Povos indígenas no Brasil oitocentista | Outros Tempos | 2022

Miguel Maria Lisboa Imagem Wikipedia
Miguel Maria Lisboa | Imagem: Wikipédia

Presumir-se pode apenas

Que é correio, a marcha afrouxa

A cavalgada; e faz alto

Logo que disso tem prova

 Chega enfim o índio pedestre

Do peito a fivela solta;

Larga a mala, e com dois dedos

A testa que lhe pinga esgota

(LISBOA, 1866, p. 126)

A imagem da capa deste dossiê sucede os versos acima dispostos, de Miguel Maria Lisboa, na obra Romances históricos por um brasileiro, de 1866. Na reconstrução da cena do grito do Ipiranga, foi um índio-correio o responsável por levar as notícias vindas de Portugal, resultando no gesto que representou o rompimento definitivo com a antiga metrópole. Diante do glorioso Dom Pedro, vemos o indígena “civilizado” boquiaberto, atônito e confuso frente às grandes transformações que se anunciavam. Semelhante ao condutor do carro de bois da famosa obra de Pedro Américo, a sua condição era apenas de um espectador bestializado.

A gravura O grito do Ypiranga, de autoria anônima (LISBOA, 1866, p. 126-127), além de representar o ato mítico de fundação na nação, aponta para, pelo menos, duas questões cruciais acerca dos lugares identitários e sociais atribuídos aos indígenas e sobre as políticas indigenistas no Brasil Império. A primeira dela diz respeito a algo que está na linha de frente do combate da historiografia sobre os indígenas em diferentes momentos: a imagem de uma passividade inerente a essas pessoas. No império, essa narrativa se consolida, ainda que membros de governos, colonos e outros agentes nunca conseguissem esconder a rebeldia e resistência indígena na documentação que produziam. No entanto, as alegações de inércia e indolência estavam sempre lá, frutos de uma suposta inferioridade cognitiva. Sob o discurso da “civilização”, construía-se a imagem dos indígenas como incapazes de compreender a importância do trabalho, de serem plenamente civilizados e de entenderem os grandes acontecimentos políticos.

Um segundo ponto, menos comum na historiografia dos Oitocentos, é a representação de um indígena diferente do estereótipo de selvagens nus, pintados, trajando adereços com penas e habitantes de matos remotos. Aqui, tratava-se de um indivíduo em avançado processo de transformação cultural, “civilizado”, que quase já não é mais classificado de índio. Era um representante dos grupos integrados à sociedade, antes colonial portuguesa e, a partir de 1822, brasileira, que já haviam passado por décadas ou séculos de experiência de aldeamento e relações de reciprocidade com os monarcas lusitanos. Exerciam trabalhos remunerados ou compulsórios à serviço de proprietários ou de governantes, na condição de lavradores, construtores, coletores, ou como era o caso da imagem da capa, como índios-correio (COSTA, 2015, p. 235-264).

Com a independência, adquiriram uma cidadania precarizada e excludente, que os limou de espaços políticos e de qualquer oportunidade de ação institucional (COSTA, 2021, p. 17-19). Com o andar dos Oitocentos, com maior ou menor velocidade a depender da província, viram os aldeamentos serem extintos, perderam as suas terras – a última e das mais importantes de suas prerrogativas – e até mesmo a possibilidade de se identificarem como índios (OLIVEIRA, 2020, p. 193-194). Produziram-se discursos acerca do ex-índio, do misturado à massa geral da população, agora identificado como caboclo (SILVA, I., 2011, p. 327-246), vivendo nas margens, como mão de obra barata, despossuída e, eventualmente, escravizada (MOREIRA, 2020).

As instituições que se formaram e se consolidaram no Estado nacional brasileiro construíram ao longo do tempo imagens cada vez mais depreciativas contra os indígenas para justificar o processo de exclusão (ALMEIDA, 2010, p. 137-141). Isso era feito, obviamente, recheado de muito esquecimento por conveniência. As diversificadas formas de ação política indígena do início do século XIX, inclusive com a sua decisiva atuação durante a independência (MACHADO, 2010), eram magicamente apagadas. O cinismo era ainda mais flagrante quando se fortaleceram as narrativas sobre a extinção indígena, veiculadas contemporaneamente às ações de muitos grupos que reivindicavam os seus direitos à terra justamente por serem indígenas (VALLE, 2009, p. 67-78).

A formação do Estado nacional brasileiro se fez na busca pelo silenciamento indígena, por meio do extermínio, escravização ilegal e precarização de sua cidadania. De tal maneira que, até hoje, a memória nacional dá pouco ou quase nenhum espaço à atuação dos índios nesse processo. Como resultado, a própria historiografia também silencia sobre o assunto. Desde os livros didáticos (SANTOS, 2020, p. 71), passando por pesquisas acadêmicas e refletidas nas melhores coletâneas sobre o século XIX (SILVA, A., 2011)1 , os indígenas são praticamente ausentes, quase que informando que já ali estavam em vias de desaparecimento. Logo, restaria pouco o que falar. Em contrapartida, podemos perceber que, especialmente na historiografia dos Oitocentos, legou-se uma visão elitista dos processos históricos de que alguns quase não eram mais índios (MONTEIRO, 2001, p. 4-5), mas todos – os das matas, sobretudo – eram entes incapazes. É como se toda a tradição da “história dos de baixo” tivesse mais dificuldade de acessar a ação indígena na história do século XIX do que a de qualquer outra população2 . Parecem ter comprado os discursos dos autores de maior parte da documentação.

Felizmente, nos últimos anos, vieram à tona muitas pesquisas questionando a ausência indígena na história do império do Brasil, bem como a suposta e infundada carência de temas e fontes a respeito do que se investigar. Aliás, o posicionamento tradicional não possibilitava que pesquisas iniciassem, já que as perguntas e os problemas sequer eram formulados. Hoje, há uma profusão promissora de trabalhos, como o presente dossiê prova de forma tão potente.

Aqui apresentamos ao público pesquisas que se debruçam sobre as multifacetadas experiências dos indígenas no século XIX. Todos os trabalhos aqui reunidos se assentam nas ações indígenas que nem a imposição de silenciamento pelas autoridades imperiais pôde calar. Mesmo com o processo empreendido de precarização da cidadania dos grupos integrados, ou a invasão genocida sobre os territórios dos povos autônomos, as heterogêneas ações indígenas se fizeram constantes ao longo dos Oitocentos.

Para abrir os debates iniciamos com o artigo de Estêvão Martins Palitot, Marcos, rumos, posses e braças quadradas: refazendo os caminhos da demarcação da Sesmaria dos Índios de Monte-Mór – Província da Parahyba do Norte (1866-67), traz-nos uma cartografia da ocupação indígena do litoral norte da Paraíba, contrastando memórias contemporâneas e demarcação das terras da Sesmaria dos Índios de Monte-Mór, na Província da Parahyba do Norte, realizada entre 1866 e 1867. Embora o autor não busque uma continuidade histórica, aponta para os processos de (des)territorialização e tentativas de apagamento da condição étnica dos povos indígenas dessas fronteiras sob distintos subterfúgios que envolviam os interesses sobre seus territórios.

No artigo Manuel Valentim: “uma guerra civil de 12 anos”: Mobilizações indígenas na Zona da Mata Sul de Pernambuco, na segunda metade do século XIX, Edson Silva faz uma rica análise sobre os processos de desterritorialização dos indígenas aldeados no sul daquela província. Silva trabalha de forma interessante a trajetória do índio Manoel Valentim dos Santos e de outros indígenas que lutavam contra a extinção da Aldeia de Escadas e as constantes invasões de suas terras diante do avanço da economia açucareira na região.

Adauto Rocha, em seu artigo intitulado Recrutamentos indígenas nas Alagoas: da Capitania independente à extinção oficial dos aldeamentos (1817-1872), analisa um tema ainda pouco estudado: o papel dos indígenas em conflitos bélicos internacionais, como na Guerra do Paraguai (1864-1870). Ao mesmo tempo, problematiza sobre a utilização dos índios aldeados como mão de obra em distintos serviços públicos.

Com destaque para a fronteira entre as províncias de Minas Gerais e Bahia, especialmente nos territórios banhados pelos rios Jequitinhonha e Mucuri, Renata Ferreira em seu artigo “Eu não quero estradas em minhas terras!”: Os indígenas entre os projetos de navegação e desenvolvimento do Jequitinhonha e Mucuri na segunda metade do século XIX se debruça sobre os projetos de exploração dessas áreas de fronteira e o impacto sobre as territorialidades indígenas que lá se encontravam. Além de demonstrar os diferentes interesses das elites locais no avanço desses projetos, Ferreira consegue dar visibilidade às resistências indígenas diante das tentativas de espoliação de seus territórios.

Descendo a fronteira temos o artigo de Karina Melo Terras indígenas e direitos territoriais no Aldeamento guarani de São Nicolau do Rio Pardo (Província de São Pedro), onde analisa as disputas envolvendo as terras dos índios do aldeamento de São Nicolau do Rio Pardo, província de São Pedro (atual Rio Grande do Sul). A autora aponta para os processos de esbulho das terras do aldeamento diante do avanço da imigração estrangeira na região, ao mesmo tempo em que os índios ali aldeados passaram a ser tratados como “nacionais”.

O tema da expropriação das terras indígenas atravessa todos os trabalhos organizados nesse dossiê e se articula de modo incontornável com a problemática dos apagamentos das identidades étnicas desses sujeitos, para incorporá-los enquanto trabalhadores subalternizados. Nessa perspectiva de pensar os discursos de apagamento das identidades indígenas no século XIX, Philipe Luiz Trindade de Azevedo traz em seu artigo Os estereótipos sobre os “índios” no Brasil Oitocentista (1845-1867): discursos em disputa um balanço desse debate e como se articulou em espaços como o IHGB. Nesse sentido, o autor recorda os principais estereótipos atribuídos aos indígenas por essa elite intelectual. No mesmo caminho seguiu a análise de Lorena Varão, ao problematizar em seu artigo O ser e o não-ser indígena no Brasil Oitocentista sobre os processos de construção da alteridade indígena no século XIX a partir do dualismo entre o índio “selvagem” X “civilizado”.

O ensino de história indígena nas escolas ainda dialoga pouco com as pesquisas desenvolvidas na academia. Esse gargalo coloca um grande desafio aos professores, que é o de saber como ensinar essa temática sem recorrer aos velhos estereótipos tão disseminados no senso comum, como o “índio genérico”. O artigo de Lígio Maia História e ensino de história indígena: a guerra ameríndia nos livros didáticos aprovados pelo PNLD 2017 é um interessante estudo sobre como o tema da guerra ameríndia é apresentado nos livros didáticos de história para os anos finais do Ensino Fundamental. Sua reflexão aporta subsídios importantes para evidenciarmos os protagonismos indígenas no ensino de história.

A seção de artigos se encerra com o trabalho da antropóloga uruguaia Francesca Repetto, com uma análise minuciosa sobre o processo de avanço sobre os territórios ocupados pelos indígenas Charrúa no contexto de formação do Estado do Uruguai e de guerra declarada a esses grupos. Em seu artigo Tierra y mano de obra: políticas de gestión sobre los pueblos indígenas en el Uruguay de los 1830, Repetto problematiza a narrativa da extinção dos Charrúa como parte de “esquemas de apagamiento” perpetrados pela elite econômica, intelectual e política uruguaia. Diferentemente desse discurso construído ao longo do século XIX, a autora reforça a luta contemporânea dos Charrúa por seus direitos e visibilidade num país que até pouco tempo se considerava “sem índios”.

O estudo de caso feito pelo historiador Francisco Cancela Os índios de vila Verde e a luta por liberdade, prerrogativas e isenções: políticas indigenistas e políticas indígenas em uma série documental (1825 e 1826) reforça o persistente protagonismo indígena tão negligenciado e apagado na historiografia brasileira. O autor explora uma rica documentação custodiada no Arquivo Público da Bahia (APEB), a qual registra a atuação dos oficiais camarários de uma vila de índios no sul da Bahia, no contexto do Brasil independente. Ou seja, são documentos produzidos pelos próprios indígenas, que, munidos de conhecimentos adquiridos em séculos de interação, davam vazão às suas demandas e expressão as suas culturas políticas.

Tendo em vista sua já consagrada pesquisa sobre a temática indígena no período colonial e imperial, sendo uma das principais referências no assunto, convidamos a professora Dra. Maria Regina Celestino de Almeida para ser a entrevistada do presente dossiê. Além de tratar dos estudos sobre a questão indígena no Brasil, com seus avanços e desafios, Almeida nos contempla com um breve panorama sobre os trabalhos que têm problematizado de forma comparativa as experiências de participação indígena nos contextos de formação dos estados nacionais na América Latina.

Por fim, temos duas resenhas de importantes obras acerca do protagonismo indígena na História do Brasil. Felipe William dos Santos Silva aborda na sua resenha Os Indígenas no Oitocentos: das margens da História ao centro das narrativas historiográficas uma análise crítica do livro “Sem Vieira nem Pombal” do historiador Márcio Couto Henrique e sua incontornável contribuição para a escrita da história indígena na Amazônia colonial. Fechando a sessão, temos a resenha feita por Guilherme Maffei Brandalise, Os Kaingang e a colonização alemã e italiana no Rio Grande do Sul (séculos XIX e XX), onde se debruça sobre o livro de Soraia Dornelles, “Os Kaingang e a Colonização Alemã e Italiana no Rio Grande do Sul (Séculos XIX e XX)”. O autor explora as principais problemáticas trazidas por Dornelles acerca das diferentes formas de agências indígenas em uma fronteira altamente marcada pela imigração europeia.

Este dossiê pretende contribuir para o alargamento das perspectivas historiográficas acerca da participação indígena no contexto de formação do estado nacional brasileiro. Os autores e autoras aqui reunidos evidenciam em suas pesquisas que, diferentemente da visão de passividade que se queria atribuir aos indígenas, eles estavam participando dos processos históricos e ocupando lugares de luta, negociação e resistência diante do avanço sobre seus territórios. O século XIX produziu discursos do apagamento da identidade indígena sob o viés da miscigenação. Em contrapartida, seja integrados, seja isolados, resistindo em territórios autônomos ou em aldeamentos, eram muitas as formas de participação política dos povos indígenas no Oitocentos. E, como já antevira John Monteiro, quando a presença indígena deixar de ser vista como apêndice da história nacional, irão se reescrever incontáveis páginas das histórias agrárias, econômicas, políticas e sociais do Brasil (MONTEIRO, 1995, p. 228).

Notas

1 Com a destacada exceção do artigo de Patrícia Sampaio (2009).

2 Quando escreveu a sua tese de livre-docência, John Monteiro observou a mesma tendência para a história da América colonial portuguesa (MONTEIRO, 2001, p. 7).

Referências

ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na história do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2010.

COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção: civilização e cotidiano indígena no Ceará (1812-1820). Teresina: EDUFPI, 2015.

COSTA, João Paulo Peixoto. Independência e cidadania: povos indígenas e o advento do liberalismo no Ceará. Acervo, v. 34, n. 2, p. 1-21, 2021.

LISBOA, Miguel Maria. Romances históricos por um brasileiro. Bruxelas: Tipografia de A. Lacroix: Verboeckhoven e Cia, 1866.

MACHADO, André Roberto de Arruda. A quebra da mola real das sociedades: a crise política do Antigo Regime Português na província do Grão-Pará (1821-25). São Paulo: Hucitec: Fapesp, 2010.

MONTEIRO, John Manuel. O desafio da história indígena no Brasil. In: SILVA, Aracy Lopes da; GRUPIONI, Luís Donizete Benzi. A temática indígena na escola: novos subsídios para professores de 1º e 2º graus. Brasília, DF: MEC: MARI: UNESCO, 1995. p. 221-228.

MONTEIRO, John Manuel. Tupi, tapuias e historiadores: estudos de história indígena e do indigenismo. 2001. Tese (Doutorado em Antropologia) – Universidade de Campinas, Campinas, 2001.

MOREIRA, Vânia Maria Losada. Kruk, Kuruk, Kurucas: genocídio e tráfico de crianças no Brasil imperial. História Unisinos, v. 24, n. 3, p. 390-404, 2020.

OLIVEIRA, Tatiana Gonçalves. Terra, trabalho e relações interétnicas nas vilas e aldeamentos indígenas na província do Espírito Santo (1845-1889). 2020. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, 2020.

SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Política indigenista no Brasil imperial. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (org.). O Brasil imperial, volume I: 1808-1831. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. p. 175-206.

SANTOS, Roberta Fernandes. Da construção do estereótipo de selvagem à representação do indígena brasileiro no livro didático de História. Escritas do tempo, Marabá, v. 2, n. 6, p. 58- 73, 2020.

SILVA, Alberto da Costa e (coord.). Crise colonial e independência: 1808-1830. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.

SILVA, Isabelle Braz Peixoto da. O Relatório provincial de 1863 e a expropriação de terras indígenas. In: OLIVEIRA, João Pacheco de (org.). A presença indígena no Nordeste: processos de territorialização, modos de reconhecimento e regimes de memória. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011. p. 327-388.

VALLE, Carlos Guilherme Octaviano do. Conflitos, identidades e aldeamentos indígenas no Ceará do século XIX: um exercício de Antropologia Histórica. In: VALLE, Carlos Guilherme Octaviano do; SCHWADE, Elisete (org.). Processos sociais, cultura e identidades. São Paulo: Annablume, 2009. p. 15-87.


Organizadores

João Paulo Peixoto Costa –  Doutor em História Social pela UNICAMP. Professor do IFPI e do PROFHISTÓRIA/UESPI Uruçuí/Piauí/Brasil. E-mail:  joao.peixoto@ifpi.edu.br ORCID: http://orcid.org/0000-0001-6767-4104

Tatiana Gonçalves de Oliveira – Doutora em História pela UFRRJ. Professora adjunta da UESPI Floriano/Piauí/Brasil. E-mail: tatianagoncalves@frn.uespi.br ORCID: http://orcid.org/0000-0001-9496-0077


Referências desta apresentação

COSTA, João Paulo Peixoto; OLIVEIRA, Tatiana Gonçalves de. Povos indígenas no Brasil oitocentista. Outros Tempos. São Luís, v. 19, n. 34, p. 131-138, 2022. Acessar publicação original [DR]

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Povos indígenas, migrações e deslocamentos territoriais/Escritas/2022

A discussão sobre a inconstitucionalidade da tese do Marco Temporal tem estimulado a produção científica em diferentes campos do conhecimento que se dedicam à investigação sobre a relação das populações indígenas e seus territórios. A necessidade de uma maior compreensão sobre deslocamentos, migrações e fluxos territoriais efetuados por populações indígenas em específicos contextos socioculturais – seja em situações de perseguição, subordinação e violência, ou motivados por dimensões cosmológicas e/ou ecológicas, entre outros – complexifica um acirrado debate político atualmente judicializado, que possui como aspectos centrais a territorialidade, a historicidade e as relações interétnicas em processos sociais de resistência e conflitos de curta, média e longa durações. Leia Mais

Povos Indígenas na América Portuguesa entre os Séculos XVI e XIX. Contatos Interétnicos, Agenciamentos e Territorializações | História (Unesp) | 2021

Indigenas no Brasil
Povos Indígenas no Brasil | Foto: Kristian Bengtson – ISA

Por uma história indígena decolonial a partir das problemáticas do presente

Antes de adentrarmos naquilo que vem sendo pesquisado e publicado sobre os povos indígenas na história do Brasil, evidenciamos as historicidades dos povos originários pós-século XVI indo ao encontro da perspectiva de uma história decolonial que segue evidenciando as lutas, violações, conquistas de direitos dos homens e mulheres indígenas no passado com o olhar no presente.

Diante do exposto, afirmamos que hoje no Brasil existem cerca de 820 mil homens e mulheres indígenas, 305 grupos étnicos que se autoidentificam como povos indígenas, falantes de mais de 274 línguas diferenciadas. Apesar de representarem apenas 0,43% da população, os povos indígenas estão presentes em 80% dos municípios brasileiros, habitando 1.290 terras indígenas, sendo 408 homologadas e 821 em processo de regularização e/ou reivindicadas. As terras indígenas – demarcadas ou não – em sua quase totalidade encontram-se invadidas, depredadas e em processo de profunda devastação. Leia Mais

História Ancestral do Brasil | Revista Nordestina de História do Brasil | 2020

HISTÓRIA ANCESTRAL E O PASSADO MAIS ANTIGO DO BRASIL

Quando fomos convidados pela Revista Nordestina de História do Brasil para coordenar e prefaciar o número temático História Ancestral do Brasil, não deixamos de nos perguntar, como arqueólogos e historiadores, o que se entenderia por ancestral no contexto epistemológico. De início, pensamos em temas relativos à pré-história, termo consagrado mundialmente desde o século XIX, quando Sir Daniel Wilson a utiliza pela primeira (Prehistoric Annals of Scotland, 1851, e Prehistoric man, 1862) e por Sir John Lubbock, na sua valorizada obra Pre-historic Times (1865). O termo não seria substituído com êxito por nenhuma outra expressão, mas, seria ele suficiente dentro do espírito da Revista que é primordialmente de História do Brasil? Até onde chegaria essa ancestralidade? Vemos, pelos diversos significados da palavra, que ancestral pode ser tudo o que seja anterior a nossa contemporaneidade, embora com o suficiente peso ou significado histórico para haver influído na formação do nosso futuro.

O estudo da pré-história do Brasil nos seus fundamentos básicos pretende conhecer as origens do povoamento, as tradições culturais dos caçadores-coletores e dos agricultores, as estratégias de sobrevivência dos diferentes grupos que povoaram a região desde o fim do pleistoceno e a sua evolução para o estágio agrícola e sedentário até o contato com o europeu1.

A integração das populações indígenas na história colonial assinala também o final da pré-história, independentemente do fator cronológico, mas a ancestralidade dos novos brasileiros não será apenas europeia, pois ficará também atrelada ao elemento indígena a partir do contato. No primeiro documento oficial da história do Brasil, o cronista da expedição de Cabral fez um retrato ameno dos indígenas avistados, num relato quase bucólico do que infelizmente seria o prelúdio da tragédia anunciada, que para os povos indígenas foi a Conquista. A visão reducionista e eurocêntrica fez dos indígenas americanos seres homogêneos desde o ponto de vista cultural sob a dominação genérica de índios, mas a realidade era completamente diferente, uma vez que o elemento indígena nos tempos da Colonização compreendia a maior densidade de línguas diferentes do mundo e os grupos étnicos apresentavam categorias socioculturais que abrangiam desde bandos de caçadores nômades a Estados teocráticos2.

O que se pode entender por História Ancestral? Se buscarmos em um buscador, como o Google, fica claro que o termo se refere a questões biológicas. Se nos voltamos para o adjetivo ancestral, em particular, ainda prevalece os sentidos biológicos. Nas humanidades e ciências sociais, usa-se para terra ancestral3 ou patrimônio, em referência a comunidades indígenas ou aborígenes. Ancestrais são usados para designar objetos culturais, como as máscaras dos ancestrais na antiguidade romana, de maneira a alcançar não só nativos, mas diversos povos do passado. O termo ancestral é muito produtivo, desde sua origem: ―ir antes‖, ―precedente‖, do latim antecedere (vir antes), com o prefixo ante- e o infinitivo cedere (ceder, ir). Refere-se aos que vieram antes, como em Shakespeare (Júlio César, I, 3, 506-510; fala de Cássio):

Pouco importa quem seja. Hoje ainda, são dotados os romanos de músculos e membros como os de seus ancestrais; mas, ai que tempo!; bem morto está o espírito de nossos pais, governa-nos o espírito de nossas mães. Nosso jugo e sofrimento mostram-nos efeminados. (Tradução dos autores).

Ancestral significa ―em relação aos predecessores, pessoas e lugares (Fernando Pessoa):

Ó céu azul — o mesmo da minha infância —

Eterna verdade vazia e perfeita!

Ó macio Tejo ancestral e mudo,

Pequena verdade onde o céu se reflecte!

Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!

Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

[Fernando Pessoa, Lisbon Revisited (1923), Lisboa revisitada].

Este é o contexto para entender o uso, aqui, de História Ancestral. Refere-se a todos os humanos que viveram antes de nós e são, por isso, parte de nós, não só em termos genéticos, mas também como cultura. Este é um conceito abrangente, na medida em que todos são considerados de igual relevância, em qualquer época ou lugar. Todos que estudam nossos ancestrais mais antigos partilham a atenção e reconhecimento que os caçadores-coletores são dignos de interesse como quais outros seres humanos. No caso do Brasil, estudos genéticos indicam que:

Em conclusão, nosso estudo de mtDNA de uma mostra ao acaso de brasileiros brancos revelaram uma surpreendente alta contribuição matrilinear de ameríndios e africanos. Os brasileiros atuais, assim, carregam a marca genética da colonização mais antiga: a população pioneira colonial tinha, em geral, ancestralidade ameríndia e, depois de algumas gerações, com maior presença africana, sempre do lado materno. Mas, com ancestralidade portuguesa na linha paterna (como refletido por marcadores do cromossoma Y).4 (Tradução dos autores).

Frequência

Brasil Norte Nordeste Sudeste Sul

Ameríndios 33 54 22 33 22

Africanos 28 15 44 34 12

Europeus 39 31 34 31 66

Os genes dos ameríndios são, pois, bem difundidos5, mas talvez o mais importante seja a onipresença de sua contribuição cultural, da língua à culinária e muito mais6 . Entretanto, a História do Brasil é ainda considerada, mesmo em departamentos de História, como tendo início com a chegada dos portugueses, em 1500. Tanto assim, que pré-historiadores são ainda raros nos departamentos de História, com a resultante ausência de formação dos futuros professores de História, nas licenciaturas, quanto à História Ancestral. A Pré-História está bem representada em graduações e pós-graduação em Arqueologia, mas os arqueólogos não são formados em licenciaturas, mas em bacharelado, pelo que não podem ser professores no ensino fundamental e médio.

Há, ainda, um amplo espaço para a Pré-História, de modo que os licenciados em História possam aprender, de primeira mão, sobre os milhares de anos de ocupação humana da América do Sul. Este número da Revista busca contribuir para superar alguns desses desafios ao focar na História Ancestral mais antiga, a pré-histórica. Além disso, volta-se para o público mundial, de modo a alcançar um público mais amplo.

Os autores dos artigos que integram o presente número temático são todos pesquisadores experimentados e como não poderia deixar de ser, tiveram total liberdade nas escolhas dos temas apresentados, embora como num acordo não assinado, a linha do tempo foi marcada por trabalhos de cunho pré-histórico e outros nos quais o elemento indígena aparece em contato ou confronto com o português. Por decisão dos editores da Revista, a sequência de autores é alfabética e não segue assim uma ordem cronológica nem temática, mas demonstra a riqueza dos temas ligados ao mundo indígena na visão científica e pessoal dos seus autores.

O primeiro artigo, Archéologie: Du passe au présent, dês paysages au territoire, assinado por Agueda e Denis Vialou, não poderia ser mais oportuno para o início deste número da Revista. Está dedicado às ocupações do final do Pleistoceno e do Holoceno numa região onde nascem as bacias hidrográficas do Amazonas e do Paraguai-Paraná, região de dispersão de grupos étnicos que depois estarão separados por milhares de quilômetros. Roquette-Pinto7 no livro Rondônia, já comentava que quem atravessa o Mato Grosso vê, lado a lado, arroios orientados para o Norte e outros que vão se perder no Paraguai. O parágrafo final do artigo é ilustrativo e resume a importância dos registros rupestres pré-históricos como marcadores de identidades: “Les représentations rupestres reflètent la modernité dessociétés préhistoriques dans leurs irréductibles identités symboliques, confiées à la nature, aucœur de leurs territoires”

Alexandre Navarro, Dayse Marinho e João Costa Gouveia Neto são os autores de um belíssimo texto sob o título O imaginário do mundo das águas: lendas, narrativas e histórias ancestrais sobre a vida dos povos das estearias, no qual, e a partir dos assentamentos lacustres do Maranhão, recolhem as lendas que o imaginário popular teceu ao longo dos anos que se seguiram quando os construtores das estearias já as tinham abandonado há décadas. Cabe destacar, que as estearias do Maranhão significam um mundo intermediário entre as populações do litoral nordestino e as da bacia amazônica.

A longa trajetória do arqueólogo e pesquisador da Bahia Carlos Etchevarne está resumida, em parte, no seu trabalho A história da Bahia antes da colonização portuguesa, com ênfase nas populações sedentárias ou semi-sedentárias de agricultores Aratu e Tupi. A importância dos registros rupestres, tão abundantes na Bahia, é também ressaltada como indicadora da variedade de etnias indígenas que povoaram a região.

Fábio Borges entendeu qual era o espírito do dossiê temático da Revista na sua Proposta para uma abordagem arqueológica da etno-história do Seridó – RN/PB. Pernambucano de Olinda, Fábio Borges é hoje um seridoense por adoção e mérito próprio, pesquisador e professor da UFRN no campus de Caicó, suas pesquisas na Região do Seridó têm contribuído ao entendimento de uma ancestralidade indígena potiguar que se remonta desde milênios AP até o século XVII, através da conjunção dos dados fornecidos pela gloto-linguística, a etno-história e o registro arqueológico.

O artigo apresentado por Michel Justamand, Albérico Nogueira de Queiroz e Gabriel Frechiani de Oliveira, As representações rupestres de biomorfos no Parque Nacional Serra da Capivara – PI: um estudo de caso é, mais uma vez, a demonstração da importância que a interdisciplinaridade tem em Arqueologia. Os três pesquisadores estão ligados às pesquisas sobre arte rupestre, particularmente ao conjunto ímpar do Parque Nacional Serra da Capivara, embora cada um, pela sua formação, tenha um viés metodológico diferente. Dá-se especial evidência neste trabalho às figuras que representariam a transição da forma humana para a animal ou vice-versa. Não podemos deixar de evocar a figura do homem pássaro representada nos sítios rupestres dos sertões nordestinos e mais uma vez refletir sobre as identidades ancestrais que representam os nossos registros rupestres pré-históricos.

Nanci Vieira de Oliveira em Pescadores – Coletores do Litoral Fluminense: Novos olhares, velhos problemas inicia a sua contribuição ao tema básico deste número da Revista com uma reflexão acertada dos conceitos, ultrapassados às vezes, do que se entende por nomadismo e sedentarismo na arqueologia tradicional. Utilizando-se de um neologismo certeiro, – as pesquisas pronapianas – , referindo-se aos pesquisadores que integraram o famoso PRONAPA, põe em tela de juízo os horizontes culturais em que foram divididas as ocupações humanas pré-históricas entre sítios précerâmicos e sítios cerâmicos, sem aparente ligação entre eles. A pesquisadora propõe um novo olhar na procura de identidades étnicas e processos culturais capazes de identificar a atividade humana no médio da massa de materiais e fases arqueológicas que a mascaram. Os novos olhares metodológicos abrem uma nova janela ao entendimento das populações litorânea, as primeiras a serem avistadas e que sofreriam os primeiros impactos da conquista portuguesa. Para finalizar a nossa contribuição, só nos resta parabenizar a feliz iniciativa da RNHB dedicando um número temático às mais antigas origens do povo multiétnico brasileiro.

Notas

1. Cf.: MARTIN, Gabriela. Quando os índios não eram índios: reflexão sobre as origens do homem pré-histórico no Brasil. CLIO Arqueológica, Recife, n. 15, p. 1-27, 2002.

2. TOVAR, Antonio. Catálogo de las lenguas de América del Sur. 2. ed. Madrid: Ed. Gredos, 1984.

3. Cf.: TUMINEZ, Astrid S. This Land is Our Land: Moro Ancestral Domain and Its Implications for Peace and Development in the Southern Philippines. SAIS Review of International Affairs, v. 27 n. 2, p. 77-91, 2007. Project MUSE. DOI: 10.1353/sais.2007.0044; ROTARANGI, S. J. Planted forests on ancestral land: the experiences and resilience of Māori land owners. 2012. Thesis (Doctor of Philosophy) – University of Otago. Retrieved from: http://hdl.handle.net/10523/2221; DI GIMINIANI, P. The becoming of ancestral land: Place and property in Mapuche land claims. American Ethnologist, 42, p. 490-503, 2015. DOI: 10.1111/amet.12143.

4. ALVES-SILVA, J.; SILVA SANTOS, M. Da; GUIMARAES, P. E.; FERREIRA, A. C.; BANDELT, H. J.; PENA, S. D.; PRADO, V. F. The Ancestry of Brazilian mtDNA Lineages. Am J Hum Genet, n. 67, p. 444-461, 2000.

5. PENA, Sérgio D. J.; BORTOLINI, Maria Cátira. Pode a genética definir quem deve se beneficiar das cotas universitárias e demais ações afirmativas? Estud. av., São Paulo, v. 18, n. 50, p. 31-50, apr. 2004. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142004000100004&lng=en&nrm=iso. Access on: 10 jun. 2020. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-40142004000100004.

6. FUNARI, P. P. A.; PINON, A. A temática indígena na escola: subsídios para os professores. São Paulo: Contexto, 2011.

7. ROQUETTE-PINTO, Edgard. Rondônia: anthropologia-ethnografia. Rio de Janeiro: Coedições ABL, 2005.

Gabriela Martin –  Doutora em História Antiga pela Universitat de València (Espanha) Professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Recife, PE, Brasil. E-mail: gabrielamartinavila@gmail.com

Pedro Paulo A. Funari –  Doutor em Arqueologia pela Universidade de São Paulo (USP) Professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Campinas, SP, Brasil. E-mail:  ppfunari@uol.com.br  Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0183-7622


MARTIN, Gabriela; FUNARI, Pedro Paulo A. Apresentação. Revista Nordestina de História do Brasil. Cachoeira, v.2, n.4, p.7-12, jan./jun. 2020. Acessar publicação original [DR]

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Povos originários e Covid-19: Experiências indígenas diante da Pandemia na América Latina | Albuquerque | 2021

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Covid-19 | Foto: OPAS |

Apresentação

Las bacterias y los virus fueron los aliados más eficaces. Los europeos traían consigo, como plagas bíblicas, la viruela y el tétanos, varias enfermedades pulmonares, intestinales y venéreas, el tracoma, el tifus, la lepra, la fiebre amarilla, las caries que pudrían las bocas. La viruela fue la primera en aparecer. ¿No sería un castigo sobrenatural aquella epidemia desconocida y repugnante que encendía la fiebre y descomponía las carnes? «Ya se fueron a meter en Tlaxcala. Entonces se difundió la epidemia: tos, granos ardientes, que queman», dice un testimonio indígena, y otro: «A muchos dio muerte la pegajosa, apelmazada, dura enfermedad de granos». Los indios morían como moscas; sus organismos no oponían defensas ante las enfermedades nuevas. Y los que sobrevivían quedaban debilitados e inútiles. El antropólogo brasilero Darcy Ribeiro estima que más de la mitad de la población aborigen de América, Australia y las islas oceánicas murió contaminada luego del primer contacto con los hombres blancos. (GALEANO, 2008, p. 35) La rápida expansión del COVID-19 ha tenido un fuerte impacto sobre la vida diaria y la organización sanitaria, escolar, política y económica de las sociedades en su conjunto. Si bien la pandemia afectó de modo simultáneo a poblaciones y territorios a lo largo y ancho del planeta, a partir de la proliferación de un virus que no distingue clivajes de clase, etnia, género ni religión, a poco tiempo de transcurrida no fue difícil discernir sus impactos diferenciales en territorios y poblaciones concretas. Leia Mais

Povos indígenas nas Américas: presenças, ocultamentos e resistências | Faces da História | 2020

Dossiês temáticos sobre os povos indígenas na História em revistas acadêmicas têm se tornado cada vez mais frequentes nos últimos anos. No mínimo, isso já demarca dois aspectos a se destacar, a fim de medir o impacto desta produção. O primeiro, ao considerar a quantidade de autores e autoras que compõem esta historiografia, evidencia que há trabalhos e pesquisas sendo desenvolvidas de maneira suficiente para tornar estes dossiês factíveis. O segundo, que complementa o primeiro, se dá através da demanda por este material, revelando um interesse por parte da academia e do público leitor em conhecer tal produção, apropriando-se do conhecimento gerado.

Há alguns anos atrás, a temática indígena entrou na fila dos temas elencados pelos então editores da Revista Faces da História para figurar como um dos dossiês que seriam feitos no futuro. Naquela ocasião, eu fui uma das pessoas chamadas para auxiliar na organização do mesmo. Alguns anos se passaram, finalmente chegou a vez deste Dossiê vir à luz e o produto final é este que os leitores agora têm acesso. Agradeço às colegas que em alguma fase deste processo dividiram a tarefa comigo, as professoras Mariana Albuquerque Dantas e Ana Raquel Portugal. Cabe outro destaque aos atuais editores da Revista, especialmente Benedito Inácio Ribeiro Junior, editor deste Dossiê, que de uma maneira heroicamente profissional tornaram esta edição possível. Lembrando que esta é uma revista criada e administrada por pós-graduandos da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Programa de Pós-Graduação em História de Assis, o que denota a seriedade com que estes historiadores, que são ao mesmo tempo profissionais e estudantes, dedicam-se ao seu ofício e à tarefa de manter esta revista de História existindo e resistindo, com muita qualidade. Leia Mais

Protagonismos Indígenas no Espaço Escolar / Revista Espacialidades / 2020

A sociedade atual, cada vez mais heterogênea, tem mostrado a necessidade de reconhecimento e representatividade dos diversos grupos que a compõe e nos seus mais variados âmbitos, seja político, econômico ou cultural. No Espaço escolar não seria diferente, este que pode ser entendido como um espaço de vivências sociais capaz de amalgamar a diversidade existente, assume uma posição de extensão da sociedade e, portanto, também precisa assegurar o princípio da equidade. Desse modo, o presente dossiê visa trazer discussões que privilegiem a participação direta ou indireta dos povos indígenas no processo educacional, que entre lutas e desafios, tem consolidado importantes conquistas de direitos no Brasil, como por exemplo, desde a Constituição de 1988 até ao Decreto Lei nº 6861, de 27 de maio de 2009 – no qual aprovava e definia a organização da Educação Escolar Indígena –, passando pela Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008 com a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena na Educação básica da rede pública e privada.

No decorrer da História do Brasil, os índios tiveram lugares bem específicos, em grande medida aqueles de negação e esquecimento. Contudo, uma onda de movimentos liderados por grupos indígenas em prol da defesa de seus direitos ganhou ainda mais força durante a década de 1970, período que marcou o início das articulações sociais de resistência às políticas repressivas dos governos militares. Desde então, os índios têm buscado ainda mais assumir os rumos de suas próprias histórias, construindo suas narrativas, protagonizando-as, e efetivando sua participação nos mais diversos espaços.

Aqui, o fio condutor dos debates levantados será a noção espacial, em vista que esta constitui o foco e escopo da Revista. Portanto, através dos diálogos que intersecionam o Protagonismo indígena e o Espaço escolar, reforçar-se-á a importância de abordagens que tratem dos grupos indígenas e de suas demandas, principalmente, do dever de se oferecer elementos que corroborem para a construção de uma consciência social voltada ao respeito da alteridade no meio escolar. Sendo assim, esse dossiê torna-se pertinente no sentindo da valorização da educação pautada na diversidade sociocultural e linguística dessa parcela da população, na sua reafirmação identitária e na manutenção de sua cultura.

Destarte, as pesquisas apresentadas neste dossiê através de diferentes abordagens, metodologias, fontes e arcabouço teórico, cumprem com um objetivo em comum: servirem de contribuição para endossar os debates em torno dessa temática.

Abrindo o Dossiê temático, Arthur Ramalho Freire, mestrando em Antropologia pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB, contribuiu com sua pesquisa “As intervenções estatais na Educação Escolar Indígena: da colonização a política pública, uma análise bibliográfica”, na qual realizou uma discussão perpassando por diversos momentos históricos em que os índios do Brasil foram submetidos a ações educativas pelo Estado, muitas delas impositivas. Na ocasião, portanto, o autor tratou desde o ensino proposto nas missões jesuíticas até àquele operacionalizado pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e a Fundação Nacional do Índio (FUNAI).

Já no artigo “Educação escolar indígena: o processo de gestão como forma de organização e respeito aos conhecimentos”, escrito por Oséias Poty Miri Florentino, pedagogo pela Universidade Estadual do Centro-Oeste – UNICENTRO, Mariana Ferreira Bayer e Suzete Terezinha Orzechowski, ambas Professoras do Departamento de Pedagogia da UNICENTRO. Os autores analisam a gestão democrática de escolas indígenas no município de Mangueirinha, no Paraná, sendo uma Guarani e outra Kaingang, identificando o envolvimento dos índios nesse processo através de visitas de campo e levantamento bibliográfico e documental.

Em sequência, há outro estudo em uma comunidade Kaingang, porém, localizada no município de Redentora, no Rio Grande do Sul. No trabalho “O espaço reservado à formação de professores em uma comunidade Kaingang”, os autores Juliana Tatsch Menezes, Especialista em Linguagem e Docência pela Universidade Federal do Pampa – UNIPAMPA, Ânderson Martins Pereira, doutorando em Letras na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, e Ariane Avila Neto de Farias, doutoranda em Letras na Universidade Federal do Rio Grande – UFRG, por meio de entrevistas realizadas com Professores da Escola indígena, investigaram como se dava a prática do ensino de Língua Portuguesa e se essa atendia às determinações oficiais.

Em seguida, a próxima discussão visou elaborar mapas mentais da Reserva Indígena Caramuru Paraguaçu, no Sul da Bahia, afim de servir como material didático na escola indígena local. Portanto, o trabalho “Etnomapeamento na Reserva Indígena Caramuru Paraguaçu” foi resultado de uma pesquisa integrada por Adriana Silva Souza, graduanda da Licenciatura Intercultural Indígena no Instituto Federal da Bahia – IFBA, Campus Porto Seguro, juntamente com os Docentes da mesma Instituição de Ensino, Ana Cristina de Sousa, Carla Sandra Silva Camuso e Leonardo Thompson da Silva. O grupo de pesquisadores realizou um levantamento histórico da ocupação do território Pataxó Hãhãhãe, coletando dados referentes às construções espaciais desse povo que viessem a subsidiar o etnomapeamento.

Para encerrar esse dossiê temático, apresentou-se o artigo “O índio na escola do imperador: retomada de terreno por indivíduos que foram expulsos de seus espaços originais”, cujos autores, Marcello Miranda Ferreira Spolidoro e Beatriz Mota Ferreira, respectivamente, doutorando e mestranda em Educação pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ, analisaram o aumento da comunidade indígena na instituição pública federal de educação Colégio Pedro II. Além da observação desse movimento, ao qual eles atribuíram como “retomada de terreno”, foi colocada em questão também a importância da descolonização do currículo escolar, objetivando a valorização de práticas pedagógicas contra-hegemônicas.

O presente volume contou ainda com outros quatro trabalhos na Sessão livre, sendo o primeiro deles de autoria de Thaina Morais Avelino Maia, mestranda em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, intitulado “Da cidade imaginada à cidade escrita: o espaço urbano na narrativa do livro Constantinopla (1889)”. Neste artigo, a autora propôs uma análise do relato de viagem do escritor italiano Edmondo De Amicis (1846-1908) à capital do Império Otomano e de suas impressões descritivas também imbuídas de suas leituras fantasiosas.

O artigo seguinte, “Integralismo ‘racial’: a figura do judeu no projeto nacional brasileiro de Gustavo Barroso (1930)”, de Cícero João da Costa Filho, Doutor em História pela Universidade de São Paulo – USP, versa sobre o caráter antissemita presente nas produções bibliográficas do chefe de milícias Gustavo Barroso (1888- 1959) e, em especial, daquelas que tratavam do seu projeto de nação baseado na elite e no estado forte. Cícero Costa Filho apresentou as concepções integralistas, as noções de raça e o conservadorismo que compunham as narrativas de Gustavo Barroso sobre como deveria ser o Brasil de acordo com sua visão.

Já Lucas Aleixo Pires dos Reis, graduando em História pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, no artigo intitulado “O espaço senegambiano: uma percepção de conformação espacial a partir do comércio de ferro – século XVI” abordou a conformação das relações sociais na Senegâmbia através do comércio interno de ferro. Por meio da análise de relatos de viajantes, o autor problematizou a hierarquização existente entre povos ao norte e povos ao sul da região, baseando-se nos espaços sociais construídos durante o século XVI.

Por fim, Cristiane da Rosa Elias, mestranda em História pela Universidade Estadual do Centro-Oeste – UNICENTRO, contribuiu com o seu trabalho “Língua, colonização e resistência: uma discussão sobre os usos da linguagem”. Nele, a autora objetivou refletir a respeito das formas de dominação exercidas sobre a linguagem, entendendo-a como meios de disseminação de modos de ser e pensar. Dessa maneira, associou as línguas africanas a uma alternativa de resistência desses povos, em enfrentamento ao sistema colonial e as estratégias de submissão dos grupos.

Esse volume também contou com a contribuição, na sessão “Entrevista”, do Professor José Luiz Soares ou Luiz Katu como é mais conhecido, sendo uma das principais lideranças indígenas do Rio Grande do Norte, cacique da aldeia Catu, que fica entre os municípios de Goianinha e Canguaretama, e é interlocutor não apenas dos Potiguara, mas também de outros povos indígenas do estado junto aos agentes governamentais. Essa entrevista compõe o trabalho de dissertação “‘Não há conflito se for feita releitura’: a experiência escolar dos Potiguara do Catu no contexto de convivência intercultural numa escola não indígena (Goianinha / RN, 2015-2019)”, de autoria de Tiago Cerqueira Santos vinculado ao Mestrado Profissional em Ensino de História (PROFHISTÓRIA UFRJ / UFRN), e contou com a preparação, discussão e contribuições do professor Lígio José de Oliveira Maia, Professor Associado do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Como Professor e articulador de movimentos de luta, Luiz Katu detalhou as ações executadas na tentativa de dirimir os preconceitos e os estigmas sofridos, ressaltando a importância das Escolas Indígenas João Lino e Alfredo Lima, localizadas no estado Potiguar, e do seu exercício político também enquanto docente, assim como sua preocupação com o ensino da História nas escolas não indígenas. Além disso, a liderança concedeu informações sobre os desafios enfrentados e os avanços conquistados no Catu, e pontuou ainda as principais dificuldades que passam os alunos egressos das duas Escolas Indígenas da aldeia as quais ele leciona, após a conclusão do Ensino Fundamental I.

Sendo assim, o primeiro número de 2020 da Revista Espacialidades apresenta aos leitores e às leitoras um conjunto de artigos acompanhado de uma rica entrevista, afim de corroborar com o preenchimento de lacunas na historiografia referente ao protagonismo indígena, em especial no âmbito escolar. Através das investigações e pesquisas elaboradas pelos autores e autoras, estimulam-se os diálogos e as problematizações, e assim, enriquecendo os debates históricos.

O Editor Chefe e a Equipe Editorial da Revista Espacialidades desejam a todos uma excelente leitura!

Clara Maria da Silva (UFRN) – Vice Editora Gestora

Douglas André Gonçalves Cavalheiro (UFRN) – Editor

Edcarlos da Silva Araújo (UFRN) – Gerenciador do site

Lígio José de Oliveira Maia (UFRN) – Editor Chefe

Ristephany Kelly da Silva Leite (UFRN) – Editora Gestora

Rodrigo de Morais Guerra (UFRN) – Secretário de Comunicação e Mídias Sociais

Thiago Venicius de Sousa Costa (UFRN) – Editora de texto (normatização)

Victor André Costa da Silva (UFRN) – Secretário Geral


MAIA, Lígio José de Oliveira et al. Apresentação. Revista Espacialidades. Natal, v.16, n. 01, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Os povos indígenas na história: agenciamentos, direitos e lutas/Cadernos de Pesquisa do CDHIS/2019

Embora o colonialismo tenha se esgotado formalmente na América a pelo menos dois séculos, a colonialidade, como a define Quijano1, persiste. Padrão de controle e classificação hierarquizante das populações, ela afeta todos os campos da vida social e reproduz, até hoje, relações de ser, pensar, fazer e poder que ainda são coloniais. A simples escolha semântica de América e Latina, ou de Novo Mundo, não só fortalece(u) a versão ocidental de nossa história e cultura, mas, ao silenciar outras tantas semânticas, exclui(u) também de um só golpe trabalhadores pobres, afrodescendentes e povos originários dos projetos de construção das nações dessa parte do mundo. Conduzidas por elites que, se não eram, queriam ou imaginavam ser europeias, as diferentes políticas de Estado, como por exemplo as indigenistas, sempre procuraram, de uma forma ou de outra, transformar essas populações em nacionais, sejam eles argentinos, peruanos, chilenos, mexicanos, brasileiros, bolivianos etc., ou o que quer que essas coisas representem. Como se não bastasse o fardo do peso histórico do genocídio, do etnocídio, da expulsão e da segregação cometidos contra os povos indígenas, sua face perversa e monstruosa se repete no atual momento político delicado pelo qual passa todo o continente, marcado não só pelo sucessivo retrocesso nos diretos sociais (transformados em serviços pelo ultra neoliberalismo de extrema direita que nos recoloniza), como no claro discurso de que essa parcela da população é prescindível, descartável; sina igualmente compartilhada por pobres e afrodescendentes. Leia Mais

Os indígenas sob o olhar de novas investigações / Ponta de Lança/2017

Esta edição traz um dossiê com recentes estudos sobre os povos indígenas do Brasil escritos por pesquisadores oriundos de diversos Programas de Pós-Graduação, que podemos enquadrar como Nova História Indígena.

A sessão de dossiê é aberta pelas reflexões sobre a etnografia visual como instrumento de representatividade das mulheres indígenas xinguanas. O texto escrito a quatro mãos pelo doutorando Gustavo Batista Gregio e pela professora doutora Sandra de Cássia Araujo Pelegrini, ambos da Universidade Estadual de Maringá, estabelece uma perspectiva interdisciplinar de diálogo entre história e antropologia para analisar como as imagens das mulheres indígenas possibilitaram torn´-las interlocutoras de suas comunidades e guardiãs de suas memórias e práticas culturais. Leia Mais

Povos indígenas no Caribe contemporâneo / Revista Brasileira do Caribe / 2012

A Revista Brasileira do Caribe, sob a direção atual da professora Isabel Ibarra Cabrera, historiadora da Universidade Federal do Maranhão que já organizou vários fascículos e se encontra vinculada à Revista desde sua fundação, conta também com o apoio da fundadora e diretora anterior de longos anos, professora Olga Cabrera. A Revista está fortemente comprometida com o projeto de desenvolver os estudos do Caribe no Brasil vinculados também com outras culturas e com suas matrizes africanas.

Foi-me uma grande honra receber convite da professora Isabel Ibarra para colaborar na organização de um dossiê que abrangesse, entre outros temas, artigos que tratam da questão indígena na região do Caribe. Ao abordar povos indígenas no Caribe, resolvi incluir artigos que versam sobre alguns povos indígenas contemporâneos em toda a região do Maciço Guianense do norte da América do Sul, região de maior concentração dos povos indígenas que pertencem à família linguística Caribe, incluindo, também, o litoral norte da América do Sul, as ilhas do Caribe e a região Circum-Caribe mexicana. Além de povos indígenas da família linguística Caribe, essa região também abarca outros povos indígenas da família linguística aruaque, alguns povos da família tupi e outros povos de famílias linguísticas menores. Em uma tentativa de caracterizar ospovos de línguas caribe da América do Sul na década de 1970, Ellen Basso (1977) separa oito características que julga serem tipicamente caribes, relacionadas, em parte, a fatores ecológicos. Entretanto, esses traços são encontrados em muitas sociedades indígenas, revelando que diferenças linguísticas não coincidem necessariamente com diferenças socioculturais. Focalizando os povos indígenas do maciço guianense, Peter Rivière (2001 [1984]), na década seguinte, desenvolve uma teoria a partir de um estudo comparativo da organização social ameríndia,

de que os povos da região guianense representariam, ao serem comparados com os povos de línguas jê e os povos do Alto Rio Negro, a cultura das Terras Baixas da América do Sul em sua forma mais simples de todas as possibilidades, referindo-se a possibilidades lógicas, e não como a origem da cultura. Segundo esse autor a economia política das sociedades indígenas da região guianense preocupa-se com o gerenciamento das capacidades produtivas e reprodutivas dos indivíduos, homens e mulheres, sobretudo das mulheres que constituem um recurso escasso. A partir de estudos realizados por pesquisadores do seu grupo de pesquisa centrado na Universidade de São Paulo, sobre os sistemas indígenas multilocalizados de comunicação e intercâmbio na região das Guianas, Dominique Gallois (2005) implode qualquer tentativa de fazer um recorte étnico dos povos indígenas dessa região por ser inadequado para explicar essas sociedades indígenas,ressaltando a importância de estudos da história. Em trabalho publicado no mesmo volume organizado por Gallois, a pesquisadora Denise Fajardo Grupioni (2005) questiona a caracterização típica feita por Rivière e propõe, a partir de uma abordagem que leva em consideração o espaço e o tempo, em que “abertura e fechamento, dispersão e isolamento, exogamia e endogamia, descendência e aliança não se excluem, mas se opõem de forma complementar (2005, p.50)”. Enquanto crescer o número e a qualidade das pesquisas etnológicas com povos indígenas nas Guianas, revela-se uma enorme diversidade sociocultural entre os povos dessa região, e histórias particulares e regionais do contato interétnico entre povos indígenas e as sociedades nacionais, em que as pesquisas sobre temas diversos se complementam. A obra de Nádia Farage (1991) sobre a colonização do rio Branco apresenta uma rica história dos povos indígenas da região guianense, como também o livro de Paulo Santilli (1994) sobre as fronteiras da República do Brasil, e a obra de Niel Whitehead (1988) sobre a história dos povos caribes na Venezuela e na Guiana em tempos coloniais.

O dossiê “Povos Indígenas no Caribe contemporâneo” inclui seis artigos sobre povos indígenas atuais e cinco artigos históricos e literários.

O primeiro artigo, “Dispersão e Concentração Indígena nas Fronteiras das Guianas: análise do caso kaxuyana” de autoria do professor Ruben Caixeta de Queiroz da Universidade Federal de Minas Gerais junto com Luisa Gonçalves Girardi, aborda o povo indígena kaxuyana que habita um tributário direito do médio rio Trombetas, localizado na porção brasileira da Amazônia Setentrional. No final dos anos 1960, esse povo, assolado por doenças trazidas pelas frentes de colonização, dividiu-se, uma parte mudando para o rio Paru de Oeste, outra parte para o rio Nhamundá. Por meio de casamentos com índios Tiriyó no Paru de Oeste, e com os índios Hixkaryana no Nhamundá, a população kaxuyana voltou a crescer, e após quatro décadas separadas, estas duas frentes voltaram a se reunir no seu lugar de habitação tradicional, onde fundaram duas aldeias próximas e distantes ao mesmo tempo para garantir a boa relação dos grupos.

O artigo seguinte, “A Vontade de Saber – a escola e o mundo das profissões entre os Ye’kuana”, escrito por Karenina Vieira Andrade, professora do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais, trata da busca da educação superior por parte do povo indígena Ye’kuana, cujas terras se localizam na fronteira entre o noroeste do estado de Roraima no Brasil e os estados de Bolívar e Amazonas no sul da Venezuela. Na mitologia ye’kuana, Wanaadi, o demiurgo ye’kuana, criou, dentre outras coisas, o papel e a escrita para enganar o anti-herói Odo’sha. Nos últimos anos os Ye’kuana têm se envolvido em um processo acelerado pela formação dos

primeiros professores ye’kuana na licenciatura intercultural do Instituto Insikiran da Universidade Federal de Roraima, e de repensar a escola indígena. Apesar da sua história violenta de contato com a população não-indígena, os Ye’kuana buscam se reinventar novamente por meio da profissionalização no mundo dos brancos, mantendo sua própria cultura.

O terceiro artigo, “Una montaña bañada por el mar: La Sierra Nevada de Santa Marta en el Caribe Colombiano” de autoria de José Arenas Gómez, aluno de Pós-Graduação do Departamento de Antropologia da UnB, aborda a Sierra Nevada de Santa Marta no litoral Caribe da Colômbia, região onde, conforme ressalta esse autor, os estudos

que se têm realizado nos diferentes campos do conhecimento não parecem transcender as fronteiras físicas da zona, e em decorrência disso muitos dos elementos mais interessantes dos grupos ijka, kággaba, viwa y kankuamo, seus habitantes indígenas, são desconhecidos no âmbito acadêmico internacional. O autor analisa aspectos destas comunidades indígenas com o objetivo de abrir possibilidades de diálogo tanto com as zonas vizinhas quanto com outras regiões geograficamente distantes como a Amazônia, que compartilham elementos etnológicos.

O quarto artigo do dossiê, “Estratégia de Aumento de Valência: A Construção Causativa em Waimiri Atroari (Carib do Norte)” da antropóloga e linguista Dra. Ana Carla Bruno, pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – INPA/CSAS propõe descrever e analisar alguns aspectos da morfologia verbal concentrando-se em algumas questões comoa estratégia de aumento de valência e a construção causativa na língua waimiri-atroari. Os Waimiri Atroari, povo indígena que habita o norte do estado do Amazonas e sul de Roraima, no Brasil, em comum com outras línguas da família Carib, falam uma língua cuja estrutura do verbo é basicamente prefixo-raiz sufixo. A análise linguística revela que os prefixos, nesta língua, usualmente marcam a pessoa e os sufixos marcam tempo/aspecto/ modo, negação, nominalização e mudança de valência através do processo de causativização.

O quinto artigo “Os povos indígenas Wapichana e Makuxi na fronteira Brasil-Guiana, região do Maciço Guianense”, de autoria de Stephen G. Baines, professor do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília e pesquisador do CNPq, aborda as estratégias narrativas entre os Makuxi e Wapichana que vivem ao longo da fronteira internacional entre o Brasil e a Guiana de se reafirmarem etnicamente a partir da crescente consolidação do movimento indígena desde a década de 1970 até o momento. A história indígena é acionada por lideranças dentro do contexto dos Estados nacionais como uma apropriação do passado para fortalecer as identidades indígenas em lutas políticas atuais. Os discursos dos Makuxi e dos Wapichana, cujos territórios tradicionais foram divididos pela fronteira internacional em 1904, revelam as contradições e as ambiguidades dos discursos governamentais dos respectivos Estados nacionais a respeito de nacionalidade e etnicidade.

O sexto artigo “Migraciones mayas y yucatecas a Cuba; notas etnográficas”, escrito pela antropóloga Victoria Novelo O. do Centro de Investigaciones y Estudios Superiores en Antropología Social (CIESAS), México, versa sobre os Yucatecos que, desde

o início da colonização do México participaram de um processo migratório à Ilha de Cuba. Segundo a autora, os maias foram, na maioria dos casos, levados pela força à Cuba colonial para servir como trabalhadores domésticos e da construção. No séculoXIX foram enviados como prisioneiros feitos durante o conflito conhecido como “guerra de castas” em Yucatán e vendidos como escravos. No século XX os migrantes são mais variados, incluindo diaristas e operários, políticos, professionais, artesãos, músicos, artistas, sacerdotes e outros. A migração yucateca e mexicana ao longo dos séculos deixou uma herança cultural visível na cultura popular cubana.

O sétimo artigo, em Artigos históricos e literários, “La apuesta por el “Guano” en Puerto Rico: exploraciones científicas, desempeño empresarial y mercado internacional”, escrito pelos professores María Teresa Cortés Závala e José Alfredo Uribe Salas da Universidad Michoacana de San Nicolás de Hidalgo, México, trata da história do “guano” das ilhas caribenhas de Mona e Monito que, a partir da metade do século XIX, havia penetrado no imaginário científico e popular de Espanha como a panaceia para potenciar a produção agrícola e diversificar seus cultivos, e como uma saída à crise do açúcar nos domínios espanhóis de Cuba e Puerto Rico. O crescimento de demanda levou o governo da Espanha a financiar expedições nas ilhas Mona e Monito, no Caribe, com a finalidade de determinar seu valor no mercado. O resultado revelou que se tratava de um mineral com rico conteúdo de cal-fosfato A exploração do minério utilizou mão de obra barata das ilhas de Guadalupe e Bahamas, e deixou pouco para a economia local, até que nos anos de 1920 e 1930 o crescimento da indústria química tornou sua extração obsoleta.

O oitavo artigo, “Uma janela sobre o Haiti: estórias andantes de uma blanc no Caribe” escrito por Pâmela Marconatto Marques, da Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, propõe uma estética híbrida: é testemunho de viagem atravessado por elaborações poéticas de uma brasileira em sua “viagem de descobrimento” ao Haiti. Conforme a autora, se a estética é ambígua, a ética do trabalho, entretanto, é uma e bem definida: “contar” um Haiti pouco conhecido dos brasileiros, sendo mais complexo e mais humano.

O nono artigo, “A Guiana Francesa, entre o pós-colonialismo e a afirmação nacional” de autoria de Charles Benedito Gemaque Souza, pesquisador do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos/UFPA, aborda a Guiana Francesa, região administrativa da França metropolitana no litoral norte da América do Sul, sociedade etnicamente diversificada que abarca todas as contradições do pós-colonialismo. O modelo estatal francês universalista e integracionista não tolera as diferenças seja aquelas trazidas pelos imigrantes ou originárias dos povos indígenas, e o processo de descolonização reproduz as velhas políticas de dominação colonial.

O décimo artigo desse dossiê, “Notas historiográficas sobre la elección presidencial de Tomás Estrada Palma y el establecimiento de la República cubana, 1902”, escrito pela pesquisadora María del Rosario Rodríguez Díaz, do Instituto de Investigaciones Históricas, da Universidad Michoacana de San Nicolás de Hidalgo, objetiva mostrar as tendências gerais da historiografia cubana referente às diferentes discussões que a primeira eleição presidencial na Ilha provocou na narrativa histórica cubana em datas recentes. A autora focaliza textos de dois acadêmicos cubanos, Ana Cairo e Yoel Cordoví, ambos representantes ambos do mais atual da historiografia em torno ao estabelecimento da República em Maio de 1902.

O décimo primeiro e último artigo, escrito pelo professor Amailton Magno Azevedo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, intitulado “Gilberto Gil e Caetano Veloso: ser jovem nos alegres tristes trópicos” visa à identificação e à reconstrução de rastros de um modo de juventude no Brasil a partir das trajetórias musicais de Gilberto Gil e Caetano Veloso nos anos 1960 ao início dos anos 1980. O autor enfatiza que, com as obras desses dois artistas musicais, surgiu a construção de uma nova experiência juvenil no Brasil que moldou uma estética de ser e estar no mundo.

O dossiê apresenta uma variedade de temas, todos versando sobre a região Caribe tomado em sentido amplo. Espera-se que este dossiê apresenta uma contribuição para os estudos dessa região.

Referências

BASSO, Ellen B. Introduction: The status of Carib ethnography, p. 9-22, In: BASSO, Ellen B. (org.). Carib-Speaking Indians: Culture, Society and Language. Anthropological Papers of the University of Arizona nº 28, Tucson: The University of Arizona Press, 1977.

FARAGE, Nádia. As Muralhas do Sertão: os povos indígenas no rio Branco e a colonização. Rio de Janeiro: Paz e Terra; ANPOCS, 1991.

GALLOIS, Dominique Tilkin. Introdução: percursos de uma pesquisa temática. In: GALLOIS, Dominique Tilkin (org.) Redes de relações nas Guianas. São Paulo: Associação Editorial Humanitas: Fapesp, 2005, p. 6-22.

GRUPIONI, Denise Fajardo. Capítulo 1 Tempo e espaço na Guiana indígena. In:

GALLOIS, Dominique Tilkin (org.) Redes de relações nas Guianas. São Paulo: Associação Editorial Humanitas: Fapesp, 2005, p. 23-57.

RIVIÈRE, Peter. O Indivíduo e a Sociedade na Guiana: um estudo comparativo da organização social ameríndia. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001 [Cambridge University Press, 1984].

SANTILLI, Paulo. As Fronteiras da República: história e política entre os Makuxi no vale do rio Branco. São Paulo: NHII – USP; FAPESP, 1994.

WHITEHEAD, Niel. Lords of the tiger spirit: a history of the Caribs in colonial Venezuela and Guya na, 1498-1820. Dordrecht, Holland; Providence, U.S.A.: Foris Publications, 1988.

Stephen G. BainesProfessor Associado 3, Departamento de Antropologia, UnB; Pesquisador 1A do CNPq.


BAINES, Stephen Grant. Povos indígenas no Caribe contemporâneo. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.13, n.25, p.7-14, jul./dez. 2012. Acessar publicação original. [IF].

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Minas do ouro, Minas indígena / Revista do Arquivo Público Mineiro / 2011

“Minas do ouro, Minas dos cataguás.” Com esse epíteto, batizou-se o território mineiro, reconhecendo-se, desde os primeiros contatos, os índios como os senhores de todas as Gerais. O que se sabe é que a presença dos colonos se estendia pouco além dos povoados, e tudo o mais era, então, domínio das populações nativas. “Infestando” o território, índios de diversas nações – caiapó, botocudo, puri, coroado, malali, maxacali e pataxó, entre outros – ocupavam todo o cenário até que colonos, avançando pelo interior e desbravando sertões inóspitos, imprimiriam uma nova paisagem ao transpor as fronteiras sob domínio das populações nativas.

No entanto, os trabalhos sobre as Minas dos cataguases, prenúncio de uma História marcada pelo encontro com os índios, pouco contribuíram para o conhecimento do processo histórico a que esses povos foram submetidos com o avanço das frentes de expansão colonizadora. Mesmo que a presença dos povos indígenas tenha sido, reiteradas vezes, tema das discussões administrativas e eclesiásticas, foram ignorados por parte expressiva da historiografia mineira. Ainda que uns poucos historiadores admitissem sua presença nesse cenário, antecipavam suas ressalvas, ao reduzirem a atuação dos índios aos primeiros contatos, sem os tomar sequer como agentes da História e da formação sociocultural de Minas. E, mesmo quando assim foram considerados, eram tidos como meros apêndices dos estudos, prestando-se, quase sempre, a penduricalhos à ação colonizadora e ao protagonismo português, como testemunham as obras clássicas da historiografia que apenas tangenciaram a questão. Leia Mais

Populações Indígenas e Missões Religiosas na América Latina / História Unisinos / 2007

A história da Linha de Pesquisa Populações Indígenas e Missões Religiosas na América Latina se confunde com a história e com o Projeto da própria Universidade que a abriga, haja vista o interesse dos membros da Companhia neste tema e a larga trajetória de estudos acerca do mesmo, produzidos pelo Instituto Anchietano de Pesquisas. Fundado em 1956, para congregar jesuítas da província meridional da Ordem que desenvolviam pesquisas nos colégios e na missão de Diamantino (Mato Grosso), e para facilitar a publicação de seus trabalhos e garantir a continuidade de seus projetos e acervos, o IAP construiu uma sólida tradição de pesquisas na área, à qual se somaram aquelas que vieram a desenvolver-se no âmbito do PPGH.

A Linha se apresenta tendo como temas de interesse os relativos às populações indígenas, ao processo de conquista, evangelização e colonização da América Latina, bem como seus desdobramentos político-econômicos e socioculturais na construção da identidade latino-americana. Entre os focos de análise privilegiados, sem dúvida, sobressaem-se aqueles que tomam por objeto o processo de ação missionária da Companhia de Jesus que resultou, entre outras coisas, no estabelecimento dos chamados “30 Povos das Missões”.

Contudo, considerando que a “missão” foi uma experiência que transcendeu territórios, tendo sido desenvolvida historicamente em espaços tão distintos quanto o Prata, o Chile, a Amazônia e as áreas contíguas do Oriente boliviano, por exemplo; que, nas suas várias manifestações, uma nova noção de territorialidade decorreu desta estratégia de conversão e de civilização; que as populações indígenas que foram objeto desta política missionária responderam a ela de forma diferenciada; que nestas múltiplas fronteiras em que espaços foram ocupados e reocupados, produziram-se práticas culturais que podem ser objeto de estudos comparados em suas singularidades e em suas recorrências, os pesquisadores vinculados à Linha têm procurado integrar estes temas às suas reflexões.

O presente Dossiê espelha este avanço das perspectivas de análise sobre o tema que originalmente marcou o trabalho da Linha, assim como a interlocução corrente com especialistas de outras instituições, evidenciando o esforço dos pesquisadores em acompanhar as tendências historiográficas mais recentes, não só no que tange aos estudos culturais, como aos que vêm renovar a história social e compor uma nova história indígena.

Refletindo este estado da arte, os artigos de Arnt, Avellaneda, Neumann, Quarleri e Torres-Londoño escapam de análises simplistas sobre a época colonial, atendendo a este repto que é o de recuperar-se o papel dos grupos indígenas na formação das sociedades e culturas do continente. Para tanto, os autores ultrapassam a mera adoção de uma visão de crítica ao colonialismo e denúncia das suas tremendas conseqüências em relação aos nativos, para efetivamente refletirem sobre mecanismos de resistência, assimilação defensiva e recuperação, isto é, sobre as formas através das quais interagiram com a sociedade colonial e ajudaram a conformá-la.

Como instituição colonial, as reduções diferenciaram-se segundo as circunstâncias históricas e as particularidades étnicas e regionais de onde existiram, assim como segundo as intenções de seus fundadores e responsáveis. Daí podermos concordar com a afirmação de Bartomeu Meliá de que a missão por redução é um método e uma história, um modo de proceder e uma atuação do mundo colonial. Esta perspectiva justamente é aquela que é abordada nos artigos de Barcelos, Carvalho da Silva, Domingues, Franco e Santos. Finalmente, Chamorro-Argüello contempla, em seu texto, as possibilidades abertas pela atual recuperação do gênero biográfico, vinculando-o ao tema da missão por redução.

Eliane Cristina Deckmann Fleck – PPGH – UNISINOS

Maria Cristina Bohn Martins – PPGH – UNISINOS


FLECK, Eliane Cristina Deckmann; MARTINS, Maria Cristina Bohn. Apresentação. História Unisinos, São Leopoldo, v.11, n.2., maio / agosto, 2007. Acessar publicação original [DR]

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