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L’Époque romaine ou la Mediterranée au nord des Alpes | Flutsch
No final do século V a.C. os celtas ocuparam o território da atual Suíça, sobrepondo-se às antigas populações lacustres, agrícolas e de pastores. Nova invasão ocorreu no final do séc. II a.C., quando os helvécios – também celtas – liderados por Divico, avançaram do sul da Germânia em direção à Gália. Em 61, então já estabelecidos no território alpino, que os romanos englobavam no nome genérico de gaulês, prepararam-se para nova migração em direção ao oeste, comandados por Orgétorix, migração fracassada pelo assassinato do líder. Entretanto os romanos já haviam dominado parcialmente esse território, isto é, todo o sul da Gália, e o conflito foi inevitável, terminando com a vitória dos romanos sobre os helvécios em 58 a.C.. Tomando partido desse fato Júlio César obriga os helvécios a permanecer na região alpina e dá início à conquista completa da Gália. Estas e outras circunstâncias, afirma Flutsch, têm impedido os suíços contemporâneos de reconhecer Divico ou Orgétorix como heróis nacionais, e leva o autor a falar da cultura ou do legado da romanização mais em termos de galo-romanos (mais abrangente) do que helveto-romanos – mais restrito e discutível, já que os helvécios não defenderam uma “pátria” contra os romanos, mas foram por eles impedidos de sair de onde se tinham estabelecido. Após a vitória sobre os helvécios os romanos iniciaram o estabelecimento de colônias e legiões: por volta de 44 a.C. foi criada a Colonia Julia Equestris (atual Nyon, próximo a Genebra, na margem do lago), e por volta de 20 a. C. começaram as construções na Colonia Raurica, em território dos rauraques, outra população celta – é a atual Augst, próxima a Basiléia, cujos vestígios estão hoje em muito bom estado de recuperação. Portanto no I século a.C. a presença romana embora marcante deixava quase total independência às populações alpinas. Com a chegada do Império as terras da atual Suíça foram ocupadas pelas legiões e pelas instituições políticas e administrativas romanas, que, contudo, não eliminaram as estruturas sociais e a organização dos vários grupos celtas. Nessa fase o território estava dividido por cinco distintas províncias romanas: o norte pertencia à Germânia Superior, o oeste à Narbonense, o sul aos Alpes e à Itália, e o leste à Récia. Ao destacar este fato Flutsch faz notar que a romanização, embora não tenha contribuído para criar uma consciência de unidade no que veio a ser o povo suíço, definiu a “cantonização” que hoje constitui a Confederação Helvética (em que pese a dubiedade deste termo, que ele evitou). De fato, na confederação o norte e centro é de língua alemã, o oeste de língua francesa, o sul de língua italiana, e o sudeste romanche. Depois do seu apogeu no século II d.C. o Império Romano entrou em decadência e em meados do séc. III a crise econômica da Itália atingiu as províncias: as guerras e a anarquia, aliadas aos impostos escorchantes fizeram os agricultores desistir da lavoura, e engrossar as turbas de ociosos e bandidos. Fome e peste provocaram a baixa demográfica, e os germanos, aproveitando-se da fraqueza imperial, começaram a atacar as fronteiras e fazer suas primeiras incursões em território alpino. Apesar da recuperação sob Diocleciano, e depois sob Constantino, os romanos continuaram a sofrer os embates com os invasores, e repetidas vezes os alamanos (354, 365, 375) atacaram as legiões e penetraram no território rauraque. Mas o território dito gaulês, ou helvécio, da posterior Suíça não recebeu, antes do séc.VI, invasões maciças germânicas, mesmo quando as legiões abandonaram o território em 401. Quando os Borguinhões, em 443, se instalaram na região de Genebra, rapidamente se incorporaram à cultura galo-romana. Já os alamanos, que ocuparam o norte no século seguinte, impuseram seu idioma germânico, que se mantém até hoje. Depois dessa revisão histórica do período romano (I a.C. a V d.C.) que ocupa metade do livro, o autor dedica um capítulo à “globalização econômica”, ou seja, às marcas deixadas pela romanização no modo de vida material. A incorporação das regiões alpinas gaulesas e helvéticas à economia do Império trouxe estruturas administrativas eficientes; todos os tipos de produção usual da época floresceram, novas profissões surgiram, estradas foram construídas – definindo em seus cruzamentos e passagens quase todas as principais cidades suíças da atualidade. A ligação dos Alpes com o Mediterrâneo (razão do subtítulo da obra) não só exportava os produtos locais, mas propiciava à população das montanhas consumir produtos até então desconhecidos ou reservados à elite celta: vinho, azeite, frutas e conservas de peixe passaram a estar ao alcance de grande parte da população alpina. Percorrendo diversos aspectos da vida comum, desde a tecnologia de construção à produção agrícola, Flutsch vai mostrando como o período romano lançou as bases da sociedade suíça; contudo adverte: a romanização operou-se principalmente nos centros urbanos, enquanto nas regiões rurais a cultura celta permaneceu; por outro lado, após o desmoronamento do Império muitas de suas características desapareceram, como certos tipos de bens de consumo e de conforto, que só voltaram à Suíça no séc. XX. Se ao falar de economia Flutsch mostra sua formação e pendor de arqueólogo, apoiando-se freqüentemente nos vestígios materiais da romanização, o último capítulo – “o casamento das culturas” – é ainda mais objetivo e concreto na apresentação de elementos materiais: para comprovar a importância das construções civis e da urbanização como modeladoras e ao mesmo tempo indicadores da vida social; ao trazer inscrições latinas que denotam peculiaridades da continuidade da cultura celta, inclusive familiar, sob capa romana, ou a presença das mulheres nas atividades da elite; receitas médicas evidenciando a introdução da medicina greco-romana; mosaicos e esculturas caseiras mostrando a aceitação da mitologia e da religião romanas; a completa alteração dos hábitos de alimentação pela importação de muitos produtos e dos modos de cozinhar mais sofisticados. Os exemplos que aduz são muitos bastando completá-los com os traços referentes ao que é menos material: as crenças. Uma cabeça de touro tricórnio celta esculpida em estilo romano; as inúmeras estatuetas de Lug disfarçado de Mercúrio; Caturix, deus protetor dos helvécios, que surge como Marte Caturix; Taranis empunhando o raio de Júpiter; o culto às novas divindades orientais que tinham entrado no Império, inclusive o cristianismo, cuja presença em território suíço é atestada desde o final do séc. IV, ou ainda os costumes celtas de velório e sepultamento modificados pelos romanos. Na conclusão, intitulada “um parêntese que não se fechou” o autor retoma e resume as principais aportações da romanização à Helvécia galo-romana desde o latim e a telha ao gato doméstico e ao alho, para defender as suas teses, entre as quais destacamos: 1. a arqueologia é uma ciência bem fundamentada em técnicas de interpretação de vestígios materiais, mas não está imune a influências doutrinais e ideológicas, nem à percepção do antigo pelos olhos da atualidade; é assim que discretamente alude à integração alpina na cultura mediterrânica e na globalização imperial para sugerir (129) que essa antiga abertura conduz a Suíça à integração na União Européia; 2. a romanização lançou os fundamentos do modo de vida suíço da atualidade, mas não construiu uma consciência de nacionalidade unificada, que é muito recente; daí as suas críticas às alusões do passado como criador dessa identidade de povo, que ele considera um erro de interpretação que falseia a própria visão da Suíça – aliás o autor continuamente se dirige a seus patrícios, pois usa muito o termo “nós” e “nosso” para falar da região. Deste modo, um pequeno volume de introdução a um período histórico é de fato, como toda a coleção Savoir Suisse, um chamado à revisão da percepção que os suíços têm de si mesmos e do seu papel na atualidade. De alguma forma a arqueologia de Laurent Flutsch, diretor de escavações, de exposições e do Museu romano de Lausanne-Vidy, é uma ciência de intervenção política.
João Lupi – Departamento de Filosofia UFSC. E-mail: lupi@cfh.ufsc.br
FLUTSCH, Laurent. L’Époque romaine ou la Mediterranée au nord des Alpes. Lausana: Presses polytechniques; Universitaires romandes, col. Le Savoir Suisse, 2005. Resenha de: LUPI, João. A Suíça e o Mediterrâneo. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.7, n.1, p. 101-103, 2007. Acessar publicação original [DR]
Les Lacustres. Archéologie et mythe national | Marc-Antoine Kaeser
A coleção “Le savoir suisse” (www.lesavoirsuisse.ch ) conta atualmente 34 títulos dedicados a tornar acessíveis ao grande público as pesquisas universitárias da área francófona suíça, com temas históricos e questões pertinentes à identidade nacional da Confederação Helvética – mas, por estranho que pareça, não há ainda um volume dedicado aos helvécios. A presente obra, n. 14 da coleção, tem por objetivo refazer e criticar o mito da origem dessa mesma identidade nacional: os povos lacustres, os habitantes pré-históricos cujas características peculiares teriam marcado o ponto de partida da cultura alpina nessa região de montanhas e lagos que hoje se conhece pelo nome de Suiça.
Marc-Antoine Kaeser tem um perfil que o assinala como um cientista que há tempos vem se debruçando sobre o tema: entre suas publicações estão as que versam sobre a ideologia do suposto pacifismo lacustre (1997), a busca de antepassados operacionais (1998), o mito do fantasma lacustre (2000), as representações coletivas e construção da identidade nacional (2002) – temas que se destacam nos títulos que já publicou, e que mostram uma intenção clara de corrigir o discurso e a mentalidade políticas alimentadas por teorias científicas mais idealistas do que realistas. A frase com que abre este volume é bem explícita: “Há um século e meio a aldeia lacustre ocupa um lugar privilegiado na representação coletiva do passado pré-histórico da Suíça” (p. 9). E, contudo, hoje em dia os suíços se perguntam: esse povo lacustre existiu mesmo, dessa maneira como nos descrevem os historiadores? E eles são de fato os nossos antepassados? A resposta vem logo (ib.) radical: “A arqueologia contemporânea responde simplesmente com uma negação categórica – porém circunstanciada”. De fato ao longo do livro M.A. Kaeser tempera bastante essa negação: os povos pré-históricos alpinos não viviam em aldeias lacustres de palafitas, mas as povoações construídas nas margens dos lagos tinham algumas casas edificadas sobre postes dentro de água. Não existiram aquelas grandes plataformas que avançavam lago adentro, suportadas por colunas de madeira, e por sua vez suportando toda a aldeia. No sentido tradicional do termo não houve povo lacustre nem civilização lacustre entre as montanhas alpinas, mas houve uma população dispersa e variada, subsistindo com diversos tipos de economia além da pesca no lago, que construiu aldeias junto aos lagos – não sobre eles.
O autor passa a descrever a origem e evolução da “mitologia nacionalista”, começando pela grande seca de 1853/54 que, tendo posto a descoberto extensos trechos nas margens dos lagos, permitiu aos estudiosos identificar e reconstituir as populações ditas lacustres; e coube ao Presidente da Associação dos Antiquários de Zurique, Ferdinand Keller, iniciar uma série de publicações que constituíram o início da construção desse mito da origem nacional suíça. Numa época em que, após os tumultos das invasões francesas, a consciência nacional se afirmava por toda a Europa, a descoberta de que a Suíça também tinha um passado pré-romano, e que esse passado era digno de memória, dava aos suíços antepassados dos quais podiam se orgulhar. Daí até à representação gráfica idealizada das aldeias lacustres foi um passo. Kaeser ilustra a sua obra com muitos desenhos desse período, quando os “proto-helvécios” apareciam como vivendo em paz e harmonia com a natureza. Inspirados em Rousseau os historiadores suíços discípulos de Ferdinand Keller repassaram para esses ancestrais imaginários as virtudes que os suíços contemporâneos se atribuem: austeridade, pureza, não contaminação pelos males da civilização, cultivo da paz; o povo lacustre teria ainda sido o criador da linguagem, e, portanto, seria a sociedade humana mais antiga – um oásis de tranqüilidade no meio do mundo agitado (p. 62), um paraíso perdido para os demais, mas preservado para os suíços.
O autor vai descrevendo a construção popular dessa identidade nacional, mostrando o papel político da arqueologia. Contudo na década de 1920 os arqueólogos alemães, na seqüência dos trabalhos de Hans Reinerth, iniciaram o combate à “ideologia lacustre suíça”, negando a originalidade dessa sociedade e até sua existência; os suíços viram na destruição da representação dos lacustres uma agressão não só à pré-história nacional, mas à própria identidade nacional suíça, e, portanto, um atentado perpetrado pelo imperialismo alemão, secundado pelas ambições nazistas. A reação nacionalista não se fez esperar, mas a retomada das pesquisas arqueológicas sob outras perspectivas acabou dando razão, parcial, às críticas. Concluiu-se que os povos pré-históricos que ocuparam o atual território da Suíça viviam em diversos tipos de meios físicos (não só nos lagos), portanto em culturas diferenciadas (não homogêneas), e apenas alguns deles construíram algumas casas sobre plataformas de palafitas. As pesquisas arqueológicas de Emil Vogt na década de 1950 estabeleceram novos parâmetros de investigação que foram se afirmando até hoje, e que o autor vai apresentando numa narrativa acessível mesmo para quem não conhece arqueologia nem está a par dos embates doutrinários do nacionalismo suíço; mapas, gráficos, uma breve cronologia (desde o fim da glaciação de Würm até à submissão dos helvécios em 58 a.C.) além de uma bibliografia sucinta ajudam o leitor a acompanhar a argumentação de Marc-Antoine Kaeser.
A obra termina com algumas considerações e retrospectivas: por um lado o “mito da civilização lacustre” persiste, mas, menos ingênuo e menos “crença” adaptou-se eficazmente a idéias recentes incarnando o ideal de uma Suíça “harmoniosa, pacífica, igualitária e solidária”: mais ainda, a aldeia lacustre passou a ser uma referência para a doutrina ecológica (p. 132). Por outro lado, a arqueologia tomou suas distâncias com respeito a essa representação coletiva: “a arqueologia deve reconhecer e assumir o fato de que a interpretação do passado comporta quase inevitavelmente uma dimensão ideológica”; porém onde essas representações incluem visões errôneas e imaginações fictícias o arqueólogo tem obrigação de intervir e desmenti-las. Deve fazê-lo, contudo, de maneira pontual, e não atacar o mito como um todo, pois este é um saber que dá significado ao presente. O arqueólogo, ao contrário, deve abster-se do presente e dos saberes não científicos “para interrogar e compreender o passado” (p. 133).
João Lupi – Departamento de Filosofia UFSC. E-mail: lupi@cfh.ufsc.br
KAESER, Marc-Antoine. Les Lacustres. Archéologie et mythe national. Lausanne: Presses polytechniques; Universitaires romandes, 2004. Resenha de: LUPI, João. Povos lacustres: arqueologia, história ou mito? Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.6, n.1, p. 55-56, 2006. Acessar publicação original [DR]