céptico, em uma de suas versões, contrapõe a retórica à ideia de prova. Carlo Ginzburg escarafuncha a raiz desta concepção descobrindo o núcleo dela, segundo à qual essa concepção se estrutura: a filosofia de Nietzsche. Em verdade, suas reflexões sobre a linguagem. Segundo Ginzburg, em Acerca da verdade e da mentira, pode-se constatar que “a existência de diversas línguas é citada como prova do abismo que separa palavras e coisas: a linguagem não pode dar uma imagem adequada da realidade”.[22] Dessa forma, no estudo relacional de culturas torna-se impossível a compreensão de sua historicidade e concretude social. Em seu duelo com as concepções agostinianas de verdade, Nietzsche acaba por produzir um pensamento com sinal contrário ao cristianismo. A tomada de posição sobre a superioridade de certos povos ou mesmo da língua em relação a outra cultura aponta para um traço definidor da ideologia da historiografia relativista. “O limite do relativismo – seja na versão branda seja na versão feroz – é o de escamotear a distinção entre juízo de fato e juízo de valor, suprimindo conforme o caso um ou outro dos dois termos. O limite do relativismo é, ao mesmo tempo, cognitivo, político e moral”.[23]

Há que questionar, portanto, essa visão redutora do campo de possíveis das atividades práticas humanas à retórica ou a meras figuras de linguagem, que resultam nas imputações arbitrárias e exteriores aos objetos em sua integridade histórica. Se a raiz é nietzscheana, os alvos do historiador italiano são os cépticos relativistas, entre os quais, Roland Barthes e Hayden White. Figuras díspares, mas que esposam alguns pressupostos comuns: “a historiografia, assim como a retórica, se propõe unicamente a convencer; o seu fim é a eficácia, não a verdade; de forma não diversa de um romance, uma obra historiográfica constrói um mundo textual autônomo que não tem nenhuma relação demonstrável com a realidade extratextual à qual se refere e textos historiográficos e textos de ficção são auto-referenciais tendo em vista que estão unidos por uma dimensão retórica”.[24]

Dessa maneira, em posição contrária, a tese de Carlo Ginzburg, ancorada na tradição aristotélica, demonstra que as provas, longe de serem incompatíveis com a retórica, constituem o seu núcleo fundamental. Por essa razão, o conhecimento histórico é possível. Porquanto, “ao avaliar as provas, os historiadores deveriam recordar que todo ponto de vista sobre a realidade, além de ser intrinsecamente seletivo e parcial, depende das relações de força que condicionam, por meio da possibilidade de acesso à documentação, a imagem total que uma sociedade deixa de si. Para ‘escovar a história ao contrário’ (die Geschichte gegen den Strich zu bürsten), como Walter Benjamin exortava a fazer, é preciso aprender a ler os testemunhos às avessas, contra as intenções de quem os produziu. Só dessa maneira será possível levar em conta tanto as relações de força quanto aquilo que é irredutível a elas”.[25]

Há que escovar a história a contrapelo! O que significa posicionar-se da perspectiva dos vencidos. Extrair das tensões, conflitos e contradições sociais, as alternativas que não vingaram, que se arruinaram, os projetos sociais que ameaçaram as bases materiais antagônicas do metabolismo social. No plano historiográfico, insurgir-se contra a versão oficial, a dos polos dos vencedores.

Decorridos setenta anos, após ter vivenciado os horrores de um campo de concentração (Camp des Travailleurs Volontaires em Nevers), sem ter o visto que lhe permitiria sair da França, acuado e premido pelas constrições e armas das forças franquistas, Walter Benjamin se suicida a 22 de setembro de 1940, em Port Bou, na Catalunha. Sua desaparição, no entanto, não fez soçobrar seus esforços na crítica dialética do mundo da barbárie. Seus escritos mantêm vivos os embates contra os “Estados de Exceção”! Decepcionado com o Pacto de não agressão entre Stálin e Hitler, de 23 de agosto de 1939, escapando da prisão se dedica a elaboração das Teses “Sobre o conceito de história”. Segundo Benjamin, “O materialismo histórico precisa renunciar ao elemento épico da história”, nessa direção, anota em suas Passagens: “A primeira etapa desse caminho será aplicar à história o princípio da montagem: Isto é: erguer grandes construções a partir de elementos minúsculos, recortados com clareza e precisão. E, mesmo, descobrir na análise do pequeno momento individual o cristal do acontecimento total. Portanto, romper com o naturalismo histórico vulgar”.[26] Contra a dominância das formas do positivismo e dos acentos positivos do progresso do sistema social, o que põe um ponto final na história no que diz respeito à ordem social, Benjamin premido pelo terrorismo imposto pelo fascismo desde as fímbrias do cotidiano às expressões políticas, pontua na oitava das Teses que “A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ no qual vivemos é a regra. Precisamos chegar a um conceito de história que dê conta disso. Então surgirá diante de nós nossa tarefa, a de instaurar o real estado de exceção; e graças a isso, nossa posição na luta contra o fascismo tornar-se-á melhor. A chance deste consiste, não por último, em que seus adversários o afrontem em nome do progresso como se este fosse uma norma histórica. – O espanto em constatar que os acontecimentos que vivemos ‘ainda’ sejam possíveis no século XX não é nenhum espanto filosófico. Ele não está no início de um conhecimento, a menos que seja o de mostrar que a representação da história donde provém aquele espanto é insustentável”.[27]

Vivemos uma temporalidade terrível com o futuro constantemente ameaçado, em que as energias humano-societárias materializadas nas riquezas se esvanecem, o desgoverno do sistema do capital em seu desmonte transforma multidões sem nenhum amparo, as individualidades se fragmentam e se apequenam numa vida dilacerada. Todavia, como recorda nossa historiadora: “Todo tempo é tempo de mudança – mas alguns são mais do que outros. Todo tempo é tempo de conflito – mas há momentos históricos em que as tensões e os conflitos isolados que caracterizam a experiência cotidiana subitamente se aglutinam num fenômeno amplo e abrangente, que ameaça a ‘ordem social’. Nesses momentos as queixas individuais havia muito existentes se transformam numa crítica global ao sistema de poder. Desafiam-se as pressuposições das elites acerca do mundo”.[28]

A tentação óbvia, diante de nossa quadra histórica – o estancamento das transições, o revigoramento das forças do capital, a supremacia bélica norte-americana, a hegemonia absoluta da “usina do falso” na cultura mundializada –, é o de olhar para trás e reconstruir o utopismo em lutar por uma nova sociabilidade livre das bases materiais antagônicas. Todavia, há que salientar as sucessivas greves e rebeliões que eclodiram em várias partes desse cotidiano minado pelas contradições do capital mundializado. Operários, estudantes, mulheres, camponeses se juntaram em manifestações contra o desemprego, a miséria, a privatização da educação, na Grécia, Turquia, Itália, Portugal, e tantas outras formações sociais, como a greve geral de 29 de setembro na Espanha, etc. Na Bolívia, os trabalhadores sustaram por meio de paralisações a elevação dos combustíveis… Em Túnis, capital da Tunísia, um jovem engenheiro desempregado, como tantos outros, surrado por tentar vender frutas numa praça, acabou por se imolar… Com este ato extremo, detonou um represamento incontido de um processo social que alija as maiorias do próprio trabalho assalariado, um amplo movimento social que pôs fim à sangrenta ditadura de Zine al Abidine Ben Ali, que estava instalado no poder há mais de duas décadas.

Está claro que o “futuro ausente” que se apresenta como molde atual, dado pelas circunstâncias históricas, pela conservação de estruturas autocráticas, pelos voos desmesurados dos impérios financeiros, pela crise estrutural do capital que a tudo absorve em sua universalização, que produz a enormidade da população de reserva na escala de milhões de desempregados, mas que ao invés de nos fazer recuar deve nos lançar ao encontro de uma permanente busca de alternativas, regrado por um “otimismo ponderado”, que vislumbra um traçado radical necessário à luta contra essa impotência e apodrecimento sob a própria pele. Porque, como assegurava um crítico dessa particular forma de metabolismo social, “donde o futuro humano, se futuro houver, será posto pela possibilidade emergente das perspectivas da síntese do saber – a fusão entre o melhor e mais avançado do saber científico-tecnológico e o mais agudo e universal do saber humanista, ou seja, da aglutinação natural entre o saber do mundo e o saber de si. Hoje, o homem já está se tornando o demiurgo da natureza, falta se converter no demiurgo de si mesmo. Numa palavra, capacidade ilimitada de produção material, domínio da vida de seu próprio gênero e do planeta, e humanismo, no sentido de capacidade de produção do humano. Em síntese, capacidade de produção da vida, inclusive da genuína vida consciente”.[29]

Notas

1. Cf. Políbio Contra Timeu, ou o Direito de Criticar de Breno Battistin Sebastiani, nesta edição, p. 210.

2 Cf. o artigo de Carlos Alvarez Maia, p. 354.

3 Cf., neste volume, o artigo de Angelo Segrillo, p. 65.

4 Cf. o artigo de Eliane Cristina Deckmann Fleck, p. 157.

5 Cf. Ivone Gallo, nesta edição, p. 298.

6 Cf. Aldrin Figueiredo, neta edição, p. 317.

7 Cf. Airton José Cavenaghi, nesta edição, p. 385.

8 Cf. Maurílio Rompatto, p. 345 desta edição.

9 Cf. João Paulo Rodrigues, p. 152.

10 Cf. Guilherme Ribeiro, p. 108.

11 Cf. Diogo da Silva Ruiz, p. 219.

12 MARX, Karl. O capital – crítica da economia política, vol. 1, tomo 2. Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Köthe. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 8.

13 FULCO, Adrienne. Vico y Marx: consciencia humana y estructura de la realidad. In: TAGLIACOZZO, G. Vico y Marx: afinidades y contrastes. México: Fondo de Cultura Económica, 1983, p. 123.

14 LUKÁCS, György. Prolegômenos para uma ontologia do ser social. Tradução de Lya Luft e Rodnei Nascimento . São Paulo: Boitempo, 2010. Nesta obra estão expostas as principais categorias ontológicas da filosofia de Marx.

15 LUKÁCS, G. O jovem Marx e outros escritos de filosofia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007, p. 228.

16 VICO apud COUTINHO, C. N. O estruturalismo e a miséria da razão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972, p. 13. Ver VICO, Giambattista. A Ciência Nova. Tradução de Marco Lucchesi. Rio de Janeiro, Record, 1999, p.487.

17 MARX, K. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. Tradução de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 25. Grifos nossos.

18 HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. 8.ª edição. Tradução de Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 11.

19 COSTA, Emília Viotti da. Coroas de Gloria, Lágrimas de sangue. A rebelião dos escravos de Demerara em 1823. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 19.

20 MÉSZÁROS, István. Filosofia, ideologia e ciência social. Tradução de Ester Vaisman. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 129. Grifos nossos.

21 GINZBURG, Carlo. Relações de força: história, retórica, prova. Tradução de Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 13-14.

22 GINZBURG, Carlos. Relações de força. In: Op. cit., p. 28.

23 Idem, p. 38.

24 Idem, p. 48.

25 Idem, p. 43.

26 BENJAMIN apud SELIGMAN-SILVA, Márcio. A atualidade de Walter Benjamin e de Theodor W. Adorno. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2009, p. 62-63.

27 BENJAMIN apud LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. Tradução de JeanneMarie Gagnebin e Marcos Lutz Müller. São Paulo, Boitempo, 2005 p. 83.

28 COSTA, Emília Viotti da. Coroas de Gloria, Lágrimas de sangue, op. cit., p. 23.

29 CHASIN, J. Rota e Prospectiva de um Projeto Marxista. In Ensaios Ad Hominem 1 – Tomo IV – Dossiê Marx. Santo André: Estudos e Edições Ad Hominem, 2001, p. 72-73.

Antonio Rago Filho

Vera Lucia Vieira


VIEIRA, Vera Lúcia; FILHO RAGO, Antonio. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 41, 2010. Acessar publicação original [DR]

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Violência e Poder / Projeto História / 2009

O tema da violência, sob as mais variadas formas, vem ocupando cada vez maior espaço na historiografia, tanto acadêmica quanto aquela produzida por entidades e organizações voltadas para ações sociais. Debruçam-se os especialistas em análises sobre suas variadas formas, perpassando do campo da criminalidade do Estado, para as que se evidenciam nas relações entre indivíduos ou grupos, sobre o que perscrutam em busca tanto de suas raízes, formas de ser, finalidades objetivas ou ocultas, impactos, quanto na objetivação da posição relativa que ocupam no conjunto das relações societárias.

A perplexidade com que se depara o mundo de hoje ante a aparente contradição entre o avanço do conhecimento humano (tecnologia) e a reincidente barbárie das guerras, dos genocídios e das violações de direitos dos indivíduos [1], particularmente os perpetrados pelos poderes constituídos enquanto Estados, explica o interesse pelo tema que retoma o recorrente debate sobre a relação entre violência e política. Assim a negação sistemática da determinação da natureza de classe dos processos de dominação política expressos no Estado, em prol de uma falsa ampliação da democracia, subsume nas evidências acima apontadas, conforme se observa em artigos apresentados neste número da Projeto História, que analisam tanto as novas formas de pobreza e de iniqüidade, quanto questionam os preceitos da mundialização, a violência dos interesses privados na agressão ao meio ambiente, os limites dos mecanismos de representação democrática e das resolução negociadas e pacíficas dos conflitos, impeditivos da real emancipação dos povos em países subordinados.

No interior das polêmicas historiográficas contemporâneas, observa-se a recorrência tanto aos clássicos que argumentaram sobre a violência enquanto meio necessário à ação política, quanto aos que enfatizam sua condição de inerência à condição humana, com a ressalva que naturalizar a violência resulta no império da anti-política institucional, ou seja, o fim de uma racionalidade que ordenaria a polis [2], o que pode ser referido ao politicismo no uso da razão, conforme já analisado por Hegel.

Para outros, no entanto, a condição de inerência da violência está dada, não na condição humana, mas nas formas objetivas postas na ordenação social ao longo da história, decorrente das condições que têm configurado as relações societárias, particularmente pelo aprofundamento e pela mundialização paulatina do sócio-metabolismo do capital, regido pela apropriação privada impeditivas da planificação do gênero humano, uma vez que se reproduz sob o trabalho alienado. Assim o sentido inexorável da violência, posto nas abstrações primeiras, é substituído pela percepção do caráter histórico, particular a cada contexto e / ou momento em que essa se manifesta, em que pese, aí sim, a aparente identidade do fenômeno. Pode-se tomar, por exemplo, neste sentido, a relação entre norma e punição que se manifesta desde os primórdios das civilizações. Embora sua ordenação seja reconhecida desde a antiguidade, em códices como o de Hamurabi, ou plasmado em um Alcorão, ou no Antigo Testamento, será apenas no bojo da revolução industrial do século XVIII, da emergência do estado Moderno como um subproduto do capitalismo que surge o que se denomina de ciência penal, ou seja, a criminologia, constituída pela política criminal, pelo direito penal, penitenciário, pela psiquiatria forense, pela psicologia judiciária, pela medicina legal, criminalística, com seus respectivos fundamentos epistemológicos e “características de cientificidade”. Como fundamentos esta “ciência” tem o determinismo lombrosiano que fixa o estereotipo delinqüente pela estrutura biológica, apenas minimizada neste mesmo século pela incorporação, nos Estados Unidos, de aspectos do tipo sociológico [3]. Uma criminalização estereotipada que se expressa também em outras institucionalidades “científicas”, como leprosários ou manicômios, por exemplo, tratada com maestria em textos deste número da revista.

Tal normatização criminalística fora precedida pelas reflexões de um Maquiavel, Hobbes ou Weber, apenas para citar os mais reconhecidos, que trataram da violência do ponto de vista da política do dominador, da opressão, no sentido de justificá-la, ou como meio de permanência do poder, ou como necessária à ordem vigente, em que pesem as distinções entre os autores citados. Ao que contrapõe Marx, na radicalidade, quando analisa as relações entre o Estado e a sociedade à luz das evidências constitutivas das relações societárias no capitalismo, as quais nos permitem demonstrar como tal violência é um dos mecanismos que põe em movimento a força política das classes dominantes em defesa, não da humanidade, apesar dos discursos e das leis humanitárias, mas da apropriação privada [4] e de seus interesses mesquinhos, egoísticos e particularistas.

A barbárie das grandes guerras e particularmente da segunda demonstrará para os autores, a necessária “distinção entre a violência repressiva exercida pela dominação e a progressiva violência por liberdade e defesa de direitos”, o que será explorado por autores como Merleau-Ponty, Beauvoir, Fanon e Sartre. [5]

A terceira revolução industrial e a introdução da microeletrônica no processo de produção de mercadorias têm levado a uma verdadeira devastação no mercado de trabalho internacional. Cerca de 1,5 bilhões de pessoas em todo o mundo tornaram-se dispensáveis ao processo produtivo e a tendência é que o desemprego aumente ainda mais nas próximas décadas. Este é um processo irreversível que está mudando o panorama do mundo e atinge não apenas pessoas, mas também países, aprofundando a diferença internacional entre países ricos e pobres e promovendo exclusão em continentes inteiros, como a África, por exemplo. Com isto, levas de marginalizados arriscam-se todos os dias nas fronteiras da Europa e da América do Norte, para tentar entrar no “paraíso” do capitalismo do Primeiro Mundo. E de modo geral, em todas as grandes cidades do mundo mais pessoas empobrecem e vêm engrossar o bloco dos sem moradia e sem trabalho, das pessoas com empregos precários informais e às vezes considerados ilegais, e por isso sujeitos à repressão policial.[6]

Paralelamente, no quadro no neoliberalismo, observamos a diminuição do gasto público em políticas sociais abrangentes e universais. Ao contrário, são propostas e implementadas as chamadas “políticas focalizadas”, projetos que só atingem as comunidades mais miseráveis ou pedaços dela, aparecendo como uma vitrine da boa índole dos governos, o brasileiro, inclusive. Em nosso país, como em muitos outros lugares, o Estado Social vem diminuindo, porém cresce, como complemento de toda essa política, o Estado Penal.[7] Para os marginalizados e excluídos que não se mantém na estrita ordem, o Estado reserva a construção de cada vez mais prisões e a implementação de penas cada vez mais rígidas para os crimes contra o patrimônio dos ricos.

Tanto o aumento da criminalidade e da violência nela contida, como a resposta do Estado Penal são o contraponto dessa situação criada pela mundialização [8] do capital com sua razão manipulatória. Há cada vez menos emprego no mundo e cada vez mais gente marginalizada. Há cada vez menos dinheiro para o Estado investir em políticas que reduziriam as desigualdades sociais, e cada vez mais dinheiro para construir prisões ou aumentar os efetivos policiais. A crise sem precedentes do sistema do capital a partir de setembro de 2008, no coração do sócio-metabolismo, aprofunda as determinações da crise estrutural que lhe é inerente.

A violência que se exerce na esfera pública – a da criminalidade e a do aparelho repressivo do Estado – está, portanto inserida neste contexto. No entanto, se no Brasil ela tem aparecido como subitamente explosiva, há todo um substrato histórico, assentado sobre a estrutura de classes sociais presente nas formações capitalistas, que já indica a possibilidade de tal explosividade. Ela apenas ganhou, sob os efeitos desagregadores das políticas neoliberais, atualidade e com a desagregação das forças sociais do leste europeu, prolongou a utilidade histórica do capital.

Denominada violência institucional tais ações ilegais são praticadas por agentes do Estado, lotados em órgãos públicos que compõem os sistemas de segurança, mas que se destacam por sua função repressora nas diferentes instâncias da federação brasileira. Referem-se tanto às redes de segurança voltadas para a repressão política, quanto as voltadas para as que, instituídas para o controle das contravenções legais que integram o campo da criminologia, cometem, no exercício destas funções, ilegalidades. Só esta afirmação já nos remete a múltiplas considerações, particularmente ante as ponderações de analistas clássicos que discutem a natureza do Estado no capitalismo e a violência, conforme tratado em vários dos textos presentes neste número.

Nos períodos em que vigora a autocracia burguesa institucionalizada, travestida da democracia política, dois fenômenos se manifestam: de um lado, o não reconhecimento do aprisionamento por razões políticas, sendo toda ação deste teor enquadrada como crime comum. Em contrapartida, a lógica de ação vigente nos períodos ditatoriais não se altera, expressando-se no quotidiano das delegacias, nas tramitações e resultados processuais, nas práticas de tortura, nos assassinatos praticados por agentes policiais civis ou militares, apenas por suspeição de possíveis contravenções, ou de pessoas nos cárceres, portanto, sob custódia do Estado, nas denominadas “chacinas” e na impunidade de toda ordem.

Embora levadas a cabo por agentes do Estado, tanto militares quanto civis, não são resultado de iniciativas individuais, mas expressam um complexo integrado por idéias, padrões de comportamento, relações inter-humanas com respaldo de equipamentos materiais e denotam uma dada forma de ser do Estado, afirmativas que se respaldam nas evidências inerentes às informações contidas no imenso acervo documental existente tanto em arquivos públicos reconhecidos como históricos, como nos arquivos de delegacias, nos fóruns da justiça e em inúmeros outros órgãos que guardam a memória das ações dos Departamentos de Segurança Pública nos mais diferentes países, particularmente os latino americanos. Assim, de responsáveis pela segurança da nação, tais órgãos se transformam em sistemas de repressão, cumprindo a função social de coagir, cooptar e proceder à coerção utilizando-se para tanto das mais variadas estratégias na manutenção da autocracia burguesa.

Evidências que já vêm sendo apontadas pela produção acadêmica e congêneres, embora ainda pouco pelos historiadores, particularmente no concernente aos períodos não ditatoriais. Assim, em um primeiro momento, observa-se que a ênfase dos estudos recaía na análise da repressão e das arbitrariedades do Estado nos períodos ditatoriais, quando a função de segurança nacional incorpora a da repressão política. Mais recentemente vêm se destacando a emergência de uma produção intelectual voltada para analisar a continuidade da institucionalização destes órgãos e de suas práticas repressivas em períodos não ditatoriais, isto é, denuncia-se a permanência de investidas do Estado que confrontam a vigência dos direitos humanos e a ordem constitucional. [9]

O preceito identificado é o de que a segurança nacional significa estar vigilante e atacar preventivamente, não apenas iniciativas que se configuram, para a ordem vigente, como inimigos externos, mas também aqueles que são indicados como inimigos internos o que abrange uma enorme gama de pessoas e situações.

Tal perspectiva encontra respaldo na historiografia que analisa a posição dos militares na sociedade, assim como a dos policiais civis e militares em tempos de democracias, e que concluem que estes atuam com autonomia em relação ao governo e em relação aos diferentes segmentos da sociedade.[10]

Quanto às evidências da articulação dos militares com determinados segmentos da sociedade civil, alguns autores consideram que se trata de um acordo entre classes, já que os militares comporiam uma classe à parte.[11]

Uma crítica radical a tais posturas demonstra como em sociedades cujo desenvolvimento das forças produtivas capitalistas tem suas origens na particularidade da organização colonial e do trabalho escravo é hiper-tardio, a fragilidade da burguesia tornou-a incapaz de proceder à necessária revolução burguesa, rompendo com a dominação de classe oligárquica, com o apoio, mesmo que momentâneo, dos segmentos populares. Não por acaso observa-se neste volume a incidência de reflexões sobre ditaduras e institucionalidades autocráticas, assim como sobre a banalização da violência por agentes do Estado.

Expressão, conforme alguns dos autores, de formas particulares da autocracia burguesa que se constituíram-se em dominações exercidas de modo indireto pelo conjunto da burguesia, pelas armas, subjugando, castrando ou atrelando os poderes legislativo e judiciário. Esta estrutura de poder montada sob um executivo absolutizado, forte, ditatorial, foram capturadas por Marx e Engels em suas análises históricas do poder imperial de Napoleão III e de Bismarck no período guilhermino, na segunda metade do século dezenove. Em suas reflexões ontológicas, Marx apontava para esse executivo forte que atua no sentido de desmanchar as formas democráticas, pelas quais as classes sociais podem se contrapor com seus interesses antagônicos.

Está claro que é preciso acima de tudo diferenciar as circunstâncias e especificidades históricas do bonapartismo clássico com relação aos bonapartismos brasileiro e latinoamericanos, formas particulares identificadas às ditaduras militares. A figura de um aventureiro e oportunista no poder como ocorre no segundo império francês, ou a presença marcante de um estadista do porte de Bismarck, certamente, não encontram paralelo em nossa realidade. Há que atentar que não se trata de uma colagem histórica, mero recurso analógico de empréstimo de figuras. Trata-se de, nas palavras de Marx, compreender a lógica específica de um objeto específico.

Na história brasileira, a entificação do capital não se verificou por um amplo processo democrático de massas. A via colonial desconheceu processos instauradores que conformaram um regime democrático-burguês consolidado. Ao contrário, na particularidade brasileira, nasce uma burguesia cuja potência auto-reprodutiva é extremamente limitada, não possuindo uma dinâmica própria que pudesse efetivamente representar os interesses das demais categorias sociais. É graças a essa determinação histórica, à sua incompletude de classe do capital, que se constitui o capital atrófico, com suas características particularista e exclusivista:

Desprovido de energia econômica e por isso mesmo incapaz de promover a malha societária que aglutine organicamente seus habitantes, pela mediação articulada das classes e segmentos, o quadro brasileiro da dominação proprietária é completado cruel e coerentemente pelo exercício autocrático do poder político. Pelo caráter, dinâmica e perspectiva do capital atrófico e de sua (des)ordem social e política, a reiteração da excludência entre evolução nacional e progresso social é, sua única lógica, bem como, em verdade, há muito de eufemismo no que concerne à assim chamada evolução nacional.[12]

Notas

1. BRICEÑO-LÉON, Roberto (2002) La nueva violencia urbana en América Latina, Dossiê Sociologias, nº 8, Porto Alegre jul. / dez. http: / / www.scielo.br / scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517- 45222002000200003&lng=pt&nrm=iso

2. FRAZER, Elizabeth and HUTCHINGS, Kimberly. On politics and Violence: Arendt against Fanon. Contemporary Political Theory. Feature Article: Political Theory Revisited, 7, Doi:10.1057 / palgrave. cpt.9300328, 2008, pp. 90-108.

3. MARTINO, Paolo di. Criminologia. Analisi interdisciplinare dellla complessità del crimine. Studi Superiori. Universitá e Specializzazioni. Prefazione di Pier Luigi Vigna. Napoli, Edizioni Giuridiche Simne, 2009.

4. MARX, Karl. A burguesia e a contra-revolução (1848), As lutas de classe em França de 1848 a 1850 (1850) e O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte (1852).

5. FRAZER and HUTCHINGS, op. cit..

6. “Según la CEPAL, el desempleo en la región pasó de 5,7% en 1990 a 9,5% en 1999, pero lo que llama la atención no es tan sólo el incremento de los desocupados, sino la particularidad de los nuevos trabajos, pues de cada diez empleos que se crearon en la región entre 1990 y 1997, siete (6,9 exactamente) se originaron en el sector informal (CEPAL, 1999). Es decir, ocurre una doble exclusión laboral, pues hay menos empleos y aquellos que surgen tienen un carácter tan precario como su condición de informalidad lo sugiere.” BRICEÑO-LÉON, R., op. cit., p. 7.

7. BATISTA, Nilo (2003). “Todo crime é político”, entrevista à revista Caros Amigos, nº 77, agosto.

8. Publicação do Centro de Estudios Legales y Sociales (CELS), da Argentina caracteriza esta situação da seguinte maneira: “Así, la velocidad con que se marcan algunos rasgos del “Estado policial” contrasta com la pereza con que se recobran ciertas notas del “Estado social”. CELS. Políticas de seguridad ciudadana y justicia social. Buenos Aires, Siglo XXI, 2004, p. 7.

9. CARDIA, Nancy. Transições democráticas: continuidades e rupturas; autoritarismo e democracia: desafios para a consolidação democrática, in: PINHEIRO, Paulo Sergio (et ali) Continuidade autoritária e construção da democracia. Relatório final da pesquisa. Fapes / CNPq / Fundação Ford USP: NEVE, 1999, pp. 11 a 37.

10. FERNANDES, Heloisa. Os militares como categoria social. São Paulo, Global, 1978. OLIVEIRA, Eliezer Rizzo de. As forças armadas: política e ideologia no Brasil. Petrópolis, Vozes, 1987. PEREIRA, Maurício B. Estado Novo: a constituição das bases do partido militar e do projeto Brasil Potência. Premissas. Caderno do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp. v. 1997, pg. 15-16. STEPAN, Alfred. Ao militares na política. Rio de janeiro: Arte Nova, 1975. FICO, Carlos et ali. Ditadura e democracia na America Latina. Balanço Historiográfico e perspectivas. Rio de Janeiro: FGV, 2008.

11. PIERANTI, Octavio Penna, CARDOSO, Fabio dos Santos, SILVA, Luiz Henrique Rodrigues da. (2007). Reflexões acerca da política de segurança nacional: alternativas em face das mudanças no Estado. RAP Rio de Janeiro 41(1): 29-48, Jan. / Fev., pp. 30 a 48.

12. CHASIN, J. A sucessão na crise e a crise da esquerda. Revista Ensaio. São Paulo, Ensaio, nº. 17 / 18, 1989, p. 49.

Antonio Rago Filho

Vera Lucia Vieira

Editores Científicos


VIEIRA, Vera Lúcia; FILHO RAGO, Antonio. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 38, 2009. Acessar publicação original [DR]

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Lutas Sociais e Cultura Política / Projeto História / 2009

Os esforços de divulgação da Projeto Historia pelo corpo docente que compõem o seu conselho, particularmente na região latino americana, vêm ampliando o universo de colaboradores da revista que assume assim, cada vez mais, um caráter internacional.

A temática sobre lutas sociais e cultura política surge como a síntese das colaborações de especialistas que propiciam ao leitor adentrar a uma historiografia que adentram a aspectos antes pouco enfatizados anteriormente.

Deve-se em grande parte esta renovação aos esforços de aprofundar as reflexões sobre a diversidade e as identidades latino-americanas na contemporaneidade particularmente decorrente, por um lado, da posição que os países da região adquirem ante a mundialização do capital e dos esforços de integração regionais e, de outro, pela ampliação do acesso às fontes documentais, propiciado pela informatização de incontáveis acervos públicos e privados os quais trazem à tona novas evidências históricas ou simplesmente permitem reforçar ou redimensionar evidências já analisadas. “

Nadie ne manda a mi, yo soy el mandón de otros”,[1] assim resume o autor que discute a utopia de um direito que se torna inalienável desde os primórdios da colonização européia na America – o do direito individual que se sobrepõe ao direito coletivo, advindo de um direito de procedência arrogada pelos representantes da ordem nas Índias – que incluem as Américas. Um direito que funda a aura autocrática dos governos patriarcais que passaram a regular o metabolismo sócio-econômico e cultural geradora de uma sociedade de servos, escravos, concubinatos e clientes de toda ordem e que confere à formação dos estados nacionais latino-americanos, no pós-independência, singularidades no interior do liberalismo que grassava no mundo ocidental desde os idos do século XIX.

Após as independências, distantes de suas duas fontes de legitimidade – Deus e o Rei -, os governantes radicados nas Américas interpretam os códices ao seu livre arbítrio e definem os termos da coexistência, das colaborações e das soluções às contradições. É como uma lógica fundamental e inerente à constituição destas sociedades: a política é o direito da autoridade, do governante decidir sobre as políticas de contenção social, sobre as soluções jurisdicionais.

A cultura política que se instaura radicaliza a constatação de Marx, de que

o Estado deixa que a propriedade privada, a cultura, a ocupação ‘atuem a seu modo’, ou seja, como propriedade privada, como cultura e como ocupação, e façam valer sua natureza ‘especial’. Longe de acabar com estas diferenças de fato, o Estado só existe sobre tais premissas (…). Onde o Estado político já tiver alcançado seu pleno desenvolvimento, o homem leva,- não só no plano do pensamento, da consciência, mas também no plano da realidade, da vida,- uma dupla vida: uma celestial e outra terrena, a vida na ‘comunidade política’, na qual ele se considera um ‘ser coletivo’, e no da ‘sociedade civil’, na qual ele atua como ‘particular’; considera os outros homens como meios, se degrada a si mesmo como meio e se converte em joguete de poderes estranhos.[2]

As características dessa cultura política, inicialmente entendida como uma via de mão única, pela qual os mandatários locais reinóis ou criollos lideravam a condução do processo colonial, vêm sendo aprofundadas pela historiografia recente, ante as evidências de que forças sociais múltiplas, de magnitudes distintas e procedências diversas contribuíram para as resultantes constitutivas das latinidades que compõem o continente. É o que se observa, por exemplo, sobre as reações contra as independências as quais advieram, não apenas de monarquistas, mas também dos segmentos que, embora possuidores de bens materiais e de patrimônios se vêm excluídos do acesso aos benefícios conforme propostos nas Constituições ou normas legais que passam a gerir Estados em formação.

Inicialmente denominadas simplesmente de conservadoras, a evidência de que muitos eram integrantes de nações indígenas que, além de serem grandes comerciantes e produtores possuíam força militar, possibilita novas reflexões dos historiadores. A partir daí, a participação de tais povos nos processos independentistas passa a ser analisada a partir da perspectiva de sua força social e não mais como simplesmente subordinada ao mandonismo criollo, além de verem sob nova ótica suas reações ante a iminência de perder direitos conquistados ainda sob o jugo colonial.

As novas autoridades que surgem radicalizam o mandonismo que subordina tudo aos interesses da lógica do capitalismo subordinado e dependente da órbita do centro desenvolvido, cujo cérebro naqueles fins do século XIX estava na Inglaterra. A crise ibérica já há muito não fazia frente à lógica da industrialização e comercialização que demandava das burguesias emergentes nas Américas apenas uma complementação na cadeia produtiva, com matérias primas e alguns produtos manufaturados. Tornava-se imprescindível produzir em larga escala para exportação e, por outro lado, eliminar a capacidade de atendimento às demandas internas com produtos locais.

Para situar a los países de la América hispana en la nueva orbita de dominación inglesa se tuvieran que producir dos movimientos simultáneos, pero no paralelos sino contradictorios: por un lado –el político- constituir entidades políticamente soberanas- un avance-, y por otro –el económico- destruir en las más destacadas de ellos el grado de desarrollo manufacturero artesanal que habían alcanzado, para configurarse únicamente como proveedoras de productos primarios- un retroceso-. Los dos movimientos combinados produjeron, también, el mal de la fragmentación.[3]

Tal condição de dependência e subordinação tantas vezes denunciada, o autor venezuelano, presente nesta edição, traz pelas palavras de Che Guevara, que, como muitos, buscaram alternativas de cunho socialista como solução. Destaca-se que este último, já na década de 1960, considerava, diversamente ao especialista citado acima, que

la soberanía política y la independencia económica van unidas. Si no hay economía propia, si se está penetrado por un capital extranjero, no se puede estar libre de la tutela del país del cual se depende, ni mucho menos se puede hacer la voluntad de ese país si choca con los grandes intereses de aquel otro que la domina económicamente.[4]

Na cultura política gestada desde as independências, a apropriação privada do poder público transmuta bandeiras tradicionalmente defendidas pelos movimentos que lutam pelo acesso aos direitos fundamentais do homem, em benesses para os privilegiados. Assim, por exemplo, os novos donos do poder promovem reformas agrárias que transformam policulturas coletivas em monoculturas privadas. Enquanto no período colonial, particularmente após a época bourbônica, as reclamações das comunidades indígenas contra a expropriação de suas terras pelos reinóis podiam resultar na manutenção de suas herdades, particularmente quando comprovavam que eram os que realmente as cultivavam; no período pós-colonial os julgamentos passam a ser efetivados por novos juízes, agora subordinados não mais a uma coroa distante, mas vinculados aos novos donos dos estados em constituição. No período colonial, antes, portanto, da revolução industrial, as metrópoles expropriavam as matérias primas, mas as demandas internas de produtos manufaturados continuaram a ser supridas por quem detinha a condição de produtor, por quem dominava a tecnologia, conhecia as rotas, organizava as feiras de artesanato e as ofertas de produtos da terra. Aos reinóis e aos criollos burocratas interessava mais assumir postos na administração, nos comandos das milícias, no sistema judiciário, na hierarquia da Igreja católica. Embora não deixassem de lado qualquer oportunidade para se apossarem das terras mais produtivas, quando as comunidades conseguiam levar à coroa suas denúncias, muitas conseguiam fazer valer seus direitos ancestrais por decisão de suas majestades. Assim a metrópole não apenas punha rédea ao poder dos reinóis e criollos, como também garantia que o abastecimento das demandas internas se mantivesse num fluxo razoável e, portanto, evitava mais focos de rebeliões.

Com as independências, eliminado este poder exterior que funcionava como uma espécie de contendor dos conflitos internos, a construção das novas nações experimenta a radicalidade das contradições, não apenas entre as classes, mas também no interior de segmentos que compõem as burguesias locais, tanto agrárias, quanto comerciárias e produtoras. O não reconhecimento da capacidade produtora e comerciária das comunidades locais reduziu, por anos, a percepção historiográfica sobre das lutas sociais que se instauram no momento da construção das nações.

Ficaram assim, subsumidas à luta política contra a metrópole, tais intencionalidades que conferem um caráter particular às lutas sociais da região ao longo de quase um século e mais, ocultaram a qualidade de produtores e comerciantes das comunidades nativas, capazes de manter uma economia quase autônoma à região, ao longo de todo o período colonial. E isto apesar de todas as perseguições, destruição de sua cultura, genocídios e massacres.

Tais leituras estigmatizaram também as lutas advindas dos povos africanos radicados e escravizados nas Américas, de que é um exemplo a revolução haitiana, cujo autor, neste numero da revista, destaca a importância histórica da região na transformação do capitalismo em um sistema econômico mundial, de “explotación integrado por metrópolis europeas y colonias caribeñas. A partir de entonces, esta región contribuyó, al tránsito y desarrollo de las etapas evolutivas del capitalismo. Es decir, al paso de la fase mercantil- manufacturera a la industrial y de ésta a la imperialista”. Etapas durante las cuales, el territorio que hoy denominamos Gran Caribe, sistemáticamente ha sido objeto y sujeto de de interés para las potencias capitalistas, resultado de lo cual, las entidades que integran esa área han sido subordinadas y explotadas por dichos imperios”. Sob o signo da liberdade e da igualdade as Américas independentes promoveram reformas agrárias que eliminaram o direito à produção e apropriação coletivas que às duras penas os povos nativos de muitas regiões do continente haviam granjeado, ainda sob os auspícios dos reis e mesmo da Igreja católica.

A percepção destas relações entre a coroa e os povos nativos pela historiografia recente não se contradita com as evidências do trato violento dos monarcas na America, conforme aponta o autor presente nesta revista que nos fala sobre o Brasil colônia. Conforme ele, a “violência foi uma ferramenta fundamental das autoridades (e da própria Coroa) inclusive para estabelecer alianças e compelir os índios ao serviço dos moradores portugueses. É que, como se procura apresentar neste texto, apesar da legislação instituída pela própria Coroa, a política em relação aos índios adaptou-se às circunstâncias concretas, mais do que a princípios gerais”.

A diversidade de circunstâncias inerentes aos processos independentistas instaura, portanto, uma nova lógica de dominação que, embora gestada no interior do jugo colonial espanhol e português, a ele ficara subsumida.

Após as independências, quando os interesses de determinadas oligarquias regionais se unem aos das nações industrializadas nada se contrapõe a esta nova correlação de forças que esmaga qualquer veleidade de desenvolvimento autônomo ao longo do século XX. Conforme apontam os autores, o desenvolvimento econômico experimentado pelas recém formações nacionais resulta no aumento da miserabilidade de sua população, na proporção direta da industrialização e da introdução de novas relações produtivas.[5]

A cultura política que resulta desta nova configuração do poder confronta-se com os anseios das mais distintas populações na região, anseios estes liberados pela perspectiva que, em tese, se punham com as independências.

Por tal configuração a violência integra de forma inerente o metabolismo social resultando em uma sociedade que se arma, tanto para a defesa de seus interesses materiais, quanto para confrontar um estado também bélico, que se impõe ditatoriamente ao longo do século XX, na maior parte dos países que surgem da fragmentação independentista. Por isto as abstrações constantes em um dos artigos que compõe esta edição, explicitam bem, não apenas a particularidade analisada, mas poderia estar referida a muitas outras na região. Conforme diz o autor, a “história da região mato-grossense até meados do século XX foi literalmente a história de um povo armado. Desde a penetração dos sertanistas paulistas, as relações de violência ficaram estabelecidas no confronto com uma natureza hostil, com o nativo da região e pelas disputas fronteiriças. No século XX, a região foi tumultuada por um nativismo exacerbado e violento. Depois, a parte sul foi envolvida no grande conflito com Paraguai. Herdando essas fortes raízes, surgidas a partir da convivência com a violência, nas primeiras décadas do século XX a região ficou marcada pelo domínio de coronéis e de bandidos”.

Tal violência é de tal forma inerente à formação da nova ordem oligárquica que, mesmo quando politicamente se alteram estruturas ou se implantam novas instituições com a intencionalidade, pelo menos expressa, de minimizar tal configuração. É o que conclui, por exemplo, a análise de outro autor sobre a mesma região, mas já na década de 1930. Esta demonstra, a partir de textos de um jornalista deste período para o qual as novas instituições implantadas pelo “novo regime” getulista seriam incapazes de mudar o quadro histórico de violências vigente. Conforme ela, o jornalista

não vislumbrou, possivelmente, qualquer papel que o novo governo, por meio de uma política que mudasse as estruturas econômicas e culturais, desempenharia para a superação da situação de violência que, com tanta força e indignação, (ele) narrou. Por isso, resumiu-se à exposição aberta dos problemas fronteiriços, gerados pela violência dos poderosos, pelo banditismo e pelo abandono do Estado.

Mesmo quando a intervenção do Estado faz valer o texto da lei, os resultados de sua aplicação demonstram a que interesses atende. O exemplo esta concretude observa-se nas reflexões deste numero, particularmente o artigo que demonstra como a legislação que dispunha sobre a tutela de menores, filhos de ex-escravas ou mulheres solteiras pobres, dificultava ou mesmo impedia que a luta das mulheres para obter a guarda de seus filhos junto à justiça atendesse às suas justas demandas. Embora tal legislação viesse no sentido de proteger o menor desvalido da exploração do trabalho por fazendeiros e membros da elite, conforme diz o autor, na realidade a tutela do estado corroborava com tal exploração.

Configura-se assim um tecido social cujas relações desumanizadas se expressam em todas as dimensões societárias, desde as relações públicas que, em princípio, se dedicam ao desenvolvimento humano, até as familiares. Para exemplificar a violência presente nestas dimensões, nada melhor do que o exercício da pedagogia, seja ela tomada como atributo escolar, seja como educacional, tanto na esfera publica, quanto na privada. Conforme diz o autor aqui presente,”desde el discurso pedagógico podemos introducirnos en las complejidades del entretejido social. Las críticas, censuras y reprensiones de conductas infantiles en las escuelas, así como de determinados comportamientos a escala social, dejan entrever realidades codificadas no como deseables, pero realidades al fin”. Analisando, como desde o século XVIII até meados do início do século XX, práticas pedagógicas violentas vigentes em escolas cubanas, recupera para o publico leitor uma bibliografia inédita que, pari passu a estes tempos, já as denunciava como estratégias de dominação, subordinação e de quebra da dignidade humana. Conforme ressalta um dos autores referidos em seu artigo, “el castigo físico estaba generalizado y aprobado en Cuba al igual que en el resto de las colonias españolas. El proverbio de Salomón: Qui bene amat bene castigar y que “golpeando con la vara a tu hijo no morirás” haría de la vara -más tarde instrumento de piedad- una de las herramientas predilectas para imponer severos castigos, junto con el bastón y el látigo”.

Por isto talvez não cause espécie ao leitor deste numero da revista, a demonstração da violência que se manifesta nas relações pessoais, privadas, afetas aos círculos das relações pessoais, que perpassam o quotidiano da vida, o dia a dia que, mesmo situado no campo dos afetos, traduz o esgarçamento social. Refere-se o autor à violência presente no interior da convivência amásia e matrimonial. Homens e mulheres, segundo ele, executavam diversas modalidades de agressões, sempre interligadas com a tentativa de manutenção das relações de poder e força, manifesta em diversas gradações e escalas.

Esperamos que a leitura do presente dossiê instigue a comunidade de autores voltados para os estudos sobre as relações entre os movimentos sociais e a cultura política na região e no mundo, a novas reflexões e aprofundamentos.

Notas

1. STERNS, Steve J. Paradgms of conquest, Journal of Latin American Studies, The colonial and post-colonial experience. Guest Editor: DONGHI, Halpherin, vol. 24, Cambridge University Press, 1992, p. 9.

2. MARX, Karl. A questão judaica. 2º ed. São Paulo, Morais, 1991. p. 37-41.

3. CÓRDEN, JOSÉ Luis Rubio. La rebeldía artesanal frente a la neocolonización de América del sur in SOLER, ROSÁRIO Sebilla (coord.) Consolidación republicana en América Latina. Sevilla, Consejo superior de Investigaciones científicas de Escuela de Estudios Hispano-americanos, 1999, p. 133.

4. GUEVARA, Ernesto (Che). Soberanía política, independencia económica. Conferencia pronunciada en La Habana, el 20 de marzo de 1960. Archivo Chile: historia político social – movimiento popular. CEME. Centro de Estudios Miguel Enríquez. http: / / www.archivochile.com / America_latina / Doc_paises_al / Cuba / Escritos_del_Che / escritosdelche0017.pdf

5. OUWENEEL y Arij & TORALES PACHECO, Cristina. Empresàrios, indios y estado. Perfil de la economía mexicana (siglo XVIII) in Latin America Studies (CEDLA), nº 45, USA, FORIS Publications, 1988. PEREZ BRIGNOLI, Hector. Breve historia de centroamérica. Madrid, Alianza Editorial, 1985.

Vera Lucia Vieira

Antonio Rago Filho


VIEIRA, Vera Lúcia; FILHO RAGO, Antonio. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 39, 2009. Acessar publicação original [DR]

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História e Religiões / Projeto História / 2008

Nos anos 80 a historiografia brasileira assistiu à emergência do interesse dos historiadores por temáticas relacionadas com igreja, catolicismo e com as práticas e crenças religiosas tanto no passado colonial como no século XIX e XX. Rompia-se assim com certo desinteresse dos historiadores e historiadoras leigos de formação acadêmica com respeito ao religioso, constituindo uma alternativa à abordagem representada por uma historiografia de caráter eclesiástico (por vezes mais identificada com a instituição, por vezes crítica como a CEHILA), gerada ao interior das igrejas católica, metodista, luterana, baptista.

Tal interesse de novas gerações de historiadores se configurou claramente no levantamento feito pela ANPUH sobre a produção dos programas de pós-graduação na segunda metade dos anos 80 e na primeira metade dos anos 90, onde se constou um número expressivo de dissertações e teses sobre a temática religiosa. Embora se abordasse outras igrejas além da católica e outros aspectos além dos eclesiásticos, ainda se tratava de uma historiografia definida pelo estudo do cristianismo, em particular da igreja católica e de forma especial as relações desta com o Estado. Também essa primeira historiografia acadêmica se esforçava por localizar as igrejas no seu contexto histórico e por abordá-las a partir das relações travadas ao interior dos diversos grupos sociais.

Nesse início do século XXI a produção historiográfica a respeito do religioso não apenas se manteve, mas vem se ampliando regionalmente e diversificando seus temas, recortes e períodos. Expressivas revistas de História, como a Revista Brasileira de História, editada pela ANHPU ou a revista Tempo, da Universidade Federal Fluminense, só para mencionar algumas, dedicaram no início dos anos 2000 números centrados em temáticas relacionadas com religião. Em 2008 foi fundada a revista eletrônica, Revista Brasileira de História das Religiões, que tem editado três números por ano.

Na procura de espaços próprios para discutir a pesquisa, surgiu em 1999, por iniciativa de historiadores de diversas universidades, a Associação Brasileira de História das Religiões, associada à International Association for History of Religions, que até agora constitui um importante espaço de apresentação de pesquisas que envolvem o tema, abordadas desde a História, a Sociologia, a Antropologia e as Ciências da Religião.

Finalmente, em 2005 foi constituído ao interior de ANPUH o GT História das Religiões e das Religiosidades que tem-se reunido todos os anos com um número sempre crescente de comunicações sobre aspectos religiosos desde uma perspectiva histórica. Ainda, desde 2003 se realiza em Mato Grosso do Sul, a cada três anos, um Simpósio Internacional sobre Religiões, Religiosidades e Cultura, onde a presença de historiadores é expressiva.

Para o simpósio de ANPUH de 2009 em Fortaleza, foram aprovados seis simpósios centrados em análises sobre religiosidades, nos quais deverão ser apresentados mais de cem trabalhos que, além dos temas já conhecidos, devem incluir comunicações sobre religiões de origem africana, espiritismo, pentecostalismo, outras e novas práticas religiosas. Todas as regiões de Brasil aparecem através de trabalhos, que apontam para grupos consolidados, que há tempo participam dos simpósios das regionais de ANPUH. Também os períodos estudados se diversificam acontecendo o mesmo com as abordagens teóricas e metodológicas. Em grande parte essas comunicações serão apresentadas por jovens historiadores, homens e mulheres, sendo que muitos deles não seguem em termos de fé as tradições religiosas que estudam. Se isto pode ser explicado como decorrência da criação de mais cursos de pós-graduação em História nas diferentes regiões do Brasil, aponta também para o que vimos insistindo: a manutenção do interesse pela temática religiosa nas novas gerações de historiadores e historiadoras, independente de crenças ou seguimentos religiosos.

Outro fator que pode explicar o interesse crescente dos pesquisadores sobre a área é a aparente contradição entre a diminuição gradativa do que poderíamos denominar religiões tradicionais no Brasil – o catolicismo, o luteranismo e a umbanda –, conforme veem apontando todos os censos realizados nos últimos anos, e o vertiginoso crescimento do sentimento de religiosidade expresso na busca pelo sagrado, pelo divino, pela espiritualidade. Tal fenômeno, afirmam os estudiosos, não se expressa apenas no Brasil, configurando-se como um fenômeno mundial. Daí a questão: constitui tal religiosidade um contraponto a um mundo cada vez mais racionalmente explicado, o fenômeno do “desencantamento do mundo” explicado por Max Weber, ou expressa uma insegurança ante a dimensão do ainda incognoscível? Ou do irracionalismo em suas formas mundanas que atravessa a crise estrutural da sociabilidade do capital? Confunde-se com a busca de um mundo mais humanista, ante a desagregação das relações societárias, ou trata-se da manifestação de uma espiritualidade inerente à condição humana?

Pois no mundo de hoje tal ressignificação do campo do religioso, cujo entendimento a pesquisa busca, se expressa em crenças, conceitos, valores e práticas cujas denominações são tanto difusas, quanto novas ou remontam à tempos muito remotos. Se no século XIX a perspectiva da separação entre o mundo privado e o público levou a institucionalidade religiosa a se confrontar com o Estado que se pretendia laico, naquele mesmo momento, já apontava o autor, tal perspectiva se punha como um falso teorema, pois o Estado era inerentemente religioso, se a população se mantivesse crente.

Tantos e tais dilemas são os que confrontam os analistas e, cuja produção, aqui no Brasil, nos remete a uma outra ordem de questões: há no Brasil um campo de produção do conhecimento que possa ser nomeado de História das Religiões? A produção historiográfica destes 20 anos aponta para um método que se possa diferenciar do utilizado na produção da História Cultural ou das abordagens feitas pelas Ciências da Religião? Os historiadores que trabalhamos com religião teríamos condições de apontar para especificidades que caracterizariam os percursos históricos das religiões entre nós? Interessa para os historiadores que pesquisamos sobre religiões no Brasil nos inscrevermos numa das tradições que se definem como História das Religiões?

Estas indagações, perseguidas a cada ano no contexto da disciplina História das Religiões no Brasil e na América Latina, no Programa de Pós-Graduação das Ciências da Religião da PUC, originaram, entre outras idéias, a de propor aos editores da Revista Projeto História, do programa de pós-graduação em História da PUC-SP, um número com o eixo História e Religiões. Estas perguntas a propósito de nosso campo historiográfico guiaram também a organização do Dossiê, adotando-se três critérios para selecionar os artigos: artigos gestados a partir de pesquisa ou reflexão teórica e metodológica de caráter historiográfico; artigos com reflexões teórico metodológicas que reflitam os diversos entendimentos que existem entre nós do que supõe fazer história das religiões; artigos que contemplem diversas religiões no Brasil, diversos períodos e diversas regiões.

Assim, no primeiro bloco deste número da Revista Projeto História reunimos quatro artigos com preocupações teórico metodológicas que apontam para duas tradições ou formas de abordar a História das religiões na Europa. Os artigos de Luiz Alberto Sciamarella Santanna, Virgínia A. Castro Buarque, Antonio Paulo Benatte, dialogam com autores franceses, em grande parte conhecidos dos historiadores brasileiros. Já, Adone Agnolin, examina as contribuições para o estudo das religiões da chamada escola de Roma ou escola italiana da História das Religiões, que muito pouco conhecida entre nós. Para auxiliar no entendimento desta história das religiões italiana, realizamos também uma entrevista (que abre o número) com Nicola Gasbarro, professor da Universidade de Udine e um dos atuais maiores expoentes dessa escola. Esperamos que estas contribuições possam auxiliar na reflexão teórica a propósito da História das religiões e se juntem a outros materiais já existentes.

Dando seqüência, outro conjunto de artigos foi escolhido por demonstrar como os historiadores estão trabalhando as diversas religiões e em distintos períodos. Dois deles, o de Juarez Donizete Ambires e o de Lina Gorenstein, se localizam no período colonial, o primeiro analisando as práticas e representações da sociedade na América Portuguesa no final do século XVII, através dos textos de dois jesuítas, padre Vieira e padre Antonil. Já Lina Gorenstein, examina, praticamente no mesmo período, a situação do criptojudaismo feminino no Rio de Janeiro. A seguir se encontra um conjunto de artigos sobre o século XIX e o início do século XX. O primeiro de Vanessa Ribeiro Simon Cavalcanti e Bárbara Maria Santos Caldeira que, servindo-se da imprensa, recuperam a visão que se tinha da procissão do Senhor Morto na Bahia do século XIX. Depois Roberto di Estefano, desde uma perspectiva ibero-americana, examina as dissidências religiosas e a secularização no século XIX. Ainda, Lyndon de Araújo Santos, também na perspectiva da América Latina, dá continuidade ao artigo anterior avançando no tempo, ao examinar os usos e sentidos conferidos ao protestantismo e a modernidade na transição do século XIX para o XX.

No artigo seguinte Arhur Cezar Isaia, trabalhando com fontes relativas à Umbanda, aponta para as relações ali evidenciadas entre ética e religião. Outros dois artigos abordam aspectos do catolicismo contemporâneo: o de Marcos Cezar de Freitas se refere à presença da religião na configuração do campo religioso brasileiro e o da Solange Ramos de Andrade trata da dimensão martiríal das recentes devoções populares. Finalmente José Otávio Aguiar e Rodrigo Wolff Apolloni, trabalhando também com o século XX, introduzem a consideração de outra expressão religiosa presente entre nós: o budismo, considerado através da influência nas artes marciais da tradição do mosteiro de Shaolin no Brasil.

Pretendemos suprir carências de artigos sobre religiões como o Candomblé e outros importantes universos religiosos, com as comunicações de pesquisa e as resenhas. Esperamos assim estar, pois, contribuindo para a consolidação e o fortalecimento da pesquisa em História das Religiões.

Fernando Torres-Londoño

(Organização)


TORRES-LONDOÑO, Fernando. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 37, 2008. Acessar publicação original [DR]

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Nacionalismo, Internacionalismo e Ideologias / Projeto História / 2008

O conjunto de traduções, artigos e notícias de pesquisa que aqui se encontra disposto nesse novo número da Projeto História, apresenta um leque bastante variado, plural e com temporalidades distintas acerca da natureza histórica das ideologias, formas específicas do nacionalismo e do internacionalismo. O leitor encontrará em nossas páginas temas complexos que investigam as tradições culturais, as personagens históricas, os protagonistas históricos, grupos sociais e frações de classe que se empenharam na defesa e consolidação dessas ideologias. Da relação entre nacionalismo e internacionalismo na Argentina dos tempos da primeira guerra mundial ao massacre dos estudantes em Tlatelolco, no México no emblemático ano de 1968, das canções folclóricas de Atahualpa Yupanqui apropriada pelo peronismo aos sentidos dissonantes do hino dos trabalhadores “A Internacional” na guerra civil espanhola, do papel do futebol brasileiro na pena de Nelson Rodrigues às posições nacionalistas de Leonel Brizola, nos episódios que antecedem a instauração de golpe de estado de 1964, expressas no periódico O Panfleto – o jornal do homem da rua. Pesquisas que desnudam as tradições culturais, formas específicas do nacionalismo e sua barragem pela força da ideologia neoliberal e a mundialização do capital.

Desde os processos revolucionários desencadeados no século XVIII, a burguesia francesa introjetou a concepção das “fronteiras nacionais”, almejando vingar suas concepções e diretrizes contra o ordenamento societal do “Antigo regime”. Todavia, é sabido que se o iluminismo elaborou uma visão do mundo que preparava o processo revolucionário, após os intentos dos trabalhadores nas revoluções de 1848, a contra-revolução desenvolveu medidas corretivas e preventivas para a manutenção da ordem que, no plano filosófico, cristaliza o positivismo.

A ideologia não se reduz a mera “falsa consciência”, mas numa sociedade classista se manifesta como consciência ontoprática que nasce dos embates e conflitos sociais. Os nacionalismos buscaram coesão e harmonização de interesses antagônicos a fim de manter o controle do metabolismo social. Ao discutir a ideologia nacionalista, Ernest Gellner enfatizou a função manipuladora da realidade que ela opera, em especial por sua fabricação de mitos e ilusões sociais, seja por se apresentar como defensora da cultura popular ou mesmo se apoiar num passado idilicizado. “A Alemanha pré-nacionalista estava formada por uma multiplicidade de comunidades autênticas, muitas delas rurais. A Alemanha pós-nacionalista unificada foi uma sociedade de massas e preponderantemente industrial”.[1]

O historiador Eric J. Hobsbawm advertiu que não devemos considerar a nação como uma forma social originária ou imutável. “A ‘nação’ pertence exclusivamente a um período particular e historicamente recente. Ela é uma entidade social apenas qundo relacionada a uma certa forma de Estado territorial moderno, o ‘Estado-nação’; e não faz sentido discutir nação e nacionalidade fora desta relação. (…) Em uma palavra, para os propósitos da análise, o nacionalismo vem, antes das nações. As nações não formam os Estados e os nacionalismos, mas o oposto.”[2]

Uma das perspectivas que se tornaram mais disseminada e não menos polêmica no mundo acadêmico encontra-se nas concepções de Benedict Anderson na obra intitulada Comunidades Imaginadas [3] . Numa perspectiva antropológica, intentando esclarecer as raízes históricas do nacionalismo, Anderson propõe uma definição de nação como o próprio estilo como ela é imaginada, “uma comunidade política imaginada – e imaginada como sendo intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo, soberana”. Porquanto, “Imagina-se a nação limitada porque mesmo a maior delas, que agregue, digamos, um bilhão de habitantes, possui fronteiras finitas, ainda que elásticas, para além das quais existem outras nações. Nenhuma delas imagina ter a mesma extensão da humanidade. Nem os nacionalistas mais messiânicos sonham com o dia em que todos os membros da espécie humana se unirão à sua nação, como por exemplo na época em que os cristãos podiam sonhar com um planeta totalmente cristão”.[4] Germinada na época do iluminismo, soterrando a legitimidade do reino hierárquico de conformação divina, como sustenta Anderson, na nação soberana imaginada “a garantia e o emblema dessa liberdade é o Estado Soberano”.

Arquiteta-se uma comunidade imaginada, porque “independentemente da desigualdade e da exploração efetivas que possam existir dentro dela, a nação sempre é concebida como uma profunda camaradagem horizontal. No fundo, foi essa fraternidade que tornou possível, nesses dois últimos séculos, tantos milhões de pessoas tenham-se não tanto a matar, mas sobretudo a morrer por essas criações imaginárias limitadas”.[5]

Este tipo de análise, todavia, desconsidera as determinações histórico-concretas das formações nacionais na modernidade por conta da anatomia do sóciometabolismo do capital em seu processo de universalização. É uma conquista ontológica do desvendamento da lógica do capital que este em sua expansividade, em sua mundialização, se processa de forma desigual e combinada. Marx de posse da crítica histórico-imanente decifrou dentre singularidades societárias formas particulares do ser e ir sendo do capital. Por esta razão, ao diferenciar as determinações concretas da “miséria alemã” com relação à classicidade do caso inglês e francês, o filósofo alemão apontou para as diferenças específicas da constituição nacional alemã no século dezenove, que desconheciam a revolução democrática e cujo êmulo de modernização era empuxado pelos junkers, a nobreza rural do norte germânico, que detendo o controle do poder estatal impingiu determinados traços prussianos que balizou uma transição pelo alto sem a radicalidade humanista e democrática que facetou as burguesias de via clássica.

As formações nacionais que se entificaram pela particularidade da via prussiana, assistiram aos enfrentamentos de categorias sociais que buscavam projetos alternativos na disputa por hegemonia. “E assim, como conseqüência da derrota da primeira onda revolucionária (da Reforma e da guerra dos camponeses), o mesmo se dá na Itália por outras razões, Alemanha se viu convertida num impotente conglomerado de pequenos Estados e, como tal, em objeto ou botim da política do mundo capitalista e da época nascente, das grandes monarquias absolutas”. Pois, como escreve Georg Lukács, “Os poderosos Estados nacionais (Espanha, França, Inglaterra), a dinastia dos Habsburgos na Áustria, de vez em quando, transitoriamente, algumas grandes potências incipientes como Suécia e, desde o século XVIII, a Rússia tsarista, dispõem a seu próprio capricho acerca dos destinos do povo alemão. E, como Alemanha, é objetivo da política destes países, e, ao mesmo tempo, um butim útil para eles, procuram (todos eles) manter o desmembramento nacional do país”.[6]

Lukács em seu livro A Destruição da Razão (1954) destrinçou a ideologia irracionalista que foi forjada nas margens da miséria alemã. Das representações ideológicas do segundo Schelling a Rosenberg, passando por Schopenhauer, Kierkegaard, Nietzsche, Dilthey, Scheler, Heidegger e Jaspers, entre outros, examinando o darwinismo social, a medula rácica do nazismo, Lukács demonstra como o nacionalismo alemão se converte no “campeão das ideologias reacionárias”.

Recorde-se a glorificação do germanismo por Chamberlain, segundo o qual “o mais sagrado dos deveres é servir ao germanismo”. A afinidade desse ideólogo com a filosofia da vida, com o pangermanismo, revela-se por inteiro em sua concepção reacionária sobre a cultura patológica de sua época. Pois, “O que nela não é germânico é um elemento patológico (…) ou é mercadoria estrangeira que navega sob bandeira alemã e que seguirá navegando sob esse estandarte enquanto não levemos a pique esses barcos corsários”.[7]

A ideologia nazi-fascista foi uma ideologia nacional de mobilização para a guerra. Formou crenças e sentimentos que arregimentou parcelas da população alemã para uma empreitada de talhe imperialista. Tratava-se de fazer uma nova partilha do mundo já dividido entre as principais potências capitalistas. Daí a necessidade da guerra de rapina, guerra imperialista que mediada por uma ideologia nacionalista expansionista e agressiva põe em marcha os famosos “soldados-artistas-propagandistas” do III Reich.

Lukács buscou por meio da crítica imanente, da determinação histórico-social das ideologias e sua função regressiva nos embates sociais, a historicidade da formação social e do nacionalismo alemão. Os alemães buscaram a sua unidade nacional por outro caminho, o caminho contrário, ingênito à particularidade histórica da via prussiana. Salientava que “Os grandes povos europeus se constituíram como nações em princípios da época moderna. Plasmaram sua unidade territorial como nações, sobrepondo-se à dispersão feudal. Nelas surgiu uma economia nacional única, que enquadrava a todo o povo e a uma cultura nacional única, em que pese a divisão de classes. No desenvolvimento da classe burguesa, em sua luta contra o feudalismo, vemos atuar a monarquia absoluta por todo lugar transitoriamente, como órgão executivo desta unificação”.[8]

Entretanto, esse desenvolvimento específico não se separava da totalidade histórica que estava imerso, o desenvolvimento desigual e combinado do mundo europeu. Marx chamou a atenção para o fato de que a história alemã “orgulha-se de um desenvolvimento que nenhuma outra nação anteriormente realizou ou virá alguma vez a imitar no firmamento histórico. Participamos nas restaurações de nações modernas, sem termos tomado parte nas suas revoluções. Fomos restaurados, primeiro, porque houve nações que ousaram fazer revoluções e, em segundo lugar, porque outras nações sofreram contrarevoluções; no primeiro caso, porque os nossos governantes tiveram medo e, no segundo, porque nada temeram. Conduzidos pelos nossos pastores, só uma vez nos encontramos na sociedade da liberdade, no dia do seu funeral”.[9] Recorde-se também que na precisa formulação marxiana, “Em política, os alemães pensaram o que outras nações fizeram. A Alemanha foi a sua consciência teórica. (…) Mas se a Alemanha acompanhou o desenvolvimento das nações modernas apenas através da atividade abstrata do pensamento, sem tomar parte ativa nas lutas reais deste desenvolvimento, experimentou também as dores deste desenvolvimento sem participar nos seus prazeres e parciais satisfações. (…) E um belo dia, os alemães encontrar-se-ão ao nível da decadência européia, antes de alguma vez ter atingido o nível da emancipação européia”.[10]

Recorde-se que a tradição cultural que foi apropriada e condensada pela ideologia nacional-socialista, o “modernismo reacionário” expressava um paradoxo cultural na modernidade alemã. Essa ideologia buscou conciliar idéias antimodernistas, românticas e irracionalistas que vicejaram no nacionalismo alemão. A própria guerra nutriu a “revolução conservadora” com seu protesto contra o iluminismo, a apologia do irracionalismo, o culto romântico da violência com o culto da técnica. Muito distante, portanto, das concepções de Adorno e Horkheimer, segundo as quais o surgimento do nazismo se deveu ao projeto iluminista levado à saturação. Paradoxo cultural tão bem detectado por Jeffrey Herf [11] e sintetizado por Thomas Mann: “Embora eu os chame de modernistas reacionários estes pensadores se viam como revolucionários culturais que buscavam sepultar o materialismo no passado. Na opinião deles, materialismo e tecnologia não era de forma alguma idênticos. Thomas Mann captou a essência do modernismo reacionário quando escreveu: ‘O aspecto verdadeiramente característico e perigoso do nacional-socialismo era a mescla que fazia de robusta modernidade com uma postura positiva rumo ao progresso associadas a sonhos do passado: um romantismo altamente tecnológico’. Este livro apresenta aquilo que Mann entendia como a interpenetração da Innerlichkeit (interioridade) alemã com a tecnologia moderna”.

Não sem razão Herf aproximou-se da análise de Lukács sobre a via prussiana. “A via da Alemanha rumo à modernidade estava por detrás da intensidade de sua revolta antimodernista. Comparada com a da Inglaterra e da França, a industrialização alemã foi tardia, rápida e completa. As unidades econômicas eram grandes e a intervenção do estado, extensa. E o mais importante: a industrialização capitalista aconteceu sem uma revolução burguesa bem-sucedida. A burguesia, o liberalismo político e o iluminismo permaneceram fracos”.[12]

O segredo das revoluções do trabalho no século dezenove e o fenômeno da decadência ideológica com o abandono das “ilusões heróicas” da burguesia, o rechaço da dialética hegeliana pelo fortalecimento da ideologia positivista, colocaram para a humanidade uma divisa: socialismo ou barbárie! A emancipação política, forma que se apresentou como solução positiva para as desigualdades do “antigo regime”, desde suas origens se manifestou como solução parcial que se estruturava sob a lógica das “taras sociais”: a nova escravidão do trabalho alienado e estranhado. A nova classe emergente forcejou uma nova forma social que se alimenta das energias humanas de indivíduos destituídos de meios de produção, da riqueza genérica produzida e do controle social do mundo produzido. “O contínuo revolucionamento (Umwälzung) da produção, o abalo constante de todas as condições sociais, a incerteza e a agitação eternas distinguem a época burguesa de todas as precedentes”, especificou Marx em seu célebre Manifesto. [13] Ao demonstrar como a burguesia cria um mundo à sua imagem e semelhança, Marx apontou para o reacionarismo da defesa nacionalista dos interesses burgueses, haja vista que nasce da própria lógica expansionista do modo de produção do capital um intercâmbio universal, uma universal interdependência das nações. Como seria possível a superação do conflito entre nações, nações espoliadoras e nações oprimidas? Certamente não pela lógica da concorrência entre nações, tornando-se cada uma mais poderosa do que a outra. Mas a lógica onímoda do trabalho com sua orientação metapolítica deve rasgar os veios que sustentam o antagonismo estrutural. “Na medida em que é abolida a exploração de um indivíduo por outro, é abolida também a exploração de uma nação por outra. Com o desaparecimento do antagonismo das classes no interior das nações, desaparece também a posição de hostilidade entre as nações”.[14] A emancipação humana geral é, desse modo, uma perspectiva extraída desse próprio mundo regido pelo capital, mas que “Em lugar da velha sociedade burguesa, com suas classes e seus antagonismos de classes, surge uma associação na qual o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos”.[15]

Da perspectiva humano-societária do trabalho, o internacionalismo se viu derrotado em seus intentos de fazer valer o humanismo radical. As lutas que foram encetadas pelas Internacionais tiveram fôlego curto. Marx advertiu que “A Internacional só poderá afirmar se a marcha da história destruir as seitas. O desenvolvimento das sitas socialistas e o do movimento real estão constantemente em relação inversa. Enquanto as seitas se justificarem (historicamente), a classe operária não estará madura para um movimento histórico autônomo. À medida que ela atinge tal maturidade, todas as seitas serão, por essência, reacionárias”.[16]

Em 2008, completam-se em setembro 70 anos da criação da IV Internacional por León Trotski. Após a falência da II Internacional, em 1914, com sua guinada rumo à “sagrada aliança” com as burguesias nacionais no estalar da I Guerra Mundial, rompendo com o posicionamento de – caso a guerra irrompesse – imediatamente os comunistas fomentariam o movimento pela paz, denunciando-a como guerra intercapitalista e – no insucesso desse movimento – a derrubada dos poderes constituídos. Com essa cisão promovida pela Social Democracia alemã, com os desenlaces da Revolução Russa, em 1919, é formada a III Internacional Comunista. Com a ascensão de J. Stalin, a Comintern passa a ser manipulada para os interesses da burocracia soviética. Papel desastroso a IC terá nos episódios em que se envolve. É o caso da política para os comunistas alemães. Já no exílio, Trotski agirá no sentido de torpedear a ação nefasta do PC alemão em sua luta contra a Social Democracia, não agindo para a formação de uma Frente Única dos Trabalhadores, o que acarretou o fortalecimento do partido nacional-socialista alemão. Nas páginas da Projeto História, Osvaldo Coggiola reconstitui os passos e o contexto histórico da luta do líder bolchevique contra a usurpação e papel contra-revolucionário do stalinismo, uma forma específica de nacionalismo, na manutenção de seus privilégios, com métodos terroristas que culminam nos Processos de Moscou e no desarme dos processos revolucionários, caso gritante da revolução social espanhola nos anos de 1936 a 1939.

Ao tracejar o perfil dos nacionalismos na segunda metade do século XX, Benedict Anderson dispôs dos acontecimentos mais relevantes, “ao menos simbolicamente, na década de 1960, marcada pelas reverberações globais do nacionalismo em dois Estados pequenos, pobres e periféricos. A luta heróica do minúsculo Vietnam contra os colossais Estados Unidos, plasticamente retratada no mundo inteiro através do novo meio de comunicação televisivo, ajudou a precipitar, de um modo como não fora feito por nenhum outro nacionalismo ‘periférico’, convulsões não somente na América, mas também na França, Alemanha, Japão e outros lugares, fazendo de 1968 uma espécie de annus mirabilis, no estilo de 1848. Ao mesmo tempo, os tanques de Brezhnev destruíram brutalmente a primavera nacionalista na Tcheco-Eslováquia dominada pelos comunistas, com conseqüências equiparáveis, a longo prazo, para o projeto soviético. Nos Estados Unidos, a mesma década assistiu à ascensão, primeiro, do movimento dos direitos civis, seguido por um nacionalismo negro que em pouco tempo cruzou as fronteiras nacionais; aos primórdios de um movimento feminista em novo estilo, de alcance cada vez mais global; à revolta de Stonewall, que deu início ao primeiríssimo movimento transcontinental pela emancipação dos gays e das lésbicas – no caso, a ‘nação homossexual’. Também na Velha Europa, o desenvolvimento de uma comunidade supranacional caminhou de mãos dadas com o surgimento dos nacionalismo militantes, opostos a estados nacionais já estabelecidos – Irlanda do norte, escócia, Bélgica, Catalunha, terras bascas e assim por diante.”[17]

A realimentação de ideologias nacionalistas, no tempo presente, em plena mundialização do capital, na qual há a secundarização dos Estados-nacionais, florescem “mudanças políticas, com tamanha rapidez e em tantos lugares, ou na qual tenha havido tanta incerteza quanto ao futuro.”[18]

Continuam a ser, dessa maneira, estarrecedoras as pretensões imperialistas dos Estados Unidos no mundo atual pós o ataque contra as Torres Gêmeas de 11 de setembro de 2001. A fustigação dos “inimigos da pátria” por métodos terroristas, a ampliação do controle e vigilância dos movimentos sociais que passam aser criminalizados por quaisquer reivindicações que sejam apresentados como ameaça à ordem. A manutenção de suas bases militares que cobrem desde territórios europeus a países latino-americanos, as guerras contra o Iraque e o Afeganistão, realimentam a ideologia segundo a qual o mundo deve ser regido pela política destrutiva de George W. Bush. O nacionalismo norte-americano cumpre, pois, a sua função essencial. Mesmo sob a regência do democrata Bill Clinton, a fórmula imperialista ficou evidente ao reafirmar e ecoar de modo incessante que havia “apenas uma nação necessária: os Estados Unidos da América”. Todavia, como assevera Mészáros, “(…) tanto a permanência do neoliberalismo (muitas vezes associada à grotesca pseudoteoria que prega um ‘fim da história’ quando da feliz chegada do neoliberalismo) quanto a proclamada necessidade absoluta da eterna auto-acomodação dos trabalhadores não são mais do que ilusões ópticas enganadoras, desenhadas para a conveniência da ordem instituída”.[19]

Mesmo que se possa discordar da defesa do nacionalismo “bolivariano”, tomado como projeto político radical, como a que faz István Mészáros, não há como desconhecer as determinações essenciais que se desenvolvem no mundo contemporâneo: “A nova condição histórica não pode ser desfeita pelo fato de os antigos poderes imperialistas, e acima de tudo o mais poderoso de todos, os Estados Unidos da América, estarem tentando fazer as rodas da história andarem para trás e recolonizar o mundo. Seu desígnio para esse fim já é visível na forma como empreenderam recentemente algumas aventuras militares devastadoras sob o pretexto da chamada ‘guerra contra o terrorismo’. Com efeito, a nova panacéia dos poderes mais agressivos é afirmar que embarcar no que de fato representa uma grosseira aventura recolonizadora – na África e no Sudeste da Ásia, assim como na América Latina – é uma condição essencial para o êxito de sua virtuosa ‘guerra contra o terrorismo internacional’ na ‘nova ordem mundial’. Mas estão condenados a fracassar”.[20]

Perda irreparável para o mundo acadêmico, Dea Fenelon sempre sonhou perspectivando o futuro. Desde jovem, seu espírito combativo a conduziu à militância colada aos interesses dos trabalhadores contra a barbárie da ditadura militar. Empenhou-se na construção do Partido dos Trabalhadores, mulher revolucionária de espírito público combateu o conservadorismo que reinava em nossas universidades, apresentando formulações para a reforma do ensino e denunciando os rumos que o neoliberalismo apresentava para o sistema educacional brasileiro. Figura talentosa que soube reunir numa só pessoa, a historiadora, a educadora, a gestora pública e empreendedora; em nossa instituição, dedicou-se ao fortalecimento da Pós-graduação, à formação de historiadores e historiadoras com pesquisas genuínas. Seguidora da História Cultural, desenvolveu linhas de pesquisa ancoradas no talhe e vigor de E. P. Thompson. Apaixonada pela Projeto História, seu legado se mantém vivo, este número sobre “Nacionalismo, internacionalismo e ideologias” é dedicado a nossa historiadora.

Notas

1. Gellner, Ernest. Naciones y Nacionalismo. Tradução Javier Sató. Madri, Alianza, 1991, 161.

2. Hobsbawm, Eric J. Nações e Nacionalismo desde 1780. Tradução Maria Célia Paoli e Anna Maria Quirino. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990, p. 19.

3. Anderson, Benedict. Comunidades Imaginadas. Tradução Denise Bottman. São Paulo, Companhia das Letras, 2008.

4. Idem, pp. 33-34.

5. Idem, p. 34.

6. Lukács, G. El asalto a la Razón. 3.ª Edição. Tradução Wenceslao Roces. Barcelona / México, Grijalbo, 1973, p. 32.

7. Chamberlain apud Lukács. El Asalto a la Razón. 3.ª Edição. Tradução Wenceslao Roces. Barcelona / México, Grijalbo, 1972, p. 573.

8. Lukács, G. El Asalto a La Razón. In: op. Cit., p. 29.

9. Marx, K. Introdução à Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. In: Manuscritos Económico-Filosóficos. Tradução Artur Morão. Lisboa, Edições 70, 1989, p. 79.

10. Marx, K. Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. In: Op. cit., p. 88.

11. Herf, Jeffrey. O Modernismo Reacionário. Campinas / SP, Editora da Unicamp; São Paulo, Ensaio, 1993, p.14.

12. Idem, pp. 17-18.

13. Marx, K & Engels, F. Manifesto do Partido Comunista. Tradução Marco Aurélio Nogueira e Leandro Konder. Petrópolis, Vozes, 1996, p. 69.

14. Idem, p. 85.

15. Idem, p. 87.

16. Marx apud Tragtenberg, Maurício. Reflexões sobre o Socialismo. São Paulo, Moderna, 1986, p. 21.

17. Anderson, Benedict. Introdução. In: Balakrishnan, Gopal (org.). Um Mapa da Questão Nacional. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, Contraponto, 2000, pp. 12-13.

18. Idem, p. 13.

19. Mészáros, István. Bolívar e Chávez: o espírito da determinação radical. In: Revista Margem Esquerda n.º 8. São Paulo: Boitempo Editorial, 2006, p. 99.

20. Idem, p. 108.

Antonio Rago Filho

Vera Lucia Vieira

Editores Científicos


FILHO RAGO, Antonio; VIEIRA, Vera Lúcia. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 36, 2008. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

 

Tecnologia, Cotidiano e Poder / Projeto História / 2007

A tecnologia entendida como o conjunto das capacidades, das atividades produtivas e do conhecimento a partir dos quais o ser humano produz a história, isto é, sua existência social, encontra-se explanada nos múltiplos textos que este número da Revista Projeto História apresenta a seus leitores.

A escolha de tal temática mantém a coerência que vem norteando o pensamento da Revista, que toma a história, não enquanto uma disciplina, mas enquanto a própria ciência, resultante esta da força produtiva que expressa o complexo de potências através das quais os homens se apropriam do mundo e que resulta da dupla configuração: dos carecimentos humanos que os impulsionam e das limitações postas a cada momento às realizações de suas inerentes potencialidades de alteração da natureza, do mundo e de si próprio.

As múltiplas conotações que a tecnologia possui e que podem ser resgatadas pelo historiador em quaisquer dimensões do ser social se apresentam neste volume, cujos autores refletem de um lado sobre a produtividade humana que se traduz na tecnologia nos moldes propostos pela ontologia marxiana, adentrando nas inerentes contradições que resultam da apropriação privada desta produção social no metabolismo social do capital. Por outro lado, outros analistas problematizam sobre a percepção do conhecimento / tecnologia enquanto produto da subjetividade, perpassando, também por reflexões sobre a influência desta tecnologia no mundo artístico, particularmente como decorrente de interferência de políticas públicas voltadas para incorporar a este universo os processos industriais.

Evidencia-se assim, de um lado, como a ciência se vê convertida em parte integrante do capital e adquire uma inflexão histórica que não se fez ou se faz em nome do próprio desenvolvimento das ciências, mas como meio mais eficaz de reduzir o trabalho, a sua produtividade para além das fronteiras dadas pela figura física viva do trabalhador e que necessita reduzir o tempo de circulação. Neste contexto, os autores não fazem a crítica da tecnologia pelo prisma duma crítica moral, estética ou política, porém, ressaltam que quanto mais se universaliza a forma de ser própria da produção dos indivíduos sociais, mais expande seu raio de ação, todavia, no interior da alienação do suprimento das necessidades humanas universais que a geraram.

Em face de tal desenvolvimento tecnológico universal se evidencia mais uma vez o atraso tecnológico e industrial do Brasil, associado à subordinação e a dependência ao capital internacional, o que transparece inclusive nas iniciativas modernizadoras. São os casos aqui exemplificados das inovações na iluminação pública, nos meios de transportes urbanos no início do século XX e mesmo na missão modernizadora que as forças armadas se atribuem em seu projeto do Brasil potência.

Neste aspecto, destaca um dos analistas a importância que conferem os militares à ciência e à tecnologia como alicerces do desenvolvimento econômico e nesse sentido, afirma, as duas Guerras Mundiais foram referência para a profissionalização, modernização e treinamento dos militares brasileiros.

Uma modernização historicamente carreada por um conservadorismo expresso, inclusive pelos mais diferentes ideólogos, que se expressam atavicamente na rejeição das categorias sociais dominantes em investir em tecnologias e que nos dias atuais, se exprime na culpabilização da tecnologia pelos males do mundo moderno, particularmente os vinculados ao meio ambiente. Considera-se mesmo que esta ideologia expressa um equívoco de cunho “malthusiano” e se evidencia, inclusive, no discurso de inúmeras organizações que se colocam em defesa do equilíbrio ecológico e sustentável.

De qualquer forma, a tal estágio de desenvolvimento tecnológico chegou a humanidade que já se evidenciam, conforme outros autores, as condições de superação dos limites à realização das potencialidades humanas capazes de superar o reino da necessidade, postos em um mundo regido pelo trabalho abstrato, para o reino da liberdade, não fosse a contradição da apropriação privada desta produção coletiva. Contradição impeditiva da superação da oposição, por exemplo, entre profissão e cultura tomada esta enquanto atividade operativa social. Trata-se de tornar a ciência e o trabalho inerentes a todos os indivíduos, de impedir que a atual necessidade de aquisição dos novos códigos de comunicação não reduzam o ser humano a entes informacionais, à condição de apêndices das máquinas, protocolos e fluxos de informação, mas sim de reconhecer que o uso generalizado de máquinas programáveis informacionais gera novas formas de sociabilidade decorrentes da intercomunicação entre indivíduos através deste ciberespaço em gestação.

Do “espaço técnico” chega-se ao universo do ciberespaço, sem tangenciar a solução de problemas cruciais, apesar do fascínio pelas estatísticas, que, entre outras coisas, nos permite demonstrar como a disparidade de renda entre os países mais ricos e os mais pobres que, conforme a referência, em 1820, era da ordem de 3 para 1, em fins do século XX chega a de 80 para 1. O que demonstra que o melhor conhecimento do problema, seu melhor equacionamento e visibilidade não é condição suficiente para o encaminhamento de suas soluções.

É neste universo do primado da tecnologia que a temática sobre o mundo do trabalho ganha novos contornos, particularmente quando o pesquisador centra sua atenção no crescimento do número de mulheres como força de trabalho assalariada e a exacerbada valorização das questões emocionais o que aparece como uma nova tecnologia de gênero / poder. Refere-se o autor à ênfase que se dá neste contexto, à subjetividade das mulheres como “dóceis, emocionais, afetuosas”, ganhando aura de avanço societal a divisão maniqueísta que a educação sexista perpetra – e o movimento feminista combate. Uma tecnologia de gênero que não se constitui separada e isoladamente apenas para sedimentar o sexismo, mas é também uma tecnologia de poder, perpetuando a exploração da força de trabalho.

Observa-se ainda a ênfase em se analisar como as novas ferramentas se constituem em instrumentos vitais ao historiador, ampliando as possibilidades de preservação das evidências históricas, papel que, por exemplo, cumpre a fotografia pela possibilidade que traz de grafar a imagem e nos remeter, por exemplo, ao universo oitocentista com uma enorme riqueza de detalhes. Particularmente na área de preservação, conservação e divulgação do patrimônio histórico-cultural, abrindo-se novos campos de possibilidades de conhecimentos e também de transformação de espaços de preservação da história em verdadeiros espaços públicos. Dessa maneira, também colocam novos desafios à educação cujas políticas públicas têm se mostrado, conforme o leitor poderá apreciar nas páginas da Projeto História, incapazes de garantir a inserção deste universo, até mesmo naquelas modalidades centradas no ensino tecnológico.

Neste número trazemos uma entrevista que nos dá oportunidade de refletir sobre a relação entre especialistas da área de energia elétrica e o modelo enérgico em curso no último período ditatorial brasileiro, cujos principais projetos desenvolvidos ou, pelo menos, debatidos pela Coordenação da COPPE, tiveram papel fundamental na implantação das diretrizes do II PND do governo do autocrata Ernesto Geisel.

Este volume apresenta ainda ao leitor a tradução inédita no Brasil do renomado historiador francês que trata de tema com visibilidade cada vez maior no campo da historiografia: as relações entre o imaginário sobre o corpo e a ciência. O historiador francês Georges Vigarello, autor de Historia da beleza, resgata no texto ora apresentado, a íntima relação entre o imaginário do corpo e a experiência técnica, a partir do final do século XIX até fins do século XX. Conforme Vigarello, se até o fim do século XIX o corpo era antes de tudo uma “máquina” da qual se buscava exigir o máximo de rentabilidade com o mínimo de consumo de energia; na primeira metade do século XX se enfatiza a importância do gestual para a obtenção dos melhores índices de produtividade. A habilidade substitui a força bruta, transformando o corpo em uma máquina nervosa. Já no fim do século XX, com a digitalização incorporando a automação, novas valorações são lançadas ao corpo e as exigências visam se apropriar também da subjetividade dos trabalhadores, transformando o trabalhador em “máquina informacional”.

Desde a Renascença se impõe na vida cotidiana a concepção de um demiurgo humano que reconfigura o mundo por sua própria inventividade e prática, consciente da progressividade do domínio de uma “segunda natureza” e que propõe a humanização do mito e ao mesmo tempo a deificação do homem.

Esta noção da autêntica grandeza humana foi disposta de modo categórico por Ficino: “Quem pode negar que o homem possui quase o mesmo gênio do Autor dos Céus? E quem pode negar que o homem também poderia criar de algum modo os céus, se pudesse obter os instrumentos e o material celeste, dado que mesmo hoje ele os cria, embora com um material diferente, mas com uma ordem bastante semelhante?”.[1]

A contradição que perpassa a contemporaneidade, é que quando esses instrumentos passam a reger a vida cotidiana por inteiro, abrindo amplas possibilidades para a resolução de dilemas seculares da humanidade, do desvendamento da estrutura genômica que permite a fabricação da própria vida, dos avanços da biotecnologia, em suma da conquista sem precedentes das formas orgânicas e inorgânicas da natureza; todavia, na regência da mundialização do capital – regência das necessidades dos proprietários privados sobre as necessidades genuinamente humanas – que controla e subordina a nova cooperação social do trabalho no interior da universalização das forças produtivas materiais por meio de uma revolução tecnológica inaudita, fragmenta, mutila e nulifica milhões de vidas humanas.

No século passado, a visão trágica do mundo deu o tom hegemônico. A civilização estava prestes a ser devorada por seus próprios frutos, a ciência e a técnica, dessa maneira, o home preso a uma eterna ilusão de conquista da natureza, seria desqualificado por seu próprio engenho. A “Escola de Frankfurt”, com sua dialética da negatividade, desenvolveu a crítica ao pensamento esclarecido, cuja origem datava do Renascimento e que em sua lógica interna levaria da ultrapassagem do mito, ao domínio da natureza, e deste ao extremo negado da razão: o novo mito. A razão instrumental conduziu ao inferno nazista. Nos termos de Adorno e Horkheimer: “O mito converte-se em esclarecimento, e a natureza em mera objetividade. O preço que os homens pagam pelo aumento de seu poder é a alienação daquilo sobre o que exercem o poder. O esclarecimento comporta-se com as coisas como o ditador se comporta com os homens. Este conhece-os na medida em que pode manipulá-los. O homem da ciência conhece as coisas na medida em que pode fazê-las. É assim que seu em-si torna para-ele. Nessa metamorfose, a essência das coisas revela-se como sempre a mesma, como substrato da dominação. Esta identidade constitui a unidade da natureza”.[2]

Devemos, seguindo esse discurso, eternizar a escravização mercantil como condição humana? O preço a pagar pela conquista da natureza, portanto, não é como os renascentistas projetavam, a conquista de nossa humanidade, mas a preparação de outra forma de conquista: o estado totalitário? Como produto de relações sociais naturalizadas?

Em sua obra O modernismo reacionário, J. Herf enfrentou tal “beco sem saída”, para simplesmente buscar nas condições históricas e culturais da “via prussiana” (Lukács) a necessidade histórica de tal reacionarismo. A reconciliação alemã entre alta tecnologia e irrazão, e não a razão iluminista, é o cerne dessa ideologia tão bem sintetizada por Thomas Mann: “O aspecto verdadeiramente característico e perigoso do nacional-socialismo era a mescla que fazia de robusta modernidade com uma postura positiva rumo ao progresso associadas a sonhos do passado: um romantismo altamente tecnológico”.[3] Ou, nas palavras de Herf: “Essa tradição consistia numa coleção coerente e significativa de metáforas, palavras familiares e expressões emotivas que tinham o efeito de converter a tecnologia, de componente de uma Zivilisation estranha, ocidental, em parte orgânica da kultur alemã. Combinavam reação política com avanço tecnológico. Onde os conservadores alemães haviam falado de tecnologia ou cultura, os modernistas reacionários ensinaram a direita alemã a falar de tecnologia e cultura”. Eis o paradoxo do modernismo reacionário, base do ideário nazista: “incorporava a tecnologia moderna ao sistema cultural do nacional-socialismo alemão moderno, sem lhe diminuir os aspectos românticos e anti-racionais”.[4]

Walter Benjamin soube compreender essa processualidade histórica ao denunciar a “estetização da política” e a glorificação da “tecnologia da guerra”, todavia, sem remeter a uma condição humana inexorável, uma visão trágica do mundo. Assim como fez o músico Karlheinz Stockhausen ao plasmar as Torres Gêmeas em chamas e sonorizar com suas palavras que “jamais vira obra-de-arte mais bela”, no trágico 11 de setembro de 2001, repetiu o irracionalismo dos futuristas que entoaram a expressão “a guerra é bela”! Ao enaltecer a barbárie, atos desumanos, o uso tecnológico das armas que pulverizam vidas humanas, a guerra que revolve por inteiro a vida cotidiana, essa “estetização da política” enaltece o poder imperialista, a subjugação dos trabalhadores e trabalhadoras pelo sistema do capital. Walter Benjamin é claro e impiedoso: “Em seus traços mais cruéis, a guerra imperialista é determinada pela discrepância entre os poderosos meios de produção e sua utilização insuficiente no processo produtivo, ou seja, pelo desemprego e pela falta de mercados. Essa guerra é uma revolta da técnica, que cobra em ‘material humano’ o que lhe foi negado pela sociedade. Em vez de usinas energéticas, ela mobiliza energias humanas, sob a forma de exércitos. Em vez do tráfego aéreo, ela regulamenta o tráfego de fuzis, e na guerra dos gases encontrou uma forma nova de liquidar a aura. ‘Fiat ars, pereat mundus’, diz o fascismo e espera que a guerra proporcione a satisfação artística de uma percepção sensível modificada pela técnica, como faz Marinetti”.[5]

Trata-se de reverter essa dimensão de crueldade na vida cotidiana. “As massas têm o direito de exigir mudanças das relações de propriedade; o fascismo permite que elas se exprimam, conservando, ao mesmo tempo, essas relações”[6]. Há saída no horizonte para além da visão trágica do mundo, da perspectiva da lógica onímoda do trabalho, para a humanidade!

Numa síntese característica de sua pena, Marx frisou que “O homem é o que faz e como faz”: “Tal como os indivíduos exteriorizam sua vida, assim são eles. O que eles são coincide, pois, com sua produção, tanto com o que produzem como também com o modo como produzem. O que os indivíduos são, portanto, depende das condições materiais de sua produção.”[8]

Em outra passagem exemplar, adensando suas reflexões ontológicas sobre o modo como produzem, Marx escreveu: “As forças produtivas são, portanto, o resultado da energia aplicada dos homens, mas essa mesma energia é limitada pelas circunstâncias em, que os homens se encontram, pelas forças produtivas já obtidas, pela forma social preexistente, que eles não criam e que é produto da geração precedente. Devido ao simples fato de que toda nova geração encontra as forças de produção já obtidas pela geração anterior e que lhe servem de matéria-prima para uma nova produção, surge um encadeamento na história dos homens, surge a história da humanidade, que é tanto mais história da humanidade quanto mais crescem as forças produtivas dos homens e, por conseguinte, as suas relações sociais.” E disto decorre que para os indivíduos autoproducentes, mesmo sem o saber, “a história social dos homens nada mais é que a história do seu desenvolvimento individual, tenham ou não consciência disso. Suas relações materiais são a base de todas as suas relações. Essas relações materiais não são mais do que as formas necessárias em que se realiza a sua atividade material e individual”.[9]

No atual estágio do sistema metabólico do capital, com a mundialização do capital, o desenvolvimento das forças produtivas se põe em aguda contradição com as relações sociais de produção (relações de propriedade na esfera jurídica): “Ou seja, a capacidade humana alcançada para a produção de seu mundo próprio é superior e mais potente do que a organização social que os homens permanecem obrigados a tolerar, contra a qual se debatem. As relações sociais, a partir das quais aquela capacidade foi produzida, não são capazes de conter e tirar proveito de sua realização, enquanto tais para se conservarem ferem de morte a própria humanidade, tornam letal a sua maior realização: a) aniquila parte da própria humanidade, dos produtores da realização; b) aniquila a autoprodução da individualidade, acentua a alienação (do produto, do trabalho, do gênero); c) agora a dispensa do próprio trabalho (alienado).”[10]

No mundo contemporâneo, as nebulosas do neopositivismo, do irracionalismo e das filosofias que irradiam a idéia da “impossibilidade do conhecimento” substituído pelas “imputações hermenêuticas”, e que anunciam o “fim do trabalho”, da “alienação” e, em conseqüência disso, afirmam a impossibilidade da emancipação humana geral. Assim, junto à necessidade da lógica expansiva do capital de modelar indivíduos conformistas, que apodrecem debaixo da própria pele, estas posições ilusórias confluem no banimento da revolução social.

Com as novas maneiras de viver e sentir da mundialização, nos termos chasinianos, se configura a grandeza e a miséria do homem contemporâneo. Isto porque a humanidade foi capaz de criar as bases materiais da liberdade humana, mas se acha impossibilitado de se autodeterminar no processo de individuação social. “Donde a humanidade futura, se futuro houver, será posto pela possibilidade emergente das perspectivas da síntese do saber – a fusão entre o melhor e mais avançado do saber científico-tecnológico e o mais agudo e universal do saber humanista, ou seja, da aglutinação natural entre o saber do mundo e o saber de si. Hoje, o homem já está se tornando o demiurgo da natureza, falta se converter no demiurgo de si mesmo.” [11]

Notas

1. FICINO apud HELLER, Agnes. O Homem do Renascimento. Tradução Conceição Jardim e Eduardo Nogueira. Lisboa: Presença, 1982, pp. 67-68.

2. ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Tradução Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985, p. 24.

3. MANN apud HERF, Jeffrey. O modernismo reacionário. Tradução Claudio Frederico Ramos. São Paulo: Ensaio, 1993, p. 14.

4. HERF, J. O modernismo reacionário. In: Op. cit., p. 14.

5. BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Primeira versão”. In: Walter Benjamin: obras escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política.Vol.1. Tradução Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 196.

6. Idem, ib., p. 195.

[Nota 7 ausente no original].

8. MARX, K. & Engels, F. A Ideologia Alemã. Tradução Rubens Enderle, Nélio Schneider, Luciano C. Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 87.

9. MARX, K. “Carta a P. V. Annenkow”. In: Marx: História. Coleção grandes cientistas sociais n.º 36. Tradução Flávio R. Kothe. São Paulo: Ática, 1983, pp. 432-433.

10. CHASIN, J. “Ad Hominem – rota e prospectiva de um projeto marxista”. In: A determinação ontonegativa da politicidade. Santo André / SP: Estudos e Edições Ad Hominem, 2000, p. 73.

11. Idem. Ibidem, pp.72-73.

Antonio Rago Filho

Vera Lucia Vieira

Os Editores


FILHO RAGO, Antonio; VIEIRA, Vera Lúcia. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 34, 2007. Acessar publicação original [DR]

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História e Imprensa / Projeto História / 2007

Por ocasião das comemorações dos 200 anos da imprensa no Brasil, somando esforços com iniciativas de outros centros universitários e outras publicações, a Revista Projeto História traz a público um número temático sobre “Imprensa e História”.

Cientes que a importância crucial dos meios de comunicação de massa faz da reflexão sobre a comunicação social um campo interdisciplinar estratégico para a compreensão da vida contemporânea e, motivados pela oportunidade da comemoração, a intenção foi organizar um número da Projeto História que abrisse espaço para a reflexão crítica sobre a História da Imprensa na atualidade. Logo de início algumas questões se impunham para a crítica histórica: No espaço do Bicentenário o que se comemorar? Quem podia comemorar o quê? Que marcos de memória seriam atualizados? O que seria lembrado? O que seria esquecido? Que significados do passado revivido seriam articulados às disputas sobre o lugar e o papel dos meios de comunicações e, em particular, da imprensa brasileira na atualidade? E, principalmente, como os estudiosos da imprensa, com diferentes estudos, temas e abordagens, poderiam contribuir para este debate?

Nos últimos dois anos, os meios acadêmicos foram mobilizados por diferentes apelos e se organizaram para participar das comemorações do Bicentenário. Professores e pesquisadores ligados às diversas áreas envolvidos com a temática – da Comunicação às Ciências Sociais, da Arquivologia à História – desenvolveram pesquisas e debates e preparam livros e artigos sobre a história da imprensa e do impresso. Várias revistas acadêmicas destas áreas organizam dossiês sobre o tema. As semanas de jornalismo de vários cursos, os encontros e seminários de diversas associações acadêmicas propuseram destaque em suas agendas à história da imprensa e a comemoração dos 200 anos. A tônica de preparação destes eventos e publicações tem sido a chamada para a reflexão e a avaliação sobre o desenvolvimento dos estudos sobre a atuação da imprensa e os meios de comunicação entre nós.

No diálogo com agenda pública nacional que coloca em pauta a questão da democratização dos meios de comunicação e do direito a informação e a canais de audiência como questões urgentes da democracia brasileira, a intenção da Revista Projeto História ao organizar um número especial foi também trazer para o espaço das comemorações estudos e pesquisas sobre Imprensa e História, que dando vitalidade as nossas reflexões sobre memória e História neste campo, contribuam para o desenvolvimento da reflexão crítica e para o repensar das perspectivas de presente sobre o tema.

Na configuração de diferentes áreas de pesquisa do pensamento social brasileiro nas últimas décadas e, particularmente, no campo da historiografia, é crescente a presença de estudos sobre a imprensa e / ou que fazem uso de jornais e outras publicações periódicas como principal fonte de pesquisa. Tais estudos, desenvolvidos sob a ótica de diferentes abordagens e procedimentos metodológicos, abrem-se para inúmeros campos teóricos e temáticos.

Este número sobre “História e Imprensa” é composto por artigos, notícias de pesquisa e resenhas que dão visibilidade a reflexão teórico-metodológica e campos e temáticas de pesquisa que na atualidade articulam a diversidade do trabalho de historiadores e outros pesquisadores sobre a Imprensa.

As reflexões que emergem de suas páginas nos remetem tanto à análise da própria imprensa e sua atuação nas diversas conjunturas e situações históricas, quanto a própria atividade jornalística, representada pelos profissionais da área, assim como às análises que fazem emergir das páginas de diferentes veículos impressos múltiplos aspectos da história de nossa sociedade. Remetem também a preocupação com dimensões teórico-metodológicas do trabalho de pesquisa e análise histórica da imprensa e suas relações com outras dimensões da vida social.

Os artigos abordam temas e publicações de diferentes períodos e regiões do Brasil, incorporando também reflexões sobre a atuação da imprensa no contexto da América do Sul. Destaque-se como emergente para os estudos sobre história da imprensa entre nós, a importância assumida pela reflexão voltada para nosso passado mais recente e que indaga sobre facetas diversas das relações imprensa e ditadura no Brasil. Demonstrando o desenvolvimento da pesquisa em diferentes espaços do campo social articulado pela comunicação impressa, para além de sinalizar a importância crucial dos jornais comerciais que a cada conjuntura constituem o que se convencionou chamar de grande imprensa, o trabalho de pesquisa diversifica-se abrangendo publicações da imprensa regional, da imprensa feminina, da imprensa operária, entre outras. A pesquisa nestes diferentes materiais dá visibilidade a um repertório de indagações instigantes e que remetem a campos essenciais da reflexão histórica na área, tais como: as relações entre imprensa, poder e a configuração dos sistemas políticos em diferentes situações; a atuação da imprensa como espaço de mobilização, difusão e generalização de diferentes projetos, valores e personagens de grupos que disputam / afirmam a hegemonia a cada conjuntura histórica; os mecanismos de controle e censura que a cada momento regulam os conteúdos e o acesso aos meios impressos de maior circulação bem como a atuação de publicações alternativas.

A tradução do artigo clássico de Raymond Williams sobre imprensa e a cultura popular na Inglaterra do século XIX, citado por inúmeros estudos, mas de difícil acesso aos pesquisadores, busca contribuir para a expansão das perspectivas históricas do debate na área. Nele, Williams desenvolve perspectivas teóricas e metodológicas instigantes para o estudo das relações entre Imprensa e História Social. No estudo sobre a experiência inglesa no século XX, o artigo aborda temas fundamentais como o dos caminhos e sentidos históricos da popularização da imprensa comercial e o da emergência de espaços alternativos, radicais ou dissidentes no campo da comunicação impressa.

Desde fins do século XIX até períodos bem recentes, atribui-se à imprensa múltiplos significados e finalidades, tais como já o haviam feito desde tempos imemoriais, por exemplo, Olavo Bilac e Lima Barreto, os quais a consideravam válida quando cumpria sua função de auxiliar na implantação de reformas tidas como essenciais à sociedade brasileira. Tal finalidade atribuída à imprensa é recuperada no artigo em que se discute como um Jornal como o Rio News, discute, no período abolicionista, os preceitos e os projetos abolicionistas, assim como as propostas de reorganização da sociedade brasileira depois da abolição. Ou ainda quando se observa a contribuição de um noticiário para o processo de transformação de uma cidade, suas lutas sociais, ou seja, para a constituição de sua identidade. Particularmente, observa-se esta relação no desenvolvimento do primeiro jornal santista, a Revista Commercial, desde fins do século XIX até meados de 1930. Conforme o autor, “a repercussão que tiveram os movimentos abolicionista, republicano e operário em Santos se deve, em larga medida, ao vigor do jornalismo e da imprensa na cidade, que estimularam e potencializaram a circulação de novas idéias”.

Muito distante da atuação em prol do bem público conforme enfatizava Lima Barreto, observa-se em outro artigo, o uso do poder de formar opinião, inerente a este veículo de comunicação de massa, em prol de interesses privados. Com tal ótica dois enfoques se destacam. De um lado, o historiador que recupera o uso da mídia impressa como facilitador da aceitação de acordos internacionais firmados entre nações e de outro, o uso deste mesmo canal de comunicação para fazer ascender à cena pública indivíduos a serviço de interesses privados.

No primeiro caso a historiadora espanhola analisa como os jornais do Chaco (região entre o Paraguai, a Bolívia, Argentina e Brasil) traduziram, no início do século XX, a expectativa da população de participar da vida nacional, na ilusão de que, para tanto, deveriam acompanhar a dinâmica norte-americana. Tomando como documento o principal jornal dessa região que aspirava ser província, demonstra como esse divulga notícias internacionais em detrimento dos acontecimentos locais ou regionais, embora contasse com a colaboração de “todos los chaqueños para exponer problemas y proponer soluciones y manifestar las diversas inquietudes”.

No segundo aspecto, emerge para o leitor o uso da imprensa como veículo de ascensão de figuras inexpressivas à cena pública. Observa-se como tal uso tem sido possível quando os períodicos de grande circulação passam a asociar a imagem do indivíduo à determinadas expectativas da população. Tal perspectiva é aqui analisada a partir da visibilidade que adquire, no início do segundo quartel do século XX, um político como Jânio Quadros, o qual, através da imprensa, vai construindo “uma figura sedutora aos olhos do eleitorado, cuja desconfiança aumentava progressivamente em relação aos seus oponentes”.

No entanto, assim como as associações podem ser positivas para os interesses político / particulares, o podem também ser negativas para indivíduos que atuam na área. Tal se observa, por exemplo, em artigo que analisa a “saia justa” em que se vêem, tanto o próprio jornal, quanto seus colaboradores, jornalistas e proprietários, após terem, de alguma forma, pactuado com ditaduras militares, das quais a burguesia se utiliza para fazer valer seus interesses de forma autocrática. Nesta perspectiva, resgata-se das páginas de grandes matutinos em tempos bem recentes, os esforços empreendidos por estes sujeitos, para desvincular sua imagem da última ditadura vigente no país. Analisa-se, não a trajetória do jornal, mas a de “jornalistas íntimos ou não do círculo policial repressivo, os quais trocaram intencionalmente a narrativa de um acontecimento pela publicação de versões que acabam por corroborar o ideário autoritário oficial, interpretado tanto como autocensura como colaboração e nos tempos subseqüentes, o acompanhamento da trajetória destes indivíduos, quando não se afastam das atividades jornalísticas, se readaptam ou mesmo constroem para si uma imagem positiva e ‘até mesmo heróica’”.

Jornais que no período ditatorial se viram na contingência de se submeterem aos ditames do bonapartismo quanto à censura que se estendeu também ao controle do erotismo e da “pornografia para homens, mulheres e gays” e cujas ações denotam a moralidade vigente nos “procedimentos da sociedade e do governo brasileiro para controlar o sexo no jornalismo. […] Era em nome da vigilância de atos, exposição, desenho, pintura, distribuição ou qualquer objeto obsceno que o discurso repressor se propagava.

Como se observa, os usos que a imprensa possibilita aos historiadores são múltiplos e por isso demandam um repertório de procedimentos teórico-metodológicos capazes de garantir a objetividade no entendimento da imprensa como força social ativa, inerente à historicidade que circunscreve cada conjuntura estudada. Desta assertiva resulta, conforme se recupera nas páginas desta revista, a indicação de instrumentais que possam auxiliar o historiador na empreitada de “articular a análise de qualquer jornal ou material da imprensa periódica que se estude, ao campo de lutas sociais no interior do quais se constituem e atuam”.

Tal instrumental é tanto mais necessário quando se evidencia o uso do material impresso como fonte de informações sobre uma dada realidade, o que abre um leque de muitas outras possibilidades temáticas e de resgate de especificidades históricas. Essa perspectiva se evidencia claramente, por exemplo, no texto em que o autor analisa o papel da imprensa na propagação de conceitos de progresso e civilização versus o arcaísmo, particularmente destacados na contraposição entre o urbano desenvolvido e o rural atrasado. Observa-se como os anúncios publicados nos jornais de cidades como Diamantina e Juiz de Fora permitem ao historiador “indagar sobre o cotidiano, sobre as mudanças nos valores, sobre o impacto dessas novidades sobre aqueles que as consumiam – e também sobre o caráter excludente dessa nova cidade que se vendia nas páginas impressas, nas quais nem todos têm o mesmo espaço, e o consumo passa a ser uma marca distintiva de pertencimento à civilização e ao progresso”. Neste sentido, conforme afirma ainda o autor, “no arfar das caldeiras, no mover das impressoras, os homens de imprensa em Diamantina e Juiz de Fora deixaram no papel suas impressões, sua representação de uma cidade moderna, da tecnologia e do progresso. Através dos anúncios, abriram espaço para produtos e serviços, ligados a uma nova sociabilidade, novos hábitos de higiene e consumo, novas demandas geradas pela civilização moderna. Buscavam atender, também, às necessidades tradicionais, dentro de uma lógica, também esta, moderna – negócios eram negócios, e os anúncios eram parte do negócio da imprensa”.

A partir das informações da imprensa também se recupera as contradições de classe e as lutas sociais que se expressam a partir do noticiário de eventos que, aparentemente, explicitam contendas individuais. Tal perspectiva se destaca no texto em que o autor norte americano radicado no Brasil, a partir de um estudo de caso, identifica as versões antagônicas que emergem dos depoimentos divulgados pela imprensa sobre o assassinato de um líder do MST. Assim, não tanto pela interpretação do jornal, mas pelos depoimentos reproduzidos pelos matutinos, demonstra-se como as entrevistas concedidas pelos protagonistas e reproduzidas nas páginas dos noticiários, auxiliam o historiador na análise das diferentes representações que cada um dos envolvidos elabora, a partir de seus interesses e nas circunstâncias sócio / econômico / culturais que os condicionam. Conforme apontado pelo autor, a “aproximação íntima do atirador e da vítima nos diz mais sobre a realidade brasileira do que uma imagem dos dois como lutadores de classes. Aqui estavam dois vendedores, dois homens que viviam de seus próprios punhos, um dos quais se tornou um porta-voz para os camponeses arrendatários, enquanto o outro se tornou, talvez, por apenas um momento, um agente dos interesses latifundiários”.

As disputas pela memória, agora sobre determinado período histórico, são evidenciadas em análise que toma as repercussões na mídia de dois filmes que têm como pano de fundo a última ditadura militar brasileira. Trata-se do artigo que reflete sobre a repercussão dos filmes Lamarca (1994) e O que é isso companheiro? (1997) em três grandes jornais, a Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e Jornal do Brasil.

Recupera-se ainda as representações sobre o feminino vigente em nossa sociedade no início do século XX, particularmente no meio operário que fazia circular jornais em defesa de seus interesses corporativos ou de classe. Toma-se como fonte de informações jornais de tendências anarquistas, os quais, de forma mais enfática, se colocavam como libertários em relação ao gênero feminino. Com a preocupação de ir além da informação e da reflexão crítica sobre a realidade, suas assertivas encontram-se “repletos (as) de opiniões e posições, […] valores, constituindo um campo de tensões no qual surgiram referências variadas ao feminino”. Este universo de informações possibilita hoje ao analista recuperar a posição relativa das mulheres naquele universo, as expectativas de comportamentos, atitudes e preceitos aceitos ou rejeitados, atribuídos ao feminino.

Heloisa de Faria Cruz

Vera Lucia Vieira

Editoras Científicas


VIEIRA, Vera Lúcia; CRUZ, Heloisa de Faria. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 35, 2007. Acessar publicação original [DR]

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Polifonia e Latinidade / Projeto História / 2006

Polifonia – Latinidade / Projeto História / 2006

O mundo polifônico da América Latina – multiverso reconhecido não apenas como organização sonora, mas como modos de ser, formas de manifestação cultural, artística, educacional, política, econômica e, portanto, de práticas sociais historicamente determinadas – é retomado nesse novo número da Projeto História com reflexões que se inserem numa perspectiva historiográfica que faz valer as vozes dos indivíduos e categorias sociais subalternas. Américas, que foram conquistadas por estrangeiros que impuseram suas maneiras particulares de ser, que tentaram aniquilar, constranger, impedir povos inteiros de manifestarem livremente suas próprias culturas, mas que encontraram lutas, barreiras e resistências, forjando no complexo histórico novas categorias modais.

A forma particular de se instaurar a modernização pela destruição das sociedades conquistadas, com o legado do escravismo, matrizou um espaço induzido de objetivação do capital, cuja reprodução atrófica reitera a subalternidade do arcaico, no qual o historicamente novo paga alto tributo ao historicamente velho. Estas entificações particularizam formações economicamente subordinadas, tipos de sociabilidades profundamente assimétricas, modos autocráticos de dominação dos proprietários, que praticam o liberalismo excludente avesso aos processos revolucionários constituintes. E como disse um filósofo: no plano cultural, estas formações se tornam incapacitadas de olhar para si com os próprios olhos e traçar um horizonte para seus dilemas específicos na universalidade dos impasses mundiais.

O debate historiográfico é contemplado nas páginas de Polifonia e Latinidade pelo historiador venezuelano Roberto López Sánchez. Este autor questiona seus pares que dão as costas para os processos de conflito e mudança que abalam nossas sociedades. Partindo do suposto de uma “crise de paradigmas”, busca combater o convívio sem resposta ao retorno da narrativa positivista, aparentemente neutral e objetivista, assim como o domínio de uma história fragmentada do subjetivismo pós-moderno, ambos eurocêntricos. Ante os resultados do novo liberalismo que aprofundou as mazelas do capitalismo latino-americano, ante a crença na superioridade da civilização ocidental sobre as comunidades indígenas, colonizadas e subjugadas, o autor mostra a função social de um corte historiográfico que potencializa a razão dos vencedores: a história como fator de dominação. A crítica tem, portanto, a função de apontar o caráter histórico, cambiante, das formas sociais e do papel protagonizante dos novos sujeitos históricos.

Também o questionamento do positivismo e do pós-modernismo, encontra-se na entrevista de Irma Antognazzi feita com o emérito historiador latino-americano Alberto Plá, na qual a autora enfatiza sua batalha por construir um pensamento crítico. Este historiador que se notabilizou por seus estudos sobre o movimento operário que irrompe em Rosário – a cidade lembrada na história Argentina como a sede do desencadear sangrento da última ditadura militar -, mas que se viu obrigado a se exilar no México, onde atuou na pós-graduação da UNAM e de onde retornou em 1985. Sempre atuando na docência e na investigação sobre a História da América, produziu inúmeros livros e artigos, dentre os quais destacamos: El modo de producción asiático y las formaciones econômico-sociales Inca y Azteca; História y Socialismo; América Latina em el siglo XX: economia, sociedad, revolución; Introducción a la historia del movimiento obrero e Mundialización y crisis en América Latina.

José Luis Fiori se dedica a uma questão central. Qual é a posição da América Latina na nova quadra mundial, na qual os Estados Unidos se lançam para impor sua soberania imperial ao tempo em que China e Índia se agigantam no comércio mundial? Uma vez que na nova arquitetura, com o processo de globalização financeira mundial, a utopia anunciada de uma paz universal não se consumou, nenhuma das conquistas do “presidente da guerra” se vale de algum tipo de negociação. Fiori destaca que os EUA já ocuparam em seu expansionismo várias partes do mundo, territórios da antiga União Soviética, de seus aliados do Pacto de Varsóvia, da região do Báltico e da Europa Central, do Paquistão, e, após os ataques às Torres Gêmeas a 11 de setembro de 2001, a retomada do mando no Afeganistão, a destruição de Bagdá e o descontrole da guerra civil no Iraque. Nessa nova conjuntura, o autor examina a doutrina estratégica do governo americano com sua teleologia imperialista, o “direito ao ataque preventivo”, a fim de conter qualquer rival que o defronte. Há uma nova geografia do capitalismo e no reino do capital, reconhecendo a escassez das fontes de energia, a ambição imperial de Bush busca um redesenho do mapa energético. Como entronizar um novo imperialismo “aceitável ao mundo dos direitos humanos”? Qual a necessidade histórica de uma integração latino-americana oposta aos ditames da ALCA? Se na América Latina, segundo o autor, não houve nenhum tipo de disputa hegemônica, após a substituição da dominação inglesa pelos EUA, quem se habilitaria com a expansão chinesa nesse canto do planeta ?

Edward Said assegurou, certa feita, que A cultura (…) é uma fonte de identidade, e, aliás, bastante combativa, como vemos em recentes ‘retornos’ à cultura e à tradição. De posse desse enunciado, a historiadora Kátia Baggio mergulha no olhar de um viajante ímpar: as representações e imagens de Erico Veríssimo sobre o México e o contraste com os EUA. Artigo denso e de fina sensibilidade, a autora examina o tema da alteridade, da imagem do outro e de si mesmo. O arguto literato se pergunta: “como é possível existirem, tão próximos, países tão diferentes um do outro” e, como a “americanização” intervém na cultura desses povos? Este relato de viagem não é meramente um relato. Trata do multiverso mexicano: a história, a geografia, o teatro, os gestos, a linguagem, os sítios arqueológicos, os frutos nativos, os animais, a música, a religiosidade, entre os vários aspectos da sociedade mexicana. As impressões se sucedem. O romancista nos injeta impressões de cidades como Puebla, Oaxaca, Taxco, Cholula e tantos outros pueblos. Além disso, sempre pela pena de Baggio, este humanista socialista nos revela seu encontro com José Vasconcelos e David Alfaro Siqueiros. A atenção apaixonada para os afrescos dos muralistas mexicanos recebe a sua pertinente especificação. Acentua a dramaticidade de Orozco, a monumentalidade da obra de Siqueiros, as posições de Rivera, Tamoyo e José Guadalupe Posada. Segundo Baggio, o viajante assinalava que o traço essencial do povo norte-americano era o fazer, a lógica do pragmatismo racional. O do mexicano era o ser, a magia, a paixão. “Y quién sabe?”, afirma Veríssimo, o Brasil possa vir a ser um dia a desejada síntese desse dois povos.

“Quatro cenas hispano-americanas e uma breve cena brasileira”. Com esta enigmática formulação, o historiador Júlio Pimentel Pinto tenta definir determinado traçado e estilo nas narrativas dos anos 90. Escritores mexicanos, entre os quais Ignácio Padilla, Jorge Volpi e Eloy Urroz, defendem “o livro contra a externalidade da motivação estética”. O colombiano Medina Reyes assume a “absoluta subjetividade do texto literário”. De sua parte, o chileno Alberto Fuguet refuta a tradição do realismo mágico. Posição compartilhada por Cabrera Infante: “Seguramente o caminho do realismo mágico se fechou completamente”. E, por fim, a posição brasileira: polemizando sobre a “Geração de 1990”, o escritor Marcelo Mirisola se autodefine como produto de filmes comerciais e não diretamente de livros. Qual o significado do termo geração? O historiador com sua peculiar erudição e concisão tenta mostrar como esta geração visa à revisitação do passado e a sua instalação num lugar no presente. Examinando o Manifesto da “Geração Crack” que se ancora nos cânones de Cortázar, Borges, Carlos Fuentes e Piglia, entre outros, o historiador mostra as confluências e a ausência de uma única linha, recusando, no polêmico remate, o realismo mágico como “signo identificador da América Latina”.

Se os conquistadores intentaram de modo consciente dilapidar, tanto material quanto culturalmente, as sociedades subjugadas, há, todavia, resguardos notáveis graças aos esforços de historiadores e antropólogos em preservar traços da vida cotidiana, dos mitos, da cultura material, dos povos indígenas. Num estudo rigoroso, José D’Assunção Barros examina um objeto histórico poucas vezes investigado: a música indígena brasileira. O suposto do autor é o de que esta leitura, mediada por outra cultura, realiza filtragens e apropriações históricas. Há que se entender, como especifica o autor, que uma cultura (…) atribuirá diferentes significados e funções sociais às suas produções sonoras. Como explicar e refigurar a música do “novo mundo”? Além do trabalho do pintor-viajante Jean Baptiste Debret, a pesquisa mostra como Spix e Martius, pesquisadores austríacos, registraram melodias folclóricas e indígenas que são referências até os dias que correm. Outro estudo importante é o do musicólogo Luciano Gallet que atestou em fonogramas colhidos pela Missão Rondon intervalos que se aproximam dos quartos de tom. Para além desses preciosismos, Barros busca inscrever essa música em seu contexto social.

O violão brasileiro tem sido fértil em revelar virtuoses e compositores. O próprio VillaLobos nos legou composições para o instrumento e um modo de tocar que se popularizou mundo afora. Precursor da harmonia presente na bossa nova, autor de músicas de filmes consagrados, o violonista Laurindo Almeida (1917-1995) seguia como “ilustre desconhecido”, em especial em sua própria terra. Em tradução de Cliff Welch, o historiador Dário Borim faz a garimpagem sobre o itinerário, as composições, as concepções do violonista de Prainha, hoje Miracatu. Em 1932, ferido na guerra constitucionalista, Laurindo encontra-se com outro gigante do violão brasileiro: Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto (1915-1955). O fato do violonista ter-se radicado nos Estados Unidos, superando as fronteiras nacionais, impediria de compreendermos sua latinidade, sua peculiaridade musical? Laurindo foi mestre na execução das melodias espanholas, italianas, o cool jazz, mas, era exímio no choro, no baião, no samba, na bossa nova. Quem não se emociona ao ouvir sua versão de Na Baixa do Sapateiro de Ary Barroso?

A polifonia de Astor Piazzolla é vivamente revelada por seu amigo Mauricio Berú. O cineasta argentino, exilado e radicado na capital paulista, relembra traços da personalidade do compositor de Adiós Nonino, sua obsessão, intransigência e energia criadora. O autor de Certas Palavras com Chico Buarque (1980), produziu um dos primeiros clipes do cine latino-americano, precisamente documentando um ensaio do grupo musical de Piazzola (1921-1992). A película Quinteto (1970) serpenteia a música do compositor argentino com o fluxo e a movimentação nas ruas da cidade de Buenos Aires. Em situações diversas, com a presença de Piazzolla, o cineasta captou entrevistas, apresentações, depoimentos, conversações nos Cafés da cidade portenha. Mauricio Berú possui arquivo inédito sobre a vida do músico.

Este número dedica ainda várias páginas ao tema da educação, abordado por reconhecidos especialistas que tratam do assunto em tessituras históricas distintas, mas que permitem ao leitor perceber a influência norte-americana no desenvolvimento de preceitos e práticas educacionais, desde a década de 50, em países latino-americanos, particularmente no Brasil. Gabriela Soares demonstra como o rechaço à intervenção norte americana nas guerras hispano-americanas do final do século XIX faz emergir, a partir de uma reimersão no passado político colonial, autores escritores com a convicção de estarem criando não só uma literatura, mas uma consciência mesmo do continente, a de pertencimento à Ibero-América. O reconhecimento de uma base cultural comum, ampliada para América Latina quando se tratava de incluir aí o Brasil, leva inúmeros literatos e intelectuais a se engajarem em um movimento que visava estreitar laços entre os países que compunham o continente e a valorizar a multiculturalidade através de trocas e intercâmbios em várias áreas. Neste sentido, a autora analisa as iniciativas de vários destes intelectuais, dentre os quais destaca a poetisa e educadora chilena Gabriela Mistral, que, inclusive, passou a residir no Brasil para melhor processar esta integração, assim como as preocupações de Cecília Meireles, Alfonso Reyes e Monteiro Lobato para ampliarem o conhecimento sobre o continente, enfatizando a necessidade de um diálogo entre seus intelectuais e a promoção de ações, particularmente na área educacional.

A influência norte-americana, mais diretamente na área educacional é analisada também em outros momentos da história latino-americana por especialistas como Iraíde Barreiro e Mirian Warde. A primeira traz um assunto ainda pouco abordado pelos historiadores, ou seja, as políticas educacionais para o mundo rural latino-americano, enquanto Mirian Warde aborda a trajetória do pensamento de Anísio Teixeira, ambas a partir da década de 1950. Destaca-se em seus artigos a ampla base documental que subsidiou suas análises, possibilitando ao leitor o conhecimento de aspectos históricos nos quais se fundam práticas e preceitos educacionais. Iraíde Barreiro demonstra como no contexto da guerra fria foi criada a Campanha Nacional de Educação Rural (CNER) cujos trabalhos não se restringiram somente à sala de aula, mas atingiram toda a comunidade rural, em várias frentes como a saúde, o lazer, o esporte, para contribuir na formação de um corpo regrado. A partir de uma noção de cultura centrada no mundo urbano, sinônimo de modernidade, reativam-se, segundo ela, estereótipos negativos sobre o homem do meio rural. Convênios e acordos firmados entre ministérios brasileiros e a Inter-American Educational Foundation, Inc. (Cooperação subordinada ao Office of Inter-american Affairs, agência do Governo dos Estados Unidos), possibilitam maior aproximação interamericana, mediante intercâmbio intensivo de educação, idéias e métodos pedagógicos entre os países. A estes preceitos se somam, conforme a autora, a influência do filósofo cristão de Jacques Maritain e do Pe. Lebret, para os quais a educação comunitária, do grupo e centrada no indivíduo, deveria ser enfatizada como forma de superar o dilema capitalismo / socialismo por meio da “solidariedade”, da “humanização” das relações entre indivíduos e entre as classes sociais.

Em Mirian Warde encontramos os fundamentos dos preceitos educacionais e editoriais do inicialmente católico Anísio Teixeira, o qual, a partir da década de 1950, assume como seu grande referencial a pedagogia de Dewey e o pragmatismo de Henry Ford, de que resulta uma síntese entre o fordismo e a pedagogia pautada na experiência inteligente, acrescida, posteriormente das influências de dois de seus professores norte-americanos: Counts e Kilpatrick. Da correspondência de Anísio Teixeira com seu antigo mestre e amigo Counts, Warde destaca também o desapontamento deste autor ante a indiferença deste último para com a ditadura brasileira que, inclusive, o atinge e à sua família, embora isso não tenha afetado sua convicção na democracia norte-americana.

Nesse sentido, demonstra como este educador dedicou os últimos anos de sua vida – após ter sido compulsoriamente desligado dos cargos públicos que exercia (direção da Capes e do Inep, reitoria da UnB, e membro do Conselho Federal de Educação) –, à série editorial Cultura, Sociedade e Educação, na qual se destaca sua firme convicção nos preceitos liberais, particularmente os norte-americanos, exemplares, segundo ele, da realização da democracia e da pacificação dos interesses sociais, por força da (re)criação do liberalismo, que teria ganhado um sentido plenamente original pela inclusão dos problemas sociais em sua pauta.

Este número da Projeto História traz ainda, como é de praxe, notícias sobre pesquisas em andamento no mundo acadêmico e, nesse sentido, selecionou textos que se destacam pelo ineditismo das fontes utilizadas, de que é um exemplo o estudo sobre os conflitos sociais resultantes da higienização de Fortaleza, no século XIX.

A análise do canto de Carlos Drumond intitulado A rosa do povo aproxima o plano estético da literatura ao seu avesso, conforme afirma o próprio pesquisador, o campo da história; enquanto, na área da política, o informe sobre os estudos relativos ao governo Cárdenas, nos anos 30, se aproxima(m) da preocupação de outro pós-graduando preocupado com a análise da turbulência vicenciada, em pleno século XXI pela Argentina e Venezuela, consideradas como as nações latino-americanas com modelos de sistemas bipartidários consolidados. E, para finalizar, o estudo do pensamento de José Antonio Primo de Rivera, fundador da Falange Española Tradicionalista, antecede a apresentação das resenhas críticas dos livros de Serge Gruzinski, de Juan Carlos Mechoso e do historiador uruguaio Miguel Aguirre Bayley. O primeiro trata da modernidade e identidade latino-americana, o segundo, analisa o movimento anarquista e Bayley a história cultural.

Esperamos que, também com este número, o leitor se sinta contemplado em suas inquirições sobre aspectos da história latino-americana, que vem em continuidade ao número anterior: Américas.

A presença italiana em nossa cultura, como bem o sabemos, é muito relevante. Em fins do século XIX, Don Quixote – jornal ilustrado de Angelo Agostini (1843-1910), localizado à rua do Ouvidor, 109, dava o seu tom para os enfrentamentos de Antonio Conselheiro. O historiador e desenhista Gilberto Maringoni se pergunta: como esse italiano, abolicionista convicto, que denunciou as monstruosidades do regime escravista esposava (d)as concepções conservadoras acerca dos habitantes do Belo Monte, temendo o destino da própria República? Com suas ilustrações sensíveis, o caricaturista, jornalista e militante político, é desvendado numa minuciosa analítica. Os desenhos de Agostini sobre a escravatura mostram cenas de sadismo, torturas, castigos e mutilações que, como o demonstra Maringoni, mereceram o elogio de Joaquim Nabuco à Revista Illustrada, destacada como “a bíblia abolicionista do povo”. O autor perpassa as caricaturas do desenhista italiano e as examina num paralelo com a visão de mundo de Nabuco que refuta a “grande degringolada” da ordem política que sustenta a escravidão deixando, porém, intangível a estrutura econômica assentada no latifúndio. E, nessa visão de mundo, em decorrência da passividade dos escravos sem revolta, acabar-se-ia num conluio entre governo e senhores. Para Maringoni, Angelo Agostini, liberal convicto ao se contrapor ao movimento de Canudos, manifestava a ideologia de nossa elite excludente, produto de nossa modernização conservadora.

Por meio da perquirição dos escritos de dois amigos italianos, que se direcionam para a região platina, Eduardo Scheid aborda a penetração do ideário de Mazzini na então República Rio-Grandense e na cidade de Buenos Aires que assiste a posse de seu primeiro presidente constitucional, Bartolomé Mitre. Os jornalistas italianos se separam ao chegar em Montevidéu. Esta filiação ideológica faz com que um deles, Luigi Rossetti, acentue em especial o caráter internacional das lutas dos partidários da liberdade contra as tiranias em todo o mundo. Gian Battista Cuneo, tornando-se responsável pelas últimas edições do jornal O Povo, tentará, assim como o amigo Rossetti, aplicar o ideário messiânico e religioso de Mazzini no contexto político local. Mazzini clamava por princípios duradouros da humanidade e recusava o egoísmo individualista. A questão que o autor tenta decifrar é a chave histórica: quais razões levaram esses ideólogos a abandonarem o ideário mazziniano?

As disputas e partilhas de territórios invariavelmente estiveram no fundo de conflitos bélicos. No cenário da guerra do Paraguai, em meados do século XIX, a aventura de sujeitos itinerantes e anônimos, com seus registros fotográficos, propiciou modelos imagéticos duradouros. É no próprio campo de combate que florescem valores culturais formativos dos grupos sociais litigiosos. Com este foco, o historiador Airton José Cavenaghi se debruça no desvendamento do outrora “Sertão desconhecido”, a região noroeste do território paulista. Perscruta por meio de mapas da Expedição de Taunay e fotografias dos itinerantes, o imaginário que se cola nesses deslocamentos das paisagens urbanas. Regiões, outrora desconhecidas pelos poderes constituídos, ganham visibilidade e, graças a esses registros, passam a se constituir como identidades de grupos sociais e econômicos, forjando um mecanismo mnemônico de identidade coletiva.

Além disto, o caráter polifônico desse continente transparece também no relato dos estudos que versam tanto sobre produções coletivas de artistas do Canadá, EUA, Austrália, Espanha, França, Dinamarca e Brasil, entre os anos 90 aos dias atuais, como expressão do ativismo contemporâneo; quanto sobre os sentidos e as funções sociais que transparecem em produções artísticas e literárias latino-americanas. Neste sentido, o sempre visitado líder Che Guevara atrai a atenção de dois pesquisadores que nos mostram sua dedicação: um ao resgate das representações e significados políticos que a morte de Che Guevara surtiu para os movimentos de esquerda e meios artístico e musical na América Latina; outro às representações deste ícone das lutas revolucionárias na canção latino-americana.

Vera Lúcia Vieira

Antonio Rago Filho

Editores científicos


FILHO RAGO, Antonio; VIEIRA, Vera Lúcia. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 32, 2006. Acessar publicação original [DR]

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História e Direitos / Projeto História / 2006

História – Direitos / Projeto História / 2006

Na série sobre Las Manos, o pintor equatoriano Oswaldo Guayasamín (1919-1999) plasma a resistência e rebeldia daqueles que são secularmente explorados, expropriados, mutilados, torturados, mas que com suas energias e capacidades subjetivas humanas constroem a riqueza genérica das alteridades, trabalho objetivado na forma da alienação e do estranhamento por conta da reprodução ampliada do capital. A pintura Las manos de la protesta desse artista revolucionário expressa o símbolo das lutas dos de baixo, mas também as possibilidades de conquistas sociais, para além do capital e do Estado, voltadas para uma nova forma de sociabilidade.

História e Direitos oferece reflexões que abarcam as mais variadas formas dessa resistência de indivíduos atuantes, que protagonizam respostas e alternativas às demandas sociais inscritas no próprio evolver histórico. Nem sempre vitoriosas, em tempos e lugares díspares, essas lutas sociais que emergem das contradições materiais da relação-capital buscam formas de hegemonia e contra-hegemonia, que vão dos seringueiros brasileiros às “coordinadoras interfabriles” da Argentina sob terror genocida, das lutas de gênero aos direitos de criação cultural, da luta pela terra à afirmação dos descendentes africanos.

O metabolismo social do capital tem se reproduzido como mundo da mutilação do humano, que impede a plena realização da liberdade dos indivíduos como finalidade intrínseca ao processo de constituição de seu próprio ser genérico. O sonho do desenvolvimento das capacidades humanas sem interdições postas por essa forma societária repõe a luta sem tréguas pela liberdade concreta, como reconhecimento das necessidades do outro, em sua multiplicidade e infinitude, uma vez superadas as contradições imanentes da sociedade atual.

Adentrando nas páginas da Projeto História, detemo-nos na fina e densa reflexão do historiador Pierre Vilar sobre “História do direito, história total”. Ainda que o termo direitos, tal como nasceu a propositura temática para este número, não se restrinja somente às estruturas políticas e jurídicas – pois buscou-se a reflexão dos direitos sociais que brotam da práxis cotidiana das classes subalternas e que buscam erradicar injustiças e chagas sociais –, Pierre Vilar, assumindo os lineamentos ontológicos de Marx, assegura que “é a sociedade civil que faz o Estado e não o Estado que faz a sociedade civil”. As formas políticas e jurídicas são sempre produtos da história, exprimem antagonismos próprios à atividade prática sensível de indivíduos sociais. O reconhecimento do primado da vida prática ancora-se na dinâmica da forma de produção e reprodução da existência material. Vilar atenta para o momento específico em que Marx, dirigindo a antiga Gazeta Renana, se vê diante dos interesses materiais, do vínculo entre forma jurídica e a propriedade privada, que se afirma ante seus olhos e o seu arsenal teórico arrimado na filosofia idealista alemã e não lhe permitia desvendar a natureza efetiva da politicidade. No fundo, Vilar mostra a gênese dos direitos burgueses precisamente assentado na dominância dos proprietários privados: “Trata-se da transição de um modo de produção para outro modo de produção, da morte da sociedade feudal, e a cristalização no direito dos princípios fundamentais do capitalismo”.[1]

Não há como subtrair o papel da subjetividade na produção da riqueza genérica humana. Na história, os seres autoproducentes em sua historicidade – mesmo sob o entulho da exploração e desumanização – ampliam as potencialidades e capacidades humanas para a recriação de si e de seu mundo. A consciência é elemento de impulso da transformação, mas também da acomodação a uma determinada ordem social. “História total”, aqui, significa compreender, sempre de modo aproximativo, o “concreto como síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso”. Reconhecendo, na práxis, a contínua transitividade que envolve os pólos heterogêneos da subjetividade e da objetividade, no processo de objetivação.

Nesse sentido, não há como tomar a liberdade como pura abstração, mas sim referida ao campo de possíveis de seu solo histórico. A forma societária moderna, com seu modo determinado de vida, que imprime a defesa da liberdade do indivíduo circunscrita aos proprietários privados, teve de se confrontar com a resistência dos não-proprietários. As revoluções burguesas cristalizaram em suas fórmulas constitucionais os princípios liberais que são expressões dos pilares ordenadores desse metabolismo social. Basta recordar a legislação sangüinária contra os vagabundos de fins do século XV ao século XVI na Inglaterra, os dispositivos cerceadores dos direitos dos trabalhadores com a Lei Le Chapelier em pleno processo revolucionário francês, a luta de ludistas e cartistas, até as barricadas de 1848, das lutas por emancipação nas colônias à Comuna de Paris, no século XIX. A luta pela inscrição dos direitos sociais no Estado liberal por meio do embate classista levou a que essa forma de dominação cedesse a sua transformação num Estado liberal-democrático, todavia, como poder que atua na auto-reprodução ampliada do capital.

O historiador Francisco Iglesias assinalou que “o liberalismo é mais um ideal que realidade; a filosofia liberal é uma das utopias que raramente se concretizam, mesmo nesse século [XX], que a proclama, ela só existe em certas áreas e em raros momentos, pois comum é a herança de antigos privilégios ou o aparecimento de novos”.[2] Contudo, há que especificar essa ideologia em seus nexos constitutivos, em sua produção social. Em sua “pergunta constrangedora” sobre, afinal de contas, o que devemos entender por princípios liberais, o filósofo Domenico Losurdo se indagou se é possível separá-lo da prática dos proprietários, se é possível a coexistência da defesa da liberdade do indivíduo, da defesa da propriedade privada e sua conservação contra a interferência do poder do Estado, em comunhão com a defesa das minorias contra o “absolutismo democrático”, porém, com a preservação da escravidão? Quais razões levaram os campeões do liberalismo, tais como John Locke, Francis Hutcheson e John Stuart Mill, a sustentarem a necessidade da escravidão? “O fato é que, ao ressaltar a necessidade da escravidão, eles pensam em primeiro lugar não nos negros das colônias, mas nos ‘vagabundos’, nos mendigos, na plebe ociosa e incorrigível da metrópole. Devemos considerá-los iliberais por esse motivo?”.[3]

Por essa razão, rebatendo a apologética do argumento econômico “puro”, Vilar adverte que essa ideologia, ao naturalizar as relações sociais burguesas “esquece os fundamentos jurídicos da sociedade civil capitalista – propriedade absoluta e liberdade de empreender; ora, estes fundamentos só valem se garantidos pela autoridade do Estado”. Além disso, o monopólio da lei e da violência se vêem preservados por mecanismos do anel autoperpetuador entre propriedade privada e Estado. “Ora, um aparelho repressivo nunca é totalmente descolado das regras de direito que se costuma respeitar, seja porque escolhe transgredir sem proclamá-lo, seja porque decide suspender, como se diz, as ‘garantias constitucionais’. Direito público e direito privado, história jurídica e história política são constantemente mescladas: e a própria economia depende disso”.[4]

Como salientou Vieira,[5] até mesmo a “ilimitada” liberdade de expressão de Stuart Mill, definida em seu Ensaio sobre a Liberdade, que afirmava a soberania da pessoa sobre si mesma, com a autoridade do Estado intervindo apenas para impedir danos entre os membros da comunidade, viu-se implementada de forma restrita, dada a manutenção das leis que coibiam a livre expressão e organização dos trabalhadores, a restrição ao voto feminino e às “massas despreparadas”, “incultas e rudes”, conforme propositura de Alexis de Tocqueville, que ponderava sobre o risco de ocorrer uma tirania dessas massas sobre uma minoria, cerceando a competência natural de as elites dirigirem a sociedade de forma ordenada e processual.

Como se pode observar, no interior das contradições entre o conservadorismo e o progressivismo, entre o internacionalismo econômico e os nacionalismos políticos ou no debate sobre a relação indivíduo / coletividade levado a cabo pelo liberalismo, as bandeiras dos trabalhadores que serão consolidadas pela nova ordenação de categorias sociais sem ruptura, restringem-se àquelas que interessavam também à burguesia, como a abolição da servidão – dadas as necessidades da nova ordem capitalista em curso – e a ampliação do direito de voto, que garantia maior possibilidade de integrar a burguesia na representação parlamentar através dos mecanismos constitucionais, sob os auspícios da fraternidade, equivocadamente, conforme já o demonstrava Jules Michelet, no século XIX, imputada às bandeiras revolucionárias francesas.

Sob a égide da igualdade de todos perante a lei, manifestas as desigualdades pelo mérito e não mais por nascimento (mas mantidas e justificadas, é evidente), o século XIX implantou os preceitos do liberalismo calcado na defesa dos direitos naturais, parametrado pelas concepções de Locke, os formuladores da Declaração da Independência norte-americana e da Declaração dos Direitos Humanos, segundo a qual ao governo competiria afirmar os direitos à vida, à liberdade e à propriedade. Implantou também os preceitos do liberalismo utilitarista dos seguidores de Jeremy Bentham, que mesclavam seu racionalismo ao empirismo inglês, exigindo do governo a prova utilitarista da promoção de ações que resultassem no “maior bem para o maior número”.

Mas o cerne da dualidade do mundo moderno figurado na cisão entre vida privada e vida pública, da contraposição de interesses dos proprietários e dos cidadãos, foi desvendado com a identificação do caráter ilusório de uma comunitariedade universalizada no Estado como instituição racional e necessária para harmonizar as contradições reais. Em suas “Glosas críticas ao artigo ‘O rei da Prússia e a reforma social’”, ao rebater as teses de Ruge, Marx buscou decifrou a natureza social do Estado e do caráter impotente de toda e qualquer administração:

“A menos que suprima a si mesmo, o Estado não pode suprimir a contradição entre o papel e a boa vontade da administração, de um lado, seus meios e seu poder, doutro. Ele é fundado sobre a contradição entre a vida pública e a vida privada, entre os interesses gerais e os interesses particulares. Por conseqüência, a administração deve-se limitar a uma atividade formal e negativa, pois seu poder pára precisamente lá onde principia a vida civil e seu trabalho. Em verdade, a impotência é a lei natural da administração, quando ela é posta diante das consequências que resultam da natureza anti-social desta vida civil, desta propriedade privada, deste comércio, desta indústria, desta pilhagem recíproca das múltiplas esferas civis. Pois este esquartejamento, esta baixeza, esta escravidão da sociedade civil constituem o fundamento natural sobre o qual repousa o Estado moderno, do mesmo modo que a sociedade civil da escravidão é o fundamento natural do Estado antigo. A existência do Estado e a existência da escravidão são indissociáveis”.[6]

Vamos repisar num ponto essencial. Essa sociedade de equivalentes – proprietários dos meios de produção, do dinheiro e da riqueza são postos na mesma situação como possuidores de alguma mercadoria, do mesmo modo que os possuidores da capacidade subjetiva do trabalho – coloca os indivíduos numa situação de igualdade e liberdade na esfera da troca. Há que recordar que o possuidor da força de trabalho, “solto e solteiro”, se põe como pessoa livre que detém sua mercadoria, mas também por ter uma existência livre das condições objetivas do trabalho. Ora, a lógica própria do sistema do capital, no ato da troca, converte os possuidores de mercadoria como equivalentes e mutuamente indiferentes. Se o capital busca permanentemente aumentar o tempo excedente dos trabalhos dos produtores efetivos, sua teleologia visa a extração de valor e não a realização das necessidades humanas por meio dos valores de uso. Nesse quadro, assentada nos pilares profundamente iníquos do modo de produção, qual é a gênese e necessidade históricas dessa liberdade limitada? “O interesse geral é justamente a generalidade dos interesses egoístas. Se, portanto, a forma econômica, a troca, põe sob todos os aspectos a igualdade dos sujeitos, o conteúdo, a matéria, tanto individual como objetiva e que leva à troca, põe a liberdade. Igualdade e liberdade, portanto, não são apenas respeitadas na troca que se baseia em valores de troca, mas a troca de valores de troca é a base real, produtiva, de toda igualdade e liberdade. Como puras idéias, são meramente a expressão idealizada dessa base; como desenvolvidas nas relações jurídicas, políticas e sociais, são elas apenas esta base em uma outra potência”.[7]

Na atualidade, vivemos em tempos sombrios, que petrificam as possibilidades humanas, promovendo o desfazimento das alternativas da lógica onímoda do trabalho, assim como entronizando a naturalização da propriedade privada e de sua forma societária. A correta crítica à vulgata marxista, com seus determinismos, em especial o do acento numa inevitabilidade lógica da progressão histórica rumo ao comunismo, todavia, tem se curvado à obediência necessária requerida pelo capital. A apologética acaba por decretar um “fim da história”, conduzindo, dessa maneira, à resignação e ao conformismo a uma ordenação capitalista. Para superar as iniqüidades, as injustiças próprias à concentração e centralização da riqueza, o distributivismo é o aceno possível da sociedade de equivalentes. O indivíduo expropriado, mutilado e resignado atua na direção querida e, portanto, mais apropriada ao prolongamento da utilidade histórica do capital.

O ideário do liberalismo nesta sua forma mais conservadora adquirirá diferentes contornos, nas diferentes vertentes que assumirá este capitalismo em sua internacionalização, garantindo o arcabouço teórico que justifica a correspondente ordenação política. A herança dessa vertente conservadora do liberalismo será assumida por suas categorias sociais dominantes, como sua forma mais “perfeita”, como é o caso das formações dos estados nacionais latino-americanos. Ao analisar a ditadura militar argentina (1976- 1983), Christian Castillo mostrou como, na engrenagem montada pelo terrorismo oficial, se perpetrou o monstruoso genocídio contra a sociedade civil, apontando para o momento essencial dos antagonismos sociais: o controle e desarme das ações autônomas da classe operária.

Nas últimas décadas, ultrapassadas as ditaduras militares, instauradas as distensões democráticas, o tema da violência, sob as mais variadas formas, tornou-se um dos principais objetos de estudos de várias disciplinas na América Latina e particularmente no Brasil. Entidades de direitos humanos e especialistas debruçam-se sobre suas variadas formas: violência doméstica, violência da criminalidade, violência dos organismos policiais, violência no sistema penitenciário, violência no campo, etc. – evidenciando-se que essas violências têm raízes, causas e dinâmicas de natureza diferente. É claro que a situação social exacerba mesmo as violências de cunho privado, como a violência doméstica – de maridos contra esposas, de pais contra filhos – que sempre existiram, mas que, em virtude da tensão existente na sociedade, da precariedade das vidas nas condições do mundo neoliberal, com a formação do desemprego estrutural, tornam-se mais concretas e atuantes.

Quanto à violência que se exerce na esfera pública, sua exacerbação nos dias atuais tem a ver com o quadro da evolução recente do sistema capitalista, em sua fase de globalização, com suas políticas neoliberais implementadas a partir da década de 1980. A revolução tecnológica sem precedentes, a chamada terceira revolução industrial e a introdução da microeletrônica no processo de produção de mercadorias têm levado a uma verdadeira devastação no mercado de trabalho internacional. Um vasto contingente de pessoas em todo o mundo tornou-se dispensável ao processo produtivo e a tendência é que o desemprego aumente ainda mais nas próximas décadas. Esse é um processo irreversível que está mudando o panorama do mundo e atinge não apenas pessoas, mas também países, aprofundando a diferença internacional entre países ricos e pobres, e promovendo exclusão em continentes inteiros. Com isso, levas de marginalizados arriscam-se todos os dias nas fronteiras da Europa e da América do Norte, para tentar entrar no “paraíso” do capitalismo do Primeiro Mundo. E, de modo geral, em todas as grandes cidades do mundo mais pessoas empobrecem e vêm engrossar o bloco dos sem moradia e sem trabalho, das pessoas com empregos precários informais e às vezes considerados ilegais, e por isso sujeitos à repressão institucional.

Paralelamente, no quadro no neoliberalismo, observamos a diminuição dos gastos públicos em políticas sociais abrangentes e universais. Ao contrário, são propostas e implementadas as chamadas “políticas focalizadas”, projetos que só atingem as comunidades mais miseráveis ou pedaços dela, aparecendo como uma vitrine da boa índole dos governos, enquanto cresce, como complemento de toda essa política, o Estado Penal. Para os marginalizados e excluídos que não se mantêm na estrita ordem, o Estado reserva a construção de cada vez mais prisões e a implementação de penas cada vez mais rígidas para os crimes contra o patrimônio dos ricos.

O que se observa é que em tais países, genericamente falando, não se configura um Estado de natureza liberal nos moldes como se configura na Europa após as revoluções burguesas no marco do capitalismo de ponta. Aqui, a configuração do Estado alterna períodos ditatoriais com períodos de dominação de classe que configuram muito mais autocracias burguesas institucionalizadas do que a propalada, mas não concretizada, democracia social. No Brasil em particular, apenas para tomarmos o período posterior à última ditadura e a aprovação da Constituição de 1988, persistem, na ação do aparato repressivo do Estado, mecanismos de tipo ditatorial, porém aplicados seletivamente. Essas contradições também aparecem em outros Estados latino-americanos, onde a remoção do “entulho autoritário” sofre idas e vindas. No Brasil, é como se o Estado democrático de Direito tivesse sido restabelecido apenas em algumas parcelas do território brasileiro e apenas para alguns efeitos. As instituições do Estado democrático funcionam até o limite em que a desigualdade social de classes aparece.

Os atos praticados quotidianamente pelo Estado, inclusive a manutenção de práticas de tortura, cometidas em espaços institucionais pelo aparato policial e infelizmente aceitas pela sociedade em geral e banalizadas pelos noticiários, pouco têm sido objeto de estudos considerados acadêmicos e, não fosse a ação de algumas e poucas entidades a denunciarem tais arbitrariedades, essa impunidade passaria incólume. Nesse sentido, é possível constatar como tais análises tendem a ficar circunscritas ao universo das políticas e denotam o ardil do politicismo, forma de dominação que permite a continuidade da lógica perversa da reprodução ampliada e subordinada ao capitalismo financeiro internacional e modela a dominação política a seus fins específicos. A dominação dos proprietários, reduzida em sua possibilidade de atuar com autonomia e de cumprir sua função de classe nessa particular forma de regime liberal-democrático quanto ao atendimento às demandas sociais (imprescindíveis ao próprio desenvolvimento do capitalismo, sob pena de rompimento da sua própria lógica), reduz sua ação à dimensão do político, enquanto a ordem econômica realiza sua lógica perversa, iníqua e subordinada.

As políticas públicas, fundadas na lógica da “integração” da América Latina aos países hegemônicos, significam a permanência dos vínculos sociais, políticos, econômicos, científicos, culturais, diplomáticos e militares na condição de subordinação. Nessa lógica, o Estado – que, classicamente, aparenta ser distinto das forças sociais que o engendram – gesta políticas que não só não atendem às necessidades sociais, mas se contrapõem a elas, atingindo, por vezes, até mesmo os segmentos da burguesia que lhe dão sustentáculo.

Nesse contexto e diferentemente do processo de ascensão da burguesia européia e do ordenamento do seu correspondente aparato estatal, a burguesia nacional mostra-se incapaz de promover sua revolução, pois isso demandaria unificar-se internamente e apoiar-se na forças sociais que exclui. Nessa condição, essa classe, no limiar das necessidades de promover reformas impostas pelo próprio desenvolvimento do capitalismo, mantém os “enclaves autocráticos” vigentes nos períodos de ditaduras bonapartistas, consolidando a dominação. Longe ficamos do preceito que as leis são a exteriorização das vontades dos indivíduos como um corpo único, isto é, cidadãos fazendo as leis e se reconhecendo nelas. As leis coagem arbitrariamente os indivíduos, porque impostas de cima para baixo e apenas vigorando conforme a lógica da dominação que expressa uma categoria social cuja potência auto-reprodutiva do capital é extremamente restringida, uma categorial social que é incapaz de exercer sua hegemonia e, com isso, incorporar e representar efetivamente os interesses das demais classes subalternizadas numa dinâmica própria.

Os processos de distensão democrática que reinserem formas autocráticas após os períodos ditatoriais ocorrem com muitas semelhanças entre os países latino-americanos submetidos a ditaduras ou “autoritarismos”. Nestes, as lideranças no novo poder concordam em manter preceitos autocráticos em nome da segurança nacional, da manutenção da ordem, dos compromissos internacionais assumidos (pagamento das dívidas nos mesmos moldes preconizados). Não se trata apenas de uma composição, mas da permanente recomposição pelo alto, que se evidencia ao longo da história de nossas formações sociais, que conheceram um caminho sinuoso, tortuoso e hipertardio que gesta o capital atrófico, que reproduz o arcaico, no qual a burguesia, por sua incompletude de classe, mostra-se incapaz de liderar as reformas necessárias ao desenvolvimento do próprio capitalismo, fazendo alianças com segmentos do historicamente antigo, a fim de lhe garantir a força suficiente, ante sua debilidade estrutural, do Estado autocrático burguês.

Caracteriza-se, assim, um poder político em que as decisões políticas, sejam de ordem social, econômica ou cultural, não conseguem atender às demandas sociais, reordenando permanentemente as mesmas categorias dominantes no bloco do poder, mantendo núcleos autocráticos que ensejam o “cesarismo militar”.

“A reflexão contemporânea sobre a politicidade, o entendimento político e as formas de poder, nessa quadra histórica, têm sido tomados permanentemente como uma recorrência ao aperfeiçoamento dessas formas, visando a corrigir os seus defeitos e, com isso, alcançar a sua perfectibilidade. Desconhecendo, desse modo, a razão das taras sociais. Há que reconhecer, no entanto, que ‘Por natureza, a política sendo a administração do domínio de uns sobre outros, jamais pode ser a sagração da santidade’”.[8]

Num universo em que se descartou a perspectiva de futuro, há que resgatar um antigo lema do movimento dos trabalhadores, segundo o qual a emancipação humana implica a superação da parcialidade inerente à liberdade política em direção à liberdade social. “Liberdade da vida cotidiana que passa a compreender a relação ativa e consciente do homem com a forma societária que o engendra e que por ele é engendrada. Liberdade da vida cotidiana que requer muito mais do que a universalidade abstrata da cidadania, pois exige a possibilidade da autoconstrução cotidiana do homem e de sua mundaneidade. O que significa que pela potência onímoda da lógica do trabalho, difundida por toda a enervação da convivência, o indivíduo recupera em si mesmo o cidadão abstrato, não mais separa de si força social sob a forma de força política, reconhece e organiza suas próprias forças como forças sociais, de modo que converte, por tudo isso, na vida cotidiana, no trabalho individual e nas relações individuais, em ser genérico, em individuação atual pela potência de seu gênero”.[9] É o que se impõe, ao menos enquanto aposta futura, como sendo o próprio exercício da liberdade concreta, num revolucionamento permanente, mediante a comunidade interativa de indivíduos em seu processo de individuação social.

Notas

1. VILAR, P. História do Direito, História Total. Projeto História – História e Direitos, n. 33. Trad. Ilka Stern Cohen. São Paulo, Educ, 2006, p. 27.

2. IGLÉSIAS, F. História e Ideologia. São Paulo, Perspectiva, 1981, p. 72.

3. LOSURDO, D. Contra-História do Liberalismo. Trad. G. Semeraro. Aparecida, SP, Idéias & Letras, 2006, p. 17.

4. VILAR, op. cit., p. 34.

5. VIEIRA, V. L. “Autocracia Burguesa e Violência Institucional”. Paper tematizado nos Seminários de Marxismo do Núcleo de Estudos de História: trabalho, ideologia e poder. Departamento de História da Faculdade de Ciências da PUC-SP, 07 de dezembro de 2006.

6. MARX apud CHASIN, J. A determinação ontonegativa da politicidade. Revista Ensaios Ad Hominem, T. III, Política. Santo André, SP, Estudos e Edições Ad Hominem, 2000, p. 95.

7. MARX, K. Troca, Igualdade, Liberdade. Revista Temas de Ciências Humanas, n. 3. São Paulo, Livraria Editora Ciências Humanas, 1978, p. 06.

8. RAGO FILHO, A. “O ardil do politicismo”. Revista Projeto História, n. 29, T 1. São Paulo, Educ, 2004, p. 156.

9. CHASIN, J. A determinação ontonegativa da politicidade. Revista Ensaios Ad Hominem, T. III, Política. Santo André, SP, Estudos e Edições Ad Hominem, 2000, pp. 126-127.


FILHO RAGO, Antonio. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 33, 2006. Acessar publicação original [DR]

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Américas | Projeto História | 2005

Neste número, Projeto História volta-se para questões relativas à América Latina a partir de artigos e pesquisas realizados por especialistas na área, preliminarmente submetidos a um conselho editorial, que conta agora com a colaboração ampliada de investigadores latino-americanos, os quais vieram somar sua competência aos já integrantes advindos de países do continente europeu.

É inquestionável que o interesse e as demandas sociais por maiores conhecimentos sobre formações latino-americanas vêm aumentando substancialmente nos últimos anos. As razões desse interesse são de várias ordens, passando pela intensificação ou retomada de relações econômicas entre o Brasil e outros países da região, em especial do Cone Sul, o incentivo governamental à ampliação dessas interações, até o reconhecimento ou questionamento de nossa “latinidade” no bojo das reflexões sobre identidade nacional, a “brasilidade”. Leia Mais

Guerra, Império e Revolução / Projeto História / 2005

Este número da revista Projeto História atenta às repetições dos desmandos, humilhações e contínuas tragédias humanas, faz um chamamento à reflexão sobre temas que marcam nossos próprios destinos. Guerras, impérios e revoluções nascem de processos sociais contraditórios, que ganham configurações específicas, inusitadas, em suas próprias singularidades. A dominação de grupos sociais sobre outros; os embates político, religioso e étnico; a conquista de domínios territoriais; o gigantismo da subjugação e extermínio de populações civis; a regressão dos direitos sociais dos indivíduos são produtos da interatividade societária, todavia, não são traços perenes e eternos, são, sim, formas transitórias, históricas.

Paul Celan, em Fuga da morte (1952), escreveu que “a morte é um dos mestres da Alemanha seu olho é azul acerta-te com uma bala de chumbo acerta-te em cheio”.1 Adorno, detendo-se sobre essa poética pós-Auschwitz, com indignação e coragem, enfatizou que essa regressividade jamais poderia ser repetida, pois “a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que têm de fundamental as condições que geram esta regressão. É isto que apavora”.2 É possível agir sem ter essa indignação como móvel? É possível criar, educar, poetizar, cantar tendo em mente o que se passou? Mas a barbárie parece não ter fim. O revisionismo atual continua com sua pregação criminosa recheada de inverdades históricas. Pierre Vidal-Naquet arrolou essas concepções negacionistas, relativistas, neonazistas, que se disseminam: a inexistência do genocídio e da câmara de gás; a “solução final” vista como “recuo” ou “expulsão dos judeus para o Leste europeu”; o número de vítimas é bem menor, pois, dizem, há grande número de casos de morte natural; o maior inimigo da humanidade foi Stálin e não Hitler; a Alemanha hitlerista não foi a única responsável da Segunda Guerra Mundial; o genocídio é mero recurso propagandístico judaico e sionista.3

Não nos esqueçamos que as guerras mundiais do século passado foram guerras intercapitalistas. Os potentados imperialistas que conheceram a via sinuosa, tortuosa, retardatária de objetivação do capital tinham como meta uma nova partilha do mundo. Para tal era necessária uma ideologia de guerra, uma ideologia de mobilização nacional – e não importam aqui os nódulos que a sustentam, se montada no darwinismo social, no anti-semitismo, no anticomunismo, no ideal nazista de beleza, na pureza e superioridade da raça, no irracionalismo de todos os matizes –, uma ideologia que pusesse em marcha multidões em nome de um patriotismo visceral que vingasse o extermínio de outros povos.

Mas, nos dias que correm, as atuais guerras, genocídios, torturas e práticas criminosas, como jogos de diversão sexual, como as verificadas nas prisões de Abu Ghraib e Guantánamo, as ocupações de territórios como na guerra do Iraque, são expressões do novo imperialismo ou do domínio do Império, tal como Toni Negri e Michael Hardt tentam conceituar a nova configuração mundial?

Domenico Losurdo tenta problematizar esta nova quadra histórica, retomando as teses leninianas sobre o imperialismo. Tenta responder acerca da natureza dessas intervenções bélicas; seriam, em verdade, imperialistas ou, como quer Michael Hardt, balizadas para tutelar os direitos humanos? Seria a intervenção norte-americana no Iraque uma aposta, por meio da brutal violência, pela defesa intransigente de concretização da democracia para um povo incivilizado? Como explicar que, no momento em que se busca invalidar a categoria do imperialismo, se assiste, ao mesmo tempo, a uma série de operações militares que reforçam a tese leniniana da essencialidade da guerra de talhe imperialista? Losurdo visa, em confronto com o conceito de Império, dos filósofos Negri e Hardt, responder a esta e outras questões: “Por que a derrota do ‘campo socialista’ abriu o caminho, não para o afrouxamento, quanto para um enrijecimento da situação internacional? Por que à Guerra Fria não se seguiu a paz perpétua prometida pelos vencedores, quanto uma série de guerras quentes que parece não ter fim?”.

No mesmo diapasão, Christian Castillo investe contra as teses inscritas em Império. Segundo esse autor, com a persistência do desemprego de massas, da precarização do trabalho, vários autores passaram a discorrer sobre o “fim do trabalho”, a “sociedade pósindustrial” regida pelo “capitalismo cognitivo”, que superaria a teoria marxiana do valor. Com a diminuição crescente do proletariado industrial teria emergido na cena histórica um novo sujeito social: a “multidão” constituída de indivíduos independentes e autônomos. Para essa perspectiva, segundo Castillo, “a atividade cognitiva torna-se o fator essencial de criação de valor, calculando-se este em grande parte por fora dos lugares e do tempo de trabalho”. Com o predomínio do “trabalho imaterial” no mercado globalizado, a cooperação social do “general intellect”, o cérebro se torna, na acepção de Negri, a “máquina útil que cada um de nós carrega em si”. Surge, daí, uma nova configuração da luta social não engendrada por relações contraditórias, dialéticas, mas uma nova alternativa que prescinde da transição. O conceito de “transição” é substituído pelo de “poder constituinte”. Castillo tenta rebater esse “novo antagonismo” a partir da dialética imanente ao sociometabolismo do capital e da determinação do trabalho alienado, visando à compreensão dos verdadeiros limites e potencialidades da categoria social dos trabalhadores.

Márcio Seligmann-Silva nos oferece um competente e rigoroso ensaio sobre o conceito de testemunho em vários registros, todavia, buscando o dialógico entre paradigmas que certa interpretação busca separar, e ele, ao contrário, os integra respeitando suas diferenças. Trata-se, de um lado, do testemunho enquanto testis, que tem como centralidade a visão, e o testemunho como experiência vivida, supertestes, concernente àquele que está na condição de “manter-se no fato”, “como alguém que habita na clausura de um acontecimento extremo que o aproximou da morte”. Na rica seara dos estudos literários e suas ramificações, o autor tece os imbricamentos entre narrativas ficcionais e as ações dispostas no mundo efetivo, valendo-se desses modelos. Os estudos sobre a Shoah e o “testimonio” hispano-americano, entretanto, apontam para a virada de paradigma que vem ocorrendo no campo das artes e da literatura.

Modesto Florenzano apresenta os caminhos do revisionismo na historiografia contemporânea da Revolução Inglesa. Traça um paralelo com a historiografia francesa e examina as confluências e diferenças que apontam para essa “herança conflituosa”. Considera François Furet e Lawrence Stone como as principais figuras desse “embate”, que põe de ponta-cabeça os resultados do conhecimento histórico sobre o processo revolucionário. No caso inglês, desde 1953, Trevor-Roper propiciou outra interpretação acerca da visão de Tawney sobre “a ascensão da gentry”, simplesmente negando sua condição de classe empreendedora e capitalista. Acabava por inverter o caráter e o significado de seu ser revolucionário. Modesto sinaliza que a historiografia conservadora, com referência ao revisionismo francês, vai além, passando a negar a própria existência da revolução. Respondendo às principais questões do debate em solo inglês, o historiador destaca o vigor das análises de Thompson, Christopher Hill, Hobsbawm e Perry Anderson, nessas “batalhas espetaculares”.

Izabel Marson retoma as interpretações históricas de Marx e de Victor Hugo no que tange ao Golpe de Estado de 2 de dezembro de 1851. O contraponto se faz por meio das obras O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte e Napoleão, o pequeno. Golpe de Estado que inaugura pelas armas o II Império francês e dissolve a República Parlamentar. Victor Hugo, que jogara seu prestígio na eleição presidencial de Luis Bonaparte, agora, desiludido, parte para o ataque. Marson resgata a qualidade da narrativa-testemunho, mas aponta para os limites dos princípios e métodos praticados pela historiografia liberal francesa. O dramaturgo francês é levado à inevitável comparação com a grandeza de um, o tio, e a pequenez política e moral do sobrinho, Napoleão III. Do prisma marxiano, é o processo histórico que torna inteligível os movimentos de indivíduos, grupos, classes sociais, nos episódios do 2 de dezembro e seus desdobramentos. No confronto, a narrativa de Victor Hugo elide a complexidade histórico-social, reduzindo as tramas sociais às ações de um indivíduo. “O acontecimento propriamente dito aparece em sua obra como um raio caído de um céu azul”. Por isto, analisando os eventos políticos, Marx especifica como a luta de classes engendrou “as circunstâncias e condições que possibilitaram a uma personagem medíocre e grotesca desempenhar um papel de herói”.

Vera Lucia Vieira, num esforço exemplar, expõe os limites e as possibilidades das constituições burguesas. Enfrentando questões espinhosas das relações entre iluminismo, liberalismo, constitucionalismo e também o fluxo da democracia para formas autocráticas no bojo das lutas de classe, a autora aponta para a determinação ontonegativa da politicidade que perpassa o aparato jurídico da dominação proprietária. Do prisma marxiano, mostra como os passos constitucionais não se separam dos conflitos práticos que se estampam na consolidação conservadora após os processos sociais advindos com as revoluções burguesas. É na própria organização social, em sua disposição assimétrica, que se encontram os pilares que estruturam a base do poder político do capital. E não na busca da inteligência ou vontade políticas. Com as intervenções revolucionárias da classe trabalhadora, os proprietários, em sua resposta contra-revolucionária, sedimentaram seu mando com uma legislação feroz e violenta regrando a mobilização das classes subalternas.

Lincoln Secco apresenta um amplo balanço das configurações do “comunismo histórico”, expressão que denota o papel dos partidos comunistas no poder político de várias formações sociais cuja organização produtiva se estruturou a partir da abolição da propriedade privada dos meios de produção. O autor investiga a complexidade do movimento comunista, desde a revolução russa de 1917, os impasses do drama histórico e da crise advinda com o relatório dos crimes de Stalin revelado no XX Congresso do PCUS em 1956, assim como a ruptura entre URSS e China, em 1961. Passa em exame as revoltas estudantis e populares, como a invasão da Tchecoslováquia, em 1968, os conflitos fronteiriços entre China e URSS, de 1969, assim como o declínio e a estagnação de suas formas produtivas e a crise social aberta no sistema. O historiador fornece um quadro preciso da distribuição das forças comunistas em vários países, não apenas na Europa, mas também na Ásia e na América Latina.

Valério Arcary intenta a crítica da “teoria dos campos progressivos” de Eduard Bernstein. A inflexão da nova teoria política que desanca a filosofia marxiana, jogando-a ao limbo, é aqui desvelada à luz da história. Ponto de confluência com o stalinismo, o revisionismo de Bernstein também opera a naturalização da história e projeta uma catástrofe final. O télos da história é o socialismo democrático. Só que no terreno das reformas graduais, lentas e pacíficas. Valério Arcary dilucida as circunstâncias dessa ideologia, que se despe da necessidade histórica, em tempo de normalidade aparente, e se põe na ruptura com o objetivo final, a estratégia da revolução social. Recorde-se que, para Bernstein, o capitalismo monopolista superara o caos do sistema, as contradições internas do próprio capital. Daí a crítica à dialética hegeliana, as contradições que se resolvem em nova síntese, com suposta (falsa) base teórica de Marx e o alinhamento ao “retorno de Kant”. Uma vez banida a revolução social, o imperativo categórico da liberdade atua como retor moral, como idéia reguladora de atos possíveis, porém jamais atendidos. Daí a teoria da revolução, da luta de classes e do valor-trabalho serem inteiramente descartados. Só é possível a diminuição das desigualdades, ajustes possíveis, por meio da ação parlamentar. Daí que somente com esse “método”– a estratégia gradualista, a defesa da centralidade dos meios sobre os fins e da moral sobre a política revolucionária – o apóstata de Marx vislumbra a democracia como valor universal como paradigma civilizatório do socialismo, a via parlamentar sempre em permanente aperfeiçoamento e progressão.

A seção Entrevista apresenta o ensaísta consagrado, Boris Schnaiderman, que além de ter contemplado nossa “República das letras” com traduções primorosas de clássicos russos como Dostoiévski, Tchekhov, Púchkin, entre outros, e como memorialista e romancista, a tornada clássica Guerra em surdina, dispõe-se mais uma vez a narrar suas experiências sobre a Segunda Guerra Mundial. Ao lembrar daquela “estranha epopéia dos brasileiros”, a combatividade dos nossos soldados da FEB, Boris Schnaiderman, com seu humanismo incontrastável, diz que esperava por um desastre. Porém, “o soldado brasileiro teve uma atuação surpreendente na guerra. Comportou-se muito bem”. Isso se deve ao fato de que “o brasileiro era mais hábil inclusive porque vinha de ambientes mais pobres. Geralmente pessoas originárias de tais circunstâncias têm uma capacidade maior de improvisação”.

A Guerra de Canudos recebe um tratamento crítico que se contrapõe à versão consagrada por Euclídes da Cunha. José Maria de Oliveira Silva examina As prédicas de Antonio Conselheiro e refuta a imputação de elementos messiânicos a milenaristas ao beato. Dessa maneira, o historiador ressalta novas especificidades desse fenômeno histórico, a partir das pregações, como a concepção providencialista da história, a pobreza edificante e o caráter piedoso de A. Conselheiro.

O artigo de Giselda Brito põe à prova algo cristalizado pela análise convencional em nosso país, a saber: o Estado Novo seria o projeto integralista abocanhado por Getulio Vargas. Segundo sua interpretação, o integralismo e o Estado Novo não seriam a mesma coisa. Acentuando traços comuns como o anticomunismo, a crítica à liberal-democracia, a luta de classes, a busca de coesão nacional contra os regionalismos, a necessidade de um Estado forte e intervencionista, por si só, no nível de generalidades abstratas, a analítica convencional acaba por elidir as diferenças, suas especificidades históricas. Destrinçando a natureza do discurso ideológico de Vargas, a autora revela como o bonapartista do entre guerras esmera em atacar os “adeptos de idéias externas”, “os desordeiros e perigosos inimigos” do “destino imortal” da nação. Vargas imputa aos comunistas e integralistas a disseminação de ideologias nefastas que causam instabilidade política.

Em nossos tempos, o casamento do projeto neoconservador americano com a investida política de Bush sob o signo da guerra preventiva, batizada de “Choque e Pavor”, contra o Iraque, faz parte da nova estratégia (ou arquiantiga?) de vingar o modus vivendi da única superpotência mundial para o “resto do mundo”. Afinado com a ideologia neoconservadora do “fim da história” e do triunfo do modus vivendi norte-americano, segundo o qual testemunhamos, na última quadra histórica do século passado – como rezava o ideólogo Francis Fukuyama –, “o fim da História enquanto tal: ou seja, o ponto final da evolução ideológica da humanidade e a universalização da democracia liberal ocidental como forma última de governo humano”. Mas que isso não encubra os propósitos declarados de subjugação e domínio das reservas de petróleo, gás, água, minérios, etc., em especial assegurados para os monopólios norte-americanos. Bem antes do monstruoso ataque às torres gêmeas de 11 de setembro de 2001, por membros do grupo AlQaeda, os neoconservadores como Paul Wolfowitz, Donald Rumsfeld, Francis Fukuyama, entre outros, ainda sob a administração de Bill Clinton, sugeriam o ataque e destronamento de Saddam Hussein. O Oriente se apresenta como esfera de influência, parte anexada ou controlada pela grande potência com seu projeto “hegemônico benevolente”.

Enfocando essas questões, Paulo Edgar-Resende põe a nu a doutrina da guerra preventiva, estabelecendo nexos com a política imperialista do “Destino Manifesto”. Daí a atualidade da interpretação do sociólogo Max Weber ao imputar influências entre a ética protestante e o espírito do capitalismo. Segundo o autor, “a presença tentacular dos Estados Unidos no mundo atual tem justificativa religiosa, expressa na direção de cruzada do eixo do bem contra o eixo do mal”.

O historiador Ettore Quaranta, com fina erudição, examina a influência da tradição grega e do Oriente no que tange ao significado essencial do culto ao soberano. A partir da “Vitória guerreira”, oriunda da epopéia de Alexandre, o autor sinaliza como a cultura grega nutriu o regime da realeza no período helenístico configurando um novo mundo heterogêneo, com os aportes do estoicismo e a divinização real. Projeto História retoma também a problemática da guerra e do poderio romano, a formação e ampliação do imperium. A interpretação de Políbio sobre o império romano é retomada por Breno Sebastiani. Este autor busca compreender, no interior da historiografia polibiana, as conexões íntimas entre a Segunda Guerra Púnica e a Constituição romana desse período e, com isso, o suceder de atos que potencializam o poderio romano. Na visão de Políbio, tanto a guerra como a estrutura constitucional romana são tomadas como causa preponderante de sua política expansionista e domínio militar sobre outros povos.

O protagonismo das mulheres é retomado em nossas páginas por Vanessa Cavalcanti ao tratar da “politização do privado” e do combate aos silêncios da esfera doméstica. A revolução das mulheres tornou-se, de modo irreversível, metro societário que dispõe as potencialidades de novas maneiras de viver por meio dessa conquista do gênero humano. Tematizando tanto experiências pessoais e subjetivas, quanto aquelas da esfera pública, a autora demonstra o papel efetivo das lutas feministas na desconstrução das práticas discursivas que, em tempos de guerra, ressurgem com suas formas virulentas e garras inumanas.

Questionando a concepção habermasiana de “esfera pública”, Giulia Crippa e Marco Antonio de Almeida buscam apreender as relações recíprocas entre mídia, guerra e cultura, a partir da complexidade que aflora na “sociedade de informação”. Confluindo com as reflexões de Rancière, que ampliam a acepção de democracia como “democracia enquanto regime de escrita”, não apenas reduzida ao âmbito da política, os críticos apontam para a constituição de uma opinião pública sem coações, livre e aberta. Com Walter Benjamin, os autores atestam que a malha formada, na modernidade, pela circulação de mercadorias e troca de informações “proporciona o compartilhamento da experiência (Erfahrung) e aciona a possibilidade da narração dessa experiência”. Todavia, como é possível ultrapassar os limites iluministas da concepção habermasiana de espaço público sem a banalização dos grandes temas da experiência humana? Como superar a supremacia ideológica do “pensamento único”, da perspectiva de esquerda, de um modelo único de democracia?

A cobertura do “11 de setembro” da revista Veja aponta para a unilateralidade e posicionamento comprometido ante os métodos imperialistas do “presidente da guerra”. A historiadora Carla Silva mostra que, nas páginas de Veja, não há espaço para o contraditório. Com coragem, a autora, pela crítica imanente, desmonta os preconceitos e argumentos falaciosos, ao mesmo tempo em que revela as ligações entre Bin Laden e a CIA, o apoio dado pelo governo estadunidense a outrora aliados, que se transformaram no “fascismo islâmico”.

Hannah Arendt considera uma “confusão moral” a atribuição de uma culpabilidade coletiva de modo indistinto; enquanto os verdadeiros responsáveis por atos criminosos e inumanos continuam sem ter sequer o mais tênue remorso. Acusava cada “dente da engrenagem”, pessoas que cumpriam funções burocráticas no interior do sistema repressivo. Nos julgamentos do pós-guerra, de indivíduos que praticaram o terror em maciça escala, que se tornaram assassinos de multidões, muitos dos criminosos lesa-humanidade corroboraram a idéia de que “se eu não tivesse feito isso, outra pessoa poderia ter feito e faria”. Há que denunciar aqueles que se valem do “método de cavar buracos gigantescos para enterrar fatos e acontecimentos indesejados”.4

Em tempos de barbárie inaudita – no repor-se de formas de talhe imperialista, com a ocupação de terras alheias, que significa imposição violenta de modos de vida estranhos, com a utilização da guerra preventiva, do assassinato seletivo, do terror sem limites, e de tantas outras formas que dilaceram os indivíduos e suas sociedades –, há que se perguntar, como fez Primo Levi diante do holocausto, a que ponto ficamos reduzidos: “Isto é um homem?”. Isto somos nós? Ou como vozeirava Susan Sontag: é possível ser indiferente diante dos horrores dos genocídios, das ocupações, dos massacres, das violentações que passam diante dos nossos olhos, e não se indignar diante da dor dos outros?

Em tempos tensos, de predomínio do niilismo, numa era de supremacia bélica da grande potência, a decomposição do caráter tem levado ao pessimismo cego e incondicional que não mais acredita em possibilidades humanas mais autênticas. Nessa quadra histórica, com a revolução tecnológica sem precedentes, com o desfazimento do Leste europeu e o prolongamento da utilidade histórica do capital, é premente perguntar se é possível sonhar ainda com uma vida humanamente social, a liberdade da vida cotidiana, da comunidade interativa de indivíduos livres em permanente autoconstrução, na qual, como frisa Marx, “o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos”.5

Notas

1. Cf. Epígrafe (Todesfuge, tradução de Modesto Carone). In: RHODES, R. Mestres da morte. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2003.

2. ADORNO, T. W. Educação e emancipação. São Paulo, Paz e Terra, 1995, p. 119.

3. VIDAL-NAQUET, P. Os assassinos da memória. Campinas, São Paulo, Papirus, 1988, pp. 37-38.

4. ARENDT, H. Responsabilidade e julgamento. São Paulo, Companhia das Letras, 2004, p. 340.

5. MARX, K e ENGELS, F. Manifesto comunista. São Paulo, Boitempo, 1998, p. 59.

Antonio Rago Filho

Editor científico


FILHO RAGO, Antonio. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 30, 2005. Acessar publicação original [DR]

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Cultura e Poder: O golpe de 1964 – 40 anos depois (I) | Projeto História | 2004

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Transcorridos quarenta anos do golpe militar de 1964, vários eventos significativos aconteceram nas universidades, no Brasil e nos Estados Unidos, nos centros culturais, privados e públicos, contando com a participação de muitos pesquisadores. Artigos foram publicados em jornais e revistas da grande imprensa. O público leitor em geral e acadêmico em particular teve a seu alcance biografias, narrativas de experiências pessoais, livros analisando o golpe e o significado histórico e político do governo militar. Todos esses eventos marcaram, em 2004, os quarenta anos da instauração do regime militar em nosso país. Na ocasião, várias linhas de pesquisa, várias interpretações do governo de João Goulart e do governo militar foram dadas a conhecer ao público.

Uma das posições que mais se difundiu foi a de que aqueles acontecimentos trágicos, em especial toda a atuação dos dez anos de governos, de Vargas a Jango, eram negadores da democracia. Como uma diátese, o grosso dessa interpretação contaminou todo o corpo do pensamento acadêmico brasileiro, em especial o paulista. Leia Mais

Cultura e Poder: O golpe de 1964- 40 anos depois (II) / Projeto História / 2004

Cultura – Poder: O golpe de 1964- 40 anos depois (II) / Projeto História / 2004

Neste tomo 2 da Revista Projeto História, que ora se apresenta, com a justa homenagem ao cientista político e historiador René Armand Dreifuss, autor de obra seminal intitulada 1964: a conquista do estado, desenvolvemos o III Encontro de Estudos de Realidade Nacional, que o Programa de Estudos Pós-Graduados em História estimulou e organizou em fins de março e princípios de abril de 2004. As contribuições desenvolvidas no Encontro mais aquelas recebidas configuram esta edição temática.

A Revista Projeto História reúne expressivos artigos que sobrevoam assuntos variegados e aqui pontualmente apresentados. Recebe atenção a reflexão acerca das lutas sociais no campo brasileiro que incitaram os grandes proprietários rurais a se mobilizarem para o complô contra João Goulart, o presidente democraticamente eleito. Campos de disputas, também no historiográfico, destacam-se a história das Ligas Camponesas de Francisco Julião, a atuação dos comunistas na mobilização dos lavradores rurais, a atuação dos camponeses no Centro-Sul. A rica história das lutas sociais na região da Alta Mogiana, Noroeste de São Paulo, no pré-64. No interior desse vasto painel, destacam-se a resistência armada no sul do Pará, em 1972, e as concepções militaristas de nossa esquerda comunista. Traçam-se as formas de atuação e de organização específicas na articulação das lutas no campo e na cidade. No seguimento dos fracionamentos no V Congresso do PCB, em 1960, a formação da dissidência já comportava uma duplicidade de concepções, seja na preparação, organização e desencadeamento da resistência armada, seja nas organizações legais. No plano cultural, estudos analisam a literatura de cordel, o “folheto epitáfio” com a isotimia e a assimilação do articulador do golpe, o morto pranteado que aparece como “vulto” nacional, general Castello Branco, no seu leito de morte. Interrogam-se as funções das representações políticas nos folhetos populares. O conspirador visto como o salvador das “garras do anticristo”. Os poetas populares justificam ideologicamente os atos autoritários do presidente como promotores de bem comum à nação.

Na esfera artística, examinam-se peças teatrais, como Calabar, de Chico Buarque e Ruy Guerra, que atuaram na crítica, refletindo sobre as invasões holandesas, para servir de crítica às formas de dominação reinantes. As experiências estéticas de Glauber Rocha são revisitadas num texto instigante que explora o “cinema-verdade” do documentário, todavia, recheado de estratégias de agressão e do grotesco alegórico. Detém-se nas conexões entre Maranhão 66 e a obra-prima Terra em Transe (1967), percebendo a articulação entre história, política e ficção.

Este número da Projeto História também congrega inúmeras pesquisas de nosso mestrado e doutorado, as que estão em vias de se completar ou aquelas já defendidas em nosso programa, abrigando contribuições de outras instituições e de fora do nosso estado. Podemos sumariar, para não nos alongarmos em demasia, algumas delas, como a questão do terrorismo oficial e da rede de estruturas e equipamentos da repressão; a questão da anistia da perspectiva dos jogos de afetos, dos direitos humanos e das associações da sociedade civil que com sua luta criativa souberam penetrar no coração do regime. O papel da Igreja católica, abrigo e eficácia na denúncia do arbítrio e da barbárie, dos massacres transformados em “banalizações do mal”. No plano da cultura, importantes temas se apresentam, com destaque para resistência cultural, no plano artístico. Questão complexa e de difícil tratamento, mas vital para a compreensão das ditaduras latino-americanas, alinham-se pesquisas sobre a Operación Condor.

Reafirmando as críticas inscritas no tomo 1: por esta engrenagem monstruosa e seus resultados, é legítimo se perguntar sobre a responsabilidade da guerra suja. Os crimes cometidos são, independentemente dos espaços nacionais onde foram praticados, crimes de lesa humanidade. Assim como ocorreu com as Mães da Praça de Maio, em Buenos Aires, que mantêm a memória sempre viva, não para repor perdas do passado, mas porque representam a continuidade da luta pela “memória do futuro”; em nosso país, as responsabilidades pelos desaparecidos, crimes, seqüestros, esquartejamentos, torturas ficaram novamente impunes. A impunidade é a nossa marca registrada. Reconhece-se que houve abusos e atos arbitrários; no entanto, extinta a máquina, com ela desapareceram os agentes da repressão, e com eles, o esquecimento e o silêncio de seus atos, mandantes e inspiradores. O cinismo dominante afirma que nossa ditadura foi “branda”. Há que rebater, no entanto, graças a coragem das famílias, do grupo “Tortura Nunca Mais”, de historiadores e combatentes, que continuam a pesquisar, a denunciar e a refazer as contas acerca do número de mortos e desaparecidos. Há que acrescentar, aos 386 até aqui constatados, aproximadamente mais de um milhar de trabalhadores do campo exterminados.

As conseqüências dos atos bárbaros e arbitrários se misturaram à violência caseira do cotidiano: a prática cotidiana da tortura – comum nas cadeias brasileiras – torna-se, com os esquadrões da morte, com os aparelhos do Estado, uma prática institucionalizada. Um tipo de prática de extorsão, de ascensão social rápida, de enriquecimento ilícito nos meios policiais, de prostituição e jogatinas à luz do dia, vão se juntar à prática suja e indigna dos empresários no financiamento da repressão oficial.

A divulgação recente de várias fotos montadas e falsificadas, do jornalista Vladimir Herzog – numa delas, nu e em posição desesperada e humilhante, e noutra, com uma mulher ao lado –, só comprovam como os órgãos de repressão se valeram de todos os meios para intimidar, amordaçar, amedrontar, punir, eliminar.

Uma “Nota” afrontosa do Centro de Comunicação Social do Exército, publicada na Folha de S. Paulo, dia 19 de outubro de 2004, tentava justificar os seus “métodos” na luta contra a “subversão”. Nela se faz a apologia dos atos criminosos e, invertendo os próprios fatos, responsabiliza a oposição por se fechar ao diálogo. A facção durista sustenta que “as medidas tomadas pelas Forças Legais foram uma legítima resposta à violência dos que recusaram o diálogo, optaram pelo radicalismo e pela ilegalidade e tomaram a iniciativa de pegar em armas e desencadear ações criminosas”. Ao revés do esperado, não houve responsabilizações; pior, o posicionamento contrário de José Viegas Filho, o ministro da Defesa, custou-lhe caro, sendo destituído pelo governo dito de esquerda e popular, que atendeu às reivindicações dos chefes militares. A partir de então, a pressão pela abertura dos arquivos da ditadura foi realimentada ainda que o general Francisco Roberto de Albuquerque tenha salientado que o Exército não possuía mais nenhum documento sobre a guerrilha do Araguaia. A ABIN (Agência Brasileira de Inteligência), de sua parte, diz ter aproximadamente 4 milhões de documentos da ditadura militar.

No Chile, a 10 de novembro, o presidente Ricardo Lagos divulgava relatório com mais de 35 mil testemunhos de vítimas de tortura sob a ditadura de Augusto Pinochet (1973-90). “Quantos países se atreveram a olhar com profundidade sua própria história? Quantos países se atreveram a chegar ao fundo do que ocorreu? O Chile se atreve”, declarou o presidente chileno. Ao contrário da atitude regressiva e covarde do governo brasileiro, o comandante-em-chefe do Exército, general Juan Emilio Cheyre, reconheceu a monstruosidade praticada pelas Forças Armadas de seu país no arbítrio e desumanidade dos atos cometidos. Como escreveu o jornalista Jânio de Freitas, a 19 de dezembro, à página A 13, de 19 de dezembro de 2004, “A participação de militares brasileiros na Operação Condor está razoavelmente conhecida. Mas as Forças Armadas brasileiras deram contribuição importante ao golpe de estado no Uruguai e tiveram participações comprometedoras no golpe de Pinochet. […] As razões para a recusa à abertura de arquivos são muito maiores do que a solidariedade por espírito de corporação.”

Não custa repetir a rigorosa síntese acerca dos momentos significativos da ditadura militar, que o historiador Nelson Werneck Sodré fez, à época dos trinta anos do golpe, e, com isso, nós fechamos essa apresentação: “O movimento vitorioso em abril de 1964 foi uma ditadura anunciada, longamente anunciada, amadurecida ao longo dos anos da guerra fria. Estabelecida, desenvolveu-se em três etapas: a inicial, até o AI-5; a intermediária, do AI-5 à chamada distensão; o final, da distensão à derrocada. Note-se: a ditadura não foi deposta, daria lugar a profundas modificações na estrutura do regime. Tendo sido extinta pelos seus próprios gestores, pela impossibilidade em continuá-la como desejavam, transferiu à fase seguinte, à chamada distensão, todos os seus problemas, todas as suas mazelas, à carga de suas características de atraso. […] Não, por acaso, tornou normal e usual o que o nazi-fascismo estabelecera de mais torpe, com o exílio, o banimento, a prisão, a tortura, a privação dos direitos elementares, a insegurança do indivíduo, a destruição cultural e, para culminar, o assassínio estabelecido como processo comum e o seqüestro e desaparecimento dos adversários como norma costumeira. A ditadura foi o crime erigido em lei. Muitas das suas torpezas foram herdadas pelo que veio depois e por isso continuamos a nos debater com os mesmo problemas de trinta anos atrás. Isso prova que só o emprego da força da violência, sob todas as suas formas, pode impedir a sociedade brasileira de alcançar a vitória daquelas reformas estruturais de que o nosso povo tanto necessita. E merece”[1]. 40 anos depois, a tragédia brasileira parece continuar…

Nota

1. SODRÉ. Nelson Werneck. “1964: A Ditadura Anunciada”. In: Golpe de 64. Porto Alegre: Universidade Estadual de Porto Alegre, 1994, p. 10.

Antonio Pedro Tota

Antonio Rago Filho

Editores científicos

Dezembro de 2004


TOTA, Antonio Pedro; FILHO RAGO, Antonio. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.29, n.2, 2004.  Acessar publicação original [DR]

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Projeto História | PUC-SP | 1981

pROJETO HISTORIA3

A Projeto História (São Paulo, 1981-) é uma revista mantida e editada pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em História da PUC-SP, sem fins lucrativos, de âmbito nacional e internacional que tem por objetivo contribuir para promover e divulgar as pesquisas na área da história com destaque para os campos da cultura, sociedade trabalho, que correspondem as linhas de pesquisa do Programa.

A Projeto História, em formato eletrônico, é quadrimestral e contém artigos originais, traduções, pesquisas e resenhas. Os artigos podem ser enviados em português, inglês, espanhol, francês e italiano, devendo ser inéditos e seguir as normas de publicação presentes no site.http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/index.

Projeto História é quadrimestral e cada volume é composto por: Artigos vinculados ao tema do dossiê;  artigos com temas livres; notícias de pesquisas, resenhas.

Os critérios de seleção do tema de cada dossiê é o de acompanhar as tendências da historiografia, abrir debates sobre seus fundamentos e/ou estar em sintonia com as questões mais relevantes que se põem mundialmente no período correspondente a cada edição. Seu conselho editorial é público e conta com especialistas reconhecidos de diferentes instituições nacionais e internacionais.

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Acesso livre.

ISSN 2176-2767

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