História social, história local-regional | Politeia: História e Sociedade | 2021

A historiografia deste começo de século XXI herdou do século passado a sua concepção de história social, que se relaciona com as duas vertentes fundamentais, ligadas, de um lado, ao materialismo histórico, ou marxismo e, do outro, àquela ligada à revista Annales d’histoire économique et sociale, surgida em 1929.

Ao longo do século XIX e no início do século XX, a historiografia praticada nos grandes centros de produção intelectual concebia a história como uma espécie de história militar ou diplomática, admitida essencialmente a partir de e através do Estado. Marcada por uma produção historiográfica com o predomínio na narrativa, povoada de acontecimentos, grandes vultos, estava centrada nas grandes batalhas, nas guerras e nas negociações envolvendo os diferentes estados. Leia Mais

Tribunal do Santo Ofício Português, 200 anos após extinção: história e historiografia | Politeia: História e Sociedade | 2021

SOBRE A TRAJETÓRIA DO SANTO OFÍCIO PORTUGUÊS

Por meio da bula Cum ad nihil magis, assinada em 23 de maio de 1536, o papa Paulo III atendeu à solicitação do rei de Portugal, Dom João III, que realizava investidas no sentido de conseguir a autorização para implantação do Santo Ofício português. 1 Tentativas ocorriam desde o reinado de Dom Manuel I, mais precisamente desde o ano de 1515, quando este monarca escreveu ao embaixador de Roma, Dom Miguel da Silva, pedindo que fosse enviada uma solicitação ao Papa Leão X, para que o pontífice criasse para Portugal um Tribunal da Inquisição, nos moldes de seu congênere espanhol. Diante das tensões entre os cristãos novos portugueses e espanhóis e, também, dos conflitos entre a população cristã e os conversos, Dom Manuel pretendia “tutelar a autonomia jurisdicional dos seus territórios, recusando as invasivas pretensões dos inquisidores castelhanos” (MARCOCCI, 2011, p. 23). Durante duas décadas, muitas foram as iniciativas, tanto da coroa portuguesa quanto de setores eclesiásticos no sentido de alcançar esse objetivo.2

Embora a bula papal tenha sido assinada em maio de 1536, apenas cinco meses depois, mais precisamente em 22 de outubro, ocorreu a cerimonia de publicação, na Catedral de Évora, cidade de habitação, na época, da corte portuguesa, na presença do inquisidor-geral, do rei, do cardeal, do cabido e todo o restante do clero e da população da cidade e arredores. A leitura da bula tornava públicos, aos ouvintes, o ato de criação da instituição, esclarecimentos sobre o caráter da Inquisição, bem como sobre os delitos de sua alçada. Conforme Marcocci e Paiva (2013), o Santo Ofício português começou a funcionar no dia 22 de novembro de 1536, na pousada do Inquisidor-geral, Dom Diogo da Silva, espaço no qual foram ouvidas “testemunhas contra a cortesã cristã-nova Madalena de Oliveira. Em janeiro do ano seguinte, desencadearam-se os primeiros processos” (MARCOCCI; PAIVA, 2013, p. 35).

Ainda no ritual do estabelecimento, foi feita a leitura do Édito da Graça, que estabeleceu o prazo de 30 dias para que as pessoas que tivessem cometido crimes de heresia pudessem se apresentar diante do Santo Ofício, demostrando arrependimento. Ao término do tempo da Graça, “em 19 de novembro o inquisidor-geral publicou um monitório com descrição pormenorizada dos crimes sob jurisdição inquisitorial que deveriam ser denunciados ao tribunal” (BETHENCOURT, 2000, p. 25).

Desde o início, a alegação utilizada para o estabelecimento da Inquisição portuguesa era o crescimento das heresias junto aos cristãos novos portugueses. Embora a alçada da Inquisição diga respeito a uma variedade de crimes contra a fé (judaísmo, maometismo, protestantismo, molinismo, deísmo, críticas aos dogmas etc), e estivessem contemplados, também, entre os delitos previstos, práticas que atentassem contra a moral cristã e os bons costumes (bigamia, sodomia, feitiçaria, solicitação etc), o objetivo principal da Inquisição portuguesa era, mesmo, perseguir e punir práticas de judaísmo em meio aos neófitos do cristianismo. Até a primeira década do seiscentos, o Santo Ofício português também se preocupou com desviantes identificados com os erasmianos, com luteranos e calvinistas e com o avanço das ideias reformadas, como esclarece Elisete da Silva (2020, p. 38). A tentativa de controle por meio de leituras proibidas está em destaque nesse período, como nos séculos seguintes.

O crescimento do judaísmo em Portugal esteve associado à conversão forçada dos judeus, banidos da Espanha pelos reis católicos. Em dezembro de 1496, Dom Manuel publicou um decreto de expulsão, estabelecendo um prazo de dez meses para que judeus e mouros deixassem Portugal, como esclarecem Marcocci e Paiva (2013, p. 25):

4 de dezembro de 1496, em Muge, onde se encontrava a corte de D. Manuel I, fora anunciada a expulsão dos judeus e muçulmanos residentes em Portugal, sem que a sua coexistência com a maioria cristã tivesse provocado, no século XV, tensões semelhantes às ocorridas em Castela e Aragão. Ali, em 1492, os Reis católicos, Fernando e Isabel os judeus (mas não os muçulmanos).

A medida adotada por D. Manoel, atendia ao disposto no contrato de casamento entre o rei português e Isabel de Aragão, filha dos reis espanhóis. Contudo, ao término do prazo previsto, em fins de outubro do ano seguinte, os judeus que ainda estavam em Portugal foram proibidos de sair do país:

Em fins de outubro de 1497 expirou o prazo para que os judeus deixassem Portugal. Milhares deles, que se dirigiram para o porto, receberam o comunicado de que, uma vez que já havia se findado o prazo, eles seriam considerados, a partir de então, escravos do rei. A ordem foi revogada logo em seguida, mas o rei ordenou que todos fossem batizados à força. Esse episódio justifica, em parte, o grau elevado de criptojudeus em Portugal e seus domínios (SOUZA, 2008, p. 90).

O presente texto, de caráter introdutório, panorâmico e de apresentação não tem por objetivo trazer minúcias da história de quase trezentos anos de existência do Santo Ofício português, não só pela longevidade da instituição, mas também pela extensão geográfica de sua atuação: a Inquisição lusa foi atuante não apenas em Portugal, mas em todo o território ultramarino do reino, nos continentes americano, africano e asiático. Durante o período de existência do Santo Ofício português, existiram três tribunais, com sedes em Lisboa (1536-1821), Évora (1536-1821) e Coimbra (1541-1821). 3 O primeiro tinha por jurisdição, além de regiões do reino, também o Brasil, ilhas do Atlântico e posições portuguesas na costa ocidental da África. O único tribunal fora de Portugal foi o de Goa, na Índia, instituído em 1560, que tinha também sob sua jurisdição a costa oriental africana.

Restrições impostas pelo papa, na primeira década de existência da Inquisição portuguesa, não agradavam D. João III, pois feria a sua autonomia. Como destaca Antônio José Saraiva (1994), dos quatro inquisidores, três eram nomeados diretamente pelo papa e ao monarca era autorizado escolher apenas um. Outros indicativos de cerceamento de autonomia da monarquia portuguesa pelo papado são elencados pelo autor:

Além disso, determinava que durante três anos os nomes das testemunhas de acusação não fossem secretos, e que durante dez anos os bens dos condenados não fossem confiscados. Os bispos teriam os mesmos poderes que os inquisidores no conhecimento das heresias. Por intermédio do seu núncio em Lisboa, o Papa reservava-se o direito de fiscalizar o cumprimento da bula, de conhecer os processos quando o entendesse e de decidir em última instância (SARAIVA, 1994, p. 50).

O controle do sumo-pontífice sobre a Inquisição portuguesa, sobretudo no que se refere à condução dos processos contra cristãos novos, foi superado apenas com a bula Meditatio Cordis, publicada em julho de 1547, que dotou o Santo Ofício português “das faculdades ambicionadas, sobretudo maior autonomia face a Roma e possibilidade de realizar processos secretos anulando ainda os poderes da bula de 1536 que tinha dado a vários bispos inquisidores, agora todos exclusivamente concentrados em D. Henrique” (MARCOCCI; PAIVA, 2013, p. 38). 4

Na década de 1540, marcada por conflitos, várias bulas e breves foram publicados e revogados: “Chegou-se mesmo a levantar a possibilidade de um rompimento […] com Roma. A última cartada de Paulo III foi a promulgação de um breve datado de 8 de janeiro de 1549, em que abolia o segredo das testemunhas, porém nunca entrou em vigor em terras lusitanas” (SOUZA, 2014, p. 56).5

O tribunal do Santo ofício português foi, ao mesmo tempo, régio e eclesiástico e, desde o momento de seu nascimento, foi de fundamental importância para a política de centralização do poder monárquico. Mas, apesar de ter conseguido consolidar a tão sonhada autonomia, a Inquisição portuguesa e as suas ações contra os cristãos novos permaneceram, até princípio do século XVII, sob o controle de Roma. Exemplo disso é Perdão Geral de 1605, concedido pelo papa Clemente VIII, o quarto perdão emitido por esse mesmo papa, segundo Elias Lipiner (1977). Por meio desse breve, foram beneficiados 70 homens e 85 mulheres que se encontravam presos nos cárceres do Santo Ofício.6 Dentre as mulheres que alcançaram a liberdade por força desse ato, estavam três moradoras da Bahia todas da família Antunes, sendo duas filhas – Beatriz e Leonor – e uma neta – Ana Alcoforada – do casal Ana Rodrigues e Heitor Antunes. 7

Ainda referente ao Perdão de 1605, em um livro de correspondência da Inquisição de Lisboa encontramos anotações de uma carta enviada para a Bahia, datada de 16 de março de 1605, informando que foi remetido um maço com documentação destinada ao bispo do Brasil, Dom Constantino Barradas, com uma missiva do “Senhor Inquisidor Geral” – na época, D. Pedro de Castilho – e da Mesa inquisitorial avisando “que as pessoas que estivessem lá presas por ordem do Santo Ofício, as mandasse soltar” e tornar seus bens, pagando somente o que tinham custado com suas pessoas. 8

No reinado de Dom João IV, tiveram lugar vários conflitos entre a coroa e poder inquisitorial, relacionados à guerra com a Espanha, ao reconhecimento da restauração da monarquia portuguesa e, ainda, por conta das ações frente aos cristãos novos envolvendo o padre Antônio Vieira. Esclarece Novinsky (1978, p. 13):

Durante o reinado de D. João IV, quando atrás do monarca soprava a voz do padre Antonio Vieira, a Inquisição se viu seriamente ameaçada e privada de seus lucros. Os desentendimentos entre Coroa e Inquisição alcançaram então seus extremos. Apesar da indignação dos Inquisidores com a formação da Companhia de Comércio para o Brasil (1649) e o Alvará que isentou do confisco os mercadores cristãos novos acionistas da Companhia, D. João IV teve a coragem de desafiar a Inquisição e mandou retirar desta a autoridade administrativa do Fisco, ordenando que passasse para o Conselho da Fazenda, alegando ainda que não era conveniente que os Inquisidores se “distraíssem” com negócios alheios a sua função principal, visto haver pessoas que atrevidamente punham em dúvida o escrúpulo usado no manejo dos seqüestros (1655).

No bojo da relação entre monarquia portuguesa e o tribunal do Santo Ofício, foi revelado, em 1641, um complô articulado pelo então inquisidor geral, D. Francisco de Castro, com o intuito de assassinar o rei. Para Saraiva, essa conspiração tinha por objetivo reestabelecer a união ibérica. O episódio insere-se na luta por poderes entre o rei e papa, do qual o Inquisidor geral era o representante:

O Inquisidor-Geral tinha a qualidade e os poderes de delegado do Papa, podendo inclusive lançar excomunhões reservadas à Santa Sé. Era, no entanto, designado pelo Rei, limitando-se o Papa a confirmar essa designação. Uma vez nomeado e confirmado, o Rei não tinha mais qualquer poder ou controlo sobre este seu súbdito que assumia dentro do Reino os poderes e a autoridade do mesmo Papa em matéria de Fé. Embora nomeasse o Inquisidor-Geral, o Rei não podia destituí-lo, fossem quais fossem as circunstâncias (SARAIVA, 1994, p. 159).

Outro episódio decisivo relativo às ações inquisitoriais diz respeito à suspensão dos processos da Inquisição portuguesa, em 1674, por meio do breve Cum dilecti, do Papa Clemente X. O poder só foi restituído ao Santo Ofício português em 1681, já no pontificado de Inocência XI. Segundo Marcocci e Paiva (2013, p. 204), depois “do perdão geral de 1604-1605, a suspensão dos processos e cessação dos autos de fé foi a maior derrota da inquisição”.

Para uma melhor compreensão sobre os afazeres inquisitoriais, sobretudo no que se refere às atividades repressivas, trazemos um quadro geral baseado na análise de documentos e em informações presentes na historiografia referente aos tribunais de Lisboa, Coimbra, Évora e Goa. No período que se estende de 1536 a 1605, desde a instalação do tribunal em Portugal até a concessão do Perdão Geral, foram processados mais de 10 mil indivíduos, sendo que aproximadamente 7,4% foram condenados à morte. 9 De 1606 a 1674, período que começa no ano seguinte à concessão do Perdão Geral e termina com a suspensão da Inquisição pelo papa, foram sentenciados pelo Santo Ofício português mais que o dobro do período anterior: 22.481 pessoas, das quais 863 foram relaxadas. 10 Após o retorno das atividades inquisitoriais, em 1681, até 1750 – início do reinado de D. José I e da ascensão do Marquês de Pombal à condição de secretário de Estado – foram computadas 10.551 pessoas processadas, com 3,7% condenadas à morte. Embora, nesse último período o número de processados tenha ficado próximo ao da primeira etapa de funcionamento da Inquisição, o percentual de relaxação foi bem menor, cerca da metade. A partir da década de sessenta dos setecentos, ocorreu uma queda acentuada no número de condenados pela Inquisição. Tomando como base os dados fornecidos por Bethencourt (2000), entre os anos de 1751 a 1767, o Santo Oficio português sentenciou pouco mais de 1590 pessoas, das quais foram relaxadas 3,6 %.

A média anual de processos correspondente aos quatro tribunais, em cada um desses quatro períodos, foi consolidada por Bethencourt (200, p. 312): “37 entre 1536 e 1605, 81 entre 1606 e 1674, 35 entre 1675 e 1750, e 23 entre 1751 e 1767”. Comparando esses números com os de sentenciados das inquisições Espanhola e Italiana, o autor conclui que “as médias anuais dos processos portugueses são sempre superiores, em todos os períodos, à medias espanholas e italianas, embora se deva atentar às enormes lacunas de fontes verificadas nesses últimos casos” (BETHENCOURT, 2000, p. 321).

A maior parte dos delitos apontados nos processos do Santo Ofício português dizia respeito às práticas judaizantes, contudo cada localidade do império deve ser examinada em suas particularidades, como pode ser observado nos artigos que compõem o dossiê que ora apresentamos.

A partir da década de setenta do século XVIII, as atividades repressivas do Santo Ofício português reduziram significativamente e várias são as razões. Em 25 de maio de 1773, foi publicado um decreto régio pondo fim à distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos. No ano seguinte, entrou em vigor o último regimento da Inquisição, que incorporou os anseios de reforma administrativa do Estado português e das suas relações com a Igreja. 11

O novo regimento trouxe elementos que julgamos importante destacar aqui. Ele contribuiu para a redução das atividades inquisitoriais e, consequentemente, para o arrefecimento do medo em relação ao que se entendia como marca do horrendum tribunale: o uso de tortura. Outras modificações importantes foram: o fim do segredo processual e a modificação no tratamento de alguns crimes, a exemplo das “chamadas práticas mágicas, feitiçarias, superstição, adivinhadores, proporcionadores ‘racionais’ de malefícios e astrologia judiciária de feitiçaria” (SOUZA, 2014, p. 242).

A prática de tortura era já tratada, naquele momento, como “estranha dos pios e misericordiosos sentimento da Igreja Mãe”, e era condenada por alguns por levar a falsas confissões. Porém, ela continuou a ser admitida “nos casos de heresiarcas ou dogmatista negativos e que ocultavam os nomes das pessoas que com eles prevaricaram, mantendo o que estava prescrito no Regimento anterior quanto ao modo de sua aplicação” (MARCOCCI; PAIVA, 2013, p. 354-355). 12

Em relação ao fim do segredo processual, é importante ressaltar que, desde o início das atividades inquisitoriais, o segredo, juntamente com o confisco de bens que impedia o acesso à herança por parte dos filhos menores dos condenados, foi alvo de severas críticas e pesados argumentos daqueles que se opuseram às práticas da instituição. Segundo Bethencourt (2000, p. 340), o segredo do processo “é o que distingue mais claramente o processo inquisitorial das práticas processuais da época: os acusados não podiam conhecer os nomes de seus denunciantes ou testemunhas de acusação, nem sequer as circunstâncias de tempo e lugar dos crimes imputados”. O indivíduo, quando era preso, não sabia o motivo da denúncia, quais pessoas o denunciaram e nem mesmo o delito que havia cometido. A falta completa de informações levava o réu ao desespero e, instado a dizer o que os inquisidores queriam ouvir, em muitos momentos entregavam amigos e familiares. Uma parte considerável das denúncias por práticas de judaísmo tiveram origem dentro dos cárceres do Santo Ofício. Analisando o processo de Alexandre Henriques – bem como a história de vida de sua mãe e irmãos –, enviado preso de Salvador para Lisboa em 1734, verificamos que as denúncias contra sua família foram todas feitas de dentro dos Estaus. 13 Ele próprio, quando tinha 16 anos de idade, em 1706, procurou a Mesa Inquisitorial, juntamente com sua irmã, Maria Nunes, para confessar que judaizavam e que havia sido iniciado na religião judaica por sua mãe, Clara Rodrigues, e por sua madrinha, Leonor Rodrigues, ambas sentenciadas pelo Tribunal. 14 Além dele e da mãe, foram presos, também, duas irmãs e um tia.

O último regimento do Santo Ofício português, que entrou em vigência em 14 de agosto de 1774, era, também, resultado do reformismo ilustrado pombalino e pretendia “dar uma roupagem diferenciada à Instituição, torná-la instrumento em defesa do Estado, coerente com o momento histórico e tipo de governo que Portugal vivenciava, embora a manutenção de tal Instituição no ‘século das luzes’ não deixava de ser contraditória” (SOUZA, 2014, p. 242). 15 No novo regimento, a crença em práticas de feitiçaria passou a ser atribuída à ignorância, ao fanatismo, estimulada por textos e autores que estimulavam o obscurantismo, dentre os quais o Malleus Maleficarum, manual escrito pelos dominicanos Heinrich Kraemer e James Sprenger, no século XV; uma obra atribuída ao Fr. Jeronimo Savanarola; além de escritos de padre Antônio Vieira e do frei Thomas Campanela. O regimento de 1774 traz um arrazoado sobre a impossibilidade do pacto demoníaco, por não ser verossímil e não condizente com a razão:

Porquanto pela dedução e combinação de tudo o referido, se concluiu teológica, jurídica e geometricamente, que os feitiços, sortilégios, adivinhações, encantamentos e malefícios, depois da redenção do mundo foram manifestamente imposturas maquinadas: ou por pessoas poderosas que para santificarem, ou fazerem formidáveis as suas cobiçosas tiranias, e lisonjearem as suas depravadas paixões se serviram dos magos ou mágicos, e dos sacerdotes gentis, como de instrumentos próprios para estabelecerem, sobre a ignorância e fanatismo dos povos, a cega sujeição as suas cureis atrocidades.16

A incredulidade na existência das práticas mágicas conduz à admissão de que os réus que insistissem na veracidade dos efeitos dessas ações deveriam ser tratados com insanos, alienados:

Só pode ser miseráveis efeitos de uma crassa ignorância, e de uma furiosa loucura, agitadas por um daqueles ardentes fanatismos, que intemperado as cabeças dos homens, ou deixam cegos à luz da verdade, e indisposto para ouvirem as vozes da razão: Ordenamos: que os réus que se acharem nos referidos casos, sejam definitivamente julgados por loucos, sem necessidade de outra prova ou exame: Que sejam como tais remetidos ao Hospital Real de todos os santos; Que nele fiquem reclusos nos Cárceres dos doidos enquanto o Conselho Geral não mandar o Contrário. 17

O estudo da legislação inquisitorial é de grande valia para compreender a dinâmica legal de funcionamento da instituição.18 Os regimentos da Inquisição portuguesa, em particular, são também fundamentais ao estudo do Santo Ofício em sua trajetória de quase três séculos de existência, período de grandes mudanças nas mentalidades. São fartos os registros sobre processos inquisitoriais, processos de habilitação, instruções a ministros e outros, o que nos leva a identificar como essa legislação foi colocada em prática. Também, por meio dessa mesma documentação, percebemos as diversas maneiras como as suas determinações eram burladas, seja pela população em geral ou pelos próprios agentes habilitados. Enfim, o conjunto documental que compõe o fundo do Santo Ofício, incluindo os regimentos, nos revela muito da trajetória dessa instituição, desde o princípio até a sua extinção.

UMA REDE DE AGENTES INQUISITORIAIS

Fora dos tribunais de distrito, as ações inquisitoriais estiveram ao encargo de uma rede de agentes, constituída principalmente por Comissários e Familiares. Essa rede começou a se formar nos últimos anos do século XVI e a sua presença se intensificou a partir do XVII. Em algumas localidades do império só veio a se consolidar no final dos seiscentos e princípio dos setecentos. Sendo assim, no primeiro meio século de funcionamento do Santo Ofício português, suas ações fora do reino ocorreram por meio de agentes delegados e, de maneira mais efetiva, quando da realização das visitações autorizadas pelo Conselho Geral (CG). Órgão máximo da hierarquia inquisitorial, o Conselho Geral era presidido pelo Inquisidor-mor e composto por deputados. Foi instituído em meados de 1569 pelo Cardeal Dom Henrique e pelo Regimento elaborado em 1570. A criação do CG objetivava manter um controle maior dos tribunais de Lisboa, Évora e Coimbra sobre o funcionamento do corpo de agentes. 19 Com a finalidade de fiscalizar e controlar o mundo luso, dentro e fora de Portugal, o Conselho organizou as diversas visitações do final do século XVI, intenção já registrada em 1588, quando foi externado o interesse na realização de visitas nas ilhas da Madeira, Açores, Brasil, Cabo Verde e São Tomé. Foi como parte desse projeto que ocorreu a primeira visitação da inquisição às terras da América portuguesa, no ano de 1591, com a chegada do primeiro visitador Heitor Furtado de Mendonça. 20 Sobre o momento do desembarque do Heitor Furtado de Mendonça em Salvador, expõe Luiz Mott (2010, p. 19):

Salvador, 50 anos depois de fundada, possuía por volta de 800 vizinhos brancos e três vezes mais negros e índios, quando no ano do Senhor de 1591 desembarca em seu porto inesperado visitante: o Licenciado Heitor Furtado de Mendonça, Deputado do Santo Ofício da Inquisição. A notícia de tão temível visita deve ter-se alastrado a trote de cavalo pelos mais de 40 engenhos espalhados pelo Recôncavo, deixando a população em palpos de aranha.

No mesmo ano de 1591, parte para as ilhas dos Açores e da Madeira o visitador Jerônimo Teixeira; em 1596, foi a vez do padre Jorge Pereira visitar Angola. No Brasil, ocorreram mais três visitas: a segunda, restrita à Bahia (Salvador e Recôncavo), ocorreu entre 1618 e 1620; outra, nas capitanias do sul, aconteceu entre 1627 e 1628. Já no século XVIII, entre 1763 e 1769, foi realizada a visitação do Grão-Pará. 21

Contudo a presença mais efetiva da Inquisição nas terras de ultramar se deu, mesmo, por meio da formação de uma rede de agentes. A historiografia portuguesa e brasileira sobre Inquisição é rica em detalhes sobre a ação desses agentes, tanto a partir de uma perspectiva mais geral, no que refere ao processo de estabelecimento, estrutura e procedimentos da rede, quanto em uma perspectiva mais específica, em escala de regiões, cidades ou pequenas localidades. 22 No universo mais restrito, os agentes locais fizeram a ponte, foram os “pontas de lança” dos tribunais aos quais estavam subordinados.

ACESSO À DOCUMENTAÇÃO INQUISITORIAL E NOVAS PESQUISAS

A documentação resultante das ações inquisitoriais é de grande valia para os estudos da história colonial, sobretudo com relação às primeiras décadas de colonização efetiva, cujas fontes são mais escassas. Essa documentação nos permite analisar não apenas as questões de ordem religiosa, mas também as relacionadas ao poder e à dominação econômica, à sociabilidade e à vida cotidiana. Com base nessas fontes, já no início da década de setenta do século XX, temos os primeiros trabalhos publicados, com destaque para a produção de Sonia Siqueira e Eduardo d’Oliveira França. Foram eles, conforme Ângelo Adriano, que lançaram as bases da historiografia brasileira sobre a Inquisição.

Siqueira e França foram os responsáveis pela publicação – precedida de um vasto e importante texto introdutório acerca do papel e presença dos cristãos-novos nos domínios portugueses e além, em especial o luso trópico, durante a Modernidade – das confissões referentes à segunda visitação do Santo Ofício ao Brasil, iniciada em 1618 e que duraria cerca de dois anos, com raio de ação sobre a cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos e o seu Recôncavo, sob a responsabilidade do visitador Marcos Teixeira (ASSIS, 2015, p. 12). 23

Nas décadas seguintes as pesquisas de Anita Novinsky, Luiz Mott, Laura de Melo e Souza e Ronaldo Vainfas produziram excelentes obras “impulsionadas pela riqueza das fontes e pelas correntes historiográficas ligada à história cultural e à história das ideias” (FEITLER, 2007, p. 11), influenciando toda uma geração posterior, não só na perspectiva de funcionamento da máquina inquisitorial, mas principalmente nos estudos dos crimes da alçada do Santo Ofício: judaísmo, feitiçaria, sodomia, solicitação, bigamia, “protestantismo”, dentre outros. Pelas características da vasta produção historiográfica e para não cometermos injustiças é impossível elencarmos todas as valiosas contribuições dos investigadores brasileiros para os estudos inquisitoriais.

A atual geração de investigadores tem se beneficiado das novas tecnologias que, por meio do Projeto Inquisição on-line do Arquivo Nacional da Torre do Tombo que, em 2007, deu início ao processo de digitalização e posterior disponibilização da documentação produzida pelo tribunal lisboeta, segundo Calainho (2019, p. 182), “o maior dos tribunais regionais, e que tinha, sob sua jurisdição, no ultramar, o Brasil, as ilhas dos Açores e Madeira, Angola e regiões do Oriente, e portanto o mais procurado pelos pesquisadores dado o volume de territórios que abarcava”.

Da Inquisição de Lisboa (IL) se encontram disponíveis em meio digital mais de 19 mil documentos, sendo 90% de processos inquisitoriais. A partir de 2011, a digitalização foi ampliada para o subfundo do Conselho Geral do Santo Ofício, com as diligências de habilitandos a diversos cargos do Tribunal do Santo Ofício (Comissário, Qualificador, Notário, Visitador de nau e, predominantemente, Familiar). Esta série documental, compostas por mais de 30 mil processos, inclui também as habilitações incompletas, que calculamos um pouco mais de 5 mil documentos.

A documentação online do Tribunal do Santo Ofício português hoje permite ampliar as pesquisas, mediante a democratização do acesso as fontes inquisitoriais, e a dinamização da produção historiográfica, visto que os investigadores têm a possibilidade de principiar suas investigações ainda no início da vida acadêmica, em trabalhos de iniciação cientifica, trabalhos de conclusão de cursos e pós-graduação. Hoje já temos uma geração de pesquisadores que começam, dessa maneira, a labutar no site do Arquivo Nacional da Torre do tombo online.

SOBRE O DOSSIÊ “TRIBUNAL DO SANTO OFÍCIO PORTUGUÊS, 200 ANOS APÓS EXTINÇÃO: HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA”

O dossiê “Tribunal do Santo Ofício português, 200 anos após extinção: História e Historiografia” foi projetado com o objetivo de contribuir com os estudos inquisitoriais, sobretudo nesse momento em que investigadores de diversas partes do mundo têm discutido a história do tribunal e colaborado para enriquecer, ainda mais, a historiografia relativa à instituição. Os artigos aqui apresentados – dispostos na ordem cronológicas e da temática mais ampla para os estudos de caso – mostram a presença da inquisição portuguesa nos continentes americano, africano e asiático.

Começamos, então, pelo texto de Eduardo Borges de Carvalho Nogueira, “Homens profanos: fluidez identitária entre renegados ‘portugueses’ na Índia”. O autor trabalha com estudo da trajetória de três homens, naturais do reino, que foram condenados por apostasia. O primeiro estudo diz respeito a Antônio Camacho, natural de Lisboa, mestre-escola de profissão, que foi para Goa no início da segunda metade do século XVI. O crime cometido foi o de bigamia, pois, já casado em Lisboa, o homem contraiu segundo matrimônio com uma mestiça nas terras luso-indianas. Os outros dois indivíduos estudados por Borges são Jorge Cardoso de Mendonça e Gonçalo Toscano, ambos também apostatas aos olhos da Igreja. O primeiro “tornou-se mouro, inclusive sofrendo a circuncisão”, vestindo-se à mourisco, realizando cerimonias islâmicas e, mesmo depois de ter se apresentado ao tribunal em 1590, abjurado em auto-de-fé na Sé de Goa e absolvido pelo Santo Ofício, novamente se tornou um mouro. Gonçalo Toscano não conseguiu sucesso nem mesmo nos seus intentos de apóstata, pois não conseguiu ser visto como pessoa de confiança entre os islâmicos, tendo sido preso como suspeito de ser cristão. Destacamos algumas semelhanças entre os casos estudados: primeiro, o fato de os três homens terem indicado como motivo para a apostasia a necessidade de sobreviver no mundo islâmico, já que, como católicos, estavam fadados a morrer de fome; em segundo lugar, o fato de que os três homens tiveram seus nomes “alterados aquando de sua passagem ao Islã”, além de andarem com indumentária “à mourisca”. Tanto Mendonça como Toscano serviram à força islâmica. Enfim, o texto traz elementos importantes não só para pensar questões relativas à ortodoxia como é rico em informações acerca das tensões entre cristãos e muçulmanos na índia e, também, no mediterrâneo.

“Sodomia faeminarum: a Inquisição e a alforria do lesbianismo no mundo” é o segundo artigo, mais uma importante colaboração de Luiz Mott para os estudos inquisitoriais, contribuição que foi iniciada nos primeiros anos da década de oitenta do século XX, com a publicações de artigos e livros resultantes das consultas da documentação do Santo Ofício português. O texto aqui publicado, que tem como objetivo central levantar questões sobre a perseguição e penalização à homossexualidade feminina, parte da análise de um documento escrito pelo Tribunal de Goa, em 1646 e dos debates, entre os inquisidores, sobre o caráter da sodomia feminina. Como suporte para a discussão do tema, o autor visita uma vasta produção de textos dos séculos XVI e XVII, nomeadamente a literatura galega e os cancioneiros populares, com destaque para um poema de Gregório de Matos intitulado “Nise: A uma dama que macheava outras mulheres’’. Rica também é a incursão que Mott faz pela legislação que entra em vigência no império português até meados dos seiscentos, tanto as Ordenações do Reino (Afonsinas, Manuelinas e Filipinas) como os regimentos inquisitoriais (até o penúltimo, que entrou em vigor em 1640), destacando a importância de cada um desses documentos para a qualificação dos inquisidores no que se refere às relações sexuais entre mulheres. O autor conclui que relações entre as “filhas de Eva” não pertenciam à condição de “sodomia perfeita”, estando, portanto, excluídas do delito da pena capital, ou seja, da morte na fogueira. Além do aporte jurídico, o autor – que também é organizador do dossiê – relaciona um conjunto de obras de teólogos que alimentam a discussão sobre o “homoerotismo lésbico”.

Ainda sobre o século XVII, apresentamos o texto “Mulheres africanas nas redes dos agentes da Inquisição de Lisboa: o caso de Crispina Peres, em Cacheu”, de Vanicléia Silva Santos. Por meio de processos inquisitoriais e relatos de viajantes, autora aborda a trajetória de vida e o papel de uma mulher comerciante em Cacheu, cidade considerada a mais portuguesa da Guiné, com intensas relações comerciais com África, Europa e Brasil. Crispina Peres e seu marido possuíam “estalagem de estrangeiros”, casas de aluguel, navio mercante e “muitos homens e mulheres feitos cativos para serem exportados”. Além disso, ela era uma pessoa muito influente na região. Essa influência ficou bem demostrada quando as pessoas da nação Papel ameaçaram invadir Cacheu na noite de sua prisão. Conforme Vanicleia Santos, o processo contra Crispina foi um subterfugio, com objetivo de eliminá-la como concorrente comercial, tendo em vista que foram 21 pessoas denunciadas, mas apenas ela foi presa, enviada para Lisboa e condenada pelos crimes de feitiçaria, uso de ritos de gentilidade e de bolsas de mandingas. A história dessa mulher é um elemento importante para a compreensão das relações comerciais estabelecidas no período de expansão do tráfico transatlântico de escravizados, bem como para os estudos de gênero, raça e religião.

O quarto artigo que compõe o dossiê, “A família cristã-nova Bernal Nunes de Miranda: entre fronteiras, religiosidades e a Inquisição na Bahia” foi escrito por Ademir Schetini Júnior e trata da perseguição da Inquisição portuguesa a uma família cristã-nova que chega na Bahia na passagem do século XVII para o XVIII. Por meio dos processos dos Bernal Nunes de Miranda, o autor levanta questões relacionadas ao criptojudaísmo na Bahia, mesmo tendo passado mais de dois séculos desde a conversão forçada, bem como sobre o discurso da Inquisição contra as práticas judaizantes. A abordagem acerca do estatuto de pureza de sangue, que vigorou nas sociedades ibéricas como pré-requisito para o acesso as instituições do Antigo Regime, também tem lugar de destaque no artigo, assim como os estudos do médico Francisco Bernal, em Salamanca, e a sua aproximação com Sebastião Monteiro da Vide, Arcebispo do Brasil de 1702 a 1722. Enfim, mediante o cotejamento de informações coletadas em fontes inquisitoriais, o autor demonstra como o ensinamento das cerimonias judaicas eram passadas, discute o papel da mulher na orientação religiosa e na organização cerimonial e ritualística, além de apresentar informações sobre as experiências dos acusados no interior do cárcere, onde eram submetidos a tormentos. O texto é rico em discussões e informações sobre relações familiares e fenômeno migratório, atividades econômicas, sociabilidade e poder na América portuguesa.

Voltada para o universo mineiro setecentista, por meio da documentação inquisitorial, a autora do artigo seguinte, Leticia Maia Dias, apresenta a história de um português que chegou ao Brasil em 1719 e, alguns anos depois, ocupou o cargo de escrivão da Casa de Moeda de Vila Rica. O texto, intitulado “Um bígamo nas Minas Gerais: a trajetória de Antônio José Cogominho”, conta a trajetória desse reinol processado por crime de bigamia no final da primeira metade do século XVIII, uma vez que, já sendo casado no reino, casou-se novamente na capitania de Minas Gerais. Ao analisar o processo de Cogominho, a autora coloca em evidência características importantes da colônia e de sua relação com as instituições do Império Ultramarino. Além disso, a autora trabalha muito bem com a legislação referente ao crime de bigamia, transitando pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, pelas Ordenações do Reino e pelos Regimentos da Inquisição Portuguesa. A autora conclui que o delito de bigamia deve ser visto por dentro “da própria estrutura dos casamentos coloniais, uma vez que o ato de casar de novo evidenciava brechas inerentes aos processos matrimoniais que podem ter sido estrategicamente usadas pelos bígamos”.

O artigo intitulado “Contestação e memória do Tribunal do Santo Ofício: uma perspectiva protestante”, escrito por Elizete da Silva, é muito oportuno para a conclusão da seção de artigos do dossiê. Ao analisar fontes escritas contra as práticas inquisitoriais do século XVIII, a autora traz à discussão, na perspectiva das ideias iluministas, a noção de liberdade de consciência e põe em evidência a trajetória do escritor Francisco Xavier de Oliveyra – de alcunha Cavaleiro de Oliveira –, feito réu e sentenciado em 1761 pelo Tribunal de Lisboa. Com esse estudo, a autora dá uma excelente contribuição para o estudo do protestantismo europeu, desde a sua origem, com o surgimento do luteranismo, perpassa a discussão sobre a extinção do Santo Ofício português e conclui com o nascimento de igrejas protestantes no Brasil, na segunda metade dos oitocentos. Para falar do protestantismo europeu e do discurso referente ao terror e à tirania da Inquisição, Elizete chama a atenção sobre a estratégia discursiva de disputa entre protestantismo e catolicismo, afirmando que a intolerância ocorreu dos dois lados.

O dossiê se encerra com a entrevista, realizada pela equipe do Laboratório de Estudos, Documentação Inquisitorial e Sociedade de Antigo Regime (LEDISAR), com sede na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, com a historiadora Patrícia Souza de Faria. Na entrevista, são abordados temas relativos às possiblidades e potencializados de desenvolvimento de pesquisas e projetos de ensino com base na documentação inquisitorial. Com ampla experiência na identificação e exploração de fontes relativas à presença da Inquisição no Oriente português, Patrícia Faria expõe sua trajetória acadêmica e fornece orientações para aqueles que queiram se aventurar nos estudos inquisitoriais.

A título de conclusão, submeto à reflexão dos leitores da Politeia dois documentos produzidos no apagar das luzes da Inquisição portuguesa, os quais são importantes para pensar a atuação desta instituição no mundo liberal. O primeiro é o processo de Hipólito José da Costa – redator do jornal Correio Braziliense, impresso entre 1808 e 1822 em Londres. O personagem foi preso nos cárceres da inquisição de Lisboa, em janeiro de 1803, por acusação de ser pedreiro-livre (maçom), mas fugiu em 1805. 24 Conforme consta em seu processo, o crime tornou-se mais grave pelo fato de o indivíduo ter “graus superiores na Ordem Maçónica” e ter sido enviado como plenipotenciário pelo supremo Conselho Maçônico de Portugal ao Grande Oriente de Londres. Após a fuga dos Estaus, Hipólito foi para a Inglaterra, onde viveu até a sua morte, ocorrida em 1823. O segundo documento trata de uma anotação no último livro de Correspondências Expedida do tribunal de Lisboa. Os registros começaram a ser feitos em 7 de janeiro de 1802, enumerados e rubricados pelo inquisidor Manuel Estanislau Fragoso. A última anotação foi feita em 28 de fevereiro de 1821, portanto, a um mês da extinção do Santo Ofício Português.25 O teor de uma carta enviada para Évora fornece informação sobre a soltura do réu Francisco de Almeida Nogueira, no dia 28 daquele mesmo mês. O primeiro individuo era o que se poderia chamar à época de “famoso”; o segundo nem tanto. Os processos aos quais eles foram submetidos revelam muito sobre os últimos lampejos do Santo Ofício.

Notas

1 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Bulas, Maço 9, número 15, Bula Cum ad nihil magis do papa Paulo III dirigida aos bispos de Coimbra, Lamego e Ceuta pela qual os constitui seus comissários e inquisidores no reino de Portugal como também outra pessoa eclesiástica que o rei d. João III nomeasse para procederem contra os cristãos novos e mais pessoas que incorressem em crimes de heresia, com as penas declaradas. Para acesso online ao documento: https://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=3908041

2 A historiografia portuguesa é rica em autores que se debruçaram sobre a trajetória de ações de setores do clero e da coroa portuguesa no sentido do estabelecimento do Santo Ofício português, bem como da resistência papal a essas iniciativas. O tema está presente em publicações do século XIX e princípio do século XX, de autoria de Antônio Joaquim Moreira, Alexandre Herculano e António Baião; nos estudos de Francisco Bethencourt (2000) sobre a História das inquisições em Portugal, Espanha e Itália; e na História da Inquisição Portuguesa (1536-18210, de Giuseppe Marcocci e José Pedro Paiva (2013). Sobre a trajetória da historiografia do Santo Ofício português, cf. Souza (2014, p. 25-35).

3 Foram também estabelecidos mais três tribunais, porém todos eles tiveram vida curta: o do Porto, criado em 1536 e extinto em 1545; o de Lamego (1541-1546) e o de Tomar (1541-1544).

4 Em 1539, D. Diogo da Silva renunciou à carga de inquisidor geral e em seu lugar foi nomeado o Cardeal Dom Henrique – irmão do rei D. João II, arcebispo de Braga e eleito cardeal de 1545, que tomou posse em 3 de julho de 1539. D. Henrique sucedeu a D. Sebastião e foi coroado como Rei Henrique I, permanecendo no trono até a sua morte, ocorrida em janeiro de 1580. Esse ano marca o início do período de União das Coroas Ibérica, sob o comando do rei Felipe II da Espanha e I de Portugal.

5 “[Os] conflitos, internos e externos, relacionados ao Tribunal continuam por longo tempo, e somente na segunda metade do século XVIII, no período pombalino, a Inquisição Portuguesa parece ter sido completamente dominada pelo Estado” (SOUZA, 2014, p. 56).

6 Coleccão de Listas impressas e manuscritas dos Autos de Fé públicos e particulares da Inquisição de Lisboa, Évora, Coimbra e Goa. Corrigida e anotada por Joaquim Antonio Moreira, 1863. 4 v. (613 f.; 428 f.; 365 f.; 308 f.). Disponível em: https://purl.pt/15393

7 A história dessa família é conhecida pelos registros da primeira visitação do Santo Ofício em terras brasileiras, ocorrida entre 1591 a 1595, tendo como visitador foi Heitor Furtado de Mendonça. Muitos membros da família foram denunciados e quatro mulheres foram enviadas presas para Lisboa, sendo que a matriarca, já octogenária, não resistiu aos suplicio e morreu nos cárceres dos Estaus, em Lisboa. Além dos filhos, sete netos também foram à mesa inquisitorial para testemunhar: Ana Alcanforada, Valentim de Faria, Felipa de Faria, Custódia de Faria, Isabel Antunes, Lucas de Escobar e Beatriz Teles. O historiador Angelo Adriano de Farias Assis, em seu livro Macabéias da Colônia (2012) apresenta, com riqueza de detalhes, a trajetória dessa família nas malhas da Inquisição.

8 Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Tribunal do Santo Ofício (TSO), Inquisição de Lisboa (IL0, Livro 18, fl. 254.

9 Segundo Bethencourt (2000), nesse período 755 indivíduos foram relaxados à justiça secular.

10 Dados fornecidos por Francisco Bethencourt (2000). O autor informa que, no momento da realização da pesquisa, não foi possível computar o número de relaxados da Inquisição de Goa referentes ao período de 1606 a 1684.

11 O regimento anterior esteve em vigência por 134 anos, desde 1640. Foi elaborado no final do período da união das coroas ibéricas. Antes dele, a Inquisição portuguesa teve dois outros: o de 1552 e o de 1603.

12 A referência feita acima pode ser observado no Livro II (Da ordem do judicial do Santo Ofício), e Capítulo XIV, pelo qual ficou determinado de “como há de proceder com os réus, que houveram de ser postos a tormento, e na execução dele. Marcocci e Paiva (2013, p. 255) acrescentam outras mudanças importantes, como a “suspensão da inabilitação dos condenados e dos seus descendentes; condenação da impossibilidade de recursos para o Tribunal Superior da Coroa, agora admitido”.

13 O palácio dos Estaus (ou Estaos) foi a sede do Conselho Geral do Santo Ofício e da Inquisição de Lisboa até a extinção do Santo Ofício. Localizado na praça do Rossio (atual praça Dom Pedro IV), foi construído em meados do século XV para servir como albergue para pessoas da corte portuguesa sem residência e estrangeiros representes de outros reinos.

14 ANTT, TSO, IL, Processo 3432.

15 Sobre o contexto político no qual se insere a publicação do Regimento de 1774, cf. Falcon (1992).

16 REGIMENTO do Santo Ofício da Inquisição do Reino de Portugal, 1774, Livro III, Título XI.

17 REGIMENTO do Santo Ofício da Inquisição do Reino de Portugal, 1774, Livro III, Título XI, Capítulo II.

18 Para mais informações, cf. Siqueira (1996) e Mott (1990).

19 O controle do Conselho Geral em relação ao corpo de funcionários é perceptível quando analisamos a troca de correspondência entre esse órgão e os tribunais de distrito. Essas correspondências fazem parte de dois conjuntos documentais identificados como correspondências expedidas (1575-1819) e correspondências recebidas (1562-1770), além de documentos avulsos que fazem parte dos acervos dos tribunais.

20 Já na primeira década do século XX, Capistrano de Abreu (1922) dedicou-se a organizar uma importante publicação sobre a primeira visitação. Sobre o tema cf, também, Vainfas (1997).

21 Muitos são os estudos sobre as visitações do Santo Ofício em terras brasileiras. Deixamos aqui algumas leituras indispensáveis para um melhor conhecimento do tema: Pereira (2011); França e Siqueira (1963), além de Lapa (1978).

22 Cf. Mott (2010); Wadsworth (2007); Calainho (2006); Feittler (2007); Souza (2014); Vaquinhas (2010); Rodrigues (2011).

23 Sobre a historiografia referente ao Santo Ofício português, cf., também, Souza (2014, p. 25-35) e Assis (2015).

24 ANTT, TSO, IL, Processo 17981.

25 IANTT, IL, Livro 69.

Referências

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WADSWORTH, J. E. Agents of Orthodoxy: Honor, Status, and the Inquisition in Colonial Pernambuco, Brazil. Lanham, MD: Rowman & Littlefield. 2007.


Organizadores

Grayce Mayre Bonfim Souza – Professora de História Moderna da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb) Doutora em História pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Pós-doutora pela Universidade de Évora. Coordenadora do Laboratório de Estudos, Documentação Inquisitorial e Sociedade de Antigo Regime (LEDISAR).

Luiz Mott – Professor Titular aposentado da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Doutorado em Antropologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pós-doutorado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Portugal. E-mail: luizmott@yahoo.com.br


Referências desta apresentação

SOUZA, Grayce Mayre Bonfim; MOTT, Luiz. Apresentação. Notas sobre A Inquisição portuguesa: história e historiografia. Politeia: História e Sociedade. Vitória da Conquista, v. 20, n. 1, p. 8-22, jan.-jun. 2021. Acessar publicação original [DR]

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Ensino e Pesquisa em História Antiga e História Medieval no Brasil | Politeia: História e Sociedade | 2020

Um mergulho na história antiga e na história medieval

A História Antiga e a História Medieval vieram para ficar. No Brasil, esses campos expandiram-se significativamente nas últimas três décadas, marcando presença em revistas especializadas, dossiês, livros autorais, coletâneas de artigos e em eventos acadêmicos de toda sorte. A História Antiga, legatária ou não das perspectivas marxistas, weberianas ou da Escola de Cambridge, conquistou espaços na universidade brasileiras e, como apontaram Margarida Maria de Carvalho e Pedro Paulo A. Funari, “os investigadores antiquistas escolherão seus métodos, técnicas e teorias de abordagem, associando tais interpretações à análise iconográfica e à cultura material” (CARVALHO; FUNARI, 2007, p. 15). A História Medieval, vinculou-se às três gerações da Escola dos Annales, estruturalistas ou não, assumindo escolhas semelhantes à História Antiga, e constituiu-se igualmente como uma espécie de manancial inesgotável de temas, métodos e abordagens teóricas, cuja capacidade é testar as identidades e alteridades com o passado, que ultrapassam a crença nas perspectivas temporais continuístas e baseadas em noções problemáticas tais como origem, sobrevivência, reminiscências ou herança (BASTOS, RUST, 2008, p. 187-188; SILVA, 2004, p. 87-107). Leia Mais

História do Trabalho / Politeia: História e Sociedade / 2018

Em um contexto nacional marcado pelas iniciativas de desconstrução da legislação que regula as relações do trabalho no Brasil, a Revista Politeia traz, por meio do dossiê História do Trabalho, uma importante contribuição ao tema que volta a ocupar a centralidade nos debates acadêmicos e repercute na vida social, O fenômeno da globalização econômica, sob o vetor político do neoliberalismo, impõe a desregulamentação das relações de trabalho. As iniciativas de mudança tomam corpo, sob o pretexto de que, no Brasil, o valor-trabalho tornou-se pesado para as empresas que aqui estão e para aquelas que desejarem instalar-se, o que torna o país pouco competitivo no cenário econômico mundial. Neste cenário, os estudos que compõem o dossiê problematizam questões fundamentais para o entendimento sócio-histórico da categoria trabalho, transitando por um longo período, desde a proposição da legislação trabalhista em vigor, nos anos de 1930, até o processo de reestruturação produtiva do mercado de trabalho e consumo, nos dias atuais. Os artigos abrangem a participação dos trabalhadores na política institucional e na Justiça do Trabalho, a análise do sindicalismo contemporâneo e a situação de precariedade em que se encontra a classe trabalhadora frente à acumulação flexível do capital na contemporaneidade.

No artigo Na Arena Política: Trabalhadores, Partidos Políticos e Eleições em Alagoinhas-Bahia (1948- 1964) Moisés Leal Morais analisa a participação de trabalhadores do município de Alagoinhas nos pleitos eleitorais no período compreendido pelo conceito de Segunda República, entre o fim do Estado Novo (1945) e o início da Ditadura Civil-Militar (1964). O autor argumenta que, com o processo de redemocratização, a política eleitoral configurou-se como um campo profícuo de atuação dos trabalhadores. Ainda que os não alfabetizados estivessem alijados da participação nas esferas de poder, alguns setores das classes trabalhadoras conseguiram fazer-se representar nas várias instâncias e apresentar demandas de melhorias na infra-estrutura dos bairros operários, de aumento da oferta dos serviços públicos e de cumprimento e manutenção de direitos trabalhista. A pesquisa identificou, entre os trabalhadores atuantes na Câmara de Vereadores da cidade de Alagoinhas, a presença de ferroviários, operários em curtumes e comerciários. Por outro lado, a pesquisa revela a ausência completa de membros da classe trabalhadora em esferas diretivas ou em cargos eletivos de maior importância como os de prefeito, deputado estadual ou federal. Atento à dinâmica da participação partidária, o estudo de Morais destaca a ausência de representantes do Partido Comunista do Brasil (cujo registro foi cassado em 1947), a existência de disputas internas nos partidos de base trabalhista e a migração de trabalhadores para a União Democrática Nacional (UDN), partido conservador claramente associado aos interesses das classes dominantes. O autor demonstra como a eleição presidencial de 1955 reverberou na cidade de Alagoinhas, acirrando as tensões entre dois blocos políticos: de um lado, a Frente Popular Democrática – bancada de oposição que reunia os edis do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e do Partido Social Democrático (PSD) – contava com seis dos doze vereadores eleitos; de outro, a UDN, partido da situação, que estava no controle da prefeitura do município. Com o Golpe Civil-Militar de 1964, e a conseqüente suspensão das garantias democráticas (vigentes, ainda que de forma limitada, desde 1946), os vereadores ligados às classes trabalhadoras, que haviam defendido as Reformas de Base, foram tomados como “agitadores” e “subversivos” e tornam-se alvo de perseguição e da repressão política.

Na sequência, o artigo de Antero Maximiliano Dias dos Reis, Marcos Alberto Rambo e Conrado de Oliveira e Silva, intitulado Fontes processuais historiográficas da Justiça do Trabalho: importância e vulnerabilidade, traz à reflexão a potencialidade da documentação da Justiça do Trabalho para a pesquisa histórica. Para os autores, a preservação e as investigações que se valem dos acervos dos tribunais trabalhistas são cruciais para a afirmação da memória dos trabalhadores e para a reverberação de vozes que, de outra forma, estariam condenadas ao silêncio. O artigo culmina com a reflexão sobre as políticas neoliberais que, nos dias atuais, no Brasil, objetivam fragilizar ou até mesmo extinguir a legislação trabalhista em vigor, assim como a Justiça do Trabalho como instância de mediação entre trabalhadores e patrões.

Tendo o sudoeste baiano como campo de investigação, particularmente as cidades que estavam sob a jurisdição da Junta de Conciliação e Julgamento de Vitória da Conquista, o artigo de José Pacheco dos Santos Júnior, Uma História Econômica e da Justiça do Trabalho em Vitória da Conquista (BA), 1963-1972, apresenta uma análise do cenário que impulsionou a necessidade de criação e organização de uma primeira instância da Justiça do Trabalho na cidade de Vitória da Conquista no emergir da década de 1960. Para o autor, a localização espacial, a área de abrangência urbana e a intensidade econômica foram fundamentais para que o referido município sediasse um seção local do Tribunal do Trabalho. O autor destaca o esforço do Poder Executivo local para inserir a região, marcada pelo crescimento econômico e urbano e pela ampliação do mercado de mão de obra, na alçada do Judiciário Trabalhista.

O artigo que encerra o dossiê, O Trabalho Terceirizado: a estratégia do capital que fomenta a cisão entre os trabalhadores, de autoria de Ana Patrícia Dias, analisa o processo de terceirização no segmento bancário da economia brasileira. A autora infere que essa transformação está na base de uma profunda reconfiguração do setor, forjando novos cenários de trabalho nos quais conflitos e tensões entre os trabalhadores são desencadeados. No ambiente de trabalho, as hierarquias entre trabalhadores de diferentes condições aprofundam e a precarização de determinadas ocupações, entendidas como subemprego, e acentuam o processo de superexploração da força de trabalho. A autora chama a atenção para as diferenças objetivas que demarcam as condições de trabalho e salariais de trabalhadores que realizam atividades correspondentes aos trabalhadores bancários efetivos. As desigualdades em relação a estes ocasionam conflitos intraclasse em ambientes laborais tensos e conflituosos, marcados por situações de desconfiança e discriminação.

Dias observa, ainda, como o redimensionamento econômico do “capitalismo flexível” isenta as empresas corporativas de determinadas obrigações trabalhistas, já que a responsabilidade dos encargos é repassada às empresas de locação de mão de obra. Além disso, a reestruturação produtiva, inerente às novas formas de circulação do capital, transfere parte do trabalho para o cliente, que se torna “prossumidor”, no sentido de que, ao mesmo tempo, produz e consome o serviço mediante o uso dos terminais de caixas eletrônicos e do internet banking. Por outro lado, na “trama da terceirização”, os bancos afastam das agências os pequenos correntistas ao repassar às franquias os serviços menos lucrativos, como o recebimento de tributos e pequenas contas, bem como a captação de pequenas poupanças. O artigo analisa o caso da Caixa Econômica Federal, que, a partir do ano de 2000, deslocou parte dos serviços bancários para as casas lotéricas e, posteriormente, também para supermercados, lojas de departamentos, farmácias etc.

Boa Leitura!

Antero Maximiliano Dias dos Reis – Professor da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) Doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP) E-mail: anteromaximilianoreis@gmail.com

José Pacheco dos Santos Júnior – Doutorando em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP) E-mail: josepsjunior@usp.br


REIS, Antero Maximiliano Dias dos; SANTOS JÚNIOR, José Pacheco dos. Apresentação. Politeia: História e Sociedade. Vitória da Conquista, v. 18, n. 1, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Oralidade, Escrita e Poder no Império Romano / Politeia: História e Sociedade / 2016

O que espero, não é um discurso em forma, quer dizer,

defensivo e fechado em si mesmo, um discurso que procure

antes de mais esconjurar a crítica, mas uma apresentação

simples e modesta do trabalho realizado, das dificuldades

encontradas, dos problemas etc.

Bourdieu

Bourdieu, em 1987, na contramão da ordem estabelecida para a produção científica, afirmou que a apresentação dos resultados de uma pesquisa não deveria ser um show, mas um encontro de estudiosos dispostos ao diálogo. O temor e a ansiedade, neste sentido, tomam parte desse encontro. O que não significa elevar muros para evitar a crítica, pelo contrário, é preciso sair do conforto do pensamento conformado para produzir o novo. O dossiê, “Oralidade, escrita e poder no Império Romano”, balizado por esta perspectiva, apresenta algumas reflexões a fim de contribuir com o debate sobre o tema.

Sob a influência da Nova História Cultural, há uma produção historiográfica que privilegia a cultura escrita como objeto de estudo, em especial, os processos de recepção, apropriação e ressignificação. Entre os marxistas, principalmente os gramscianos, predominam as análises sobre a escrita e os modos de comunicação como instrumentos de controle social ou de hegemonia das classes dominantes. Dessas correntes surgiram variadas formulações teóricas para pensar a relação entre linguagem e poder, tal como se expressa nas abordagens aqui apresentadas.

O dossiê começa com o artigo de Ana Teresa Marques Gonçalves e Thiago Eustáquio Araújo Mota, “De Enéias indiges a Augusto divinizado: as temporalidades narrativas do épico e as predições do Fatum na Eneida de Virgílio”. A autora e o autor elaboram uma análise acurada da fonte, a partir de bibliografia especializada, para discutir como a produção escrita, durante o Principado, cumpriu importante papel na construção da legitimidade divina e ancestral dos governantes oriundos da Domus Iulia.

O artigo coloca em evidência o repertório de textos escritos que repercutiram, no Principado, a imagem do “divino ancestral Eneias” e sua vinculação com a casa de Otávio Augusto. Além de destacar autores e poetas como Tito Lívio, Dionísio de Halicarnasso e Ovídio, oferece uma boa reflexão sobre o registro da lenda troiana no Fórum de Augusto, na Ara Pacis e no Edifício de Eumachia.

Para analisar a Eneida, a autora e o autor discutem o sentido da divinização / consecratio no sistema religioso e político romano, bem como as temporalidades da narrativa, o fatum e o enlace entre o mito troiano e a história de Roma. Fica demonstrado que a consecratio beneficiava o Imperador vivo e buscava legitimidade na memória do morto; que a apoteose era culturalmente aceita entre cristãos e pagãos; que a divinização de Eneias, como ancestral de Otávio Augusto, contribuiu para a legitimação de um novo tipo de poder em Roma, o poder exercido pelo Princeps, além de servir como parâmetro para o culto aos “imperadores póstumos”. Tanto o epíteto indiges quanto o sentido da palavra herói, utilizados para caracterizar Enéias na obra de Virgílio, também ocupam espaço no artigo. A tradição clássica é retomada para explicar por que o Poeta empregou tais termos e preferiu indiges ao pius.

Enfim, é interessante notar como os mitos, preservadas por meio da oralidade, deram origem a textos escritos, elaborados dentro do rigor estético dos variados gêneros. O destino de Eneias e sua vinculação com a gens Iulia foi “objeto de grande investimento durante o principado,” e, sem dúvida, revela o uso da escrita e da oralidade em prol de um discurso político legitimador da domus Iulia.

No segundo artigo, “Josefo revisitado: interpretações historiográficas da obra de Flávio Josefo”, Alex Degan se propõe a realizar uma tarefa hercúlea e o faz com rigor, discutindo as interpretações contemporâneas da obra do historiador e as diversas leituras que dessas resultaram. O artigo está organizado de forma articulada em duas partes: os debates em torno de Flávio Josefo, enquanto historiador e fonte, e seu lugar dentro da tradição literária greco-romana e judaica.

Na primeira parte, Degan trata de evidenciar como as controvérsias religiosas e políticas contemporâneas influenciaram os estudos sobre Josefo. Das interpretações é possível verificar três linhas de análise: uma que considera a fonte importante, mas problemática em função das implicações políticas e ideológicas do historiador com a elite de Jerusalém e com os Flávios; outra que o desqualifica como fonte e historiador; uma mais atual, desenvolvida na virada do século XX, refletida na publicação dos trabalhos de Henry St. John Thackeray. Esta busca superar os juízos morais sobre Flávio Josefo e analisar as circunstâncias dos seus escritos.

Degan também chama a atenção para a composição da obra de Josefo e do seu contexto na região da Palestina, além de destacar os compromissos políticos do autor. Já na segunda parte do artigo, algumas questões são problematizadas, como as contribuições das obras de Josefo para a produção literária da segunda metade do século I d. C., seu diálogo com a tradição literária grecoromana e judaica e o público que pretendeu alcançar.

O nome híbrido, Flavius Josephus, é lembrado como expressão da natureza da sua obra, que “equilibra, mistura e reconcilia tradições.” Há ainda o cuidado em pontuar as singularidades dos escritos, sem perder de vista sua inserção numa tradição que inclui Fílon de Alexandria, a versão dos LXX, Políbio e Tucídides. Neste sentido, Degan afirma que Josefo preservou elementos gregos e judaicos, mas produziu uma obra original, pois inovou com a ação da providência divina e a noção de povo eleito em suas histórias. Fica posto que os escritos de Josefo foram marcados pelas relações que ele estabeleceu com o poder, tanto quanto as interpretações de sua obra foram influenciadas pelos conflitos ideológicos contemporâneos.

O terceiro artigo, “As relações entre escrita e oralidade na obra de Apuleio de Madaura”, de Sônia Regina Rebel de Araújo, desloca o debate da Palestina para a Província da África, revelando um Império Romano dilatado e culturalmente diverso. A autora analisa duas obras de Apuleio – Apologia e O Asno de Ouro – para demonstrar a importância da erudição oriunda dos livros e a articulação entre o oral e o escrito na África pertencente ao Império, no século II d.C. Seus estudos estão estruturados a partir do arcabouço teórico da literatura comparada e História.

Apuleio é apresentado como um homem erudito, nascido na cidade de Madaura, província da África, que estudou retórica em Cartago, escreveu diversas obras e respondeu um processo criminal em 159 d.C. Ele foi acusado de praticar magia para seduzir uma viúva rica e de envenenar seu filho. Este fato é narrado em Apologia, obra que reproduz o discurso de autodefesa de Apuleio, pronunciado no tribunal de Sabratha diante o procônsul da África, Cláudio Máximo.

Ao analisar a Apologia, Araújo evidencia que Apuleio usou duas estratégias para se defender, articulando o oral e o escrito. Primeiro, buscou distanciar-se dos seus detratores, qualificando-os como bárbaro, apresentando-se como um filósofo culto e lendo cartas e livros em voz alta no tribunal. Segundo, recorreu ao seu repertório de erudição para demonstrar que era da mesma estirpe intelectual do magistrado romano que o julgava, Claudio Máximo.

Já no estudo sobre o Asno de Ouro, Araújo restringe sua análise ao livro XI do romance e discute “a função da narrativa sobre o culto de Ísis e a longa iniciação de Lúcio [personagem central] neste culto e a seguir no de Osíris.” Ao fazê-lo, privilegia temas como cidadania e escravidão, religio e superstitio, cultos estrangeiros e magia. A autora reflete sobre a importância da erudição em Apuleio e como o romance denota uma posição ideológica sobre a condição do escravo, a magia e os cultos oficiais no Império Romano.

O artigo que encerra o dossiê, “A escrita, a oralidade e a construção do poder eclesiástico no Orbis Romanorum”, coloca em discussão a habilidade do episcopado em apropriar-se, de forma sui generis, da tradição literária pagã e criar formas de comunicação oral para construir a hegemonia da Igreja cristã na Antiguidade tardia. O corpus da pesquisa é constituído por um conjunto de discursos produzidos por bispos influentes de distintas regiões do Império e é analisado a partir do referencial teórico de Pierre Bourdieu.

A análise da documentação rompe com cânones há muito estabelecidos, pois torna evidente que a unidade da Igreja cristã primitiva é um mito elaborado no âmbito da religião, que a definição de uma ortodoxia produziu campos de disputa e que um Império dividido entre cristãos e pagãos é mais uma projeção das contendas modernas do que uma realidade dos séculos IV e V d.C. Contudo, a elite intelectual da Igreja, formada por seus bispos mais eruditos, recorreu a estratégias variadas para formular e divulgar a doutrina, fixar uma identidade para o “fiel” e criar um sistema de interpretação do mundo legítimo e dominante.

O artigo, organizado em três partes, aborda a tradicional educação romana, a ação do episcopado e o uso que este grupo fez da erudição pagã em benefício da “nova fé”. Fica posto que as formas literárias tradicionais foram adaptadas para acomodar o conteúdo cristão e que os bispos criaram recursos para apresentar os interesses particulares da Igreja como universais e comuns aos diversos grupos sociais no Império Romano, convertendo complexas formulações doutrinárias escritas em expressões orais acessíveis, como os hinos e homilias.

O artigo ainda destaca o trabalho de alguns bispos na afirmação do poder eclesiástico e na formulação de uma imagem singular do cristão, por meio de sermões, epistolas oficiais e textos exegéticos. A crônica de Eusébio de Cesareia, o episódio envolvendo Ambrósio de Milão e Teodósio, além da publicação da lei escolar – promulgada por Juliano e censurada por Gregório Nazianzeno – são excelentes expressões do quanto o episcopado soube utilizar a cultura letrada em prol da Igreja universal.

Por fim, os artigos aqui apresentados são resultado de pesquisas desenvolvidas até o ano de 2013 e, sem dúvida, desde então muito se produziu. Contudo, optamos por manter o dossiê tal como escrito à época por considerar que os textos disponibilizados são parte dos primeiros estudos realizados no Brasil sobre escrita e oralidade no Império Romano.

Marcia Santos Lemos–  Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb) Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) E-mail: marcialemos.uesb@gmail.com


LEMOS, Marcia Santos. Apresentação. Politeia: História e Sociedade. Vitória da Conquista, v.16, n. 1, 2016. Acessar publicação original [DR]

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Filologia e História | Politeia: História e Sociedade | 2015

Este número de Politeia reúne um conjunto de estudos filológicos, cujo denominador comum é não apenas problematizar a relação entre prática letrada e realidade social, mas sobretudo privilegiar a materialidade da comunicação, examinando os códigos retóricos e bibliográficos, na perspectiva da história do livro e das edições.

Em seu belo ensaio, Gumbrecht discute a penetração do paradigma filológico germânico em França, ao historiar a formação acadêmica de Gaston Paris, na Alemanha, demonstrando que é com este filólogo francês que principia o que se pode chamar de filologia metódica no campo românico. É sabido que a edição crítica do Vie de Saint Alexis, publicada pela primeira vez em 1872, inaugura a crítica de textos no campo românico baseada em princípios críticos lachmannianos. Hans Ulrich Gumbrecht discute a oposição que houve entre a filologia parisiana e aquela outra, anterior a ela, praticada pelo filólogo Paulin Paris, pai de Gaston, e a quem ele sucedeu no Collège de France. Leia Mais

História e Literatura / Politeia: História e Sociedade / 2013

Para os historiadores, e não apenas para os historiadores da literatura, pelo menos desde meados do século XX, a obra literária foi alçada, assim como a obra de arte, os falares, os gestos e outros fenômenos e objetos culturais, à condição de fonte para a construção do conhecimento histórico. É certo que a presença da literatura na escrita historiográfica antecede ao grande movimento de renovação da História iniciado por essa época. Não há de se estranhar a presença da literatura em textos de orientação marxista e mesmo em clássicos do positivismo. Mas, da observação dos trabalhos publicados ao longo das últimas cinco décadas, depreende-se não apenas o crescimento em importância do uso da literatura como fonte histórica mas, também, mudanças significativas no tratamento dessas fontes e na definição das matérias que, por meio delas, se anunciam como objetos de investigação.

A literatura fez-se fonte privilegiada de um amplo campo de saber em favor do qual militam – e compartilham fontes e métodos de abordagem – historiadores, filólogos e outros pesquisadores do campo das letras, em um esforço conjugado, voltado para a descrição das obras literárias, para a enunciação de seus caracteres linguísticos e valores estéticos, para a identificação de fórmulas literárias que se mantêm no tempo, para o enfrentamento das questões pertinentes ao fenômeno da autoria e das representações sociais.

Do ponto de vista metodológico, a utilização da literatura como fonte demanda o discernimento sobre os conceitos e métodos de abordagem ofertados pela filologia, pela antropologia, pela sociologia, às vezes pela psicologia, pela história da arte, da literatura, da filosofia, da música e de outros campos da história, a partir dos quais a história social e cultural desenvolve os seus próprios instrumentos de análise. Por outro lado, aos pesquisadores impõe-se situar frente aos inúmeros conceitos de uso corrente, como ideologia, mentalidades, representações, imaginário etc.

O conhecimento histórico acumulado sobre épocas e lugares precisos, ou abarcando grandes regiões e períodos, tem se revelado indispensável aos estudiosos da literatura, mesmo àqueles que buscam desvelar caracteres próprios a autores, obras e movimentos literários. E, mais recentemente, tem se revelado imprescindível para aqueles que se debruçam sobre a tarefa de desvendar os modos individuais e coletivos de recepção das obras literárias.

Ao historiador, especificamente, a pesquisa deve conduzir à construção – e transposição para a escrita historiográfica– de discursos sobre realidades históricas, nas quais as obras literárias e as tendências classificadas como movimentos literários têm origem e nas quais se difundem.

Dois problemas se apresentam, entretanto, para os historiadores da literatura: o primeiro refere-se à própria noção de realidade histórica que se busca elucidar; o segundo diz respeito à relação entre a literatura e essa suposta realidade histórica, à qual se pretendeu, durante muito tempo, atribuir uma concretude ou subordinar aos esforços de reflexão teórico-abstrata, mas que, hoje, se revela multifacetada, cambiante conforme os determinantes espaço-temporais e as leituras que dela fazem os agentes do fazer historiográfico.

É indiscutível que a literatura traz importantes informações sobre essa suposta realidade histórica, não como um espelho a refletir as estruturas e movimentos da sociedade, mas como um dos seus elementos constitutivos. Como representação social, a produção literária permite elucidar aspectos importantes da vida material, dos conflitos e formas de sociabilidade, das formas de pensamento, dos valores e padrões de conduta de uma determinada configuração histórico-geográfica.

Outros problemas são reportados por aqueles que têm se debruçado sobre a tarefa de escrita da história a partir das fontes literárias: as dificuldades de acesso às fontes; as barreiras à interlocução face às eventuais diferenças de língua e de linguagens; as alterações estéticas e ideológicas e, também, materiais, que afetam os documentos e que se refletem nos modos de recepção individuais e coletivos dos textos. Outrossim, é imprescindível reconhecer que sobre a produção literária pesam a origem, formação e linguagem individual do autor; as convenções estéticas do seu tempo, às quais ele está mais ou menos subordinado; também, os valores sociais e culturais próprios aos grupos que lhe patrocinam e aos que lhe servem de audiência. São inúmeras as possibilidades de abordagem que estão a exigir teorias e métodos distintos. Enfim, faz-se necessário refletir sobre a especificidade da literatura entre as diversas formas de expressão cultural, particularmente nas sociedades em que o acesso à leitura de textos escritos, predominantes nos estudos de história literária, está restrito a uma ínfima parcela da população.

É sobre esse complexo conjunto de problemas que se estrutura o presente dossiê temático, dedicado às relações entre literatura e história. Abre a sessão o artigo intitulado “Sacrifício e lealdade no campo de batalha”, de autoria do Prof. Elton Oliveira Souza de Medeiros, coordenador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares das Ilhas Britânicas: Antiguidade e Medievo. A partir do conceito de mito-história, o autor analisa as apropriações, no século XIX, do poema A Batalha de Maldon, que tem por tema a batalha, ocorrida em 991, entre anglo-saxões e vikings e que foi difundido, à época de sua elaboração, como instrumento de afirmação dos modelos heroicos e de organização da vida social anglo-saxônicos.

O artigo de Adriana Zierer, professora de História Medieval da Universidade Estadual do Maranhão, tem por título “Entre o Paraíso e o Inferno: os sonhos n’A Demanda do Santo Graal” e versa sobre as representações dos espaços do além-túmulo na versão portuguesa da Queste del Saint Graal, novela de inspiração bretã. Difundida em Portugal, no século XIII, com o título A Demanda do Santo Graal, a história individualiza os personagens em conformidade com seus vícios e virtudes e faz ver, por meio deles, dos relatos dos seus sonhos, as características dos espaços extraterrenos, em consonância com os ensinamentos da Igreja.

É também da literatura de cavalaria de expressão portuguesa que trata o artigo de Ana Márcia Alves Siqueira, professora da Universidade Federal do Ceará, “O simbolismo do cavaleiro andante entre Literatura e História”. Em uma perspectiva temporal mais ampla, que remonta ao século XIII e se estende ao século XX, a autora propõe analisar a imagem do cavaleiro andante, de viés salvacionista, como paradigma da identidade nacional portuguesa.

O artigo seguinte, de autoria de Roberto Silva de Oliveira, professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, tem por título “A vida e a obra de Dante Alighieri na perspectiva de Giovanni Boccaccio e Leonardo Bruni”. O texto tem por proposta fazer um estudo comparativo das abordagens de Boccaccio e Bruni sobre os fatos que marcaram a vida e a obra do poeta, de modo a destacar os interesses e condicionantes sociais e pessoais que, em contextos distintos, resultaram na elaboração do Trattatello in laude di Dante e do Della vita, studi i costumi di Dante.

De autoria do professor Geraldo Augusto Fernandes, da Universidade Federal do Ceará, é o texto “Uma leitura controversa de texto antigo no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende”. O artigo versa sobre os critérios de escolha e utilização de versões de uma mesma fonte e sobre as leituras possíveis que resultam dessas escolhas.

O dossiê se encerra com o texto “Escrita e infância nas estórias de Luandino Vieira: uma leitura de Luuanda”, de Zoraide Portela Silva, professora da Universidade do Estado da Bahia. O artigo trata do hibridismo linguístico e cultural de Luandino Vieira, especialmente nos seus escritos em que figuram como personagens centrais as crianças dos musseques angolanos. A autora propõe refletir sobre as relações entre o bilinguismo e as configurações específicas da dominação colonial portuguesa em Angola.

Rita de Cássia Mendes Pereira – Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb) Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) E-mail: ricamepe@hotmail.com


PEREIRA, Rita de Cássia Mendes. Apresentação. Politeia: História e Sociedade, Vitória da Conquista – BA, v. 13, n. 2, 2013. Acessar publicação original [DR]

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Sertões do Brasil / Politeia: História e Sociedade / 2013

Na formação do mundo Atlântico ibérico, os espaços de comércio longínquo transformaram-se em lugares de diálogos, encontros e resistências. As misturas processadas, entretanto, não eram fenômeno original e peculiar do mundo colonial português; ao contrário, a Metrópole há muito já vivenciava intenso movimento de trocas e de mesclas que têm sido sublinhadas há décadas pela historiografia.1 Diversos centros comerciais europeus, e mesmo seus interiores, abrigaram experiências e vivências múltiplas e seculares com objetos, pessoas, costumes e práticas originárias dos mais diferentes lugares. Goa, Macau, Gênova, Veneza, Sevilha, Lisboa, Antuérpia, Rio de Janeiro, Recife e Salvador podem ser exemplos deste processo de migração social e cultural em escala internacional. As crônicas coloniais daqueles europeus que pelo Brasil passaram são fontes imprescindíveis para um melhor conhecimento dos trânsitos mundializados de gentes, objetos e culturas.2 São também bastante ilustrativos os relatos de muitos aventureiros que pelo mundo circularam experimentando e vivendo experiências inusitadas.

O relato do mercador de Bruges, Eustache de la Fosse,3 que se envolveu com o tráfico na Costa da Mina entre o fim do ano de 1479 e início de 1480, mostra encontros com genoveses, romanos, espanhois, portugueses, ingleses e alemães em seu percurso de fuga pela África, registrando em sua viagem contatos com negros africanos que dialogavam não só em sua língua nativa. Em relato escrito pelo capitão crioulo André Álvares d’Almada, em 1594, verifica-se também o registro de negros na África que estiveram na França e na Inglaterra por várias vezes e que também dominavam a língua destas localidades. Natural de Cabo Verde, Almada escreveu acerca do modo de lidar com os africanos, informando aos portugueses sobre costumes e hábitos alimentares deles e sobre riquezas naturais da África (D’Almada, 1994, p. 33-35).

Em menor escala, mas também importante, foi a circulação de pessoas nas terras pertencentes ao governo português. No Brasil, o surto exploratório no rio das Velhas (Capitania de Minas Gerais) em fins do século XVII e as explorações seguintes na Capitania da Bahia, especialmente no rio Itapicuru, a partir de 1702, e no rio das Contas, a partir de 1719, intensificaram os movimentos de europeus, principalmente portugueses, paulistas e aventureiros de várias partes do mundo pelos sertões da Bahia e de Minas Gerais, momento em que foram abertas vias de acesso aos afluentes do rio São Francisco. Os sertanistas, de Gabriel Soares de Souza, no século XVI, a João da Silva Guimarães, no início do século XVIII, e a João Gonçalves da Costa, no fim do século XVIII e início do século XIX, percorreram os sertões da Bahia e de Minas Gerais orientados pelos caminhos das águas, verdadeiras artérias que conectavam o mundo Atlântico ao interior do continente.4 Em seus relatos e correspondências, podemos ver os registros dos diálogos culturais, nem sempre harmoniosos, por eles vivenciados no percurso de suas andanças pelos sertões do Brasil.

As descobertas empreendidas, por diversos europeus pelos interiores da América portuguesa, contribuíram para a abertura dos chamados “caminhos gerais para as Minas”, primeiramente para as regiões de Sabará, Ouro Preto e Piranga, e as cabeceiras dos rios das Velhas, das Mortes e Doce, rotas que atingiam até as “ramificações superiores do rio São Francisco e conhecido como Caminho Geral do Sertão” (Boxer, 2000, p. 64). O maior número de entradas em direção às Minas situava-se na Bahia e podem ser consideradas como sendo as demarcadoras dos caminhos para as Minas ou dos Caminhos do Ouro e das Estradas Reais (Costa, 2005, p. 43). Dois outros roteiros interligavam as Minas a outras áreas coloniais. O Caminho Velho conectava a cidade do Rio de Janeiro às Gerais, passando por Paraty e algumas vilas paulistas ao longo do vale do Paraíba; e o Caminho Novo ou Caminho do Garcia, cuja construção foi iniciada em 1698 por Garcia Rodrigues, ligava o Rio de Janeiro à região das Minas a partir da baía de Guanabara. Este caminho também era conhecido como Estrada Real do Rio de Janeiro para Vila Rica.

O intenso trânsito significava também o imenso descaminho do ouro. O controle sobre as passagens dos rios foi efetuado como forma de garantir os interesses mais imediatos da Coroa, que eram vigiar e policiar tanto os caminhos conhecidos como as picadas incógnitas que teciam as complexas redes de acesso às regiões mineradoras, seja em território da Bahia, de Goiás ou de Minas Gerais. As medidas implementadas objetivavam reiterar os direitos reais sobre o território, garantindo, assim, a cobrança de impostos e o combate à evasão fiscal.

A forma de administração fiscal era utilizada em Portugal desde o século XVI, baseada em métodos fiscais que estavam presentes em todas as nações contemporâneas, e tinha atrás de si uma tradição de séculos que vinha desde o Império romano (Prado Júnior, 1994, p. 321). O sistema de contratos das rendas e direitos reais foi uma das principais formas de arrecadação de receitas do Império ultramarino português e constituía acordos temporários entre o rei e os negociantes de grosso trato. O Conselho Ultramarino, representando a Coroa, definia aos contratadores direitos, deveres, prazos e quantias determinadas que deveriam ser cumpridas pelas partes envolvidas.

As rendas reais foram originadas do direito exclusivo que o monarca possuía de cobrar tributos sobre todos os bens materiais existentes no patrimônio régio. No Portugal medieval, o patrimônio do rei era constituído de pessoas, terras, animais e produtos, sobre os quais se cobrava prestações sob a forma de rendas. Abarcava, além das terras, as atividades dos senhores livres, os instrumentos de trabalho e os serviços pagos pelos trabalhadores aos seus senhores. O monarca tributava as terras que não eram suas e estas prestações transformaram-se, ao longo do tempo, em rendas fixas. Com base no direto divino, o rei impôs aos súditos taxas sobre as terras, a justiça e os homens (Mattoso, 1993).

As formas de administrar as possessões coloniais, a maneira de permitir o acesso aos lugares mais longínquos de suas colônias, foram iniciativas necessárias e adequadas ao espaço mundializado construído a partir da união das coroas católicas no século XVI. Assim como as demais colônias ibéricas, os interiores do Brasil foram abrigados por pessoas de várias partes do mundo que circularam em busca de aventuras e riquezas existentes nas terras do Novo Mundo. Assim, o espaço colonial tornou-se um lugar de encontros de diversas línguas, culturas, hábitos e costumes. Formas de fazer, de consertar, de administrar, de governar e de curar aqui vivenciadas foram oriundas de distintos lugares pertencentes ou não à metrópole portuguesa e passaram a dialogar, de forma diversificada com os naturais da terra, e aqueles que do outro lado do Atlântico foram trazidos. Ora se sobrepondo, outras vezes se modificando e, em alguns casos, resistindo, estes novos diálogos foram protagonizados por europeus, africanos e americanos.

O mais importante nesse laboratório de misturas é a modificação realizada no espaço histórico em convivência. Há muito tempo os historiadores vêm destacando as experiências culturais vivenciadas desde o início da colonização.5 A compreensão sobre os interiores do Brasil tem retomado e aprofundado a ideia de se rever as relações estabelecidas entre o interior das colônias e suas conexões com o mundo lusitano, seja em seus aspectos culturais, administrativos, religiosos ou mesmo econômicos. A presença de africanos na América e a convivência com os nativos do Brasil tem recebido um novo olhar historiográfico que tem desvendado um outro Brasil para além daquele considerado unicamente como resultante das culturas europeias, africanas e indígenas.

Nos sertões de Minas Gerais e da Bahia, por exemplo, a forte presença de asiáticos e europeus orientais marcou a forma de trabalho aplicada às atividades de abertura de caminhos e de extração de minerais.6 O processo de encontro cultural pode reiterar antigas práticas, modifica-las ou mesmo transformá-las completamente. O produto desse processo pode resultar em práticas culturais completamente novas e / ou mestiças. Estas premissas nos guiam a repensar os sertões brasileiros e concebê-los como inseridos neste caleidoscópio de misturas de povos originários das quatro partes do mundo que, de forma inédita, deram formas e cores ao Novo Mundo.

Os textos que compõem este dossiê, apesar de não vinculados diretamente às reflexões da organizadora, reiteram e exemplificam as questões brevemente aqui apresentadas. Francisco Eduardo Andrade analisa os trânsitos e as trajetórias de paulistas que se dirigiram às Minas do Ouro em meados do século XVIII e compara o “estilo de vida” dos novos mineradores com os do século anterior. A forma de administrar os índios, seu apresamento e as relações com os negros africanos sustentam a compreensão sobre as novas formas de trabalho dos sertanistas do ouro. A organização do catolicismo na Colônia e os problemas enfrentados pela Coroa para manter os preceitos cristãos nos sertões mineiros são o objeto de artigo de Renato Silva Dias e Jeaneth Xavier de Araújo. Concluem que as instituições católicas nas redes do cotidiano colonial enfrentavam e também produziam conflitos de diversas naturezas que impediam o bom governo da Igreja nos sertões das Minas. O estudo de dois momentos distintos na região mineradora da Serra do Espinhaço, em Minas Gerais, compõe o texto de Carla Cristina Oliveira Silva e Ivana Denise Parrela. As autoras discutem o modo de vida dos moradores da Serra em fins do século XVIII, início do garimpo de diamantes, e em fins do século XX, quando o lugar transformou-se no Parque Estadual de Grão Mogol, norte de Minas Gerais. A memória é tomada como referência nos dois momentos vivenciados pelo espaço histórico em análise.

O “sertão dos Goiazes”7 no Setecentos é objeto de estudo de Fernando Lobo Lemes e de Maria Lemke. A criação da Vila Boa de Goiás e o Senado da Câmara, mecanismos de interiorização dos interesses portugueses na região, são compreendidos por Lemes como promotores da modificação das relações de poder que envolviam a Coroa portuguesa e as elites locais. Lemke, para compreender a participação das Minas de Goiás no tráfico de escravos, desloca seu olhar para a África. A correspondência oficial é sua fonte histórica privilegiada para destacar o importante papel dos “caminhos do sertão” no comércio de cativos, assim como as constantes preocupações para com o combate ao contrabando.

Para a Bahia, o sertão do Rio São Francisco e o Sertão de Morro do Chapéu são os lugares das análises de Jackson Ferreira e de Nivaldo Oliveira Dutra. As relações de dependência entre senhores e seus dependentes, especialmente escravos, são explicadas por Jackson Ferreira para compreender os jogos de interesses que envolviam os potentados / senhores de Morro do Chapéu do século XIX. O artigo de Nivaldo Oliveira Dutra analisa a presença negra na região do Médio São Francisco a partir da trajetória dos negros do Mangal / Barro Vermelho, áreas tradicionalmente ocupadas por povos de matriz africana. Conclui o autor que os festejos tradicionais se mantêm em torno das atividades religiosas e são decorrentes das relações dos moradores com sua ancestralidade e do senso de pertencimento ao território.

Como de praxe, desejamos aos leitores de Politeia uma ótima leitura e, além disso, esperamos que sintam nas reflexões desta apresentação e nos textos que compõem o dossiê uma provocação. Sentimento que pode levar a uma nova percepção sobre os interiores do Brasil, especialmente sobre os sertões. Espaço muitas vezes concebido como isolado, inculto, pobre e, acima de tudo, imprevisível. Os textos aqui apresentados mostram justamente o contrário: um espaço conectado com o mundo atlântico português, pensado e ordenado conforme os desejos da Coroa e dos colonos (concepção distante do binômio Metrópole versus Colônia!) e, acima de tudo, enriquecido pelas atividades comerciais e mineradoras. Ainda seguindo o protocolo, agradeço aos colegas diretores da revista o convite para organizar o dossiê e aos amigos e colegas espalhados pelo Brasil que, só pela graça de Clio, tornaram possível a construção de relações fraternas e acadêmicas.

Notas

  1. Dentre vários autores podemos destacar: Freyre (1973); Holanda (1994; 1989).
  2. Para o século XVI, podemos começar com a Carta de Pero Vaz de Caminha e citar os relatos de José de Anchieta, Hans Staden, Robert Southey, Pero de Magalhães Gandavo, Fernão Cardim e outros europeus que no decorrer dos séculos coloniais seguintes descreveram os povos, as formas de viver e a natureza do Brasil.
  3. Cf. La Fosse (1992).
  4. João da Silva Guimarães, mulato e português, adentrou os sertões das Minas Gerais e da Bahia durante o século XVIII. Inspirado pelas lendas acerca da existência de prata na Bahia, efetuou grandes conquistas para a Coroa portuguesa. João Gonçalves da Costa, preto forro e também português, abriu caminhos de conexões entre os sertões de Minas Gerais e da Bahia. As entradas e conquistas destes homens foram comandadas por Pedro Leolino Mariz, Superintendente da Comarca do Serro do Frio durante quase todo o século XVIII. Ver Ivo (2012; 2004).
  5. Para citar alguns pioneiros: Freyre (1973); Holanda (1994); Lapa (2000; Machado (1980); Canabrava (1984).
  6. Cf. Ivo (2012); Reis (2007); Guimarães (2008).
  7. Conforme escrita coeva.

Referências

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CANABRAVA, A. O comércio português no rio da Prata (1580-1640). Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da USP, 1984.[1.ed. 1942]

COSTA, A. G. (Org.). Os caminhos do ouro e a Estrada Real. Belo Horizonte: Editora da UFMG; Lisboa: Kapa Editorial, 2005.

D’ALMADA, A. A. Tratado breve dos rios de Guiné do Cabo Verde. Feito pelo capitão André Álvares d’Almada. Ano de 1594. Leitura, introdução, modernização do texto e notas de A. L. Ferronha. Grupo de trabalho do ministério da Educação paras as comemorações dos descobrimentos portugueses, 1994.

FREYRE, G. Casa –grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 16. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973. [1.ed. 1933]

GUIMARÃES, A. R. Falsários e contrabandistas nas minas setecentistas: Inácio de Souza e sua rede internacional de negócios ilícitos. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2008.

HOLANDA, S. B. de. Caminhos e fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

______. Monções. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1989.

IVO, I. P. Homens de caminho: trânsitos, comércio e cores nos sertões da América portuguesa – século XVIII. Vitória da Conquista: Edições Uesb, 2012.

______. O anjo da morte contra o Santo Lenho: poder, vingança e cotidiano no sertão da Bahia. Vitória da Conquista: Edições Uesb, 2004.

LA FOSSE, E. de. Crônica de uma viagem à Costa de Mina no ano de 1480. Prólogo: J. M. de Carvalho. Lisboa: Veja Limitada, 1992. [Coleção Documenta Histórica]

LAPA, J. R. do A. A Bahia e a carreira da Índia. São Paulo: Hucitec; Campinas: Unicamp, 2000. [1.ed. 1966]

MACHADO, A. Vida e morte do bandeirante. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da USP, 1980.

MATTOSO, J. (Org.). História de Portugal. O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Estampa, 1993.

PRADO JÚNIOR, C. Formação do Brasil contemporâneo. 23. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

REIS, F. M. da M. Entre faisqueiras, catas e galerias. Explorações do ouro, leis e cotidiano nas Minas do século XVIII. (1702-1762). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2007.

Isnara Pereira Ivo – Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb) Doutora em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) E-mail: naraivo@gmail.com


IVO, Isnara Pereira. Apresentação. Politeia: História e Sociedade, Vitória da Conquista – BA, v. 13, n. 1, 2013. Acessar publicação original [DR]

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Poder e Política na América Portuguesa / Politeia: História e Sociedade / 2012

A publicação deste dossiê – dedicado aos estudos coloniais – evidencia um momento significativo da permanente renovação pela qual tem passado esse importante campo historiográfico, trilhado pela história nacional desde seu nascimento, no século XIX – ou mesmo antes, se considerarmos as crônicas, notícias e “histórias” existentes desde o século XVI. No momento de afirmação do Estado Nacional, recém-emancipado da metrópole lusitana, coube ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ao lado de intelectuais de enorme envergadura, como Francisco Adolfo de Varnhagen, a ereção do passado colonial como gênese da nação e nascedouro da identidade nacional em formação.

Esse, aliás, é o tema do artigo de Elton Salgado e Avanete Pereira, presente nesse dossiê, que discute o nascimento da historiografia colonial a partir da obra História Geral do Brazil, de Varnhagen, tomando-a como expressão de um projeto de afirmação de uma dada identidade nacional pautada na continuidade entre o passado colonial e o estado monárquico. Os autores baseiam sua análise em uma visão comparada entre esse paradigma historiográfico, estabelecido no século XIX, e a historiografia da década de 1930, marcada pela revisão crítica do período colonial, como se vê nas obras de Caio Prado Jr. e Sérgio Buarque de Holanda. Indo além, os autores inserem no debate a obra O Brasil na história, de autoria do intelectual sergipano Manoel Bonfim, raramente lembrado pelos estudiosos da historiografia colonial.

De forma exploratória, o artigo “Conflitos e problemas no cotidiano dos governadores da Bahia, 1750-1760”, reúne e analisa diversas fontes referentes às durezas enfrentadas pelas autoridades coloniais, dando-nos uma pequena amostra de uma pesquisa de maior fôlego sobre os governadores da Bahia na segunda metade do século XVIII. Lançando mão do acervo disponível por meio do Projeto Resgate de Documentação Histórica, o autor explora a correspondência trocada entre as autoridades locais – enviadas do reino para o exercício da governança na América – e a metrópole, na qual aparecem os conflitos enfrentados no cotidiano colonial, incluindo desvios de dinheiro, desobediência às determinações régias e desconforto causado pelo clima e pelas doenças que acometiam também os poderosos.

Questões políticas e administrativas também estão presentes no artigo de Rodrigo Monteiro e Letícia Ferreira, que tem como tema o pagamento do dote do casamento de Catarina de Bragança com o rei Carlos II, selando a aliança de Portugal com a Inglaterra, no contexto da restauração lusitana frente ao domínio espanhol. Além de contribuir para o pagamento do dote, as possessões ultramarinas deveriam também ajudar a Coroa a saldar a dívida referente à indenização a ser paga aos holandeses pela perda de Pernambuco e capitanias vizinhas. O artigo explora as atas da câmara de Salvador referentes à cobrança e pagamento dessas contribuições, evidenciando que, para além do vultoso dispêndio, estava em jogo o vínculo entre os vassalos e a Coroa, ou seja, entre a metrópole a colônia, reafirmando laços de dependência e de soberania do monarca.

A restauração lusitana aparece também no artigo de Pablo Sabater, que discute a influência cultural da Espanha na iconografia régia a partir da pintura portuguesa daquele período. Indicando um caminho importante de renovação da historiografia colonial nos dias de hoje, o autor aproxima o universo da cultura e das artes ao universo da política, evidenciando que a afirmação da nova monarquia instaurada em Portugal após a separação da Espanha passava tanto pela construção da imagem do rei, inspirada no modelo espanhol, quanto pelos rituais de aclamação do novo monarca, tais como os que tiveram lugar no Rio de Janeiro, em 1641, durante o governo de Salvador Correa de Sá e Benevides, escrutinado pelo autor a partir de um relato contemporâneo.

A temática da festa e de sua importância política para a sociedade colonial aparece também no artigo de Humberto Fonsêca, o qual se concentra na procissão de Corpus Christi, vista, pelo autor, como ritual profano e sagrado, expressão da devoção popular, celebração festiva e, ao mesmo tempo, ritual de afirmação do poder e das hierarquias vigentes. A presença da procissão de Corpus Christi em diferentes partes do império lusitano revela uma continuidade fundamental do barroco português, embora também se possa perceber a emergência de especificidades locais, tais como a figura de um anão presente na procissão organizada pela Câmara de Salvador em 1673 e em diferentes momentos até o início do século XVIII, de acordo com a documentação consultada pelo autor.

Os artigos presentes no dossiê trazem à tona diferentes caminhos de pesquisa e de renovação da historiografia colonial, em particular no campo da história política e administrativa – favorecida pela enorme quantidade de fontes disponíveis, uma vez que os arquivos coloniais guardavam preferencialmente esse tipo de documentação – e da história cultural – ajudada pela presença significativa de rituais e festas no cotidiano colonial – passando, forçosamente, pelas interseções entre ambas, uma vez que a política e a cultura eram dimensões profundamente imbricadas naquela sociedade – não sendo, aliás, completamente dissociadas, na atualidade.

Cumpre, portanto, saudar o presente dossiê, que surge também como afirmação da Politeia enquanto espaço de produção e divulgação da historiografia baiana, nacional e internacional.

Fabricio Lyrio Santos – Professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) Doutor em História Social pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) E-mail: fabriciolyrio@yahoo.com.br


SANTOS, Fabricio Lyrio. Apresentação. Politeia: História e Sociedade. Vitória da Conquista, v.12, n. 1, 2012. Acessar publicação original [DR]

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Inquisição, Poder e Sociedade / Politeia: História e Sociedade / 2011

Por 285 anos, entre 1536 e 1821, o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Portugal foi responsável pela perseguição a mais de 40 mil pessoas em todo o império luso, que compreendia terras da metrópole, ilhas do Atlântico (Açores, Madeira, Cabo Verde, São Tomé), várias regiões da África (a costa ocidental, do Marrocos ao Cabo da Boa Esperança, além de Angola e Moçambique), o Brasil, localidades na Índia (Goa, Cochim) e no extremo Oriente (Macau, Malaca, Nagasaki). Homens e mulheres foram investigados e condenados por crimes contra a fé (judaísmo, maometismo, protestantismo, molinismo, deísmo, libertinismo, críticas aos dogmas etc.) ou contra os costumes e a moral cristã (bigamia, sodomia, feitiçaria, solicitação). As sentenças, em sua maioria lidas publicamente em autos-de-fé, variavam de acordo com o grau de gravidade imputado pelos juízes inquisidores aos delitos cometidos. Cerca de dois mil indivíduos foram condenados à morte na fogueira e a um número muito maior foram impostas penas como a obrigação de ouvir missas, o açoite, o degredo, o confisco dos bens, o uso de hábito penitencial, a prisão perpétua, dentre outras. A documentação resultante desses procedimentos adotados pelo Tribunal do Santo Ofício de Lisboa – processos inquisitoriais e de habilitações, correspondências enviadas e recebidas, denúncias e confissões, cadernos do promotor, de nefandos e de solicitantes etc. – se constitui em registros valiosos para pesquisadores de diversas áreas das ciências humanas pois, a partir dela, é possível, como nos lembra Maria do Carmo Jasmins Dias Farinha, estudar temas relacionados a conflitos sociais, dificuldades econômicas, movimento marítimos, produção literária, censura, arquitetura urbana, toponímia, dentre outros aspectos da vida social dos territórios submetidos ao domínio lusitano.

Apresentamos ao público da Revista Politeia o dossiê Inquisição, poder e sociedade, composto por seis artigos de pesquisadores brasileiros que, a partir da investigação do acervo documental dos cartórios inquisitoriais, se ocupam da história do Santo Ofício português e, especificamente, das ações desta instituição no Brasil entre os séculos XVI e XVIII. O conjunto de textos apresentado é uma importante contribuição para a compreensão da Inquisição portuguesa, de sua dinâmica, funcionamento e historiografia. Reunimos aqui episódios que contam um pouco da história da América portuguesa: alguns trabalhos exploram aspectos relacionados ao cotidiano, às práticas e ideias de coletividades, como os judeus e cristãos-novos que se deslocaram para terras brasileiras; outros se dedicam a acompanhar a trajetória de indivíduos singulares que foram, de algum modo, atingidos pela Inquisição – homens célebres, como Antônio Vieira, ou obscuros, como um certo João de Moraes Montesinhos ou, outro, Alexandre Henriques, moradores da Bahia e das Minas Gerais – que, denunciados, atravessaram o Atlântico, se apresentaram ao Tribunal do Santo Ofício e conheceram os cárceres de Lisboa. Alguns artigos se concentram nas relações de poder que se afirmavam por meio das ações relacionadas à Inquisição – o papel de visitadores e familiares, os denunciantes que agiam motivados pelo desejo de atingir adversários políticos –; outros focam as tentativas do Santo Ofício em controlar a conduta moral e as práticas culturais de homens e mulheres submetidos à Coroa portuguesa.

O primeiro artigo, escrito por Angelo Adriano Faria de Assis, professor de História do Brasil Colonial da Universidade Federal de Viçosa, intitulado “Menorá de mil braços: variações do criptojudaísmo no mundo português” discute a sobrevivência da fé judaica após o decreto real que, em 1497, determinou a expulsão dos judeus de Portugal e, a seguir, a conversão compulsória ao cristianismo daqueles que permaneceram nas terras do reino. Angelo Assis destaca alguns processos inquisitoriais que tiveram por motivação denúncias contra pessoas acusadas de práticas identificadas com a crença judaica, como o respeito ao shabat, as restrições alimentares, o jejum em datas significativas do calendário judeu, as bênçãos e orações etc. O texto adota como ponto de partida a importância da menorá – um candelabro de vários braços, que ostentavam velas que deveriam ficar permanentemente acesas – no mobiliário dos templos judaicos para ressaltar as estratégias adotadas por várias famílias de cristãos novos com o intuito de assegurar a continuidade das práticas religiosas e culturais que lhes conferiam identidade. Assim como as chamas da menorá deveriam se mostrar sempre acesas, também estes cristãos novos se imbuíram da missão de manter permanentemente acesa a chama da fé, mesmo nos momentos em que esta crença foi transformada em ato herético e passível de perseguição e condenação pelos inquisidores do Santo Ofício.

“Terceira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil: Capitanias do Sul, 1627-1628” é o segundo artigo desse dossiê, de autoria de Ana Margarida Santos Pereira, doutoranda da Universidade de Amsterdã. O texto aborda um dos mecanismos pelos quais a Inquisição se fazia presente nos diferentes territórios, mesmo os mais distantes, do império português: a visitação. O Brasil foi alvo de uma primeira visitação em fins do século XVI, ocasião em que o visitador percorreu cidades da Bahia e de Pernambuco. Uma segunda visitação do Santo Ofício se faria presente em terras da Bahia em 1618. A terceira visitação, que se efetiva nos anos de 1627 e 1628, foi a primeira que alcançou as “partes” do Sul, atingindo localidades como o Rio de Janeiro, São Paulo, São Vicente, Santos e Vitória. Essa visitação, embora tenha se constituído em objeto de estudos por José Gonçalves Salvador e Lina Gorenstein, ainda é pouco conhecida e divulgada pelos pesquisadores da Inquisição. A abordagem de Ana Margarida Pereira, tomando como exemplo paradigmático a figura de Luís Pires da Veiga, o personagem principal da terceira Visitação, trata de diferentes aspectos relacionados à atuação dos visitadores: as pompas e solenidades que, em cada localidade, deveriam ser oferecidas ao visitador, os procedimentos adotados para o recebimento de denúncias e confissões, as penalidades impostas aos acusados, dentre outros. A autora enfatiza certa ambiguidade inerente à figura do visitador: pelas pompas que o acompanham e pela autoridade para ditar sentenças, ele é, indiscutivelmente, uma figura de poder; porém, é uma figura que pode ter este poder questionado pelas elites locais – moradores transformados em alvos da ação do visitador poderiam encaminhar à Inquisição denúncias contra o que fosse julgado como “abusos” do agente inquisitorial; em sentido contrário, o visitador também poderia ser alvo de denúncias por “complacência” (permitir que seus acompanhantes viajassem em companhia de “mancebas”, manter contatos demasiado amistosos com cristãos-novos, travar conversações com mulheres mundanas etc.). A autora destaca ainda que a visitação também oferecia, a seus agentes, a oportunidade de realização de negócios privados: visitadores aproveitavam as viagens a diferentes partes do reino luso para adquirir escravos, ouro e outras mercadorias de valor, o que implicava o aprofundamento dos contatos com mercadores que, não raro, eram cristãos-novos.

“Bernardo Vieira Ravasco e a Inquisição de Lisboa”, de autoria de Marco Antônio Nunes da Silva, professor de História Moderna da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, é um artigo construído a partir dos “cadernos do Promotor” da Inquisição portuguesa do século XVII. Na hierarquia burocrática inquisitorial, o promotor era o responsável pela apresentação das acusações contra os denunciados por práticas contra a fé e contra a Igreja. Em seus cadernos eram reunidas denúncias oriundas tanto das visitações como de denúncias formais apresentadas por diferentes agentes do poder até delações apresentadas por correspondências simples, encaminhadas por pessoas de condição obscura. A maioria destas denúncias jamais se transformou em processo inquisitorial; algumas foram objeto de investigações que não acarretaram a constituição de processo, outras sequer foram investigadas, delas restando apenas os registros no “caderno do Promotor”. Dentre as várias denúncias que figuram nestes cadernos, Marco Antônio da Silva se detém na análise daquelas que mencionam um personagem relevante na cena política da Bahia – e do Brasil – colonial: Bernardo Vieira Ravasco, que, durante 57 anos, ao longo do século XVII, ocupou o cargo de secretário do Estado do Brasil, imediatamente abaixo do Governador Geral. O autor, a partir destas anotações dos “cadernos”, analisa o papel desempenhado pela Inquisição em meio às intensas disputas pelos postos de prestígio e poder no Estado colonial. Bernardo Vieira Ravasco, além de ter sido secretário do Estado e ter se tornado alvo de investigações por parte da Inquisição, teve o seu nome envolvido em episódios relacionados a uma conspiração contra o próprio Governador Geral e ao assassinato do alcaide de Salvador; Bernardo Ravasco era, ainda, irmão do célebre Antônio Vieira, personagem também citado nos “cadernos do Promotor”, de intensos e conhecidos conflitos com a Inquisição de Lisboa.

Ainda numa incursão pelo século XVII e tendo como personagem central um membro do clero luso-brasileiro, “Ventura e desventuras de um mercedário sodomita em Belém do Pará pós-Filipino”, do professor Luiz Mott da Universidade Federal da Bahia, trata da vida material e do cotidiano de um convento na Amazônia portuguesa. Dentre os milhares de processos inquisitoriais que ajudam a compor o formidável acervo do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Luiz Mott concentra sua atenção em um, constituído contra o prelado e comendador do convento da Ordem de Nossa Senhora das Mercês (Real, Celestial e Militar Ordem de Nossa Senhora das Mercês e Redenção dos Cativos) em Belém, no ano de 1656. Denunciado por praticar o “abominável” crime de sodomia, Frei Lucas de Souza seria preso, interrogado, encaminhado para o Tribunal do Santo Ofício de Lisboa, amargaria 14 meses no cárcere e seria, finalmente, condenado a dez anos de degredo nas galés de Sua Majestade. Este processo – além de outros analisados, que envolvem acusações contra os supostos amantes de Frei Lucas de Souza – serve para o autor analisar a trajetória da Ordem de Nossa Senhora das Mercês em territórios da América portuguesa, as disputas pelos postos superiores no interior das ordens religiosas, além dos elementos que caracterizavam a vida cotidiana e os códigos de comportamento e conduta dos homens e mulheres aos quais a Igreja ambicionava orientar e vigiar.

O quinto artigo, intitulado “‘Sapatos ao mato’: o sentimento de ‘um triste homem que vem preso’ pelo Santo Ofício” é resultado de uma pesquisa desenvolvida por Suzana Maria de Sousa Santos Severs, professora da Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Suzana Severs também se dedica a um processo particular para, a partir dele, lançar novas luzes sobre o funcionamento da Inquisição portuguesa em terras coloniais. A autora destaca a trajetória de um indivíduo destituído de qualquer notoriedade, morador da capitania de Minas Gerais, negociante e cristão novo, filho, irmão e cunhado de negociantes e cristãos novos que, acusado de criptojudaísmo, seria preso e encaminhado aos cárceres da Inquisição em Lisboa, onde permaneceria por nove meses até a definição de sua pena. Suzana Severs concentra sua atenção em um documento, escrito pelo próprio punho do denunciado, no qual este apresenta detalhes de sua viagem, sob a custódia de um Familiar do Santo Ofício, desde as Minas de Ribeira do Carmo – atual cidade mineira de Mariana –, onde morava, até o porto do Rio de Janeiro, quando seria embarcado nas galés rumo a Lisboa. O objetivo do acusado, ao redigir tal documento, era, claramente, o de denunciar os abusos, os maus-tratos e os sofrimentos de que foi vítima enquanto sob a guarda do Familiar designado para escoltá-lo até o Rio de Janeiro; para a autora, tal documento cumpre o relevante papel de resgatar os sentimentos e a subjetividade de um prisioneiro e, ao mesmo tempo, revela detalhes que conferem uma dimensão profundamente humana às ações e expectativas dos homens – agentes do Santo Ofício ou personagens a ele submetidos – que viveram em épocas e territórios controlados pela Inquisição.

O último texto que compõe este dossiê, “Movido pela loucura ou pela fé: trajetória de Alexandre Henriques”, de autoria dessa organizadora, apresenta a saga de um cristão novo, português, que chega ao Brasil no início do século XVIII com destino a Minas Gerais, com pretensões de enriquecer por meio da mineração, e retorna a Portugal como prisioneiro do Santo Ofício, dando entrada no Palácio dos Estaus em março de 1735. Antes de ser encaminhado à prisão de Lisboa, porém, Alexandre foi recolhido e permaneceu internado, considerado louco, no Hospital da Santa Casa da Misericórdia de Salvador. Os documentos inquisitoriais relativos a este personagem mostram a sua condição principal: tratava-se de um desviante, de um indivíduo que manifestava enunciados incompatíveis com a ordem afirmada pela hierarquia eclesiástica. E as hesitações das autoridades inquisitoriais face às tentativas de classificação deste indivíduo – louco ou herético? – revelam um dos traços essenciais da Inquisição: a busca pela afirmação da ordem mediante a perseguição, o banimento e a aniquilação do outro, do diferente.

O presente dossiê reúne, portanto, diferentes trabalhos relativos à presença e atuação dos agentes do Santo Ofício português, sobretudo suas ações em diversas partes da América portuguesa, em especial na Bahia. Não pretende exaurir qualquer um dos aspectos abordados ao longo dos ensaios, mas simplesmente contribuir para um melhor entendimento dessa instituição e, acima de tudo, colaborar e incentivar novas pesquisas nesta área.

Agradeço à Diretoria Executiva da Revista Politeia pela oportunidade e possibilidade de reunião desses ensaios. E agradeço, especialmente, os / as articulistas que, generosamente, concordaram em divulgar seus relevantes trabalhos de pesquisa por meio deste dossiê o qual tive a honra de coordenar.

Grayce Mayre Bonfim Souza – Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb) Doutora em História Social pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) E-mail: graycebs@yahoo.com.br


SOUZA, Grayce Mayre Bonfim. Apresentação. Politeia: História e Sociedade. Vitória da Conquista , v.11, n. 1, 2011. Acessar publicação original [DR]

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Escravidão: da Antiguidade à Modernidade / Politeia: História e Sociedade / 2010

O presente dossiê, pautado pela perspectiva comparada, partilha do esforço de vincular a temática da escravidão a processos históricos e a contextos sociais multi-temporais e espaciais. Sob o prisma de variadas abordagens, tem a chance de lançar luz sobre pontos de contato e de diferenciar experiências sociais no tempo e no espaço e, nesse sentido, apontar para novas questões de estudos.

Jovens e veteranos pesquisadores, oriundos de diferentes instituições, apresentam, sob perspectivas próprias, artigos lastreados por fontes diversas, modulados com sobriedade e imaginação histórica, como é próprio ao mister do historiador. Esses artigos originam-se, em sua maioria, de estudos mais extensos e meticulosos e evidenciam, com vitalidade, a atualidade do tema, renovado por preferências e opções pessoais, mas, sobretudo, abordagens que se atêm aos sujeitos históricos e à trama de seu cotidiano. São análises que, ao considerar as sutilezas das relações sociais, desvendam processos que estariam invisíveis de outro modo.

Este dossiê garante um mosaico amplo e rico em alternativas para pensarmos a escravidão por ângulos e abordagens atentos às suas singularidades, às possíveis aproximações, ao confronto de fontes e de ideias. Reserva-se ao leitor o contato com experiências sociais interpretadas em seu movimento histórico, que se recusam a generalizações, numa postura historiográfica que assume cada vez mais importância e interesse entre nós. Este rico painel é aqui apresentado em forma de artigos e entrevista.

A entrevista é uma contribuição valiosa e inestimável do historiador norte-americano e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Robert Slenes. Com disposição, entusiasmo e zelo, o professor Slenes reflete sobre os caminhos percorridos em sua trajetória historiográfica e pessoal. Atento aos meandros que envolvem o ofício de historiador, expõe compreensões teórico-metodológicas – sempre explicitadas em seus trabalhos – e indica trabalhos nascidos de profícuas pesquisas, muitos deles já publicados, e que são cuidadosamente apresentados ao final de sua entrevista. É um registro histórico que tivemos a sorte de colher e pelo qual somos profundamente gratos.

José Ernesto Moura Knust, mestrando em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), abre a seção de artigos deste dossiê com o texto “Escravidão rural no final da República Romana: a De Re Rustica de Varrão” em que examina, no Tratado sobre as coisas do campo – escrito pelo erudito romano Marcos Terêncio Varrão, no final do século I a.C. –, relações entre senhores e escravos, em especial a autoridade de escravos em posição de chefia e a promoção de atitudes entre os escravos que visavam favorecer aos senhores. Ao analisar estratégias de controle dos escravos refletidas no referido Tratado, o autor nos transporta para a escravidão rural da Roma Antiga e identifica alguns de seus traços na escravidão americana. Para tanto, ancora-se no conceito de sociedade escravista do intelectual norte-americano Moses Finley.

O segundo artigo, “As guerras servis da Sicília”, é uma colaboração de Sônia Regina Rebel de Araújo, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF). Ao tratar das circunstâncias históricas que envolveram duas revoltas de escravos na Sicília entre 135 e 101 a. C., Sônia Rebel evidencia o alcance da resistência escrava na Roma Antiga. Seu texto se orienta por abordagens teóricas de Moses Finley e Keith Bradley e de dois grandes historiadores brasileiros, Sidney Chalhoub e João J. Reis. Com isto, busca demonstrar “como o entrelaçamento dos estudos sobre a escravidão na Antiguidade e nas Américas pode ser produtivo, profícuo, para os estudiosos deste importante tema”. Para a autora, “o diálogo entre os aportes teóricos de historiadores da escravidão nas Américas e no Brasil, como João Reis, Chalhoub e Genovese, e os historiadores da Antiguidade, revelou-se útil, na medida em que aspectos da resistência dos escravos na modernidade revelaram-se instigantes para a análise dos movimentos sociais dos escravos no mundo romano”.

Em seguida temos o artigo “Escravo, servo ou camponês? Relações de produção e luta de classes no contexto da transição da Antiguidade à Idade Média (Hispânia, séculos V- VIII)”, de Mário Jorge da Motta Bastos, professor da UFF. O autor considera que as grandes transformações que se verificaram nas sociedades ocidentais a partir do século X resultaram de um conjunto mais amplo de processos, que se desenvolveram no longo intervalo que separa a Antiguidade e o Medievo. Para Bastos, “sociólogos, economistas e historiadores, conjugando empenho e engenhosidade dedutiva, tentaram desvelar uma realidade fugidia, fugaz em suas expressões, envolta pelas brumas de uma documentação limitada em número e fundamentalmente normativa em sua natureza”.

O quarto artigo resulta da parceria entre os professores Ocerlan Ferreira Santos e Washington Santos Nascimento, ambos vinculados às atividades do Museu Pedagógico da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb), campus de Vitória da Conquista, sendo o último, doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Em artigo intitulado “Dimensões da vida escrava na Imperial Vila da Vitória nos últimos anos da escravidão (1870- 1888)”, tratam da escravidão no “Sertão da Ressaca”, mais especificamente, na Imperial Vila da Vitória, atual Vitória da Conquista. Por meio de pesquisa em fontes inéditas, examinam dinâmicas que envolveram as relações entre senhores e escravos nos últimos anos da escravidão, levando-os a concluir que “o que se percebe nos últimos anos da escravidão na então Imperial Vila da Vitória é uma profunda dinâmica envolvendo a população escrava com a construção de arranjos de sobrevivências que provavelmente permaneceram após a abolição da escravatura”. É mais um estudo que se soma aos esforços da pesquisa sobre a escravidão sertaneja, que emerge de uma disposição muito tenaz de pesquisadores que “descobrem” arquivos e organizam documentos, enriquecendo em várias direções a abordagem do tema.

O quinto artigo, “Entre a morada e a roça: escravidão no Recôncavo Sul da Bahia, 1850-1888”, decorre de estudos e pesquisas desenvolvidos por Alex Andrade Costa, Mestre em História Regional e Local pela Universidade do Estado da Bahia (Uneb), campus V – Santo Antônio de Jesus. O autor agrega novos enfoques à escravidão no Recôncavo Sul da Bahia ao analisar a mobilidade e a autonomia na vida cotidiana de escravos de pequenas e médias propriedades rurais, identificando formas de sobrevivência próprias de escravos lavradores. Alex Costa mostra que aquela parte do Recôncavo abrigou relações entre senhores e escravos com traços muito próximos da escravidão no sertão baiano. Numa perspectiva comparada, recorre à historiografia da escravidão para expressar aproximações de análises: “como a historiografia tem demonstrado, o conflito aproximou-se muito do ato de negociar, às vezes convivendo juntos numa mesma ação com um duplo significado”.

Encerrando a seção de artigos temos o “Historiografia sobre o negro, a escravidão e a herança cultural africana na Bahia”, apresentado pelo professor Erivaldo Fagundes Neves. Revela-se ali uma espécie de cartografia da historiografia da escravidão e dos estudos sobre o negro na Bahia. Um amplo painel, que destaca temas, fontes e metodologias presentes nesses estudos.

Como se antevê, são estudos que possibilitam comparações pontuais, enriquecem campos conceituais e ampliam a nossa compreensão das experiências históricas. Também evidenciam o papel chave do “ato de comparar” como um exercício metodológico inerente ao exercício da prática historiadora.

Gostaria, por fim, de externar gratidão e reconhecimento aos colegas que colaboraram com todo o trabalho desta publicação. Em especial, ao professor Luiz Otavio de Magalhães (Uesb, editor de Politeia), que acolheu a proposta do dossiê e acompanhou cuidadosamente a sua edição. Às professoras Gabriela Reis Sampaio e Wlamyra Albuquerque (Universidade Federal da Bahia), aos professores Fábio Joly (Universidade Federal de Ouro Preto), Alexandre Galvão e Márcia Lemos (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia), que compuseram a comissão científica e se empenharam no convite a colegas, alguns deles aqui presentes. Como toda publicação da revista Politeia, espera-se que esta edição possa nutrir debates e apontar boas perspectivas para a pesquisa nas humanidades.

Maria de Fátima Novaes Pires – Professora da Universidade Federal da Bahia (Ufba) Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) E-mail: fatimapires90@hotmail.com


PIRES, Maria de Fátima Novaes. Apresentação. Politeia: História e Sociedade. Vitória da Conquista, v. 10, n. 1, 2010. Acessar publicação original [DR]

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Politeia | Uesb | 2001

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A Revista Politeia – História e Sociedade (Vitória da Conquista, 2001-) se propõe a veicular a produção científica dedicada a revelar e refletir a complexidade e a diversidade das formas de organização social dos homens no tempo. […]

É uma publicação on line  vinculada ao Departamento de História e ao Mestrado Profissional em História da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Profhistória/Uesb). Tem como objetivo a publicação de trabalhos inéditos, resultantes de pesquisa em História, Ciências Humanas e áreas correlatas e à divulgação de trabalhos acadêmicos associados aos programas de aperfeiçoamento de profissionais de ensino de História.

Periodicidade semestral.

Acesso livre.

ISSN 1519-9339 (Até 2016)

ISSN 2236-8094 (Atual)

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