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Cultura & Música Popular na Primeira e Segunda Repúblicas | ArtCultura | 2011
Justo no momento em que a ArtCultura: Revista de História, Cultura e Arte beira a casa de 800 assinantes, temos a satisfação de lançar seu número 22, que consolida ainda mais a parceria estabelecida entre a Edufu, o CNPq, a Capes e a Fapemig. Desde os idos de 2007/2008, quando passamos a contar com recursos oriundos dessas agências de fomento à pesquisa, a revista ganhou em musculatura e ampliou significativamente suas redes de interlocução. Já há algum tempo ela recebe demandas de publicação dos mais diferentes estados do Brasil e do exterior, com destaque para Alemanha, Argentina, Colômbia, Cuba, Espanha, Estados Unidos, França, Inglaterra, Jamaica, México e Portugal, como que a atestar a extensão do seu raio de alcance. Nesta edição, por exemplo, para além de pesquisadores nacionais, o elenco de colaboradores inclui intelectuais de três desses países, o que também equivale, a julgar pelo seu perfil, a uma reafirmação do caráter transdisciplinar deste periódico.
Depois de publicarmos mais de um minidossiê/dossiê sobre História & Cinema (v. ArtCultura n. 10, 13 e 18), chegou a hora de reduzirmos a escala de observação. Desse afunilamento do objeto de estudo surgiu novo minidossiê, que faz da relação entre História & Cinema Cubano-soviético seu ponto de ancoragem. Sua organização foi confiada a uma expert no assunto, Mariana Martins Villaça, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp-Guarulhos), que, para dar lastro internacional a esse conjunto de quatro artigos, convocou – sendo prontamente atendida – um pesquisador francês e outro cubano. Leia Mais
A Primeira República / Tempo / 2009
A Primeira República, em especial as décadas iniciais do novo regime, vem ganhando crescente interesse e espaço na produção historiográfica brasileira. Muitos são os historiadores, sobretudo os dedicados à história política e cultural, que têm retomado o período numa chave distinta daquela que o consagrou como a República “Velha”. Por essa razão, este dossiê se inicia com uma reflexão de teor historiográfico que objetiva desnaturalizar o uso de tal designação, ainda muito utilizada e compartilhada, tanto na literatura acadêmica como na escolar. Afinal, periodizar, nomeando um “tempo”, é um ato de poder, como os historiadores sabem por dever de ofício. Nessa operação nada é ingênuo, sendo necessário pensar que sentidos uma determinada nomenclatura deseja atribuir a um “espaço de tempo”, o que necessariamente implica considerar quem e quando se constrói tal designação. No caso, a de República “Velha”, uma autêntica “fórmula mental”,1 que certamente exige questionamentos, a começar pela indicação de que, não casualmente, foi imaginada e adotada pelos ideólogos autoritários das décadas de 1920 / 30.2 Desde então, ela foi propagada, com ênfase durante os anos do Estado “Novo”, outra fórmula de periodizar a história política brasileira, diretamente ligada, por contraste, às décadas que o precederam.
Com essas breves observações, fica evidente a imensa carga de disputas políticas e memoriais que tais designações contêm, e como elas se associam claramente aos projetos dos intelectuais que estiveram mais fortemente envolvidos em sua produção, legando-as ao pensamento social e à historiografia brasileira. Por isso, consideramos interessante transcrever o primeiro parágrafo de uma dissertação de mestrado em História, defendida em 2008, na medida em que ele pode materializar, com esmero, a longa duração e o forte compartilhamento dos sentidos de um projeto político, passível de ser datado das décadas iniciais do século XX.
Há algum tempo tenho interesse pelo período denominado Primeira República. (…) A idéia que ficava recorrente, assim que saíamos do ensino médio, era a de que a “República Velha” é um período de verdadeiro caos, de desorganização; afinal, o Império havia desmoronado e os poderes se tornariam cada vez mais descentralizados. Aparentemente, o que fica no nosso imaginário é a identificação dos anos que vão de 1889 a 1930 como uma desordem ou bagunça generalizada, um tempo marcado pelo vazio de idéias, propostas e ações significativas para a nação brasileira.3
A partir dessas constatações, é possível defender e postular uma necessária e urgente revisão historiográfica do período, ou seja, sua retomada de forma inteiramente diversa, assinalando-se sua importância e riqueza para o debate de idéias e a experimentação de ações políticas e culturais no Brasil. Sendo assim, é bom realizar um percurso, que embora pareça tortuoso, é justificável, e tem seu início marcado por considerações que envolvem um retorno, mesmo que muito rápido, ao Estado “Novo”. Vale lembrar, então, que tal período recebeu essa designação por obra dos políticos e intelectuais nele engajados, com a nítida intenção de acentuar sua força transformadora; na verdade, sua força revolucionária. O golpe que instalou o Estado Novo, uma ditadura com chefe civil amplamente sustentada por forças militares, em especial pelo Exército, já foi destrinchado e caracterizado como um “golpe silencioso”.4 Um silêncio – de protestos e reações de qualquer tipo e origem –, que evidencia não apenas o poder dos que ascendiam à direção do Estado, como também a existência de um projeto político que incluía a construção de uma imagem para o presente que se inaugurava e, em decorrência, para o passado que o antecedia e para o futuro que seria sua própria criação.
Exatamente por atentarmos para a existência desse ambicioso projeto político-cultural, algumas observações são convenientes. Em primeiro lugar, a da existência de uma interpretação que considera o Estado Novo, em bloco, como um evento que se articula diretamente às intenções dos revolucionários de 1930 e é um desdobramento natural da “revolução”, produzindo um corte radical com o passado do país. Em segundo lugar, que a Primeira República, a partir daí decididamente “velha”, também em bloco, passa a ser avaliada como um grande fracasso e equívoco, praticamente desde seu começo, em 1889 ou 1891, anos da Proclamação ou da Constituição, não importa. Assim, nessa narrativa, vemos como as elites vitoriosas do pós-1930 inauguravam um projeto político que se concluía com o Estado “Novo”, enterrando definitivamente uma República “Velha” e tornando os anos que vão de 1931 a 1936 uma antecâmara da presença inevitável do golpe de novembro de 1937. Uma versão / interpretação de um conjunto de acontecimentos, absolutamente teleológica, mas nem por isso menos eficiente e duradoura. Em outros termos, queremos chamar a atenção para os vínculos existentes entre uma proposta fundadora (em várias dimensões) do Estado Novo e o estabelecimento das bases de uma periodização da história republicana do Brasil, ainda muito vigente, na qual esse regime autoritário tem posição estratégica e decisiva. Nos termos dessa interpretação, a Revolução de 1930 assinalaria um novo e grande ponto de partida na história do Brasil, rompendo definitivamente com o passado; vale dizer, com os erros da Primeira República: liberal, oligárquica, fraca, inepta, europeizante e política e culturalmente afastada do “povo brasileiro”.
Esse é o aspecto que queremos destacar. Isto é, que tal periodização, reforçando formas de nomear / compreender o tempo, está defendendo valores e criando concepções ligadas a uma tradição inventada de antiliberalismo, que condena não só as idéias liberais, como também suas práticas, seus atores sociais e suas instituições e organizações político-culturais. As eleições, os parlamentos, os partidos políticos e os variados tipos de associativismo são, assim, geralmente desqualificados como ineptos e / ou desnecessários. Essas práticas participativas, expressas em organizações e movimentos que reuniam atores diversos são, assim, minimizadas e / ou apagadas. Tais associações, que eram muito numerosas e diversificadas, ligavam-se à expressão e demanda de direitos que eram, ao mesmo tempo, civis e políticos, pois envolviam a liberdade de pensamento e sua expressão, inclusive para lutar pelos novos direitos sociais, que se tornavam mais conhecidos e desejados.
Sabemos que não é de fato nenhuma novidade assinalar os vínculos entre a construção de um pensamento autoritário no Brasil e as críticas ao liberalismo, encarnado e identificado na política e nos políticos “profissionais” da República “velha e oligárquica”. Contudo, alguma novidade existe em registrar a eficiência desse processo de construção de tradições e enquadramento da memória nacional. O objetivo é destacar como ele foi capaz de abarcar e esgotar a experiência política, social e cultural da Primeira República em um tipo de narrativa que, identificando, selecionando e valorizando apenas determinadas vivências do campo da política formal, transforma-as em símbolos do fracasso da experiência liberal do período, como um todo.
Nesse sentido, vale atentar para dois aspectos dessa construção memorial, ainda pouco comentados. Primeiro: como ela seleciona e enfatiza um conjunto de procedimentos exercidos no espaço da representação político-parlamentar, traduzidos especialmente pelo momento das eleições, silenciando toda uma variada e numerosa gama de formas de participação política e cultural, ocorridas nesse espaço de tempo. Ou seja, como, nesse tipo de narrativa, não se destaca e mesmo se ignora uma série de experiências de mobilização e organização de atores coletivos (e de atores coletivos modernos, como os trabalhadores e o patronato), em torno de questões de seu interesse. Quer dizer, marginaliza-se, nunca ingenuamente, todo um conjunto de vivências, envolvendo diferenciados grupos sociais, que demandavam políticas às autoridades públicas, propondo e implementando uma série de iniciativas através de suas formas de associativismo, fossem elas na área da educação, da saúde, da política econômica, da regulamentação do mercado de trabalho e da expressão cultural, entre outras. Um processo de escolhas do que lembrar e do que esquecer que é obra política articulada desde os anos 1920, mas que permanece tendo vigência na historiografia e no ensino de história sobre a Primeira República.
Assim, podemos afirmar que ainda se desconhece, basicamente por falta de estudos, uma rica movimentação de atores – intelectuais, trabalhadores, setores de classes médias e populares – empreendida no campo da participação política, que alcançou desenhos variados e mais ou menos formalizados em instituições e associações muito variadas. De toda forma, o que desejamos ressaltar é como esse apagamento da esfera da participação política durante a Primeira República está relacionado com o diagnóstico então construído – e desde então acreditado – de que o “povo” brasileiro não tem capacidade de ação coletiva; que a sociedade brasileira, sendo inorgânica, é insolidária e, por isso, pouco afeita (praticamente de forma ontológica) às formas de associação de um modelo liberal-democrático.
Segundo: como essa seleção que dá destaque à esfera da representação política é plena de sentidos, pois seu objetivo é, claramente, rebaixar tal tipo de experiência participativa, ressaltando que ela estava pautada em procedimentos fraudados e fictícios, portanto, desprezíveis e inócuos, devendo ser afastada e negada de maneira definitiva. Algo que ganhou brilhante formulação na concepção de “Brasil legal”: um Brasil “irreal”, porque fundado em leis inaplicáveis ao país, por terem sido copiadas de experiências estrangeiras e, por isso, desconhecerem o “Brasil real”. Uma dicotomia célebre, fortemente presente no pensamento político e social brasileiro, que tem como seu núcleo duro a descrença no poder da institucionalidade jurídico-política liberal. Dessa forma, as leis, inclusive e com destaque as constituições, são vistas como peças que têm, por definição, pequeno ou nenhum grau de eficiência na transformação da realidade social. Seus enunciados, por conseguinte, não são vistos como guardando uma diretriz normativa, um “horizonte de possibilidades” para o futuro. O descolamento, como se postula, entre o legal e o real é, ao contrário, geralmente postulado na chave da ignorância das “verdadeiras” características do Brasil, gerenciado por leis “utópicas”, feitas “para não pegar” ou “para inglês ver”. Aliás, por isso mesmo, seria possível incluir quase tudo nas leis brasileiras, já que elas – tradicionalmente e até propositalmente –, não são feitas a sério e, portanto, não devem ser levadas a sério.
Talvez o exemplo de um documento, certamente paradigmático, seja útil para se entender como se estabeleceu esse tipo de cultura histórica sobre a Primeira República que, como se pode perceber, transborda o período do pós-30 e se expande em sua desconfiança para com os princípios liberais, até os dias de hoje. Trata-se de um misto de conto e depoimento (de ficção e não-ficção), publicado em 1941, na revista Cultura Política, um periódico oficial do Estado Novo, direcionado a fazer propaganda do regime e de seu presidente. De autoria de Raimundo de Ataíde, intitula-se: “Recordações de um cidadão que nunca votou”. Como era usual na revista, o texto é precedido de uma apresentação da editoria, que contextualiza o que vai ser lido, apropriando-se do texto e ressignificando-o segundo as diretrizes políticas do Estado Novo.
Jornalista militante na imprensa do Rio de Janeiro, porém natural do estado do Ceará, onde viveu longo tempo – dá-nos o autor um sugestivo flagrante de um momento de eleição no interior do Brasil da República Velha. É um testemunho curioso de como se processavam as eleições, naquela época que já se distancia tanto do Brasil Novo, alentado por impulsos de progresso político mais sadios e mais viris.5
A seguir o que se lê é um delicioso relato de um dia de eleição em Pacatuba, pequena cidade do interior do Ceará. Preciso quanto às práticas vigentes nessas ocasiões, não há uma data cronológica a localizar os fatos narrados. Assumindo-se o ponto de vista de Cultura Política, eles permitem um acompanhamento detalhado do poder dos coronéis da região, os grandes inimigos dos revolucionários de 1930 e de 1937, e também os grandes símbolos do liberalismo decadente da República “Velha”. O texto permite, assim, uma reencenação das críticas e acusações feitas às práticas liberais, em função das fraudes eleitorais, muito comuns e sabidamente violentas, nos sertões brasileiros. Como se percebe desde a apresentação, tratava-se de algo já distante do Brasil Novo, mas ainda não inteiramente superado, o que justifica o desejo de serem lembradas e combatidas.
Do ponto de vista do historiador, o relato é muito valioso. De um lado, porque descreve o que certamente ocorria em boa parte do país quando dessas ocasiões, mas assumindo o ponto de vista de um eleitor de “oposição”, já que o pai do autor / narrador era o Juiz de Direito da cidade; mas um juiz que não se conformava com aquelas “mascaradas eleitorais”. Ou seja, um juiz que não fazia parte do arranjo coronelista então dominante e que o relato faz crer não participar de qualquer outro tipo de arranjo, o que atribui ao que é dito uma veracidade suplementar ao próprio caráter, si só apresentado como “verdadeiro”, do testemunho. De outro, porque retomando o evento eleitoral a partir da retórica de “um cidadão que nunca votou”, navega entre a Primeira República e o Estado Novo, contrapondo suas crenças e valores e militando em favor do segundo, que advogava uma “democracia autoritária” mais “sadia” e que, para tanto, havia suprimido todos os procedimentos e instituições liberais.
De forma absolutamente abreviada, o narrador mostra que o dia de eleição era um dia de festa na cidade, cheia de “matutos”, que para lá afluíam alegres e bem arranjados para votar, embora mal soubessem assinar seus nomes. Havia também muitos soldados, além de missa, tragos de bebida e até almoço na Casa da Câmara. Havia, o que vale assinalar, algum grau de disputa entre os coronéis, tanto que o caráter extraordinário do acontecimento acaba sendo alterado, durante seu decorrer. Isso porque o clima de espetáculo, meio cívico, meio cômico, pois os “granfinos do lugar se riam à socapa daqueles cidadãos”,6 é rompido pelo assassinato de um homem, ocorrido após uma discussão política “em defesa do chefão político” em que fora votar. O episódio, que tem lugar quando o autor era “moço”, marca-o para sempre, não só porque o criminoso, preso por seu pai e do partido do governo, é logo posto em liberdade, como porque ele fica sabendo de muitas outras “safadices e intrujices dos politiqueiros”, pelo Brasil afora. Quer dizer, “decência e honestidade nas eleições constituíam exceções à regra geral. (…) Esse estado perigoso de coisas foi que a minha geração encontrou (…)”.7 Entende-se, então, o fenômeno de “ordem inteiramente psíquica”, o complexo que inibia o comparecimento às urnas desse eleitor, que não acreditava no êxito de seu gesto, na eficácia “daquela atitude coletiva”, o que explicava, como se vê no último parágrafo, “o fato do brasileiro não se ter entrosado com sucesso no sistema representativo pelo voto (…)”.8
É preciso ficar claro, contudo, que com a mobilização desse texto, não estamos querendo negar ou minimizar a ocorrência de fraudes e violências eleitorais na Primeira República, o que efetivamente existia, limitando e desestimulando a representação política dos cidadãos; porém, como diversos estudos têm demonstrado, a despeito de sua existência, a realização de eleições cumpria papel chave no sistema político de então. De um lado, porque eram fundamentais para uma relativa, mas estratégica, circulação de elites, introduzindo na cena política um mínimo de competição e renovação. De outro, porque eram responsáveis por uma incipiente, porém pedagógica, mobilização de eleitores, o que ocorria certamente de formas muito diversas, fundamentando um aprendizado político constante pela realização sistemática dos pleitos. Afinal, o dia de eleições era ao menos um dia de alegria, encontros e disputas – um dia de festa na avaliação do autor – para os muitos “matutos” que também participavam, a seu modo, daquele espetáculo cívico-cômico. Além disso, é possível argumentar, com sólidas evidências históricas, que a Primeira República tinha tantos problemas de governabilidade e de incorporação de atores, como várias outras liberais-democracias européias, consideradas clássicas. Nelas, também os partidos políticos se apresentavam como “clubes de elites”; também os critérios de inclusão ao corpo político passavam pelo saber ler e escrever e por critérios de idade e sexo, admitindo-se apenas o masculino; e também havia fraudes, clientelismo etc.9 Importa assinalar igualmente que, nos anos 1910 / 20 / 30, esses exemplos internacionais foram vistos, primeiro como modelos a serem seguidos, ainda que não copiados; e depois, embora não de forma generalizada, como experiências a serem abandonadas, em nome de uma originalidade a ser alcançada, que passava justamente pelo questionamento das idéias liberais.
Portanto, desde o início dos anos 1920, avançava uma contundente crítica ao reduzido grau de governo do Estado liberal republicano. Este, por sua fragilidade institucional, não estava conseguindo um bom desempenho na tarefa de forçar os principais atores políticos (as oligarquias) a cooperarem, abandonando seus interesses mais particulares e imediatos, em nome de horizontes de mais longo prazo. Era o que se identificava como o domínio dos interesses egoísticos, o mundo do caudilhismo, do coronelismo. Essa fragilidade, que se expressava na insuficiente consolidação e funcionamento das instituições políticas brasileiras, bloqueava a criação de um verdadeiro espaço público, para o qual os conflitos privados pudessem ser canalizados e solucionados. Só assim seria possível a incorporação de novos atores, que se agregariam através de novos arranjos políticos, capazes de limitar a força excessiva do privatismo, sustentando uma autoridade centralizadora incontestável. A imagem que, durante a própria Primeira República, dela se construiu pelos que a criticavam com um claro objetivo de desautorizar o modelo político-institucional estabelecido, era a de uma República instável e ineficiente, distante do Brasil “real”, fundamentalmente devido à sua adesão ao liberalismo político.
Os ideólogos do Estado Novo, portanto, irão aprimorar e, sobretudo, divulgar e consolidar essa versão interpretativa. Nela, a Primeira República, conformada a partir da experiência representativa, vista pelo que tem de pior (e esse pior existe, mas não é tudo que existe), é lançada de forma ampla e geral em um poço de incompetência política. Ela nada acrescentaria à nossa história, estando completamente apartada e “atrasada” em relação a outras experiências internacionais que lhe eram contemporâneas. Aliás, quando as aproximações são feitas, o que se evidencia é essa decalagem ante as “democracias avançadas”, onde haveria opinião pública, eleitores conscientes e políticos “autênticos”: competentes, éticos etc. Naturalmente, uma realidade distante do Brasil, lugar de ausências e descaminhos; lugar de atraso e de insolidarismo.
Interessa aqui notar o fato de tal interpretação estar considerando esse período do regime republicano um total fracasso, por não fazer jus nem a seu “passado”, especialmente o do Segundo Reinado, nem a seu futuro, o dos sucessos da Revolução de 1930. A República “Velha”, nessa versão, teria se excedido na adoção da fórmula federativa, copiada dos EUA, o que não só comprometera definitivamente o próprio liberalismo no Brasil, como nos desviara do caminho centralizador já apontado pela monarquia. Por fim, toda a elite político-intelectual daquele período, em suas várias correntes, teria falhado completamente no campo simbólico, pois não conseguira construir nem um imaginário republicano poderoso, nem um sentimento cívico de amor à nova pátria.
Sabemos, há algum tempo, que as expressões culturais não são prisioneiras dos regimes políticos. Mas é impressionante constatar como as versões e interpretações sobre essas expressões no primeiro período republicano, inclusive posteriormente reproduzidas pela historiografia, possuem enorme correspondência com as avaliações políticas sobre o período, divulgadas pelos ideólogos do Estado Novo. Assim, se a Primeira República, através de seus políticos e intelectuais, não tinha sido bem sucedida na construção de um imaginário republicano e de um sentimento cívico de amor à nova pátria, também não tinha conseguido valorizar e incorporar o Brasil “real”, formado pela contribuição racial e cultural de índios, negros e portugueses.
O Estado Novo e seus ideólogos conseguiram trazer para si todos os méritos da criação de um país de todos, unificado política e culturalmente, através da construção de um povo mestiço, em termos festivos e musicais, tanto no samba e no carnaval, como em diversas manifestações folclóricas de todas as partes do país. O governo Vargas e a década de 1930 passaram a representar, na memória nacional, um momento de ruptura do passado cultural brasileiro. A valorização da música popular, do carnaval e até mesmo da capoeira – tudo nos faz crer – precisava esperar esses novos tempos.
A Primeira República, para seus críticos, teria também sido fraca e incompetente culturalmente, pois havia buscado um ideal nacional imitativo das nações mais civilizadas, não investindo na valorização de gêneros populares e nacionais. A Primeira República era mesmo “velha” por não ter rompido com antigos cânones literários, artísticos e musicais elitistas, ligados à música universal e eurocentrista. Seus políticos e intelectuais não teriam conseguido associar as manifestações populares, suas peculiaridades e potencialidades, à identidade da nação e da arte brasileiras. As críticas ao liberalismo político da Primeira República se irradiaram para o mundo cultural pela sua associação aos valores europeus, distantes de nossas originalidades e tradições populares.
Sem dúvida, o Estado Novo, com grande apoio das ondas do rádio, investiu pesadamente numa política cultural que buscava romper com um pretenso e velho passado cultural. Visava construir uma nova cultura nacional através da valorização de certas expressões afrodescendentes e populares; especialmente as musicais, definidas como sertanejas, folclóricas ou populares, foram vistas como uma forma de arte que uniria todo o país sob a égide de um novo Estado, responsável por uma nova política cultural. Músicos populares e sambistas ganharam destaque; os desfiles de carnaval receberam renovado apoio oficial. O canto orfeônico, por sua vez, difundido em todas as escolas do país, representaria o combate, no campo cultural, ao individualismo e egoísmo das tradicionais oligarquias regionais – os condenáveis atores políticos do regime anterior a 1930.
Foi inegável o investimento dos ideólogos do Estado Novo na produção de uma imagem de Estado forte e construtor de uma nação “real”, em termos de cultura e história nacionais. Da mesma forma que no campo da história estritamente política, o maior problema para quem se dedica à história cultural do período é também assumir as versões sobre o protagonismo do Estado Novo como a “verdade” da história, incorporando-as à historiografia brasileira.
Como vários estudos já demonstraram, a Primeira República está repleta de exemplos de intelectuais e políticos que, numa conjuntura marcada pelas disputas em torno dos direitos dos recém-libertos e dos trabalhadores de forma geral, investiram na construção de uma nação com traços europeizantes e condenaram – até mesmo pela força – o Brasil mestiço, africano, negro e popular. Mas isso não foi tudo! Muito menos podemos apostar numa escala evolutiva e gradual em relação às políticas de valorização das culturas dos setores populares (dentre eles muitos afrodescendentes) que, teleologicamente, tenderiam a ficar mais receptivas à medida que o Estado Novo se aproximava. Inverter os sinais, lenta ou rapidamente, quando se trata de avaliar, negativa ou positivamente, as políticas da Primeira República e dos governos de Vargas, não ajuda à compreensão das relações entre política e cultura, entre os sujeitos sociais e seus mecanismos de participação política e cultural ao longo da história recente do Brasil. Atribuir todo o protagonismo da valorização da cultura popular aos governos Vargas é também abrir mão de reconhecer os investimentos dos setores populares, por esse reconhecimento, muito antes do Estado Novo e do chamado movimento modernista, nos anos 1920.
Diversas pesquisas recentes têm aberto caminho para se pensar o quanto associações recreativas, esportivas, carnavalescas e dançantes da população negra e pobre das cidades, especialmente na capital, conseguiram legitimar-se na Primeira República, ao buscarem (e conseguirem) autorizações e direitos na relação com as instituições republicanas, autoridades municipais e policiais. E bem antes dos anos 20! Em meio a perseguições policiais cotidianas – que também eram comuns no pós-30 – grupos carnavalescos impuseram às cidades suas formas de socialização e de brincar o carnaval. Por outro lado, se o apoio dos órgãos culturais e políticos do Estado Novo valorizaram expressões culturais negras e populares, as operações de escolha do que era o verdadeiro popular e nacional nunca deixaram de ser seletivas e de envolver uma boa dose de perseguição ou de censura aos candomblés, às organizações de lazer populares e às letras de samba. A cultura, em qualquer período histórico, é um campo aberto a conflitos e disputas políticas.
A música popular e o samba, associados à idéia de “alma da nação mestiça”, não precisaram esperar as bênçãos dos chamados modernistas ou das autoridades do Estado Novo. Desde pelo menos o final do século XIX e as duas primeiras décadas do XX, os maxixes, os lundus, os sambas e as modinhas ao violão eram gêneros divulgados por editoras populares, como a Quaresma, ou por casas de disco, como a Casa Edison. Nos catálogos das editoras e gravadoras, esses gêneros afro-brasileiros e sincréticos eram rotulados como populares e brasileiros. Constituíam um bom negócio, como comprovam os interesses dessas firmas comerciais.
Músicos negros e mestiços, como Xisto Baia, Eduardo das Neves, Sinhô, Pixinguinha, Baiano e Catulo da Paixão Cearense, dentre outros, mesmo sofrendo muitas críticas e preconceitos, não tiveram que esperar intelectuais tidos como mais identificados com as coisas do Brasil, como as avaliações sobre os anos 1920 / 30 divulgam, para encontrarem reconhecimento de um vasto público (não de todo o público, é claro). Há muito tempo, gêneros identificados com tradições africanas e portuguesas encontravam-se e disputavam espaço nas praças, festas populares, teatros, palcos de rua e clubes dançantes; eram livre e irreverentemente combinados pelos setores populares. No final do século XIX, alguns desses gêneros, marcados por trânsitos culturais e musicais, foram selecionados e associados às marcas da nação por muitos intelectuais, artistas de teatro de revista, músicos eruditos e populares.
E essa experiência parece não se restringir ao Brasil; não foi apenas “nacional”. Nos Estados Unidos, na Argentina ou no multicultural Caribe, o período da nossa Primeira Republica foi também um marco em termos de consolidação de gêneros afro-americanos e populares associados à construção de identidades nacionais, em meio a muitos trânsitos e trocas culturais no circuito internacionalizado das gravadoras de disco. O jazz nos Estados Unidos, o tango na Argentina, a rumba em Cuba e o calipso no Caribe são bons exemplos de uma experiência internacional que associava expressões de música / dança popular e identidade nacional.
Um importante depoimento pode ser proveitoso para expressar, de uma forma emblemática, como foi pouco valorizada – ou esquecida – nas memórias e histórias construídas sobre a Primeira República, a associação entre música popular e identidade nacional no Brasil. O depoimento escolhido é o de Catulo da Paixão Cearense, poeta e cantor muito conhecido, no Prefácio de seu livro Cancioneiro Popular de Modinhas Brasileiras. Publicado pela Livraria do Povo da Editora Quaresma, o texto consultado foi o de 1908, em sua 25ª edição:
Nós, convencidos de que nessas composições do povo, cintilam fulgurantes pensamentos que, raríssimas vezes, são lobrigados (sic) pela alta literatura; nós que preferimos uma modinha, canção rústica, um lundu requebrado a um qualquer trecho de Wagner, que não compreendemos, e que não nos produz a mínima sensação (…) não nos importemos com o pedantismo estulto dos que menoscabam do violão, por ser ele, dizem, o instrumento dos desocupados e perdidos (…) Concluo lamentando não ver neste volume, o que seria um trabalho colossal, todas as nossas tenras, meigas doces, e saudosas modinhas brasileiras, preciosíssimas jóias… Mas, ainda assim, os Srs. Quaresma vão prestando, conscientemente, inestimável serviço a literatura mais nacional – a do povo.
Catulo testemunha, de uma forma contundente, até mesmo pelo número expressivo das edições de seu livro, o quanto os estilos populares podiam representar a nação e disputar e ganhar espaço e mercado na vida cultural e política da Primeira República.
Evidentemente, todos os argumentos que levantamos não apagam ou negam diversas outras operações intelectuais, sempre seletivas, que escolheram alguns gêneros musicais, em detrimento de outros; também não pretendemos diminuir as ações repressoras e racistas sobre diversas expressões culturais afrodescendentes. A Primeira República está cheia de exemplos de políticas que visavam branquear a população e a cultura brasileiras. Mas não podemos reduzir a experiência histórica deste período a essas possibilidades. Os exemplos de intelectuais e políticos racistas e europeizantes não podem servir para resumir a história cultural e política da Primeira República. Definitivamente, ela não era só isso.
Em sentido complementar, intelectuais como Afonso Arinos, Mello Moraes Filho, Alexina de Magalhães, Guilherme de Mello, Lindolfo Gomes, Alberto Nepomuceno, dentre muitos outros, interessados na valorização dos costumes populares, não podem mais ser tidos como exceção. Na Primeira República, diversos agentes sociais, como intelectuais, professores, maestros, músicos populares e o variado público dos teatros e festas populares, formado por setores médios e trabalhadores, experimentaram, em meio a muitos conflitos, a construção da nação – e também da nação republicana – em termos culturais. Era inteiramente possível que músicos e grupos carnavalescos populares identificassem suas músicas e blocos às glórias nacionais, ou que lideranças negras usassem os símbolos republicanos como forma de luta e valorização de suas expressões culturais e identidades, negras e brasileiras. Os investimentos de intelectuais na educação elementar, na valorização do folclore, na construção de uma arte e música republicanas, na produção de heróis e na própria divulgação de uma história republicana precisam ser vistos sem as poderosas lentes de uma cultura história produzida durante o Estado Novo.
Os artigos que formam esse dossiê representam de uma forma significativa alguns desses diferentes olhares e pesquisas sobre a Primeira República nos campos político e cultural. Abrem novas abordagens e problemáticas até então pouco valorizadas ou mesmo desconhecidas dos estudantes e pesquisadores do período. Através desses artigos o leitor também poderá ter acesso a uma bibliografia que permite reavaliar as dimensões e possibilidades dos estudos sobre a nova “velha” República. Por fim, este dossiê é um convite a novas pesquisas e abordagens sobre período.
Notas
1. A noção de fórmula mental remete à idéia de um “hábito mental” que, aprendido, conduz o pensamento sem maiores questionamentos.
2. Entre os mais conhecidos e reconhecidos estão Oliveira Vianna, Azevedo Amaral e Francisco Campos, sobre os quais há uma ampla e rica literatura produzida por historiadores e cientistas sociais.
3. Vanessa Carvalho Nofuentes, Um desafio do tamanho da Nação: a campanha da Liga Brasileira contra o analfabetismo (1915-1922), Dissertação de Mestrado em História, Rio de Janeiro, PUC, 2008, p. 9. [ Links]
4. Aspásia Camargo et al, O golpe silencioso, Rio de Janeiro, Rio Fundo, 1989. [ Links]
5. Raimundo de Ataíde, “Recordações de um cidadão que nunca votou”, Cultura Política, Ano 1, n. 5, julho, 1941, p. 247. [ Links ]
6. Idem, p. 248.
7. Ibidem, p. 249.
8. Ibidem, p. 247 e 249.
9. Nesse caso, é bom lembrar que a França, um dos paradigmas maiores de defesa da liberal-democracia, só reconheceu o voto feminino após a Segunda Guerra Mundial.
Ângela de Castro Gomes – Professora Titular de História do Brasil na Universidade Federal Fluminense e Professora Titular do CPDOC / FGV. Coordenadora do programa de Pós-Graduação de História, Política e Bens Culturais do CPDOC / FGV. E-mail: acastro@fgv.br
Martha Abreu – Professora Associada do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. Coordenadora do programa de Pós-Graduação de História da UFF. E-mail: marthabreu@terra.com.br
GOMES, Ângela de Castro; ABREU, Martha. Apresentação. Tempo. Niterói, v.13, n.26, 2009. Acessar publicação original