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Arquivos, objetos e memórias educativas: práticas de inventário e de museologia / Revista Brasileira de História da Educação / 2011
Lugares de memória, espaços de saberes e vestígios da cultura escolar: estratégias propedêuticas em prol da história da educação
No dossiê “Arquivos, Objetos e Memórias Educativas: práticas de inventário e de museologia” pretende-se apresentar projetos desenvolvidos no âmbito da preservação do Patrimônio Histórico Educativo, sobretudo, práticas de salvaguarda e difusão dos acervos, elaboradas no interior desses projetos.
Os autores desta apresentação sentem-se honrados com o convite das organizadoras do dossiê, pela oportunidade, sobretudo, enquanto iniciadores da Rede Iberoamericana para a investigação e a Difusão do Patrimônio Histórico-Educativo (RIDPHE), que hoje se mantém em atividade como lista de discussões, gerenciada pela UNICAMP, com o endereço Ridphe_l@listas.unicamp.br da qual somos moderadores, Vicente Peña Saavedra e Maria Cristina Menezes.
Os textos deste Dossiê, escritos por pesquisadores que participam da Ridphe, trazem a marca das preocupações que, na atualidade, se encontram no bojo daquelas que se colocam na intersecção dos campos da história da educação, arquivologia e museologia. Tal conjugação traz o indicativo da interdisciplinaridade das pesquisas que têm investido no conhecer, identificar e prover, com ações de preservar, acervos históricos indicativos de práticas educacionais de tempos passados, que permitem a nostalgia de um desconhecido por vezes apenas vislumbrado, diante do pouco que se pôde reter.
Essas colocações vêm ao encontro daquelas apresentadas quando do lançamento da Ridphe, no VIII Congresso Ibero-americano de História da Educação (Cihela), em Buenos Aires, durante a exposição do painel “A constituição de lugares de memória para a história da educação: museus, arquivos e bibliotecas na reconstrução histórica das práticas educativas”, coordenado por Rogério Fernandes, de Portugal, e Maria Cristina Menezes, do Brasil. Na ocasião, o professor Vicente Peña Saavedra, da Universidade de Santiago de Compostela, Espanha, fez a proposta de criação de uma Rede Ibero-americana que conclamasse os investigadores voltados para a discussão da recuperação, custódia, estudo, valorização e difusão do patrimônio histórico educativo. Tal proposta teve o apoio efusivo dos participantes e possibilitou que ali se desse o lançamento de mais essa instância de comunicação coletiva. O número de aderentes e o entusiasmo em torno da ideia, que rapidamente se concretizou, possibilitaram que se organizasse no rol de Redes de Discussões da Unicamp, no Brasil, uma lista eletrônica de intercâmbio científico promovida pela Ridphe. A lista conta com a moderação dos seus coordenadores e com a participação de vários pesquisadores latino-americanos, representantes de diversos países, além de colegas de distintas universidades portuguesas e espanholas, que totalizam a esta altura 127 investigadores, especialistas e interessados no tema de muitos variados perfis.
Os textos que compõem este dossiê trazem as preocupações de pesquisadores, em sua maioria, envolvidos com a preservação do patrimônio histórico pedagógico, em escolas, museus escolares, centros de memória, laboratórios científicos de caráter retrospectivo, enfim, com as práticas de manter e inventariar, mas também com a preocupação da difusão dos acervos organizados de forma segura e historicizada.
Portanto, os textos trazem as experiências de seus autores e, conjugadas a elas, as preocupações e angústias que acompanham esse tipo de trabalho, em especial, quanto à garantia de continuidade das propostas e condições para a sua propagação.
Uma suposta interlocução entre os autores nos levaria a examinar preocupações e ideias que se coadunam em prol de objetivos que também se alinham.
Os textos que mobilizam para o inventário de objetos, seja em um museu ou em um centro de memória em construção, como em uma instituição escolar, apresentam-se com a intencionalidade de que a preservação não seja um fim, mas meio de instaurar a comunicação, diante do desafio de se investir na tentativa de transformar a informação científica em conhecimento.
Vera Gaspar e Marília Gabriela Petry trazem o questionamento de como incorporar num registro sistematizado materiais pedagógicos, documentos e registros iconográficos, que carregam os vestígios do ordinário escolar, sem esterilizá-los, ou mesmo transformá-los em objeto qualquer que sofre os efeitos do registro burocrático. As autoras perguntam como fazer esse trabalho sem aprisionar os objetos e perder a riqueza das práticas inscritas em sua materialidade.
Segundo as autoras, essas inquietações articulam-se ao desafio de preservar o objeto e as informações que ele comporta, que o qualificam como documento histórico. Sobretudo, ao compreender-se a preservação como um meio de se instaurar processos de comunicação, e não como uma meta em si.
Também na linha da preservação dos objetos pedagógicos históricos, o texto de Reginaldo Alberto Meloni carrega seus avanços e suas limitações, advindos do trabalho voltado para a preservação dos instrumentos científicos, dos antigos laboratórios, da EE Culto à Ciência, de Campinas / SP, instituição escolar de origem dos objetos escrutados. A sua investigação acaba por tomar outros rumos, o da própria instituição, com o seu precioso acervo documental textual, iconográfico, bibliográfico e arquitetônico, além do material pedagógico e do mobiliário, possibilitando uma pesquisa interna rica em sua localização temporal e espacial. A pesquisa enveredou pela busca de vestígios das práticas pedagógicas que envolviam os usos dos materiais, a partir, sobretudo, das correspondências oficiais da escola, dados obtidos em livros de registro de materiais, com datas e nome de fornecedores, referências dos próprios utensílios, espaço pedagógico dedicado ao seu ensino, programas de ensino, manuais adotados pela escola, avaliações.
O autor investe nas peças enquanto objetos pedagógicos que contribuem para o conhecimento das finalidades das disciplinas de ensino às quais se articulam, especialmente, quanto a conteúdo e método. Ou seja, há uma busca pelas práticas educativas que ocorreram em momentos anteriores na instituição. Os vestígios dessas práticas fazem-se mais presentes neste caso, em que os objetos se encontram na instituição de origem, pelo menos da origem de uso. Mesmo ao se compararem os inventários com os catálogos dos fabricantes, que muitas vezes contêm recomendações de uso, emergem pistas de apropriações realizadas pelos sujeitos escolares.
Ao mesmo tempo, as possibilidades de difusão, com a abertura do acervo ao público, melhor se concretizam no caso do Museu Catarinense. Isso se percebe tanto no aspecto presencial como na constituição do banco de dados, e na construção do site do centro museal, o que não significa a inviabilidade dessas práticas também para o acervo escolar campineiro.
As autoras que tratam do Museu Catarinense expressam também a sintonia do processo de institucionalização do Museu da Escola Catarinense com a política nacional de museus; adotaram-se como base metodológica para elaboração do Banco de Dados as convenções estabelecidas no Caderno de Diretrizes Museológicas do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Outrossim, informam que as descobertas mais significativas acerca dos objetos que compõem o acervo estão vinculadas a projetos de pesquisa que buscam perseguir origens e usos dos artefatos escolares, um percurso que se assemelha em múltiplas vertentes ao que já se vem realizando no projeto da Escola de Campinas. Entretanto, em muito se enriqueceria tal projeto, ao dialogar com a experiência dos pesquisadores catarinenses, sobretudo, quanto à difusão da informação como conhecimento.
As autoras trouxeram o fato de a subjetividade fazer-se presente no trabalho de inventariar, no entanto, apostaram na interdisciplinaridade e nas soluções conjuntas, que apontam para o caminho do coletivo, para além dos desejos pessoais.
O quadro exposto revela que os dois percursos se entrecruzam em vários momentos e em seus distanciamentos, se não se complementam, deixam transparecer a fertilidade de uma possível e salutar comunicação entre os projetos. Para além das duas experiências aqui relatadas, e que se encontram em tantos outros e nos mais diversos espaços, ao desafio do trabalho, visando à retenção de perda dos acervos e a preservação da memória escolar, cabe a nossa insistência na necessidade da interlocução.
No texto “Herança educativa e museus”, no qual discorre em primeiro plano sobre os museus pedagógicos e escolares na história da educação, Margarida Louro Felgueiras também chama a atenção para o fato de o inventário, na organização dos arquivos e museus, não se constituir na finalidade da investigação histórica.
Maria Cristina Menezes, por sua vez, considera, em seu texto, que o inventário permite a abertura dos acervos para as pesquisas, visitas, novas elaborações que enunciarão outros saberes, desde que garantidas condições seguras para a consulta aos bens preservados. No entanto, pondera que após dez anos de trabalho na recuperação de acervos, em risco de perda, em porões, sótãos, e outros espaços escolares, percebeu o quanto exige dos pesquisadores o trabalho de inventário. Tal trabalho requer conhecimentos de várias áreas, demanda pesquisa histórica, a leitura nos próprios documentos, portanto, é interdisciplinar e as equipes nem sempre permanecem as mesmas, o que muitas vezes dificulta a continuidade dos estudos, além do agravante da falta de verbas. Justamente pelo desconhecimento das várias frentes abertas nesse tipo de projeto, nem sempre eles são tratados com o devido merecimento por órgãos de fomento e similares.
Menezes cita Saavedra em seu texto, quando este pesquisador assevera que o registro e a sistematização dos acervos informativos, dos quais se vale o investigador para tecer e fundamentar os seus discursos sobre a memória do ocorrido, poucas vezes recebem a ponderação devida, diferente do que ocorre, com maior frequência, com as obras que em tais suportes se sustentam.
O recorrente, segundo a autora, tem sido os investigadores, ao realizar suas pesquisas nas instituições, utilizarem os acervos como fonte, dar a estes uma ordem precária, apenas o suficiente para o desenvolvimento da pesquisa em curso, e os abandonarem após a finalização delas. Essas investidas deliberadas e sem um plano de organização dos acervos não poucas vezes resultam em perdas ou alterações nos suportes por falta de manuseio correto e outros cuidados. Os trabalhos de conservação, descrição, acondicionamento ficam para outros. Essas práticas deixam marcas nos acervos, com lacunas e ordenações precárias, fora da ordem original. São reordenações, com períodos ou temas específicos, em geral sobre os quais se detiveram os pesquisadores em suas investigações.
O texto sob a coordenação de Carmen Sylvia Vidigal Moraes coloca como objetivo apresentar trabalho de pesquisa histórica e arquivística, realizado por um grupo do Centro de Memória de Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (CME / Feusp), o qual consistiu no recolhimento, organização, acondicionamento e referenciação das fontes do legado do educador anarquista João Penteado, composto de documentos produzidos e acumulados por uma das escolas criadas e mantidas por anarquistas no Brasil. Os pesquisadores enfatizam que se trata de pesquisa histórica e arquivística, o que tem caracterizado esse tipo de investigação. Anunciam o teor da equipe, ao afirmarem que o trabalho foi realizado por um grupo de pesquisadores, professores e alunos bolsistas (iniciação científica, mestrado e doutorado) da Feusp, o que vem comprovar a necessidade de braços e pesquisadores em modalidades diferenciadas de formação, além da equipe que comporta o CME / Feusp com arquivistas e historiadores da educação, evidenciando a interdisciplinaridade da proposta.
O acesso à documentação inédita dos arquivos das escolas dirigidas por João Penteado, no largo período de quase cinquenta anos, com certeza permitirá que muitos pesquisadores se beneficiem da recolha e organização desse acervo inédito que contém um número espantoso de itens documentais. Enfim, são experiências distintas que se coadunam, se complementam e se entrelaçam em muitos de seus propósitos.
As pesquisadoras do Museu da Escola Catarinense, com um acervo de objetos de procedências diversas, têm investido em projetos de pesquisa que buscam perseguir origens e usos dos objetos escolares; essas buscas inferem ao retorno às instituições de procedência dos objetos. A pesquisa, ao construir um banco de dados, enxerga-o como ferramenta de consulta ao público, considerando que esse trabalho deverá ser contínuo dentro das atividades do museu, com o surgimento de novos dados a serem registrados. O fundo físico, por sua vez, constitui-se como material de pesquisa.
O acervo de instrumentos científicos do antigo Ginásio de Campinas encontra-se no mesmo espaço que o adquiriu, quando desembarcou de algum navio, vindo da Europa, o mesmo local onde sofreu as apropriações que o conformou aos propósitos dos sujeitos que praticavam a educação naquela instituição de grande importância republicana. Os espaços também enunciam, trazem vestígios das práticas que acolheram.
O grupo do CME da Feusp recebeu um acervo valioso, diretamente dos familiares de João Penteado, o educador anarquista, que era um arquivista por convicção. O acervo foi recebido pelo CME conservado, organizado, referenciado para nele permanecer. Trata-se, no entanto, de um espólio com a mesma origem, do mesmo fundo.
O estudo que resultou na publicação do inventário das fontes documentais do arquivo histórico da Escola Normal de Campinas, apresentado por Menezes, realizou-se no interior da instituição de guarda do arquivo. Os documentos foram produzidos na instituição de depósito, que é também a de origem. A arquitetura monumental da Escola Normal de Campinas revela a austeridade e a importância da instituição e de seus sujeitos para a época. Apesar das condições do acervo, da insalubridade dos espaços de guarda, que, mesmo após limpeza e reforma, mantêm a umidade de outrora, há a força da arquitetura, dos espaços planejados para um tempo e para as práticas escolares de outrora.
Alguns apontamentos já foram enunciados nesta apresentação, mas acreditamos que somente a interlocução com propósito e aprofundamento entre os autores poderá trazer ganhos substanciais e transformar informações em conhecimentos do interesse de todos. O que, de fato, diferencia e aproxima esses trabalhos, quanto às ações que incidirão sobre os itens, quanto aos termos de preservação, organização, descrição e guarda definitiva?
Retornamos ao texto de Felgueiras, para quem foi a premência da recolha e preservação das fontes para a história da educação que, tanto em Portugal quanto no Brasil, levaram ao inventário e registro dos acervos, com a construção de bases de dados. Por conseguinte, a autora pondera, como em plena sociedade do conhecimento e da informação se corre o risco de viver num presente sem memória e sem futuro, ao que intenta pelas condições básicas para a conservação de arquivos “reais”, físicos, e não apenas virtuais.
Tal tema retoma discussão, já iniciada, sobre a necessidade de políticas públicas para essa área específica, o que tem suscitado a preocupação e a busca de alternativas por pesquisadores, quando estas falham ou mesmo não existem, e ainda também naqueles supostos nos quais caminham ao avesso das nossas expectativas. As experiências no desenvolvimento de projetos sobre a preservação dos acervos que conformam a cultura material e imaterial das instituições educativas têm apontado caminhos e mostrado as possibilidades, as dificuldades, os acertos, os erros para encarar o porvir. Daí a importância de investir na interlocução, no conhecimento das várias experiências, percebendo, nessas vias fertilizadoras de participação dos investigadores, critérios de referência para a formulação de políticas que valorizem esses esforços que hoje se realizam em prol da recuperação e preservação dos espaços de memória e história educacional. O que se busca é ainda a garantia de continuidade dessas realizações, a sua visibilidade e difusão, para que esses tantos trabalhos não tenham sido em vão. Nessa linha de ação coloca-se a Ridphe, como espaço para a acolhida e o estímulo da interlocução dos pesquisadores, que persistem e resistem neste trabalho árduo, moroso e de pouca projeção socioinstitucional, em prol da recuperação do patrimônio histórico da nossa educação.
Galícia e Campinas, junho de 2010
Vicente Peña Saavedra
Maria Cristina Menezes
SAAVEDRA, Vicente Peña; MENEZES, Maria Cristina. Apresentação. Revista Brasileira de História da Educação. Maringá, v.11, n.1, jan. / abr., 2011. Acessar publicação original [DR]