“Pós-abolição e as relações raciais por um fio”: resenhando livros recentes sobre a matéria

Personagens do pos abolicao1 IF IA Midjourney 2023 Pós-abolição
3ersonagens do imediato pós-abolição | Imagem: IF/IA/Midjourney (2023)

 

Colega, boa tarde!

Bem-vindos à oficina "Pós-abolição e as relações raciais por um fio”: resenhando livros recentes sobre a matéria", coordenada pelos professores Itamar Freitas e Petrônio Domingues.

Aqui, vocês podem acessar o texto das falas e as orientações para o cumprimento das tarefas e alguns resultados da sua produção. 

 


A natureza da oficina

Como o próprio nome indica, trata-se de uma oficina, ou seja de um evento prático, onde cada aluno produzirá uma resenha crítica de um livro de História ou memória sobre temáticas referentes ao "pós-abolição" e às "relações raciais" e publicará na revista Crítica Historiográfica .Capa de Critica Historiografica n10 Pós-abolição

Os livros resenhados devem pertencer a um dos domínios identificados sob o as expressões “História e...”, “História de...”, “...de História” ou “... histórico(a)” – pelo emprego de “História” na condição de sujeito ou complemento –, independentemente de os seus autores possuírem formação inicial ou pós-graduação em cursos de História.

São aceitos livros nacionais e estrangeiros, editados ou reeditados no período 2020-2023.

A espírito da oficina é a formação de leitores críticos e de avaliadores de bibliografia especializada. Por esta razão, os alunos são formados para encerrar o texto básico da resenha em 20 horas, com o auxílio do professor em todas as etapas e com o suporte de diferentes ferramentas de Inteligência Artificial (IA).

A realização da oficina requer alunos engajados e suporte de computadores pessoais (ou institucionais - em laboratórios de informática) e intermediação administrativa da instituição promotora nos trabalhos de inscrição, controle de frequência e certificação.


Plano de Oficina

Título: "Pós-abolição e as relações raciais por um fio”: resenhando livros recentes sobre a matéria".

Objetivo: Capacitar alunos de iniciação e de pós-graduação a lerem criticamente e redigirem resenhas de livros de história com auxílios de Inteligência Artificial.

Duração: 30 horas na modalidade a distância (sendo seis horas síncronas e 14 horas síncronas).

Coordenador: Prof. Petrônio Domingues (UFS)

Ministrante: Prof. Itamar Freitas (UFS/Uneb).

Público-alvo: Graduandos, pós-graduandos e pós-graduados que se predispõem a resenhar obras de diferentes cursos acadêmicos (domínios identificados sob o as expressões “História e...”, “História de...”, “... de História” ou “... histórico(a)” – pelo emprego de “História” e/ou “memória” na condição de sujeito ou complemento –, independentemente de possuírem formação inicial ou pós-graduação em cursos de História.

Vagas: 30

Período: 10/06 e 17/06.

Horário: das 9h às 12h

Promoção: Departamento de Educação (UFS)/Departamento de História (UFS) e Revista Crítica Historiográfica (UFS/UFRN).

Local: AVA/Crítica Historiográfica

Matrículas: sigaa/ufs

Conteúdo

Seção 1. Leitura sobre os critérios de avaliação de livros de história. Leitura (capítulo) e crítica (vícios e virtudes) do livro selecionado e construção de parágrafos finais e centrais.

Atividade preliminar ao encontro da seção 1 -

1.1. Selecione e adquira um livro publicado (ou reeditado) entre 2020 e 2022. 

1.2. Leia o título da obra, o subtítulo, o sumário, a apresentação (se for o caso) e, principalmente a introdução para identificar os elementos básicos do primeiro parágrafo da resenha:

  • Título da obra;
  • Nome do autor ou organizador;
  • Editora;
  • Ano de publicação;
  • Gênero da publicação;
  • Problema ou o objetivo anunciado na obra;
  • Nome do(s) prefaciador(es) e/ou apresentador(es) e/ou coordenador(es);
  • Valoração inicial da obra atribuída pelo(s) prefaciador(es) e/ou apresentador(es) e/ou coordenador(es).

1.3. Leia o sumário, a apresentação (se for o caso) e o tópico "sobre os autores" para identificar os elementos básicos do segundo parágrafo da resenha:

  • Dados biobibliográficos sobre o(s) autor(es) e/ou coordenador(es) e/ou organizador(es):
  • Dados sobre o contexto de publicação da obra (Resultado de um doutorado, observação, experiência administrativa, conjuntura de efervescência política, crise econômica etc.)/
  • Dados sobre o estado da arte (se for o caso) do tema, objeto ou do problema ou do domínio de pesquisa veiculado pela obra ou relacionado à obra;
  • Descrição da estrutura da obra (número de capítulos, partes ou seções.
1.4. Leia as conclusões para identificar os elementos básicos do último parágrafo da resenha. Esteja, porém, consciente de que estamos fazendo um exercício lógico e preditivo, ou seja, estamos fazendo declarações hipotéticas sobre a qualidade e a provável destinação da obra resenhada. Assim, nada impede que façamos modificações no parágrafo, após a leitura integral do texto:
  • Argumentos centrais da conclusão e a sua relação com os objetivos centrais anunciados na introdução;
  • Evidências que indicam se a obra cumpre, cumpre em parte ou descumpre os objetivos centrais anunciados na introdução;
  • Leitor(es) potencial(is) e/ou real(is) da obra, sugeridos a partir dos argumentos centrais da conclusão.

1.5. Observe modelo de ficha preenchida referente ao primeiro parágrafo da resenha

  • Título da obra: Do cativeiro à cidadania: o pós-abolição em Sergipe
  • Nome do autor ou organizador: Petrônio Domingues
  • Editora: Editora da UFS
  • Ano de publicação: 2022
  • Número de páginas: 333p.
  • Gênero da publicação; Coletânea que reúne textos de vários autores
  • Problema ou o objetivo anunciado na obra: "O que ocorreu com os antigos escravizados e seus descendentes em Sergipe depois da promulgação da Lei Áurea?" (pág.5).
  • Nome do(s) prefaciador(es) e/ou apresentador(es) para o caso de não ser(em) o(s) autor(es), organizador(es) ou editor(es): não contemple .
  • Valoração inicial da obra atribuída pelo(s) prefaciador(es) e/ou apresentador(es) para o caso de não ser(em) o(s) autor(es), organizador(es) ou editor(es): não contemple

1.6. Observe o modelo de ficha preenchida referente ao segundo parágrafo da resenha

  • Dados biobibliográficos sobre o(s) autor(es) e/ou coordenador(es) e/ou organizador(es): Petrônio Domingues é professor do DED/UFS, pesquisador do CNPq, autor de livros e artigos sobre pós-abolicionismo. Demais autores são mestrandos, um pós-doutor e um doutorando pesquisadores da matéria.
  • Dados sobre o contexto de publicação da obra (Resultado de um doutorado, observação, experiência administrativa, conjuntura de efervescência política, crise econômica etc.): a obra reúne, sobretudo, investigadores parceiros do organizador e orientandos das áreas de História e Sociologia.
  • Dados sobre o estado da arte (se for o caso) do tema, objeto ou do problema ou do domínio de pesquisa veiculado pela obra ou relacionado à obra (para o caso de o resenhista ser um especialista na matéria): não contemple .
  • Descrição da estrutura da obra (número de capítulos, partes ou seções: São 10 capítulos, além da apresentação, distribuídos em 333 páginas.

1.7. Observe o modelo de ficha preenchida referente ao último parágrafo da resenha [Excepcionalmente, não temos conclusões no livro empregado neste modelo. Para os livros que disponibilizam conclusões, as paráfrases produzias pelo resenhistas devem ser dispostas na mesma ordem:

  • Argumentos centrais da conclusão e a sua relação com os objetivos centrais anunciados na introdução; xxxxxxxxxx
  • Evidências que indicam se a obra cumpre, cumpre em parte ou descumpre os objetivos centrais anunciados na introdução; xxxxxxx
  • Leitor(es) potencial(is) e/ou real(is) da obra, sugeridos a partir dos argumentos centrais da conclusão: xxxxxxxxxxx

1.8. Redija o primeiro, o segundo e o último parágrafos conforme o modelo abaixo, modificando (caso queira) a ordem dos elementos. Ao final, poste aqui os dois parágrafos iniciais da sua resenha, construído conforme instruções acima.

Modelo de primeiro parágrafo

Do cativeiro à cidadania : o pós-abolição em Sergipe, é uma coletânea organizada por Petrônio Domingues que reúne textos de dez autores para responder à seguinte questão: "O que ocorreu com os antigos escravizados e seus descendentes em Sergipe depois da promulgação da Lei Áurea ?" (pág.5). O livro foi publicado em 2022, pela editora da Universidade Federal de Sergipe.

Modelo de segundo parágrafo

Petrônio Domingues é professor do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe, pesquisador do Conselho Nacional do Desenvolvimento Tecnológico (CNPq) e autor de livros e artigos sobre pós-abolicionismo no Brasil. Neste trabalho de organização, ele agrega professores do ensino superior e da educação básica com titulações que vão do mestrado ao pós-doutorado, interessados ​​na experiências de acolheram negras que viveram do final do século XIX e à segunda metade do século XX, em dimensões da cultura, política, economia e vida privada. O livro, que agrega a produção de parceiros e de orientandos de programas de pós-graduação em História e Sociologia, é dividido em 10 capítulos, distribuídos em 333 páginas.

Modelo de último parágrafo

A obra em questão cumpre perfeitamente o objetivo central anunciado pelos autores, explicitado na clássica questão sobre o destino dos escravizados e dos seus descendentes após a promulgação da Lei Áurea, em 13 de maio de 1988. As recentes estratégias metodológicas de extrair informação de fontes produzidas pelo Estado Brasileiro para dar vozes às gentes negras de Sergipe, no ambiente de trabalho, nas situações de lazer, na denúncia dos racismos, mas também na identificação de protagonismos e na consolidação de resistências, no século XIX e no século XX, fazem da obra um instrumento de informação, de ação política e de reforço da auto estima de grande parte dos sergipanos. A obra, portanto, deve ser lida por estudiosos das temáticas da diáspora africana em Sergipe e, mais importante, transformado em recursos didáticos para uso dos alunos de estabelecimentos da escolarização básica no Estado.

Seção 2. Leitura sobre etiqueta da crítica, construção dos parágrafos de crítica, revisão do parágrafo final e criação do título da resenha. (Esta parte da oficina será detalhada no primeiro encontro síncrono).

Método: os alunos serão estimulados a conhecer e praticar todas as habilidades envolvidas na leitura crítica de livros de História e na produção de resenhas acadêmicas de livros de História, com o emprego de ferramentas de Inteligência Artificial (IA).

Recursos:

Acesso prévio dos alunos às ferramentas de Inteligência Artificial (abaixo) utilizáveis ​​na oficina.

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Textos produzidos pelo professor, disponibilizados no Ambiente virtual de aprendizagem (AVA) do curso.

Avaliação : Serão certificados os alunos que submeterem a análise produzida durante o curso em até quinze dias após o encerramento da última seção.

Bibliografia básica

FREITAS, Itamar; OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de. Definindo resenhasResenha Crítica . Aracaju/Crato, 18 abr. 2023. Disponível em <https://www.resenhacritica.com.br/todas-as-categorias/definindo-resenhas/>.

FREITAS, Itamar; OLIVEIRA, Maria Margarida Dias de. Medindo as palavrasResenha Crítica . Aracaju/Crato, 23 ago. 2021. Disponível em <https://www.resenhacritica.com.br/todas-as-categorias/medindo-as-palavras/>

FREITAS, Itamar. A transferência de habilidades do saber-fazer históricoResenha Crítica . Aracaju/Crato, 13 abr. 2023.

FREITAS, Itamar; OLIVEIRA, Maria Margarida Dias de. Roteiro para iniciantes no gênero resenha acadêmica (ou crítica)Crítica Historiográfica. Natal, 1 conjunto. 2021. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/submissoes/>

LAVILLE, Christian; DIONE, Jean. Do problema à hipótese . In: A construção do saber : manual de metodologia da pesquisa em ciências humanas. Porto Alegre: Artmed; Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999. p.85-161.

“Fumo de Negro”: a criminalização da maconha no pós-abolição | Luísa Saad

Luiza Saad Pós-abolição
José Luiz Costa e Luísa Saad | Foto: Joe@lluis_adv

Resultado de dissertação de mestrado defendida em 2013 por Luiza Saad, no programa de pós-graduação em História Social da Universidade Federal da Bahia (UFBA), o livro “Fumo de Negro”: a criminalização da maconha no pós-abolição, publicado em 2019, investigou como se estabeleceu o discurso de criminalização da maconha que fundamentou a primeira lei de proibição dessa planta, em 1932, mas, que passou a inundar o imaginário social e constituir um discurso contra a maconha.

Fumo de Negro 1 Pós-aboliçãoEssa problemática se estrutura a partir de uma revisão historiográfica que remonta à aproximação das ciências humanas em relação às drogas, movimento que, no Brasil, se caracterizou partir dos anos 1980. A autora parte de pesquisadores como Luiz Mott para reafirmar a tese de que não existe uma história da cannabis no Brasil. Embora não retrate uma história global dessa planta, ela contribui para a compreensão de um dos principais marcos desse processo: a mudança de tratamento em relação ao tema. Desta forma, é possível afirmar que o livro funciona como obra seminal para outras investigações, na medida em que incita a necessidade de atender outros recortes temporais.

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Estilo Avatar: Nestor Macedo e o populismo no meio afro-brasileiro | Petrônio Domingues

A pesquisa em história social do pós-abolição ampliou-se consideravelmente no país nos últimos anos. Expoente dessa historiografia são os trabalhos do autor resenhado. Petrônio Domingues aborda diversos temas ligados ao estudo do pós-abolição, como o associativismo e a imprensa negra, os projetos educacionais da Frente Negra brasileira, além de diversas biografias e trajetórias (coletivas e individuais) de sujeitos que lutaram, resistiram e escreveram a história negra desse Brasil. Apesar do país continuar racista, os sujeitos revelados pela escrita do historiador Domingues ganham vida ao saírem dos documentos investigados e trazem à tona a pluralidade de personagens históricos: homens e mulheres negros que participaram de diversos e distintos movimentos políticos na sociedade brasileira. Este é o ponto auge da obra de Petrônio Domingues em Estilo Avatar, na qual aborda de maneira relevante a trajetória do ativista afro-brasileiro Nestor Macedo, conhecido como o “Rei do Baile” e fundador da Ala Negra Progressista. Também atuante como cabo eleitoral de Adhemar de Barros, um populista da nossa República democrática nos anos 50 e 60. É crível que Domingues aborde de maneira muito competente e articulada a história dos afro-brasileiros na sociedade pós treze de maio com o tema sobre o populismo. Pode soar estranho aos leitores essa simbiose, mas não o é, pois Petrônio Domingues tem um trabalho expressivo de cruzamento de fontes, tais como: documentos policiais, jornais e atas do clube negro, evocando a participação dos negros na construção da democracia brasileira no período político marcado pela tônica populista. Leia Mais

Diásporas imaginadas: Atlântico Negro e histórias afro-brasileiras | Kim D. Butler e Petrônio Domingues

Os temas relacionados ao período pós-abolição abarcam um campo de pesquisa que tem se consolidado vigorosamente na historiografia brasileira nas últimas décadas. Em trabalho publicado recentemente, o historiador Petrônio Domingues – um dos principais especialistas – apresentou um importante balanço acerca das novas abordagens, problemas, perspectivas teóricas e metodológicas abrangendo esse ascendente ramo da historiografia. Domingues evidenciou que – nesse amplo e diversificado campo temático – uma das principais tendências é composta pelos estudos das experiências da comunidade negra dentro de uma configuração transnacional. (DOMINGUES, 2019, p.119).

Desse modo, na esteira dessas pesquisas em desenvolvimento, a obra Diásporas imaginadas: Atlântico Negro e histórias afro-brasileiras oferece um valioso panorama das novas perspectivas analíticas. Petrônio Domingues e Kim D. Butler começaram a idealizar essa obra em conjunto, por volta de 2012, quando o historiador brasileiro realizou estágios de pós-doutoramento na Universidade de Rutgers, em Nova Jersey (Estados Unidos). A partir dos contatos no Departamento de Estudos Africanos, Domingues e a prestigiada historiadora estadunidense iniciaram uma fecunda interlocução intelectual, ensejando uma colaboração acadêmica que resultaria nessa obra recentemente publicada. Leia Mais

Pós-abolição no sul do Brasil: associativismo e trajetórias negras | J. M. Mendonça, L. Teixeira e B. G. Mamigonian

MAMIGONIAN Beatriz G Pós-abolição
Beatriz Gallotti Mamigonian. Foto: LEHMT |

MENDONCA J M N Pos abolicao no sul do Brasil Pós-aboliçãoO paralelo que se faz a famosa obra de Fernando Henrique Cardoso, apesar de ser démodé, é inevitável. Muito se avançou nas pesquisas os múltiplos mundos da escravidão e da liberdade no sul do país, dando destaque para o evento que acontece bienalmente de mesmo nome. E, nesse intento que chega mais uma importante obra sobre o período pós-abolição no Brasil Meridional. O livro foi produto do seminário Negros no Sul: trajetórias e associativismo no pós-Abolição, ocorrido na UFSC em novembro de 2018, e recebeu financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) no Edital “Memórias Brasileiras: Biografias” (2017-2019). Cabe destacar que o projeto denominado Afrodescendentes no Sul do Brasil: trajetórias associativas e familiares foi desenvolvido em parceria entre as universidades UFSC e UFPel. E, busca essencialmente, discutir dois temas bem caros a historiografia recente: associativismos e trajetórias. E por que deveríamos colocar no plural no título do livro? A miríade de experiências de associativismos e de trajetórias é o grande trunfo do livro, e por isso deveria ser valorizada em seu título. Falar de uma única forma de associativismo e de trajetória não parece ser o indicado, uma vez que as múltiplas possibilidades de ação são traçadas por esse livro. Destacaria como principal qualidade do livro ir além do “apesar de”.

Convencionou-se adotar o racismo como contexto imperante, engessando as ações dos indivíduos, na qual a experiência do pós-abolição de São Paulo é imposta para as mais diversas regiões do país. Mas o livro, magistralmente, inverte a lógica. Todos os artigos se concentram nas ações desses indivíduos, no sul do país, e a partir delas que o contexto é (re)construído. São eles os balizadores das experiências limites, que ultrapassam fronteiras estruturalmente e artificialmente construídas pela historiografia, das décadas de 70 e 80. Portanto, a mudança teórica para a microanálise é o grande trunfo do livro.

Dentre os mais diversos temas de pesquisas existentes nos pós-abolição – dentre os quais destaco: saúde, migrações, expressão cultural, identidades, gênero, quilombolas, atuação política, entre outros – o livro foi certeiro em escolher dois: associativismos e trajetórias. Em primeiro lugar, encontra-se a importância de se demonstrar como a população negra não adentrou o pós-abolição de forma desorganizada, muito pelo contrário, as associações demonstraram a reunião em torno de projetos coletivos e racialmente orientados, constituindo grupos de apoio mútuo no combate ao racismo. Essa experiência compartilhada orientou e viabilizou projetos que colocavam na praça e na opinião pública a discussão sobre o processo de racialização que a sociedade passava, durante a Primeira República. A segunda grande contribuição do livro versa sobre as trajetórias. Apesar de a maior parte dos autores não realizarem uma boa discussão diferenciando trajetórias de biografias, as experiências individuais, coletivas, e, principalmente, familiares trazem uma ótima reflexão sobre o papel dessa parcela da população na construção da sociedade, do pós-abolição. A mudança de ótica da macroestrutura imobilizadora de ações individuais para a microanálise mostrou como eles usaram as incoerências dos sistemas normativos para ultrapassar as barreiras do racismo imperante para construir um novo contexto e impor também os seus projetos e desejos.

O primeiro artigo da coleção apresenta o estado da arte da discussão bibliográfica sobre os associativismos negros no período pós-abolição. Petrônio Domingues, em seu artigo, tenta atingir todas as múltiplas experiências de associativismos negros, no pós-abolição.

Verdade seja dita, os limites de páginas impostos ao autor não tiram o brilho e o trabalho empenhado para tentar acompanhar uma produção bibliográfica em ampla expansão. Petrônio elenca as associações voluntárias, tais como: agremiações beneficentes, clubes sociais, centros cívicos, sociedades carnavalescas, ligas desportivas que no seu entender são catalisadoras de laços de solidariedade e união em prol de um fim coletivo. Somado a isto também levanta a bibliografia referente as trajetórias de suas lideranças, formas de resistência, lutas, acomodações, as estratégias, as ações coletivas e o papel das mulheres. Lembra o autor que a maior parte dessas associações investiu fortemente na formação educacional de seus membros e parentes, principalmente através de cursos alfabetizantes e montando bibliotecas. Por fim, para além das atividades objetivas, muitas dessas associações foram responsáveis em oferecer uma gama importante de atividades recreativas, tais como: bailes, festas, competições, concurso de fantasias, desfiles, entre outros.

Na esteira da discussão sobre a importância dos clubes negros, uma das mais importantes contribuições do livro vem do artigo de Fernanda Oliveira. Fruto de sua Tese de Doutorado, intitulada As lutas políticas nos clubes negros: culturas negras, cidadania e racialização na fronteira Brasil-Uruguai no pós-abolição (1870-1960), o artigo condensa as principais conclusões. De longe, a mais importante foi a demonstração das trocas transnacionais de informações entre membros de clubes negros do Brasil e do Uruguai. Com isso demonstra belamente que os limites nacionais não foram impeditivos aos sujeitos de compartilharem experiências cotidianas de discriminação.

Nos capítulos seguintes conseguimos ter uma visão ampla sobre a quantidade e importância das associações negras. Racke e Luana Teixeira apresentam as agremiações em Florianópolis: o Centro Cívico e Recreativo José Arthur Boiteux (1915-1920), as Escolas de Samba “Os Protegidos da Princesa” e a “Embaixada Copa Lord”. Assim como no Paraná, Merylin Ricieli dos Santos pesquisa a existência do “Clube Treze de Maio” de Ponta Grossa, a partir de entrevistas. Em todos os trabalhos a tônica se mantêm quase a mesma, a de reforçar a existência de associações com uma identidade étnico-racial constituída e organizada politicamente com objetivos específicos.

Chegando a parte 2 do livro temos mais uma importante contribuição aos estudos do pós-abolição: as trajetórias. Nos capítulos que seguem fica claramente distinto tanto os aportes teóricos quanto a metodologia em diferenciar trajetórias individuais e coletivas.

Sobre a segunda, vale a pena reforçar nesses estudos o quanto o fortalecimento das famílias negras foi importantíssima estratégia para a manutenção da vida e consequente para a mobilidade social de seus integrantes. Logo, separaremos as pesquisas nos dois blocos: indivíduos e famílias.

São variadas e importantes trajetórias individuais externadas pelos pesquisadores. Zubaran, por exemplo, ressaltou as vidas de médicos negros, a saber: Alcides Feijó das Chagas Carvalho – graduado em 1916, defendia o “saneamento moral” obtido por meio da educação que levantaria a “moral” da comunidade negra; Arnaldo Dutra, diretor dos jornais O Imparcial, entre 1916-1918, e da Gazeta do Povo, entre 1920-1922, ambos de Porto Alegre. Assim, como o autor José Bento da Rosa que nos apresenta a belíssima trajetória de Firmino Alfredo Rosa e Manoel Ferreira de Miranda. São trabalhos aparentemente ainda em fase de execução e ao seu final com certeza serão uma ótima contribuição à historiografia.

Ao analisar as ações dos indivíduos é possível perceber as estratégias construídas ao longo de sua vida, sendo a busca pela educação uma importante engrenagem para a mobilidade social. Naomi Santos nos mostra a experiência de duas pessoas que passaram pela escravidão: Barnabé Ferreira Bello e João Baptista Gomes de Sá. O primeiro, escravizado, nasceu no ano de 1845, em Curitiba, e fora sapateiro. De acordo com a autora com o letramento e o fim do Império foi possível encontrá-lo no alistamento eleitoral de 1889. Já João matriculou-se aos 50 anos na escola noturna, sendo livre e empregado público. Essas histórias tinham por objetivo mostrar a busca por educação no processo de construção de liberdade e de lutas por cidadania, no pós-abolição. Apesar de belíssima contribuição desses trabalhos, de colocar à luz da história essas trajetórias de negros importantes, não há nesses artigos uma discussão que diferencie biografia de trajetórias, e muito menos fazem uma reflexão que diferencie “trajetórias negras” das demais.

Para além das trajetórias individuais, o livro se debruça sobre a importância das trajetórias coletivas, para ser mais preciso às famílias negras. Perussatto analisa a Família Calisto, grupo fundador do Jornal O Exemplo. Utilizando uma gama de fontes – tais como: alistamentos eleitorais, anúncios e notas diversas publicadas no jornal A Federação; habilitações e registros de casamento religioso e civil; registros de batismos e de óbitos; testamentos e inventários post-mortem; relatórios e almanaques – brilhantemente consegue traçar toda a genealogia e, principalmente, a atuação familiar na arena pública.

Calisto construiu uma ampla rede de sociabilidades entre homens de cor que lhe conferiu mobilidade e respeitabilidade, e sua atuação nos ajuda a compreender melhor o papel e a importância das famílias negras na mobilidade social, no período pós-abolição. É na trajetória familiar de Maria Teresa Joaquina que temos uma maravilhosa discussão sobre a importância das famílias negras no pós-abolição do Brasil Meridional.

Através de uma miríade de fontes, Rodrigo Weimer dá sentido e importância a trajetória da Rainha Jinga ao enfatizar o seu papel na congada e na atuação política para o reconhecimento da Comunidade Quilombola a que pertence. E sua maior contribuição é a do fortalecimento das pesquisas sobre famílias negras através de dois prismas: o primeiro se refere a percepção de que os sujeitos das famílias foram capazes de colocar suas marcas na história com autonomia superando a vitimização que normalmente lhes são imputados; e, por conseguinte; afirma ser as famílias negras a melhor unidade de observação, e não as trajetórias individuais, uma vez que as estratégias de vida não eram pensadas de forma individual, mas sim vividas e pensadas coletivamente.

Na continuidade de observar as ações coletivas e familiares de negros do pós-abolição, a História Oral se mostrou como um dos principais caminhos. Joseli Mendonça e Pamela Fabris reconstruíram as experiências das famílias Brito e Freitas, a partir da entrevista de Nei Luiz de Freitas. Descendente de escravizados, o seu depoimento abriu as portas para a realização de mais entrevistas com os seus familiares e permitiu a reconstrução de uma rede imbricada vivenciada por Vicente e Olympia. Vicente Moreira de Freitas acumulou recursos durante o período da escravidão, exercia a profissão de pedreiro, tinha instrução e obteve cargos que conferiam status e dignidade na Sociedade Protetora dos Operários –, fundada em 1883. Apesar da preocupação dos autores ser a análise das memórias e das identidades dos entrevistados, a pesquisa tem por principal contribuição a demonstração de que famílias negras, no pós-abolição, buscavam por diferentes redes de sociabilidades numa clara estratégia para diminuir as incertezas em relação ao futuro.

O último artigo dessa coletânea nos agracia com uma profunda pesquisa de microanálise em uma história de família. Henrique Espada Lima coloca em prática a redução de escala de análise de forma primorosa, buscando, ações, estratégias, incertezas e valores da família de Maria do Rosário. De acordo com a documentação, a família apostou, em primeiro lugar, na aproximação por alianças e construção de redes de solidariedade com pessoas brancas. As alianças com mulheres brancas frequentemente viúvas ou solteiras, de acordo com o autor, era conectada com “a própria vulnerabilidade a que se expunham essas mulheres – de outro modo, privilegiadas – que tentavam proteger-se de algum modo das incertezas da velhice solitária”. Mesmo que diante da possibilidade de se construir alianças, Henrique não percebe, pelo menos nesse texto, que essas relações eram construídas de modo a manter a população ex-escravizada em situação subalterna.

Em seguida, outra estratégia tomada pela família é a procura por ocupar diversos ofícios e isso permitiu o alistamento ao voto e o pertencimento à Guarda Nacional. Esses eram elementos que distinguiam homens pardos da maior parte dos seus pares, isto é, dando acesso ao exercício da cidadania. E, por último, uma das principais estratégias de mobilidade social foi a busca incessante pela educação. A trajetória da família, e principalmente de Olga Brasil, bisneta de Maria do Rosário, é marcada desde o início pelo investimento na educação formal, combinado com a participação em atividades ligadas à igreja católica. Contudo, a maior contribuição, e mais polêmica, do artigo é a de analisar uma família “parda” da escravidão ao pós-abolição. De início Henrique retoma uma discussão sobre o “silenciamento da cor” na documentação como estratégia para diminuir o horizonte de vulnerabilidade imposta aos ligados, mesmo que minimamente, à escravidão. Para o autor, à medida que a família se ascendia socialmente, a família de libertos “pardos” conseguiu se desfazer da associação com o passado escravista. E aponta, mesmo que sem aprofundamento, que o branqueamento pode ter sido um sucesso.

Verdade é que a documentação analisada não permite observar como a população ao entorno observava a família, assim como não é possível acompanhar os impedimentos de acesso a burocracias do estado ou mesmo a postos de poder. Apostar na estratégia (in)consciente de “branqueamento” da população negra, que perpassou pela escravidão e guardou em seu corpo as marcas desse passado, é muito arriscado na atual realidade da produção historiográfica a qual aposta na racialização como marco definidor dos lugares de poder e decisão, mesmo sem precisar falar de cor.

Essa é uma obra que ocupará um espaço importante na historiografia, não somente regional, do pós-abolição, mesmo que tenha altos e baixos, com artigos de historiadores ainda em formação. O livro contribui com importantes marcos, como as associações, as trajetórias individuais e familiares para a história nacional. E, desse modo, convido a todos a ler essa obra que incentivara novas pesquisas pelo Brasil todo.

Carlos Eduardo Coutinho da Costa – Professor Adjunto da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, docente do Programa de Pós-Graduação em História e do Programa de Pós-Graduação Profissional em Ensino de História da mesma instituição.


MENDONÇA, J. M. N; TEIXEIRA, L.; MAMIGONIAN, B. G. (Org.). Pós-abolição no sul do Brasil: associativismo e trajetórias negras. 1. ed. Salvador: Sagga, 2020. 293p. Resenha de: Carlos Eduardo Coutinho da. O pós-abolição no Brasil meridional. Revista Ágora. Vitória, v.31, n.2, 2020. Acessar publicação original [IF].

Bahia: escravidão/pós-abolição e comunidades quilombolas – estudos interdisciplinares | Maria Fátima Novaes Pires, Napoliana Pereira Santana, Paulo Henrique Duque Santos

Organizar uma coletânea com vários/ as autores/as não é tarefa fácil no meio acadêmico. Exigirá, no mínimo, lidar com os diferentes tempos de produção dos textos, leitura dos originais, às vezes sugerir cortes, acréscimos, revisões para enquadrá-los nos padrões acadêmicos e no limite de páginas estabelecido. Juntas as partes para compor o todo, é a vez da burocracia editorial. Passada a fase de produção é a hora de lançar a obra. Organizadores/as e autores/as esperam boa recepção das suas contribuições, especialmente entre os pares, ávidos por encontrar no novo livro informações valiosas para suas pesquisas e novas interpretações sobre temas já discutidos. Leia Mais

Escravo, africano, negro e afrodescendente: a representação do negro no contexto pós-abolição e o mercado de materiais didáticos (1997-2012) – GARRIDO (FH)

GARRIDO, Mírian C. M. Escravo, africano, negro e afrodescendente: a representação do negro no contexto pós-abolição e o mercado de materiais didáticos (1997-2012). São Paulo: Alameda, 2017. 203p. Resenha de: SILVA, Jonatan Gomes dos Santos. A representação do negro nos materiais didáticos. Faces da História, Assis, v.6, n.2, p.11-27, jul./dez., 2019.

O Brasil possui o maior programa de distribuição de livros didáticos do mundo. Só em 2017 foram gastos 1.295.910.769,73 de reais em 125.570.649 livros. Tais cifras ajudam a entender a importância dos livros didáticos no ensino do país, sendo uma das bases para a configuração dos currículos escolares e do planejamento de aulas. O processo de avaliação e distribuição desses livros é complexo, devendo ser feito com diálogo entre o Estado, as editoras, a academia e as demandas sociais.

O livro Escravo, africano, negro e afrodescendente, de Mírian Cristina de Moura Garrido, analisa essa relação na produção dos livros didáticos cujo conteúdo tem grande impacto na formação da identidade dos alunos. Para isso, propõe em seus três capítulos a análise das representações dos negros nos principais livros didáticos de história distribuídos nas escolas brasileiras entre os anos de 1997 a 2012, tendo como foco o tema pós-abolição. A autora não analisa apenas o seu conteúdo, mas também as etapas a serem cumpridas até a sua distribuição nas escolas, colocando em pauta a indústria de materiais didáticos e sua relação com o Estado, seu principal cliente. O livro foi publicado em 2017 pela editora Alameda, sendo fruto da dissertação de mestrado em História da autora, realizado na UNESP (campus de Assis) entre os anos de 2008 e 2011. Doutorou-se pela mesma instituição em 2017, também realizou estágio de pesquisa na University of Pittsburgh (Estados Unidos) e pesquisa de campo em Maputo (Moçambique). Atualmente, Garrido é pós-doutoranda em História pela Universidade Federal de São Paulo, desenvolvendo pesquisa sobre as memórias da independência moçambicana.

No primeiro capítulo “O livro didático: contexto”, Garrido contextualiza os livros didáticos brasileiros a partir dos aspectos econômicos, editoriais e historiográficos, traçando um panorama do que sua obra discute. Para analisar essa relação entre representação e o complexo processo de criação do livro didático, a autora utiliza o PNLD (Programa Nacional do Livro Didático). Este é o responsável por avaliar e disponibilizar os livros didáticos das escolas brasileiras. A partir de seus editais de convocação, em geral lançados dois anos antes da circulação do livro na escola, é possível estabelecer todas as exigências a serem cumpridas pelas editoras e obras didáticas que desejam negociar com o Estado, as condutas dos livros didáticos e suas editoras, bem como os critérios de análise estabelecidos. Na última etapa do edital PNLD aparece o Guia de Livros, Garrido também o usa como fonte, pois ele fornece auxílio ao professor na escolha do livro didático, expondo os princípios e critérios de avaliação das obras didáticas e as resenhas dos livros aprovados.

O PNLD na obra de Garrido também é fundamental para seleção dos livros utilizados como fonte, uma vez que formula seus critérios:  a aprovação dos autores na versão 2008 do Programa Nacional do Livro Didático destinado ao Ensino Médio; a presença deles no mercado de didáticos antes do início das avaliações governamentais para o segundo ciclo do ensino fundamental, portanto, 1997 (PNLD 1999); e a representatividade desses autores entre docentes. Traçado esse perfil, três nomes emergiram: Gilberto Cotrim, Antonio Pedro e Mario Schmidt. (2017, p. 12)  A formação profissional desses autores diverge. Cotrim tem uma ampla e diversificada formação: graduação em História, Direito, Filosofia, e mestrado em Educação, Arte e História da Cultura. Também foi presidente da Associação Brasileira de Autores de Livro Educativo (ABRALE). Antonio Pedro tem uma carreira mais ligada à universidade, possui graduação em História pela Universidade de São Paulo (USP) e doutorado em História Social pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) em conjunto com a Columbia University. Schmidt, estranhamente, não tem formação comprovada, mas alega ter graduação em História na Alemanha Oriental, bem como ter iniciado os cursos de Engenharia e Filosofia sem completá-los, e ainda assim é uma grande referência no mercado de didáticos.

A autora articula o PNLD com a lei 10.639/03. Esta é fundamental para a representação do negro nos livros didáticos enquanto sujeito histórico, porque expõe a conquista de uma das mais antigas demandas do movimento negro contemporâneo: a incorporação de conteúdos sobre História da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional nos currículos escolares. Não é uma simples incorporação de conteúdo, o que “está em pauta é o repensar de atitudes e valores, de ressignificação do ensino enquanto instrumento de valorização da identidade.” (GARRIDO, 2017, p. 175)  No segundo capítulo, “Livros do Ensino Médio aprovados no PNLEM: Cotrim; Schmidt; Pedro”, Garrido analisa os livros das duas gerações (1997 e 2008) dos autores selecionados. O método utilizado é a análise do conteúdo, portanto, a autora primeiro realiza a “desmontagem dos textos, fragmentando o corpo do texto para obter unidades lógicas; em seguida, essas unidades serão confrontadas com outros referenciais bibliográficos” (GARRIDO, 2017, p. 79), objetivando a emergência de novos significados. A desmontagem do texto inicial resulta em um segundo texto, um metatexto capaz de pluralizar a captação de significados do texto original. Assim, é possível ampliar as interpretações de leituras possíveis e evitar uma leitura superficial.

Os referenciais bibliográficos que Garrido utiliza para confrontar as fontes dialogam com uma revisão historiográfica que ocorre a partir da década de 1980, e que ainda perdura, propondo uma nova interpretação sobre o sujeito histórico. De forma geral, pensando na questão da representação do negro, pode-se dizer que essa historiografia emergente recusava “a predominância de um enfoque socioeconômico e estrutural passando a privilegiar abordagens que ressaltavam variáveis políticas e culturais, para um melhor entendimento das relações sociais construídas entre dominantes e dominados.” (GOMES, 2004, p. 159).

Portanto, as reflexões de Sidney Chalhuob (1990) e Walter Fraga Filho (2004) se destacam na obra de Garrido. Eles sustentam que o negro, escravizado ou livre, como agente ativo socialmente, é partícipe das transformações sociais mesmo com as limitações que lhe são impostas. Ocorre, pois, a sua valorização enquanto sujeito histórico, diferente da ideia de passividade e anulação pelo dominador que era propagada por modelos, marxistas ou não, que privilegiam os aspectos estruturais, resultando na coisificação do negro. Para isso, são empregados métodos e fontes que aproximam o historiador ao cotidiano da população negra – como as memórias, os processos criminais, testamentos –, documentos que de alguma forma dão voz à ela ou nos relatam sua participação na sociedade. Dessa forma, apesar das limitações sociais, é possível apreender as redes familiares e de solidariedade construídas por esse segmento social, os meios criados para a sua participação no mercado de trabalho, as negociações entre negros e ex-senhores. Além disso, como os autores trabalham com regiões diferentes, Rio de Janeiro e Bahia respectivamente, o diálogo entre eles possibilita contestar generalizações. Essa mudança teórico-metodológica, portanto, nos permite apreender o afro-brasileiro de forma dinâmica, participando ativamente da sociedade através de diversas formas de resistência.

A partir da análise do discurso focando na representação dos negros no pós-abolição, a autora se debruça sobre os livros didáticos de 1997 e de 2008 dos autores escolhidos, constatando que nas poucas páginas dedicadas, os conteúdos sobre o tema não estavam de acordo com a produção historiográfica em voga, isto é, não valorizavam o negro como sujeito histórico, tornando invisível sua participação na sociedade.

Nos livros didáticos da segunda geração (2008), Garrido considera que ocorreram melhorias, contudo foram poucas. Schmidt e Cotrim, no que tange à seção dedicada ao pós-abolição, fizeram mudanças pontuais nos textos da década de 1990, tentando se adequar aos requisitos do edital do PNLD 2008. Mas toda a argumentação da primeira geração continua intacta. O texto de Antônio Pedro é ainda mais preocupante, pois a única alteração no texto de 2008 é o acréscimo de uma palavra.

A parte reservada às imagens e às atividades foi aprimorada, com destaque para Cotrim, que elaborou atividades para resgatar o conhecimento prévio dos alunos, não se limitando aos exercícios de memorização. Apesar das diferenças entre os conteúdos dos livros serem sutis, a autora destaca que Cotrim põe em xeque a liberdade dos negros, mas sem levar em conta, entre ex-escravizados, a plural significação desse conceito. Para entender essa condição para os egressos da escravidão, Garrido entra em concordância com Chaulhoub (1990) que defende que ser livre poderia significar autonomia de movimento e a constituição de relações afetivas. Com o texto de Walter Filho (2004) é possível sair do Sudeste e pensar essa relação na Bahia, onde a liberdade pode ser analisada pela forma como a interferência senhorial não foi tolerada, ela também aparece nas intensas negociações para manter e ampliar direitos que foram conquistados no período da escravidão.

Em seus livros, Schmidt, conhecido por sua posição marxista ortodoxa, busca evidenciar conflito entre os grupos sociais, porém trabalha com uma leitura que privilegia aspectos estruturais, não conseguindo “expressar percepções que singularizem o processo como estratégias e táticas de sobrevivência além da morte, do suicídio ou fuga, nem admitir outras formas de resistências que ocorram no cotidiano.” (GARRIDO, 2017, p. 103).

Sem dúvidas, Antonio Pedro foi o autor que mais recebeu críticas, pois praticamente não ocorreram mudanças em suas obras. Assim, além de conter generalizações, reedita a tese da anomia de Florestan Fernandes ao não considerar o negro como sujeito histórico quando argumenta sobre a marginalização, reforçando o mito do negro “indisciplinado e ocioso”, o que é totalmente nocivo à representação do afro-brasileiro.

Garrido dedica o terceiro capítulo, “História, Educação e Identidade: por um ensino aprendizagem possível”, à reflexão sobre as perspectivas e possibilidades para uma educação que não negligencie o debate sobre o racismo e a discriminação. A autora constata que a questão da valorização do afro-brasileiro está presente tanto na historiografia atual, quanto na base da Lei da 10.639/03 e nos editais de convocação do PLND, contudo os livros didáticos ainda não se atualizaram. Para compreender essa nociva permanência, Garrido primeiro problematiza as lacunas do PNLD e conclui que, por mais que os seus editais tenham se aprimorado com o passar dos anos, a falta de um critério de desqualificação referente a não incorporação de conteúdos atualizados gera uma brecha, permitindo a aprovação de livros desatualizados.

Em seguida, a autora reflete sobre o uso e a produção dos livros paradidáticos. Este gênero emerge entre as décadas de 1970 e 1980, quando ocorre uma expansão do saber acadêmico acompanhada de uma renovação do livro didático devido às novas propostas curriculares.

Num primeiro momento, o paradidático tinha como principal consumidor alunos da rede privada de ensino e alunos de graduação, mas com a criação do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) em 1997, a clientela tem se reconfigurado, pois livros de diversos gêneros literários, entre eles o paradidático, passam a ser comprados e distribuídos nas bibliotecas de escolas públicas. Através dessa ação, o programa tem como principal objetivo incentivar a formação do hábito de leitura nos alunos da rede pública, modificando a histórica restrição à cultura letrada, propiciando “melhores possibilidades de acesso a essa cultura aos estudantes de escolas públicas do país” (GARRIDO, 2017, p. 161). O PNBE tem uma estrutura de funcionamento similar ao PNLD, inicialmente são lançados os editais de convocação, em seguida os livros são avaliados e selecionados por professores universitários, professores do ensino básico e profissionais de múltiplas experiências.

A obra de Garrido constata que os livros paradidáticos após 2003, se ocupam em explicar a África e suas relações com o Brasil e a herança dos afro-brasileiros, contemplando as exigências da lei 10.639/03. Vale ressaltar que os livros paradidáticos envoltos na temática “história e cultura africana e afro-brasileira” foram vencedores do Prêmio Jabuti na categoria didáticos e paradidáticos nos anos de 2007, 2009 e 2010, o que torna explícita a qualidade do conteúdo do segmento paradidático.

O que chama a atenção de Garrido é o fato de as editoras produzirem livros didáticos carentes de incorporação de conteúdos sobre o tema “África e afrodescendentes”, ao mesmo tempo em que têm em seus catálogos livros paradidáticos suprindo essas carências. Isso pode ser explicado como uma estratégia “na qual as editoras lucram com as compras governamentais duas vezes, no PNLD e no PNBE” (GARRIDO, 2017, p. 165). Para a autora, essa estratégia escancara a lógica da relação entre editoras e Estado, ou seja, enquanto estas buscam deliberadamente o lucro, as políticas públicas devem fundamentar a educação que pretendem efetivar através dos recursos disponíveis. Outro obstáculo, pois, para a valorização da população negra.

Portanto, a obra de Mírian Garrido traz importantes contribuições para a reflexão da representação do negro nos principais livros didáticos do país. Ao questionar o que vem sendo ensinado nas instituições de ensino sobre o pós-abolição, a autora aponta que a incorporação de conteúdos que valorizem o negro enquanto sujeito histórico reflete na construção da identidade negra. Também é importante que as políticas públicas se atentem à necessidade de promover dentro das escolas uma constante discussão da relevância e legitimidade de uma educação que não negligencie nenhuma das identidades.

Nenhum dos livros didáticos analisados pela autora renovou os conteúdos já consagrados, não se atendo a atual historiografia sobre o pós-abolição, tampouco sobre a demanda social da Lei 10.639/03. O ex-escravo continuou fadado à marginalização por sua passividade ou submissão. Essa postura conservadora pode ser entendida como uma opção dos autores e editoras. Apesar disso, ainda ocorreram melhoras significativas no material do produto didático e em certos “setores” dos livros: exercícios, textos complementares e no tratamento com imagens.

Pouco pode ser considerado de negativo na obra de Garrido. O conceito de memória, que é importante na discussão da autora, poderia ser mais desenvolvido, mas sabendo que o livro é fruto de sua dissertação de mestrado, espaço limitado e de prazo curto que tende a priorizar certos aspectos, essa carência torna-se compreensível. Além disso, não compromete a reflexão sobre a importância da representação valorativa do afrodescendente nos livros didáticos.

Referências

CHALHOUB, Sidiney. Visões de Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhada da liberdade: Histórias e trajetórias de escravos e libertos na Bahia, 1870-1910. 2004. 363 f. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004.

GARRIDO, Mírian C. M. Escravo, africano, negro e afrodescendente: a representação do negro no contexto pós-abolição e o mercado de materiais didáticos (1997-2012). São Paulo: Alameda, 2017. 203p.

GOMES, Ângela de Castro. Questão social e historiografia no Brasil do pós-1980: notas para um debate. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 34, p. 157-186, jul./dez. 2004.

Jonathan Gomes dos Santos – Graduado em História pela Universidade Estadual Paulista – UNESP, Assis, estado de São Paulo (SP), mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História da UNESP, Assis (SP), Brasil. Bolsista CAPES. E-mail: jonatangs@live.com.

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Paulistas afrodescendentes no Rio de Janeiro pós-Abolição (1888-1926) | Lúcia Helena Oliveira Silva

Paulistas afrodescendentes é o esperado fruto da tese de doutoramento de Lúcia Helena Oliveira Silva, defendida no ano de 2001, e se insere no contexto de consolidação do pós-Abolição como um campo autônomo de investigação historiográfica. Informado pela historiografia social da escravidão e do processo de abolição do trabalho escravo no Brasil, o estudo desvenda os caminhos que ex-escravos e seus descendentes trilharam ao buscar melhores condições de vida e ampliação da cidadania e conferir significados próprios à liberdade durante os anos posteriores à Abolição.

Desde os anos 1980 a historiografia social brasileira procura associar o tema das relações raciais com o problema gerado pelas tentativas de controle social da classe trabalhadora. A historiografia social do trabalho enquadrou essa especificidade do Brasil republicano com a compreensão das mais diversas esferas da vida cotidiana dos sujeitos. A perspectiva tem sua explicação no fato de que a questão do controle social, quando abordada pelo viés da experiência cotidiana da classe trabalhadora, ressalta o caráter da disputa política presente na vida cotidiana dos agentes sociais. Historiadoras(es) do pós-Abolição brasileiro têm percebido que a luta por cidadania da população negra também pode ser assimilada quando analisada à luz das práticas sociais dos sujeitos em seus dia a dia, e não só da realização de movimentos de reivindicação (Sidney Chalhoub, “Trabalho, Lar e Botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque”).

Desse modo, Paulistas afrodescendentes é um livro que fornece ao leitor importante imersão no panorama teórico por que o campo acadêmico do pós-Abolição brasileiro passou entre os anos 1990 e 2000. Nele está presente o viés metodológico que privilegia as visões da liberdade que os sujeitos mobilizam para elaborar estratégias de garantir a manutenção de suas vidas no mundo após o fim do cativeiro.

O texto de Lúcia Helena Oliveira Silva revela os anos iniciais da República como um período recheado de expectativas orientadas pelos padrões socioculturais do mundo escravista do século 19, mas também engendradas pelas novas condicionantes sociais no Brasil após a abolição. A autora segue a tendência, muito presente na historiografia desde o fim da década de 1990, de demonstrar que a relação de negros com a sociedade pós-escravista foi marcada por numerosas redefinições, todas elas pautadas em concepções de cor que tenderam a se transformar com o passar do tempo, fosse para negros ou para brancos – como apontou o estudo de Hebe Mattos, Das Cores do Silencio: os significados da liberdade no Sudeste escravista (1995).

Sendo assim, juntando-se a uma historiografia que começou a assumir as visões da última geração de escravos brasileiros como um problema histórico importante, a historiadora não se limita a atestar a marginalização dos ex-escravizados no mercado de trabalho. Oliveira Silva interpreta as estratégias de resistência de uma parcela da população negra paulista, acompanhando suas trajetórias e seus desejos de protagonizar uma vida mais justa frente ao convívio intenso que tiveram que ter com imigrantes, poder público e as economias de lugares como o estado de São Paulo e a cidade do Rio de Janeiro.

Protagonizar uma vida com melhores condições econômicas e com a efetividade do direito à cidadania não poderia deixar de levar em conta toda uma experiência acumulada durante os anos do cativeiro. Portanto, o racismo, somado à falta de acesso à propriedade e ao mercado formal de trabalho, contribuiu para a escolha da migração como solução por parte dos ex-escravizados e seus descendentes. Mobilidade territorial, nesse contexto, significou, para muitas mulheres e muitos homens, tomar as rédeas de suas vidas e lutar por mais direitos. Oliveira Silva propõe a noção de redes de solidariedade e de trajetórias para apreender o horizonte de experiências que a população negra de migrantes paulistas teve de lidar para resistir ao racismo pós 1888.

O debate sobre mobilidade territorial e migração no pós-Abolição tem importância historiográfica. Inspiradas por uma historiografia norte-americana que entende que migrar foi uma dimensão crucial da noção de liberdade, Ana Lugão e Hebe Mattos sugerem que o exercício da liberdade de movimentação do ex-cativo significou uma possibilidade de realizar rotas que poderiam proporcionar melhorias na condição de vida (O pós-abolição como problema histórico: balanços e perspectivas, 2004). Migrar traduzia a necessidade dos agentes históricos de constituir família, obter moradia e trabalho em locais onde as redes de solidariedade amenizassem a experiência do racismo.

A publicação do livro de Lúcia Helena Silva contribui para o cenário da historiografia nacional, tendo em vista os diálogos que seu texto estabelece com as gerações posteriores de historiadores. Esse texto pertence a um grupo que soube enfrentar o problema com as fontes que os temas relacionados ao pós-Abolição apresentam. Para acessar a experiência histórica dos ex-cativos, os historiadores dependem de documentação que só parcialmente comunica a cor dos indivíduos negros. A maior parte costuma ocultar a cor das pessoas envolvidas. De maneira muito habilidosa, Silva analisa os livros de registros de presos da Casa de Detenção da Corte (posteriormente denominada de Distrito Federal) que, por ser uma fonte policial, em muitos casos apresenta a cor dos presos, além de evidenciar o seus locais de emigração. Desse modo, a autora traça um quadro geral sobre os locais de habitação e os locais por onde os migrantes negros paulistas circularam e viveram na cidade do Rio de Janeiro.

Mas os livros de registro deixam de fora aspectos da rotina daqueles personagens. Como alternativa metodológica, Silva usa processos criminais e cíveis para captar os padrões de sociabilidade dos habitantes das regiões estudadas (p. 140). Enquanto os livros da Casa de Detenção fornecem indícios quantitativos sobre a repressão aos negros na cidade carioca, os processos delineiam um caminho qualitativo para a análise das experiências de negras naquela cidade.

A utilização de processo-crime também contribui para a coleta de evidências acerca das condições de vida, trabalho, lazer e religiosidade da população negra. Servindo-se de relatos orais, periódicos da grande imprensa, anuário estatístico e imprensa negra, a autora mescla informações de diferente natureza para delinear o quadro de racismo e de situações adversas que negros tiveram que enfrentar.

Quanto à periodização, a autora esclarece que “partimos de 1888, data da Abolição, e concluímos com 1926, data que marca o fechamento do jornal Getulino e o momento em que o item cor deixa de ser preenchido na documentação da Casa de Detenção” (p. 28).

Antes da análise dos capítulos, cumpre levantar questões metodológicas que nortearam os caminhos investigativos da autora. O caráter empírico da abordagem micro-histórica possibilitou a problematização de práticas sociais no pós-1888. Em alguma medida, para a historiografia do pós-Abolição brasileiro, o método da redução de escala foi a saída encontrada para cumprir com o objetivo de organizar e explicar a sociedade no seu período. Portanto, Lúcia Helena Silva opta pela investigação das trajetórias de sujeitos como uma maneira de se aproximar dos tipos de experiência que o novo mundo republicano possibilitou à população negra. A redução de escala, ao nível das trajetórias individuais ou coletivas, dos conflitos cotidianos, é importante instrumento metodológico para a captação das contradições, dos limites e das escolhas que os indivíduos fazem (Giovanni Levi, “Sobre Micro-História.” In: BURKE, Peter (Org). A Escrita da História: novas perspectivas, 1992.).

Com base nessas premissas metodológicas, Lúcia Silva argumenta que negros enfrentaram fortes dificuldades no Estado de São Paulo devido à mescla de características e estereótipos dos tempos escravistas e à perseguição policial e judicial. A escolha pela migração para lugares onde a vida poderia ser melhor foi uma consequência direta das condições sociais, culturais e econômicas que minavam as oportunidades que negros poderiam ter em São Paulo.

Desse modo, o primeiro capítulo analisa a experiência de vida de afrodescendentes paulistas no campo e na cidade no estado de São Paulo. Aproveitando-se de um processo-crime, de depoimentos orais, artigos da imprensa negra e da imprensa paulista, a autora investiga as sociabilidades e as relações de trabalho da comunidade negra focando nas relações raciais (p. 33). A população negra em São Paulo teve sua experiência social demarcada por conflitos raciais que, pautados em estereótipos grosseiros, acabaram por moldar posturas sociais, policiais e judiciais que forjaram mecanismos de discriminação contra pretos e de pardos. Fugindo da simples interpretação da exclusão, Lúcia Silva sugere que, se o negro sofreu com um processo de afastamento dos direitos à cidadania, isso não se deu sem conflito e sem contestação. Graças à sua capacidade de estabelecer laços de solidariedade, os negros puderam enfrentar o preconceito de cor e a violência das relações raciais (p. 46).

Mas num estado onde a política de branqueamento teve grande êxito e as teorias racialistas pautavam os rumos das práticas policiais e jurídicas, ser trabalhador negro não parecia coisa simples. Em São Paulo houve clara orientação política pela escolha de estrangeiros para a ocupação dos postos de trabalho. No campo, os imigrantes foram escolhidos para se submeter ao regime de colonato. Mas, e esse é um dos primeiros estudos a apontar para o fato, o negro também participou dessa prática de produção agrícola. Estudos recentes têm comprovado que houve uma considerável participação negra nas práticas de colonato dentro das fazendas paulistas (Karl Monsma, “Vantagens de imigrantes e desvantagens de negros : emprego, propriedade, estrutura familiar e alfabetização depois da abolição no oeste paulista”, Dados, v. 53, n. 3, 2010).

Ainda assim, na cidade ou nos campos de São Paulo o grande contingente imigrante e o racismo contaram para a exclusão do negro dos postos de trabalho e para a não consolidação de seus direitos de cidadania. Essa parcela da população sofreu com a precariedade e com a inconstância no trabalho (p.78-79). É dentro desse contexto que a possibilidade de migração apareceu como forma de efetivação de interpretações de liberdade. O segundo capítulo do livro trata da experiência de migração como uma das possibilidades de vivenciar a liberdade por parte dos libertos ao lhes dar uma visão de mundo mais larga e autônoma. A cidade do Rio de Janeiro foi um espaço aglutinador, onde migrantes negros e naturais dessa região tiveram como inventar suas próprias maneiras de sobrevivência. Era uma cidade com uma vida cultural negra muito rica, que distou da cultura da “elite da belle époque” (p.99-100). Não obstante, e mesmo com todas as possibilidades urbanas cariocas , com toda a expectativa dos ex-escravos e seus descendentes, ser pobre num período de grande esforço para o controle das ações e das ocupações populares representou lutar constantemente contra a saga reformadora da cidade do Rio de Janeiro (p. 105-117).

Mas o Rio de Janeiro ofereceu melhores possibilidades de formação de laços de amizade e de solidariedade que serviram como estratégia para burlar todo assédio do poder público (p.122-123). Mesmo com a forte perseguição policial e com uma reforma urbana que visava afastar o negro e o pobre do centro da cidade, a presença de manifestações religiosas afrodescendentes é um indício de que, com base nesses espaços de solidariedade e lazer, a comunidade negra transformou o território urbano em um campo de batalha política, onde houve constante negociação entre a cidade que se queria “civilizada” e a cidade “africana” (p.127). Dessa forma, Lúcia Silva enxerga o Rio de Janeiro como um campo de disputa mais favorável do que foi o estado de São Paulo. Podia-se estabelecer alianças – inclusive com a classe dominante – e estratégias de manutenção da vida cotidiana (p.127-128).

Por fim, no terceiro e último capitulo Lúcia Helena Oliveira Silva examina as relações entre migrantes paulistas e os habitantes da cidade do Rio de Janeiro, observando como se deu sua interação durante a transformação do espaço social e físico da cidade. A historiadora enfoca nas vivências cotidianas de migrantes negros, mulheres e homens, afirmando que existiram alguns sujeitos que galgaram espaços em profissões relativamente estáveis e de boa remuneração. Eles conseguiram comprar casas, terrenos e alfabetizar-se, o que demonstra que migrar poderia ser uma maneira de mudança (p.146-147). Se é verdade que migrantes negros paulistas escolheram a cidade do Rio de Janeiro por estarem em busca de melhores condições de vida, e que lá estabeleceram laços socais que tornavam o dia a dia mais leve, também é verdade que tiveram que optar por moradias precárias para ficar perto das regiões que mais empregavam. A vida em cortiços era revestida de diversos conflitos que irrompiam quando os limites de privacidade e de convívio eram ultrapassados. É importante perceber que mulheres negras (migrantes aí incluídas) sofreram, repetidamente, com os padrões morais que deslegitimavam a forma de vida dessas agentes que, pelo caráter de suas profissões, deveriam ocupar espaços que se queriam masculinos.

Graças ao uso das ferramentas metodológicas da micro-história, Lúcia Silva oferece em Paulistas Afrodescendentes no Rio de Janeiro um rico quadro de experiências subjetivas dos negros que escolheram migrar de São Paulo para o Rio de Janeiro como uma estratégia possível de luta pela cidadania. É um estudo altamente recomendável para os interessados na construção social da liberdade no Brasil do fim do século 19.

Fábio Dantas Rocha – Possui graduação em História pela Universidade Federal de São Paulo (2014). Atualmente é membro do conselho editorial da Editora Palácio e analista de produção e difusão do conhecimento da Fundação Perseu Abramo. Mestrado em andamento na Universidade Federal de São Paulo.


SILVA, Lúcia Helena Oliveira. Paulistas afrodescendentes no Rio de Janeiro pós-Abolição (1888-1926). São Paulo: Humanitas, 2016. Resenha de: ROCHA, Fábio Dantas. O caminho para Pasárgada: negros paulistas no Rio de Janeiro do pós-Abolição. Almanack, Guarulhos, n.16, p. 352-358, maio/ago., 2017. Acessar publicação original [DR]