Política Racial, Estado e Forças Armadas na época da Independência: Bahia/ 1790-1850 | Hendrik Kraay

Em recente ensaio publicado na imprensa brasileira, o historiador Luiz Felipe de Alencastro, tratando do “Livro Branco da Defesa Nacional”, lançado em 2012 pelo governo brasileiro, declarou taxativamente: “a discriminação racial não escrita (…) exclui negros e mulatos do alto oficialato das Três Armas”. Voltado a apresentar os números e as reflexões sobre planejamentos e estratégias para a Defesa do país, o “Livro Branco”, anota o historiador, inova pelo tratamento conjunto dos assuntos relativos às Forças Armadas e à diplomacia no Brasil, mas permanece, por outro lado, calado, no registro de um conhecido silêncio: a recusa em abordar a questão racial nas Armas, e a sua impermeabilidade à pauta das políticas afirmativas.

Se iniciássemos por sua conclusão a resenha do livro de Hendrik Kraay, poderíamos partir, seguramente, do mesmo ponto a que chega Alencastro. Nas palavras do historiador canadense, afinal: “(…) a abolição da discriminação racial formal nas Forças Armadas, um processo concluído na década de 1830 com o estabelecimento da Guarda Nacional e o fim da discriminação racial no recrutamento para o Exército, tornou menos possível a política baseada na cor” (p.379-380).

A complexa tradução histórica dessa formulação que aproxima períodos mediados por quase duas centenas de anos, Hendrik Kraay a promove numa obra de extenso fôlego, escrita no final da década de 1990, mas só há um ano apresentada em edição brasileira. O fato não impediu, porém, que desde a sua elaboração a riqueza do trabalho venha sendo amplamente conhecida e consultada pelos estudiosos interessados no tema e no período cobertos pela pesquisa.

Curiosamente, o tempo de espera da sua chegada ao público de língua portuguesa correu a favor da consolidação, na historiografia brasileira, de novas alternativas de interpretação a abordagens tradicionais no exame de temas como a Independência, a formação do Estado, ou a política nas camadas populares no Brasil. Alternativas que se juntaram, por outro lado, à elaboração das categorias “raça” e “cor” como motivos de uma já sólida tradição de estudos históricos sobre a escravidão no Brasil, tradição que se confunde com o processo de profissionalização da área no país, desde as últimas décadas do século passado.

Política Racial, Estado e Forças Armadas na época da Independência (Bahia 1790-1850) é, assim, um livro de muitos temas, como o confessa seu próprio autor. A bem dizer, é um livro de todos aqueles temas. E a escolha das Forças Armadas como objeto privilegiado em torno do qual seu estudo se organiza deve-se ao fato de que, em palavras do próprio Kraay, “nenhum outro setor do Estado penetrou tão fundo na sociedade”, oferecendo ao pesquisador a oportunidade de estudá-la ali onde ela não é composta “nem de escravos, nem de senhores”.

Dessa maneira, o estudo proposto das relações sociais e políticas marcadas pela hierarquia de corte racial desloca o cerne da análise do binômio senhor-escravo, ao mesmo tempo em que funciona como elemento articulador de toda a rede de temas que acusam a presença inescapável de sua sombra, ou seja, o peso da ordem escravista manifestando-se nas sutilezas dos seus diversos desdobramentos. Assumindo essa perspectiva, o autor ademais reconhece a complexa trama de interações por meio das quais um conjunto de elementos sociais como classe, status e origem interferem com a cor para a produção das diferenças entre as pessoas, dentro e fora de suas organizações.

Igualmente atravessados, assim, pela “questão racial”, e radicados no exame da dinâmica do Exército baiano entre 1790 e 1850, três são os principais temas que a obra descortina: a nova história militar, a formação do Estado brasileiro na “era da independência”, e a política popular.

Em tese defendida no ano de 1995 na Universidade do Texas, Hendrik Kraay sinalizava desde o título a abordagem escolhida para o tratamento característico da história militar em sua obra. “Soldiers, officers and society” traduz textualmente a pretensão de o historiador ultrapassar as narrativas das estratégias de guerra, dos procedimentos militares ou o tom laudatório das campanhas e de seus heróis, típicos dos trabalhos sobre a corporação – muitos deles produzidos por militares – até bem perto de fins do século XX. Kraay, ele mesmo, tratou do assunto juntamente com Victor Izecksohn, Celso Castro e outros em “Nova História Militar Brasileira” (FGV, 2004).

Nessa linha, a original história das milícias coloniais baianas produzida por Kraay é interpelada pelo interesse da disposição racialmente segregada dessa instituição auxiliar do Exército. O significado da discriminação oficial que separava os regimentos de brancos, pardos e pretos tornava a milícia, especialmente para esses últimos, numa fundamental agência de prestígio e de status pessoal, dado o elemento de diferenciação por ela representado numa sociedade em que a pobreza e a escravidão tinham cor marcante. Não por acaso, a perda da distinção por parte dos oficiais pretos da milícia (os famosos Henriques), com o fim da corporação em 1831 e sua substituição pela Guarda Nacional, lançou-os a uma feroz crítica do Estado em termos raciais. E sua frustração com o exercício da proclamada igualdade liberal formal – que extinguia os batalhões segregados – culminou no expressivo envolvimento dos ex-Henriques na revolta da Sabinada, em 1837.

Os oficiais do Exército baiano surpreendido por Kraay, por sua vez, estão longe das cenas das batalhas. O estudo bem documentado de suas trajetórias pessoais e familiares revela, à maneira da prosopografia, uma história a partir da qual é possível observar como o processo de profissionalização do Exército é consentâneo com a formação de um oficial funcionário público, proprietário modesto, crescentemente dependente das rendas do Estado e submetido ao seu estrito controle. Esse processo é fortemente induzido por uma máquina de Estado cuja força centralizada se manifesta a partir da década de 1840, num cenário claramente distinto daquele em que, no fim do período colonial, senhores e altos oficiais se confundiam no topo da hierarquia das Forças Armadas. Nota relevante acerca de um e de outro perfil dos oficiais, os documentos a respeito de suas carreiras não fazem qualquer menção de sua cor. Supunham-se todos brancos, na verdade; quando menos, na provocativa expressão de Donald Pierson, “brancos da Bahia”.

Essa pirâmide, encimada por alvos baianos, compunha-se na base pelos soldados da tropa. Em sua maioria recrutados à força entre livres ou libertos, brancos ou pardos, esses homens não gozavam do benefício de um acesso abreviado aos postos mais elevados da corporação – reservados aos cadetes, filhos de oficiais. A forma violenta de seu ingresso no Exército expunha a sempre encenada disputa entre as autoridades públicas, os pobres elegíveis e seus patrões: ser recrutado significava, portanto, perder a batalha nas tramas do patronato ou, pior, não poder contar com qualquer proteção. A característica ambigüidade dessa situação política levou o autor a afirmar que os pobres livres, beneficiários desse quadro, “encaravam o patronato como uma maneira natural, necessária e até mesmo ‘boa’ de organizar a sociedade” (p.288). Uma vez recrutados, porém, as desonrosas punições corporais a que estavam sujeitos lhes recordavam que a sua condição de vida era forjada com molde não inteiramente diferente daquele com que eram marcados os escravos.

Em resposta, os mecanismos de que se valiam os soldados para afirmar a sua liberdade incluíam deserções regulares ou o refúgio temporário na rede dos vínculos que não desatavam com a comunidade mais ampla. Foram, afinal, os espaços ainda não fechados entre o quartel e a rua no fim do período colonial que permitiram as duplas profissões de soldados e sargentos que, também artesãos e alfaiates, manifestaram vigorosa desafeição ao Trono em conspiração de pardos delatada por pretos da milícia na cidade da Bahia, em 1798. Dessa maneira, entre recrutamentos e deserções, punições e indultos, o quartel, assinala Kraay, funcionava como “uma porta giratória através da qual os soldados passavam regularmente” (p.117). Tratava-se de um equilíbrio dinâmico entre a ação do Exército à cata da sujeição dos “vadios” e a iniciativa dos pobres, livres ou libertos, em busca de um patrão que lhes valesse (ainda que esse patrão fosse, por fim, o próprio Estado armado).

Ao longo do período estudado na obra, a história é também de significativas mudanças nas fileiras, ao lado de inquietantes permanências. Tal como entre os oficiais – sobretudo após a criação de um Exército Nacional na década de 1840 – o perfil do soldado se conforma sob o peso de um controle mais estrito do Estado, de maior dependência à ocupação militar. A intensa politização provocada pelos conflitos de Independência resultou num crescente “escurecimento” das tropas – que contavam, inclusive, escravos recrutados – e a desmobilização do Exército envolvido nessa guerra implicou a dispensa de batalhões em que a presença expressiva de homens de cor era vista como elemento decisivo de graves ameaças à ordem, como aquela que o Batalhão dos Periquitos protagonizou em motim estourado em Salvador no ano de 1824, ainda no desenrolar dos sucessos da Independência da Bahia. Aos recrutas, portanto, o Estado pós-Regresso (1838) suprimiu o espaço para duplas atividades, o direito a licenças e baixas, e restringiu seu contato com o mundo exterior à caserna. Mas manteve, apesar de sua progressiva perda de legitimidade, a forma coerciva do recrutamento e o padrão da disciplina corporal, forçando os soldados a também manter atualizada a teia de favores que, nas palavras contrariadas do então Presidente da Bahia, “hoje tudo invade, e desfigura” (p.287).

A noção de Estado que emerge da obra de Kraay em meio a esse conjunto de transformações não é, ele salienta, a do “Estado autônomo que Raimundo Faoro e Eul-Soo Pang enxergaram como sendo primordial à história luso-brasileira”. Em seu lugar, o autor “enfatiza as íntimas conexões entre o Estado e a classe dominante” (p.18). Poder-se-ia dizer a esse respeito, em suma, que ao longo do período a classe senhorial baiana deixou de estar no controle direto das Forças Armadas – ocupando seus mais altos postos numa corporação de caráter local – para se beneficiar da segurança propiciada por um Exército nacionalizado por obra da força do Estado, então livre dos focos de rebeliões. Essa formulação tal como elaborada supõe, portanto, um importante trânsito na dinâmica do Estado, de um Império ao outro. Kraay o explica, sobretudo, a partir das evidências de seus resultados na estrutura do Exército e no perfil de seus integrantes. A relevância dessa explicação, porém, não afasta, antes mesmo sublinha, a importância de outra que dê conta das formas como esse trânsito de um modelo de Estado ao outro representou a efetiva construção de um Estado Nacional no Brasil.

Arriscaríamos dizer que as íntimas conexões entre o Estado e a classe dominante sugeridas por Kraay carecem, na obra, de uma maior diferenciação dos seus termos. No amplo quadro da política institucional que recobre e produz as mudanças no Exército claramente apresentadas no livro, as “classes senhoriais” resumem a “sociedade” em geral frente à qual o perfil do Estado é discutido. Por sua vez, os liberais expressivamente citados como responsáveis pela reforma do Exército entre as décadas de 1820-30 não dialogam, nas páginas do trabalho, com adversários conservadores mais distintamente apresentados. A própria narrativa de um Estado como máquina burocrática em construção a partir do Regresso não é objeto da atenção detida e específica do autor, naquilo que ela interessaria em demonstrar como se forjou uma identificação das classes – e não só dominantes – com a figura de uma administração política que superou a pátria local como eixo de funcionamento e que fixou as condições para o surgimento de instituições e carreiras nacionais, como as do próprio Exército. Afinal, como suposto na formulação antes apresentada, o trânsito entre aparelhos de Estado distintos deve mais à “era da Independência” do que à Independência como tal; o que é o mesmo que dizer que a Independência por si não formou o Estado nacional, premissa, aliás, que o autor reconhece.

Mas se a Independência – ou Independências, pois “não há uma narrativa única e linear da Independência brasileira” (p.371) – não formou definitivamente o Estado, ela assentou as bases de uma nova ordem política que foi particularmente explorada pelos militares. Modulando a imagem de revolução conservadora atribuída por F.W.O. Morton ao movimento de Independência no Brasil, Kraay identifica os elementos sociais de uma revolução no conjunto de desafios que movimentos políticos impulsionados por soldados e oficiais do Exército e da milícia lançaram à ordem vigente a partir da década de 1820. Nesse particular, a nova posição assumida por esses atores tinha especial relação com a circulação de pautas, termos e com a cultura política que a vigência de uma Constituição pós-revoluções liberais permitiu que se formasse.

Os motins militares contra o regime de disciplina ou contra práticas arbitrárias das autoridades do Estado – destacada a Revolta dos Periquitos, em 1824; a expressiva participação de ex-integrantes da milícia preta na Sabinada, em 1837; ou ainda as diversas estratégias de “negociação e conflito” de que os homens das fileiras do Exército dispunham para fazer política e remediar a sua condição, todo esse processo evidencia o “Estado feito por baixo” que Kraay elege como um dos objetos de seu interesse. A relevância do reconhecimento de uma política de caráter popular no século XIX, renovando constantemente os horizontes de uma “segunda independência”, faz Kraay acenar para uma tradição historiográfica brasileira, inspirado na qual ele diz:

os soldados (e seus aliados na sociedade civil) reformularam o Exército, assim como – para usar um exemplo mais familiar aos historiadores do Brasil – as ações dos escravos em suas relações cotidianas com seus senhores transformaram a escravidão (p.106).

Assim, unindo os temas centrais da discussão enfrentada pelo autor em sua obra, a comparação feita no início dessas notas entre as frases de Alencastro e de Kraay cobra sentido, no fim, com uma breve referência a Karl Marx e o seu “Sobre a Questão Judaica” (Boitempo, 2010). Nesse trabalho, Marx, polemizando com Bruno Bauer acerca dos direitos políticos dos judeus na Alemanha do século XIX, promove sua seminal distinção entre “emancipação política” e “emancipação humana”. Com ela, poderíamos dizer, retomando o fio das profundas transformações havidas na estrutura do Exército brasileiro, que a reforma liberal que, em 1831, extingue as milícias racialmente segregadas e as substitui por uma Guarda Nacional racialmente “cega”, em nome da igualdade formal entre as pessoas, essa reforma representa a emancipação política dos cidadãos brasileiros em relação às suas diferenças de cor. Tal como na defesa por Bauer da emancipação dos alemães frente às suas distinções religiosas, o Estado brasileiro emancipava politicamente seus cidadãos, vale dizer, declarava-os livres e iguais, abstratamente, nos limites de sua cidadania. Essa emancipação, porém, não convenceu Francisco Xavier Bigode, ex-Tenente Coronel da milícia preta, extinta em 1831. Para ele, a igualdade diante da lei era “sem significado, a menos que ela reconhecesse as distinções raciais que a legislação colonial havia incorporado” (p.340).

Marx diria que a emancipação política eleva abstratamente os indivíduos de suas diferenças de castas e crenças, que ela os torna iguais formalmente, mas, não sendo emancipação humana, permite que suas diferenças concretas sigam agindo à sua maneira. Vale dizer, sigam à maneira das ordens sócio-políticas e econômicas que as produzem. Assim, nas palavras de Hendrik Kraay, nesse quadro “as afirmações de igualdade caíam em ouvidos ensurdecidos por atitudes profundamente arraigadas” (p.164). De fato, lembremos, não poderia ser diferente: o Império não tinha ainda o seu Livro Branco.

Douglas Guimarães Leite – Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF-Niterói/Brasil). E-mail: douglas.leite@gmail.com


KRAAY, Hendrik. Política Racial, Estado e Forças Armadas na época da Independência: Bahia, 1790-1850. São Paulo: Hucitec, 2011. Resenha de: LEITE, Douglas Guimarães. A cor da política: carreira, identidade racial e formação do Estado nacional no Exército baiano do entre-impérios (1790-1850). Almanack, Guarulhos, n.4, p. 154-158, jul./dez., 2012.

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Política social e racial no Brasil – 1917-1945 – DÁVILA (RBHE)

DÁVILA, Jerry. Diploma de brancura. Política social e racial no Brasil – 1917-1945. São Paulo: Unesp, 2006. Resenha de: GONÇALVES, Mauro Castilho Gonçalves. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, n. 24, p. 193-219, set./dez. 2010

O tema da eugenia marcou as discussões educacionais no Brasil desde a segunda metade do século XIX quando começaram a chegar aos trópicos as primeiras ideias relacionadas ao branqueamento da população brasileira. Esse arcabouço ideológico influenciou polí­ticas e práticas, chegou à escola pública, decidindo o futuro, não muito promissor, da população negra. Nessa linha, direciona-se o livro Diploma de brancura. Política social e racial no Brasil – 1917-1945, escrito por Jerry Dávila, traduzido por Cláudia Sant’Ana Martins e publicado pela Unesp no ano de 2006. Historiador porto-riquenho, Dávila é professor associado na Universidade da Carolina do Norte em Charlotte. É especialista no tema relações raciais e tem lecionado no Brasil, especialmente na Universidade de São Paulo e na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

No prefácio à edição brasileira, o autor destaca, num primei­ro momento, as transformações nas políticas raciais brasileiras, particularmente em função das ações afirmativas lideradas por movimentos negros, desde a emergência do Movimento Negro Unificado, criado em oposição ao regime militar. Sabemos, hoje, o quanto esse debate se fortaleceu no Brasil até consolidar-se, por exemplo, na questão das cotas, objeto de muitas discussões travadas no âmbito da política e da sociedade civil.

O livro em tela é o resultado das pesquisas que o autor efetuou, nos anos de 1995 e 1996, nos arquivos do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas, da Iuperj, no Arquivo Geral da Cidade (RJ), dentre outros. A tese foi defendida na Brown University. Ainda no prefácio, Dávila expõe os argumentos que o motivaram a pesquisar seu tema no Brasil, especialmente no período que compreendeu as primeiras  décadas do século XX, “quando as instituições educacionais con­temporâneas foram formadas, o pensamento racial ajudou a guiar as políticas públicas” (p. 12). Dois momentos da história contemporâ­nea brasileira são analisados pelo autor: a chamada República Velha e a Era Vargas, o que justifica o recorte cronológico apresentado no subtítulo do livro, pois, segundo o historiador porto-riquenho, nessas conjunturas foram desenvolvidas “políticas públicas tanto inspiradas nas correntes intelectuais e científicas internacionais quanto em sua leitura das mazelas do povo brasileiro” (p. 12).

O campo pesquisado pelo autor foi o Rio de Janeiro das pri­meiras décadas do século XX e suas escolas públicas e o impacto que sofreram a partir da implementação de reformas educacionais lideradas por Afrânio Peixoto, Anísio Teixeira e Fernando de Azevedo. Oautor analisa as contradições internas das reformas: de um lado, realizadas para expandir o ensino público e de outro, provocando fortes desigualdades no tratamento dos alunos pobres e negros e as formas como os reformadores, especialmente na década de 1930, aproveitaram a oportunidade histórica de, à luz das ciências eugênicas e da lógica da indústria moderna, colocar em prática a crença de que pela educação o Brasil alcançaria seu pleno desenvolvimento.

O livro está dividido em seis capítulos. No primeiro, o autor discute as articulações e projetos oriundos do Ministério da Edu­cação e Saúde (MES) na gestão de Gustavo Capanema em torno do tema “Educando o homem brasileiro”, um conjunto de ações inspiradas no nacionalismo, na ciência eugênica, sob o comando de um Estado forte. De início, é apresentada a correspondência trocada entre Gustavo Capanema e Oliveira Viana, datada de 30 de agosto de 1937. O conteúdo refere-se aos questionamentos de Capanema quanto à constituição física do homem brasileiro. Estava na pauta a encomenda de uma estátua do “Homem Brasileiro”, feita para ornamentar a entrada do novo prédio do Ministério da Educação e Saúde no Rio de Janeiro, símbolo da arquitetura mo­derna, projetado por Charles Le Corbusier, Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Tal encomenda gerou uma polêmica no Ministério. O escultor Celso Antonio apresentou um projeto que Capanema discordou: o “Homem Brasileiro” segundo a perspectiva do artista era um caboclo, de raça mestiça, ou seja, “tudo o que Capanema esperava que o Brasil deixasse para trás” (p.49). Para o ministro, o futuro do Brasil era branco e forte. Oartista recusou-se a seguir as orientações do ministro e a escultura foi cancelada. Com esse preâmbulo, o autor inicia o primeiro capítulo analisando as políticas de educação empreendidas na gestão Capanema, sob a inspiração da teoria eugênica. Ainda nesse capítulo, Dávila discorre sobre o que ele denomina “eugenia brasileira”, liderada por nomes como Renato Kehl, Fernando de Azevedo (secretário da Sociedade Eugênica de São Paulo), Edgar Roquette Pinto, Afrânio Peixoto, dentre outros. Nesse particular, em se tratando do tema da eugenia em São Paulo nas primeiras décadas do século XX, Dávila não explora uma produção do período relevância histórico-educacional: os Annaes de Eugenia, organizados pela Sociedade supracitada e publicados pela Revista do Brasil no ano de 1919. Dali poderia retirar outras importantes interpretações sobre a problemática da eugenia brasileira.

Uma problematização é levantada pelo autor para guiar sua reflexão neste capítulo. Para ele, os projetos educacionais dos eugenistas, que se firmaram na década de 1920 e ganharam ple­na expressão durante a Era Vargas, lançam luzes sobre uma das questões mais paradoxais do Brasil moderno: como a ideia de que o Brasil era uma democracia racial se tornou o mito orientador da nação durante a maior parte do século XX, principalmente diante de desigualdades raciais visíveis de tamanha proporção? Questão que o autor responde a partir da análise das relações de interde­pendência entre educação e saúde, presentes nas políticas públicas engendradas nas primeiras décadas do século XX, em especial no governo Vargas e materializadas em reformas do sistema escolar em capitais como o Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Salvador e Belo Horizonte, por intermédio de um revezamento efetuado pelos principais representantes do escolanovismo brasileiro: Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira, Lourenço Filho, Carneiro Leão e Afrânio Peixoto.

As reformas deram ênfase à educação higiênica, e à formação física e moral das crianças, utilizando-se do referencial teórico-metodológico da psicologia moderna em emergência nos círculos intelectuais e acadêmicos brasileiros. Ocaso mais exemplar foi o da criação, no Rio de Janeiro, do Instituto de Pesquisas Educacionais (IPE), instituição arquitetada por Anísio Teixeira, quando diretor do Departamento de Educação. OIPE passou a produzir pesquisas a partir de seus quatro setores: Testes e Medidas, Rádio e Cinema Educativos, Ortofrenia e Higiene Mental e Antropometria.

No segundo capítulo intitulado “Educando o Brasil”, o leitor encontrará a apresentação e a análise de como se efetuou a conso­lidação do uso da ciência estatística no interior dos quadros gover­namentais, especialmente no MESpara a produção de amostragens quantitativas sobre a situação educacional brasileira. Nessa linha, o resultado mais emblemático foi a criação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Na sequência, Dávila discorre sobre a estrutura do MES, sob a direção de Francisco Campos e Gustavo Capanema e conclui apresentando a situação da cidade e da educação pública no Rio de Janeiro dos anos de 1930, dando ênfase à configuração do espaço urbano e o lugar social das elites e das populações menos abastadas, em especial da raça negra.

No capítulo “O que aconteceu com os professores de cor do Rio?”, o autor discute o que ele denomina “processos históricos que levaram ao gradual branqueamento do quadro de professores do Rio de Janeiro” (p. 147). Utilizando-se de fontes iconográficas, pesquisadas especialmente no arquivo de Augusto Malta no Rio e nos anuários do Instituto de Educação, Dávila defende a tese segundo a qual para os reformadores o “professor moderno” era branco, feminino e de classe média (p. 148), paradigma que con­trastava radicalmente com a situação do sistema público de ensino carioca no início do século XX. Para o autor, esse quadro inicial foi, aos poucos, se modificando na medida em que os reformadores passaram a defender uma visão diferenciada do novo professor. Além disso, as políticas de formação dos novos quadros de docentes baseavam-se em metodologias consideradas avançadas e modernas, “uma elite moderna treinada cientificamente, muito bem-educada, refletindo as normas rigorosas da saúde, temperamento e inteli­gência, e dotada de um senso corporativo de identidade e classe social semelhante ao dos militares” (p. 165), ou seja, a caminho da profissionalização.

Na sequência, o tema tratado é o da “Educação Elementar”. Aqui Dávila analisa a principal reforma do sistema escolar carioca, reali­zada por Anísio Teixeira entre os anos de 1931 e 1935. Segundo o autor, a ação reformista desse pioneiro “combinou as principais ten­dências científicas que governavam a política social: o nacionalismo eugênico, racionalização sistemática e profissionalização” (p. 42). Segundo o autor, Teixeira projetou uma reforma do sistema de ensino adotando princípios e técnicas emprestadas dos Estados Unidos. Para Anísio Teixeira, os grandes obstáculos da modernização da educação pública eram os pais e o currículo existente. Para tanto, criou um sistema de ensino racionalizado, dividido em quatro departamentos: “Curricular, Matrícula e Frequência, Promoção e Classificação de Alunos e Prédios e Aparelhamentos Escolares” (p. 213). Dávila detalha com precisão e crítica as funções e as principais realizações desses setores durante a gestão de Anísio Teixeira.

O quinto capítulo apresenta uma interessante discussão sobre o que o autor denomina “A Escola Nova no Estado Novo”, período em que Anísio Teixeira foi afastado do sistema escolar por intermé­dio da pressão dos oponentes católicos e, em seu lugar, assumiram militares sob forte influência da Igreja católica. Após a exclusão de Teixeira e sua equipe, o Departamento de Educação foi ocupado pelo ex-ministro da educação Francisco Campos, por pressão do prefeito do Rio de Janeiro, Pedro Ernesto Batista. Porém, logo de­pois, com a consolidação do golpe do Estado Novo, Campos passou a ocupar o cargo de Ministro da Justiça de Vargas. O interessante nesse capítulo está relacionado com a leitura de Dávila acerca da participação e influência dos militares e dos grupos católicos na condução das políticas de educação no Rio de Janeiro, fortemente influenciadas pelo paternalismo e nas relações entre educação, raça (eugenia) e nacionalismo. Essa discussão, segundo nossa avaliação, pode ainda ser explorada no campo das pesquisas em História da Educação, a partir, por exemplo, das publicações católicas veicu­ladas no período da ditadura Vargas.

No último capítulo, é apresentada a situação do ensino secun­dário no Rio de Janeiro no período, por intermédio de um estudo de caso: o Colégio Pedro II, instituição modelo que treinava uma reduzida elite no sentido de adotar “a linguagem do nacionalismo eugênico” (p.43), posto que a grande maioria da população era impedida de avançar no processo de escolarização. Para o autor, o referido Colégio materializava, via escola, o projeto de Vargas, especialmente no período mais radical de ditadura.

Para analisar a questão da raça no interior do Colégio, Dávila pesquisou dois jornais estudantis, Pronome e O Arauto, esse úl­timo investindo quase sempre no tema da educação física e sua importância na formação do caráter dos alunos. Além disso, o jornal divulgava atividades promovidas pelo Colégio, dentre elas uma conferência sobre eugenia. Outra fonte de difusão da eugenia, segundo o autor, encontrava-se em livros escritos por professores do Pedro II, destaque para Raja Gabaglia e Jonathas Serrano, len­tes de Geografia e História, respectivamente. “Os dois principais livros de Jonathas Serrano, História da civilização e Epítome de história do Brasil adotavam uma perspectiva nacionalista, católica e eurocêntrica” (p. 323).

Jerry Dávila, por fim, apresenta uma relevante discussão te­mática, contribuindo, sem dúvida, na ampliação das fontes e no aprofundamento teórico da abordagem escolhida. A partir de sua opção histórica e historiográfica, o autor expõe ao público leitor novos conhecimentos sobre eugenia e sua relação com as políticas públicas de educação nas primeiras décadas do século XX, forne­cendo um mapeamento de fontes de pesquisa alternativas e pistas a serem exploradas e analisadas pelos pesquisadores da área.

Mauro Castilho Gonçalves – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. E-mail: mauro_castilho@uol.com.br

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