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L’Époque romaine ou la Mediterranée au nord des Alpes | Flutsch
No final do século V a.C. os celtas ocuparam o território da atual Suíça, sobrepondo-se às antigas populações lacustres, agrícolas e de pastores. Nova invasão ocorreu no final do séc. II a.C., quando os helvécios – também celtas – liderados por Divico, avançaram do sul da Germânia em direção à Gália. Em 61, então já estabelecidos no território alpino, que os romanos englobavam no nome genérico de gaulês, prepararam-se para nova migração em direção ao oeste, comandados por Orgétorix, migração fracassada pelo assassinato do líder. Entretanto os romanos já haviam dominado parcialmente esse território, isto é, todo o sul da Gália, e o conflito foi inevitável, terminando com a vitória dos romanos sobre os helvécios em 58 a.C.. Tomando partido desse fato Júlio César obriga os helvécios a permanecer na região alpina e dá início à conquista completa da Gália. Estas e outras circunstâncias, afirma Flutsch, têm impedido os suíços contemporâneos de reconhecer Divico ou Orgétorix como heróis nacionais, e leva o autor a falar da cultura ou do legado da romanização mais em termos de galo-romanos (mais abrangente) do que helveto-romanos – mais restrito e discutível, já que os helvécios não defenderam uma “pátria” contra os romanos, mas foram por eles impedidos de sair de onde se tinham estabelecido. Após a vitória sobre os helvécios os romanos iniciaram o estabelecimento de colônias e legiões: por volta de 44 a.C. foi criada a Colonia Julia Equestris (atual Nyon, próximo a Genebra, na margem do lago), e por volta de 20 a. C. começaram as construções na Colonia Raurica, em território dos rauraques, outra população celta – é a atual Augst, próxima a Basiléia, cujos vestígios estão hoje em muito bom estado de recuperação. Portanto no I século a.C. a presença romana embora marcante deixava quase total independência às populações alpinas. Com a chegada do Império as terras da atual Suíça foram ocupadas pelas legiões e pelas instituições políticas e administrativas romanas, que, contudo, não eliminaram as estruturas sociais e a organização dos vários grupos celtas. Nessa fase o território estava dividido por cinco distintas províncias romanas: o norte pertencia à Germânia Superior, o oeste à Narbonense, o sul aos Alpes e à Itália, e o leste à Récia. Ao destacar este fato Flutsch faz notar que a romanização, embora não tenha contribuído para criar uma consciência de unidade no que veio a ser o povo suíço, definiu a “cantonização” que hoje constitui a Confederação Helvética (em que pese a dubiedade deste termo, que ele evitou). De fato, na confederação o norte e centro é de língua alemã, o oeste de língua francesa, o sul de língua italiana, e o sudeste romanche. Depois do seu apogeu no século II d.C. o Império Romano entrou em decadência e em meados do séc. III a crise econômica da Itália atingiu as províncias: as guerras e a anarquia, aliadas aos impostos escorchantes fizeram os agricultores desistir da lavoura, e engrossar as turbas de ociosos e bandidos. Fome e peste provocaram a baixa demográfica, e os germanos, aproveitando-se da fraqueza imperial, começaram a atacar as fronteiras e fazer suas primeiras incursões em território alpino. Apesar da recuperação sob Diocleciano, e depois sob Constantino, os romanos continuaram a sofrer os embates com os invasores, e repetidas vezes os alamanos (354, 365, 375) atacaram as legiões e penetraram no território rauraque. Mas o território dito gaulês, ou helvécio, da posterior Suíça não recebeu, antes do séc.VI, invasões maciças germânicas, mesmo quando as legiões abandonaram o território em 401. Quando os Borguinhões, em 443, se instalaram na região de Genebra, rapidamente se incorporaram à cultura galo-romana. Já os alamanos, que ocuparam o norte no século seguinte, impuseram seu idioma germânico, que se mantém até hoje. Depois dessa revisão histórica do período romano (I a.C. a V d.C.) que ocupa metade do livro, o autor dedica um capítulo à “globalização econômica”, ou seja, às marcas deixadas pela romanização no modo de vida material. A incorporação das regiões alpinas gaulesas e helvéticas à economia do Império trouxe estruturas administrativas eficientes; todos os tipos de produção usual da época floresceram, novas profissões surgiram, estradas foram construídas – definindo em seus cruzamentos e passagens quase todas as principais cidades suíças da atualidade. A ligação dos Alpes com o Mediterrâneo (razão do subtítulo da obra) não só exportava os produtos locais, mas propiciava à população das montanhas consumir produtos até então desconhecidos ou reservados à elite celta: vinho, azeite, frutas e conservas de peixe passaram a estar ao alcance de grande parte da população alpina. Percorrendo diversos aspectos da vida comum, desde a tecnologia de construção à produção agrícola, Flutsch vai mostrando como o período romano lançou as bases da sociedade suíça; contudo adverte: a romanização operou-se principalmente nos centros urbanos, enquanto nas regiões rurais a cultura celta permaneceu; por outro lado, após o desmoronamento do Império muitas de suas características desapareceram, como certos tipos de bens de consumo e de conforto, que só voltaram à Suíça no séc. XX. Se ao falar de economia Flutsch mostra sua formação e pendor de arqueólogo, apoiando-se freqüentemente nos vestígios materiais da romanização, o último capítulo – “o casamento das culturas” – é ainda mais objetivo e concreto na apresentação de elementos materiais: para comprovar a importância das construções civis e da urbanização como modeladoras e ao mesmo tempo indicadores da vida social; ao trazer inscrições latinas que denotam peculiaridades da continuidade da cultura celta, inclusive familiar, sob capa romana, ou a presença das mulheres nas atividades da elite; receitas médicas evidenciando a introdução da medicina greco-romana; mosaicos e esculturas caseiras mostrando a aceitação da mitologia e da religião romanas; a completa alteração dos hábitos de alimentação pela importação de muitos produtos e dos modos de cozinhar mais sofisticados. Os exemplos que aduz são muitos bastando completá-los com os traços referentes ao que é menos material: as crenças. Uma cabeça de touro tricórnio celta esculpida em estilo romano; as inúmeras estatuetas de Lug disfarçado de Mercúrio; Caturix, deus protetor dos helvécios, que surge como Marte Caturix; Taranis empunhando o raio de Júpiter; o culto às novas divindades orientais que tinham entrado no Império, inclusive o cristianismo, cuja presença em território suíço é atestada desde o final do séc. IV, ou ainda os costumes celtas de velório e sepultamento modificados pelos romanos. Na conclusão, intitulada “um parêntese que não se fechou” o autor retoma e resume as principais aportações da romanização à Helvécia galo-romana desde o latim e a telha ao gato doméstico e ao alho, para defender as suas teses, entre as quais destacamos: 1. a arqueologia é uma ciência bem fundamentada em técnicas de interpretação de vestígios materiais, mas não está imune a influências doutrinais e ideológicas, nem à percepção do antigo pelos olhos da atualidade; é assim que discretamente alude à integração alpina na cultura mediterrânica e na globalização imperial para sugerir (129) que essa antiga abertura conduz a Suíça à integração na União Européia; 2. a romanização lançou os fundamentos do modo de vida suíço da atualidade, mas não construiu uma consciência de nacionalidade unificada, que é muito recente; daí as suas críticas às alusões do passado como criador dessa identidade de povo, que ele considera um erro de interpretação que falseia a própria visão da Suíça – aliás o autor continuamente se dirige a seus patrícios, pois usa muito o termo “nós” e “nosso” para falar da região. Deste modo, um pequeno volume de introdução a um período histórico é de fato, como toda a coleção Savoir Suisse, um chamado à revisão da percepção que os suíços têm de si mesmos e do seu papel na atualidade. De alguma forma a arqueologia de Laurent Flutsch, diretor de escavações, de exposições e do Museu romano de Lausanne-Vidy, é uma ciência de intervenção política.
João Lupi – Departamento de Filosofia UFSC. E-mail: lupi@cfh.ufsc.br
FLUTSCH, Laurent. L’Époque romaine ou la Mediterranée au nord des Alpes. Lausana: Presses polytechniques; Universitaires romandes, col. Le Savoir Suisse, 2005. Resenha de: LUPI, João. A Suíça e o Mediterrâneo. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.7, n.1, p. 101-103, 2007. Acessar publicação original [DR]
A Galicia celta | Antonio Balboa Salgado
Quem estudou, mesmo que brevemente, algumas questões da história e da cultura dos celtas já se deparou com as grandes divergências que aparecem entre os investigadores, sobretudo nos últimos anos. Os estudiosos dos celtas da Galiza (os castelhanos preferem que se diga Galícia) não fogem à regra, e não será difícil encontrar entre eles opiniões diferentes em pontos importantes da história dos celtas galegos (ou calaicos). Duas coisas são certas: que há hoje em dia muitos pesquisadores com trabalhos sérios e pesquisas alentadas, e que o acervo de conhecimentos obtido ainda não é suficiente para se dirimirem as divergências, algumas delas das mais relevantes e fundamentais, como as que Balboa Salgado coloca no início do seu livro: qual o conceito de celtas? Os galegos têm origens celtas?
Três são as posições básicas com que o A. abre a discussão: para os estudiosos mais conservadores, e para os nacionalistas galegos do século XIX, os celtas constituíam um povo que, em invasões e migrações, disseminou pela Europa ocidental uma cultura bem identificada e distinta das demais – mas hoje, tais invasões são muito discutíveis, e as idéias de povo e de cultura celta devem entender-se com muita variedade de concretizações, e flexibilidade de definição. A reação contrária seria a segunda opinião, e consistiu em negar a própria existência dos povos e culturas celtas, que não seriam mais do que construções literárias, às vezes com propósitos políticos separatistas; também esta posição cética radical não é mais aceitável, frente à convergência de inúmeros testemunhos e pesquisas, que constituem o arcabouço da metodologia do autor. Embora ainda se encontrem estudiosos que mantêm opiniões próximas a estas duas antagônicas a posição atual, que Balboa segue, é crítica sem ser negativa. É neste sentido, cuidadoso, e procedendo por análises precisas dos vestígios encontrados, que Balboa empreende seu trabalho de exposição geral do celtismo galego. Nele recolhe e completa três publicações suas sobre religião, guerra, e língua, que permanecem como os capítulos do livro. Como é de praxe em obras desta natureza o autor começa por apresentar as narrativas de antigos escritores gregos e romanos – Estrabão, Pompônio Mela, Plínio, Floro – sobre os diversos povos calaicos; passa ao estudo das inscrições em estelas funerárias e tésseras; como nestas os indivíduos se dizem celtas, da comparação entre elas e as narrativas, e outros dados arqueológicos, Balboa conclui que na Galiza Romana (a Galécia) e pré-romana existiram povos que se consideravam, e eram considerados, celtas. Destes dados iniciais retira ainda o autor duas hipóteses: a existência de chefias locais, e a importância da hospitalidade na sociedade galega antiga.
É sobre tais elementos preliminares que Balboa vai construindo o esboço geral da Galiza celta, sempre confirmando a celticidade com novos dados obtidos, sobretudo pela arqueologia. Na religião o A. destaca os santuários esculpidos na rocha no alto dos montes, mostrando a existência de sacrifícios e daí a possível existência de uma classe religiosa; analisando porém as referências ao tema supõe que as pessoas encarregadas do culto teriam organização e poderes inferiores aos dos druidas de outras regiões célticas. As poucas alusões aos deuses – nomeadamente Lug, em Lugo – que se encontram, mormente epigráficas, mostram também certa afinidade com o panteão de outros povos celtas. Muitos outros topônimos e termos referentes a objetos têm origem evidentemente celta, e é destes paralelismos que o A. se serve amplamente para confirmar sua suposição de que os galegos têm origem celta indiscutível.
Balboa faz constantes referências aos celtiberos e particularmente aos lusitanos, que viviam em estreita vizinhança com os calaicos do sul, o atual Norte de Portugal, entre Douro e Minho. Faz muitas alusões à Irlanda, tanto no vocabulário como em aspectos da sociedade (juramentos, irmandades) – relação histórica que conhecemos bem através de Raimón Sainero, palestrante do simpósio do Brathair em São João Del Rei (cf. resenha do Livro de Atas). Tal como Sainero e outros pesquisadores, Balboa procura por vezes enquadrar os traços celtas da Galiza no quadro mais amplo indoeuropeu. Mas por vezes deixa passar, ou esquece, alusões que poderiam reforçar esse paralelismo, como no topônimo Eburia, e Eburus, que ele cita e que corresponde ao de Évora em Portugal e a York na Nortúmbria; ou o gaulês Dumnorix, o Rei da Fortaleza, que poderia ter comparado com dun, ou duns, povoado fortificado, na Escócia. Aparte estas e outras falhas menores (falta de mapas com os nomes das atuais localidades e rios que ele cita) o livro é muito bem documentado com imagens e mapas antigos, e é de elogiar a variedade de fontes e, sobretudo, o uso criterioso dos textos.
João Lupi – UFSC. E-mail: lupi@cfh.ufsc.br
BALBOA SALGADO, Antonio. A Galicia celta. 2ª edição. Santiago: Edicións Lóstrego, 2007. Resenha de: LUPI, João. Os galegos têm origens celtas? Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.9, n.2, p. 44-45, 2009. Acessar publicação original [DR]
Os príncipes da Irlanda. Livro 1: a saga de Dublin | Edward Rutherfurd
O romance escrito pelo autor inglês radicado há mais de dez anos nas terras irlandesas – Edward Rutherfurd que, ao longo de suas quase setecentas páginas procura recontar a história da formação tanto de Dublin como da Irlanda, possui certa base de pesquisa histórica, alguma atualização nas discussões acadêmicas e historiográficas, mas, preservou em sua narrativa, imagens estereotipadas e temas polêmicos.
As duas primeiras partes do romance, Dubh Linn e Tara, envolvem o passado céltico da ilha, enfatizando os aspectos religiosos e sociais. A religiosidade pagã é mostrada com respeito e reverência, porém, com certo referencial da literatura esotérica atual, possuindo pouca ou nenhuma semelhança com as narrativas míticas irlandesas, embora conserve alguns nomes próprios que aparecem em textos como “Deidre” e “Noise”, por exemplo. Na questão do sacerdócio, o autor, ao mesmo tempo em que se mostra conhecedor de bibliografia especializada – ao descrever os druidas portando roupas e acessórios de pássaros, portanto realizando práticas xamânicas (ver AldhouseGreen, 2005: 195-197) em outras passagens da obra acaba cometendo erros (a posição de druida era hereditária, p. 30) ou assumindo posições equivocadas (as druidesas tendo o mesmo poder dos druidas e a mesma tonsura, p. 84, ou mesmo tendo um poder maior que os reis, p. 87).
Sobre polêmicas envolvendo o papel das druidesas ver Ellis (2001: 105-130). Na realidade, em nenhuma sociedade antiga a mulher teve papel religioso predominante em relação ao masculino, sendo essa representação da sacerdotisa amplamente poderosa um referencial anacrônico. Em seu estudo The World of the Druids, Miranda Green apresenta uma análise das fontes clássicas onde são descritas as funções dos druidas. Nessa obra, Green menciona que existiam mulheres sábias que poderiam ser aliadas dos druidas, mas, em hipótese alguma, podem ser consideradas druidesas. O uso da tonsura druídica por mulheres como aparece descrita no romance é uma licença poética do autor que, dentro do universo ficcional tem liberdade para criar, mas jamais pode conferir um caráter verdadeiro a essas criações. Essas descrições parecem estar aliadas ao discurso esotérico atual que procura mostrar que as mulheres eram realmente poderosas e detentoras de um conhecimento que foi perdido e que precisa ser resgatado.
Outras situações envolvendo mulheres também apresentam problemas, como a suposta liberdade feminina em relação à escolha do casamento (p. 42), outro anacronismo muito comum nos escritos contemporâneos e esotéricos sobre os Celtas. Essa liberdade feminina descrita e defendida no romance de Rutherfurd pode ter sido influenciada pelo romance As brumas de Avalon, onde a autora Marion Zimmer Bradley confere às personagens femininas um grande poder de decisão e de autoridade interferindo nas decisões de governantes e reis e subordinando os druidas ao seu comando. Essa visão da mulher é extremamente fantasiosa, pois descreve um poder feminino que nunca existiu, transformando a vida das mulheres radicalmente para melhor, mostrando assim que, no passado, as sociedades realmente eram harmônicas porque viviam sob uma ginecocracia e, tudo se degradou depois que as mulheres foram destituídas. Essa visão equivocada é infelizmente hoje defendida por correntes esotéricas que instigam as mulheres modernas a buscarem àquela liberdade; utopia essa que seria um retrocesso para as mulheres. Essa reivindicação de um grande poder feminino que foi perdido, mas que ainda persiste em alguma regiões, é defendido ferozmente por alguns acadêmicos que insistem em atribuir um poder druídico a algumas mulheres da Armórica atual. Conhecidas como “avós druidas”, essas mulheres seriam as detentoras e guardiãs de todo o saber que fora extinto com a chegada do cristianismo. O mais apropriado a dizer dessas mulheres é que elas não são os receptáculos do conhecimento advindo dos druidas, mas sim guardiãs das tradições folclóricas que podem sim ter reminiscências da cultura celta. Afirmações como estas partindo de acadêmicos estão travestidas de uma militância semelhante ao discurso esotérico que querem provar a todo custo que a cultura celta ainda se mantém pura e viva como nos séculos que antecederam a cristianização e que cabe às mulheres estabelecer esse resgate no presente. Teses como essas figuram muito bem no campo da ficção, não devendo em hipótese alguma ser levadas a sério no campo da investigação científica comprometida com a análise séria e criteriosa das fontes.
O terceiro capítulo, São Patrício, envolve o processo de cristianização da região. Neste momento, o autor mostra-se bem atualizado, demonstrando que o conhecimento sobre este personagem histórico é controverso e muito polêmico. Rutherfurd constrói a narrativa seguindo a atual concepção de que Patrício não teria sido o primeiro evangelizador da Irlanda, sendo antecedido por várias comunidades e até bispos, que após sua morte foram transformados em seus discípulos. Ou seja, uma construção hagiográfica dos fatos históricos (p. 220). A estratégia de evangelização adotada, primeiro converter os druidas e membros importantes para depois o restante das comunidades, também está presente no romance. Mesmo o intenso conflito entre mosteiros rivais foi citado (p. 202), demonstrando que o escritor não adotou nenhuma concepção idealista da fé cristã. No romance há uma perfeita integração entre cristão e pagãos, principalmente por parte dos druidas convertidos que aceitam a nova religião de forma pacífica encontrando pontos em comum com a antiga crença e até exaltando o cristianismo como a verdadeira religião e que só ela é capaz de conduzir os homens ao único criador. Uma passagem interessante da narrativa apresenta um diálogo entre a personagem Deirdre e o druida convertido Larine, onde este relata à sua interlocutora que “(…) a Igreja Cristã contém todo o saber do mundo romano”. (p.166). Essa afirmação do personagem demonstra o cristianismo como possuidor de uma herança do mundo clássico, e, aqueles que se convertem têm acesso a toda verdade humana. Por essa passagem é possível perceber uma clara exaltação ao cristianismo e da figura do bispo Patrício em detrimento da antiga religião e do conhecimento druídico.
O processo de invasão e colonização dos Vikings foi desenvolvido nos capítulos 4 e 5. O contexto social foi bem descrito, mostrando tanto os conflitos entre noruegueses e irlandeses, quanto suas interações e casamentos interétnicos. A descrição da famosa batalha de Clontarf, envolvendo o também famoso líder Brian Boru, ao contrário, foi pouco explorada em termos de narrativa militar, sendo por isso muito decepcionante.
Os piores momentos da obra foram a permanência de dois estereótipos. O primeiro é referente aos Celtas usarem um crânio como taça para brinde em comemorações e festas (p. 34). Trata-se de uma imagem literária fantasiosa, criada pelos gregos e perpetuada pelo medievo em diante (Langer 2003: 32). O segundo estereótipo, mais grave ainda, é a caracterização dos guerreiros Vikings portando elmos com chifres (p. 191). Uma fantasia criada e popularizada no Oitocentos, totalmente desmentida pela pesquisa acadêmica (Langer 2002: 07).
O romance de Rutherfurd possui muito mais qualidades que as obras do escritor brasileiro Orlando Paes Filho (como a série Angus), que deixa explícito em suas linhas uma profunda militância cristã mostrando desprezo por outras crenças que não estejam subordinadas à Igreja Católica, fato esse que compromete em muito a narrativa. Desagradando àqueles que, admiradores da literatura de aventura, não professam a mesma religião defendida com tanta veemência nos romances de Paes Filho, que jamais pode ser comparado a outros romances históricos como os escritos por Margareth Yourcenar, Bernard Cornwell ou José Saramago, deve este livro ser lido com critério.[1]
Nota
1. Esta resenha contou com a colaboração do Prof. Dr. Johnni Langer, especialmente nos capítulos 4 e 5, referentes aos Vikings na história da Irlanda.
Referências
ALDHOUSE-GREEEN, Miranda & Stephen. The Quest for the Shaman: shapeshifters, sorcerers and spirit-healers of Ancient Europe. London: Thames & Hudson, 2005.
CORRÁIN, Donnchadh Ó. Ireland, Wales, Man, and the Hebrides. In: SAWYER, Peter (Org.). The Oxford Illustrated History of the Vikings. London: Oxford Press, 1997, pp. 83-109.
ELLIS, Peter Berresford. Mujeres druidas. In: Druidas: el espíritu del mundo Celta. Madrid: Oberon, 2001, pp. 105-130.
GREEN, Miranda. The World of the Druids. London: Ed. Thames and Hudson, 1997.
LANGER, Johnni. The origins of the imaginary Viking. Viking Heritage Magazine 4, 2002, p. 07-09. Disponível em: http://www.abrem.org.br/viking.pdf Acessado em 20 de setembro de 2006.
_____ Mitos e verdades sobre um povo guerreiro. Universo fantástico da Idade Média 1 (1), 2003, pp. 31-33.
LANGER, Johnni & CAMPOS, Luciana de. Mini-curso: história da Irlanda Celta e Viking. Resumos, II Ciclo Internacional de Estudos Antigos e Medievais/VIII Ciclo de Estudos Antigos e Medievais. Assis: UNESP, 2006, pp. 58.
LUPI, João. Os druidas. Brathair 4 (1), 2004, pp. 70-7. Disponível em: www.brathair.com Acessado em 05 de Janeiro de 2007.
GUYONVARC’H, Christian-J. Magie, médicine et divination chez les Celtes. Paris: Éditions Payot, 1997.
OLIVIERI, Filippo Lourenço. A literatura irlandesa e as fontes clássicas e arqueológicas. Brathair 5 (1), 2005, pp. 45-55. Disponível em: www.brathair.com Acessado em 05 de Janeiro de 2007.
RAFTERY, Barry. Ireland: a world without the Romans. In: GREEN, Miranda J. (org.). The Celtic world. London: Routledge, 1996, pp. 636-653.
Luciana de Campos – Doutoranda em Letras UNESP/SJRP. E-mail: fadacelta@yahoo.com.br
RUTHERFURD, Edward. Os príncipes da Irlanda. Livro 1: a saga de Dublin. São Paulo: Record, 2006. Resenha de: CAMPOS, Luciana de. A História da Irlanda, dos Celtas ao Medievo1. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.6, n.2, p. 122-124, 2006. Acessar publicação original [DR]
Contos-de-fadas celtas
As narrativas selecionadas e apresentadas por Joseph Jacobs em Contos-de-fadas celtas são um convite para penetrarmos no fascinante mundo da mitologia celta. Os pequenos contos escritos ao estilo dos contos populares recolhidos pelos irmãos Grimm apresentam os elementos fantásticos comuns a esse tipo de narrativa: seres de outro mundo vem buscar os humanos para compartilhar as delícias da eterna juventude ou então, as personagens principais são grandes heróis capazes de toda e qualquer façanha para alcançar os seus objetivos. Alguns desses heróis são os protagonistas de determinadas histórias que fazem parte dos grandes ciclos das narrativas celtas, como por exemplo, o Ciclo Histórico ou o Ciclo de Finn. A maioria das narrativas foram reescritas e adaptadas durante a Idade Média e sofreram uma forte influência do cristianismo o que modificou um pouco algumas de suas características mas conservaram a essência da mitologia celta. As narrativas aqui selecionadas faziam parte da tradição oral do povo celta habitante das terras da Irlanda, Escócia e País de Gales e ainda hoje mantém vivos todos esses “contos-de-fada” como manifestação folclórica.
A primeira narrativa, “Connla e a donzela encantada” apresenta o herói Connla do Cabelo de Fogo, filho do rei Conn das Cem Lutas. Connla deixa-se seduzir por uma bela moça vinda do outro mundo. Ela o convida a seguí-la para juntos viverem em um lugar paradisíaco, onde ninguém sofre com doenças, a velhice ou morte. Conn, o pai tenta impedir o filho de partir nessa viagem sem volta mas, Connla parte com a jovem rumo ao pôr-do-sol e nunca mais são vistos. No desenrolar da trama elementos importantes da cultura celta vão sendo apresentados: a donzela aparece em uma curragh, barca de cristal mágica, utilizada para chegar ao Reino dos Mortos ou à Ilha de Avalon, ela oferece a Connla uma maçã, fruto sagrado e, por mais que esse fosse devorado, era sempre reconstituído.
Com uma narrativa ágil que prende o leitor ao texto os contos vão sendo apresentados de maneira a não só entreter, mas também, a apresentar a riqueza da cultura e mitologia celta.
Outra narrativa bastante interessante é “O’Shee Na Gannon e o Gruagach”. Esse conto vai apresentar o nascimento mágico da personagem título, O’Shee:
“O’Shee na Gannon nasceu de manhã, recebeu seu nome ao meio dia, e à noitinha foi pedir a mão da filha do rei de Erin em casamento”. (p.139)
Além demostrar como a personagem nasce, cresce e decide se casar no mesmo dia, ela escolhe como noiva a filha do rei de Erin, nome mitológico da Irlanda, clara referência ao passado mítico do país e a sua importância para o presente.
Mas, não só referências aos lugares sagrados e a alguns heróis desconhecidos existem nas narrativas; há um conto, “O pretendente de Olwen” onde o rei Artur e alguns dos futuros cavaleiros da Távola Redonda são personagens. Esse conto apresentado aqui em versão resumida mas conservando o eixo narrativo é um dos contos integrantes d’O Mabinogion [1]. O conto está nos “Quatro Contos Nativos Independentes”, segunda parte da obra e vai narrar a busca de Culhwch por sua pretendente, Olwen. O rei Artur, a mais conhecida personagem das narrativas que evocam tanto a mitologia celta como o imaginário medieval, é o pivô central da disputa pela mão da bela Olwen, auxiliando o primo Culhwch a conseguir vencer as provas para conseguir casar-se com a donzela. Nessa narrativa há descrições das armas utilizadas por alguns dos componentes das tropas do rei e, essas breves descrições apresentam a grandiosidade desses instrumentos nos remetendo ao espírito guerreiro dos celtas, mostrando a necessidade desse povo estar sempre atento às guerras e invasões de outros povos, fato constante e, portanto, era preciso estar em sempre em estado de alerta.
As descrições, tantos das armas como dos lugares e das personagens são realizadas de maneira sucinta, não há riqueza de detalhes, o que é uma características das narrativas mais curtas que privilegiam os aspectos fantásticos e mágicos esses sim, descritos com mais detalhes pois são o centro da narrativa. Há ainda alguns contos onde a personagem é visitada por seres fantásticos, como duendes e fadas e esses os agraciam com bons ou maus presentes dependendo da atitude do ser humano para com os seres etéreos.
As vinte e seis narrativas constantes no volume são uma pequena amostra da riqueza e beleza da mitologia celta e apresentadas na forma de narrativas curtas mas bem construídas, são fonte de conhecimento da cultura e sociedade celta e oferecem ao leitor e ao estudioso, subsídios para uma maior compreensão da importância do povo celta para a cultura ocidental.
Os elementos da narrativa fantástica estão presentes em todas as narrativas apresentadas e são eles, os responsáveis por enfatizarem o caráter mítico de cada conto e, desta forma, oferecer ao leitor – seja ele conhecedor da mitologia celta ou não -, uma chave para abrir as portas do fascinante mundo do povo celta.
Nota
1. A edição utilizada d’O Mabinogion é a seguinte: MORAIS, José Domingos (tradução e introdução) O Mabinogion. Lisboa: Assírio e Alvim, 2000.
Luciana de Campos – Doutoranda em Letras/UNESP/S.J. Rio Preto. E-mail: fadacelta@yahoo.com.br
JACOBS, Joseph (seleção). Contos-de-fadas celtas. São Paulo: Landy Editora, 2001. Resenha de: CAMPOS, Luciana de. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.3, n.1, p.65-66, 2003. Acessar publicação original [DR]