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Apologie de la polémique – AMOSSY (B-RED)
AMOSSY, R. Apologie de la polémique. Paris: Presses Universitaires de France, 2014. 240 p. [Coleção L’interrogation philosophique]. Resenha de: CARLOS, Josely Teixeira. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.10 n.3 São Paulo Sept./Dec. 2015.
O livro Apologie de la polémique (Apologia da polêmica)1 é a mais recente obra em língua francesa de Ruth Amossy, professora emérita do departamento de francês da Universidade de Tel-Aviv e diretora do Grupo de Pesquisa Analyse du discours, Argumentation & Rhétorique (ADARR)2. Resultado de uma pesquisa global sobre o discurso polêmico na esfera democrática, realizada no quadro da Fundação de Ciências Israelense (ISF), foi publicado em março de 2014 pela editora Presses Universitaires de France, na coleção L’interrogation philosophique, dirigida pelo filósofo Michel Meyer, reconhecido pesquisador na área de Retórica e Argumentação e professor da Université libre de Bruxelles.
Fundamentada em um quadro teórico-metodológico preciso e na análise detalhada de casos concretos, e considerando que a polêmica não é de nenhum modo “uma comunicação desordenada”, Amossy mostra que a polêmica pública enquanto modalidade argumentativa, apesar de ser depreciada, desempenha um papel vital nas democracias pluralistas. O livro está organizado em três partes. Em sua Introdução, com relação à presença da polêmica no mundo contemporâneo, a autora enfatiza que os conflitos de opinião ocupam um lugar preponderante na cena política e que os meios de comunicação não param de forjar e de difundir de forma persistente as mais variadas polêmicas, ditas de interesse público. Uma prova disso é o uso constante do próprio termo “polêmica” na imprensa escrita francesa (Le Monde, Libération, etc.)3. Segundo a pesquisadora, essa presença poderia ser explicada duplamente tanto pela incapacidade dos cidadãos e dos políticos em seguir as regras de um debate racional, quanto pela curiosidade perversa do público no que se refere ao espetáculo da violência verbal. Mais do que constatar esse fato, Amossy defende que é necessário investigar em profundidade a natureza (o funcionamento e as funções sociais) dos debates conflituais nos quais se sustenta contemporaneamente a democracia em uma sociedade pluralista. No bojo dos estudos discursivos, das ciências sociais e das reflexões de Habermas, Perelman, Mouffe, dentre outros, para a professora interessa, portanto, verificar como, no âmbito de um espaço público e democrático, a polêmica se constrói no nível discursivo e argumentativo e modela a comunicação. No que toca ao posicionamento do pesquisador e às questões metodológicas na observação de debates polêmicos, ela chama a atenção para o fato de que o analista jamais pode se tornar também um polemista, exigindo deste o exame das controvérsias (seu surgimento, sua regulação, seus papéis sociais), mas nunca a tomada de partido por uma ou outra causa.
A primeira parte da obra apresenta as reflexões teóricas do trabalho e está dividida em dois capítulos. No primeiro – Gerir o desacordo na democracia: por uma retórica do dissensus, Amossy aborda por um lado a insistente busca pelo consenso e a obsessão pelo acordo, que está na base mesma da Retórica e dos estudos de persuasão, da Retórica clássica de Aristóteles à Nova Retórica de Perelman e Olbrechts-Tyteca, ao mesmo tempo em que descreve na sociedade contemporânea as condenações do dissensus e da polêmica, desde o Tratado da argumentação 4 de Perelman e Olbrechts-Tyteca, abrangendo as teorias da argumentação que o sucederam, como a lógica informal de Douglas Walton e a pragma-dialética da Escola de Amsterdam e de Van Eemeren.
Também nesse capítulo, a autora evoca a obra de Habermas, na qual é construída a noção de um espaço público gerado pelo discurso argumentativo, ou seja, segundo concebe esse autor, a esfera pública basear-se-ia em um modelo de discussão racional na qual os cidadãos alcançariam o acordo através da troca discursiva. A seguir, Amossy discorre sobre outro papel do dissensus (ou da divergência), apresentando um quadro teórico diverso do anterior, no qual existe uma revalorização do dissensus em diferentes domínios, particularmente no da Sociologia e da Ciência Política. Assim, a autora, partindo das reflexões advindas das ciências sociais, feitas por Lewis A. Coser, George Simmel, Chantal Mouffe e Pierre-André Taguieff, coloca a seguinte questão à página 37: “Estas perspectivas sociopolíticas podem ser traduzidas em termos de retórica para autorizar a consideração da polêmica e suas funções construtivas?”. Amossy sustenta que, se em uma democracia pluralista o conflito é inevitável e o acordo utópico, é necessário então o desenvolvimento de uma retórica do dissensus, na qual a confrontação polêmica seja vista como incontornável e útil na gestão dos conflitos.
No capítulo seguinte – O que é a polêmica? Questões de definição, a analista retoma categorias como debate, discussão, disputa, querela, altercação, controvérsia, interessando-se sobretudo por apresentar as especificidades da polêmica. Para tanto, fundamenta-se em três fontes diferentes: as definições lexicográficas dos dicionários, o discurso corrente e as conceitualizações dos pesquisadores em ciências da linguagem. A professora analisa aqui dois exemplos de polêmicas: uma em torno de uma foto “politicamente incorreta”, que exibe um homem de costas utilizando a bandeira da França no lugar do papel higiênico; e a outra acerca do exílio fiscal do ator Gerard Depardieu, após o projeto de reforma dos impostos lançado pelo presidente François Hollande em 2012. A partir da análise, constata que a polêmica é de fato um debate em torno de uma questão atual e de interesse público, que perpassa variados gêneros (panfleto, artigo de opinião etc.) e tipos de discurso (jornalístico, político etc.) e que deve ser distinguida de uma deliberação ordinária.
Na continuação do capítulo, Amossy avalia a polêmica de interesse público como modalidade argumentativa, compreendida em um continuum que passa pela dicotomização (choque de opiniões antagônicas, uma excluindo a outra), polarização (dois antagonistas diametralmente opostos polemizam diante dos espectadores da polêmica, que também devem se posicionar) e desqualificação do adversário (depreciação do ethos dos sujeitos, grupos, ideologias e instituições concorrentes). Na sequência da obra, todos os capítulos permitirão a visualização dessas modalidades em variados gêneros de texto5, investigados em sua materialidade discursiva e configuração argumentativa, bem como o esclarecimento das seguintes questões específicas: como funciona o discurso polêmico; como se constrói uma polêmica pública; qual a atuação da racionalidade nessas polêmicas; como se pode compreender, nelas, o papel e limites da violência.
É por esse prisma que a segunda parte do livro abordará as modalidades da polêmica, materializadas nos meios de comunicação, a partir do exemplo do estatuto das mulheres em dois espaços públicos diferentes: na França e em Israel. Antes de iniciar a análise, a professora evidencia que é necessário distinguir uma polêmica do discurso polêmico e da interação polêmica. “Uma polêmica” se refere ao conjunto das intervenções antagonistas sobre uma dada questão em um momento específico. Já o “discurso polêmico” define a produção discursiva de cada uma das partes antagonistas, nas quais necessariamente se inscreve o discurso do outro, como classifica Kerbrat-Orecchioni. A “interação polêmica”, por outro lado, corresponde à interação, face a face ou não, na qual dois ou mais adversários se engajam em uma discussão oral ou escrita, sempre se reportando um ao outro. Enquanto o discurso polêmicoé constitutivamente dialógico, mas não dialogal, a interação polêmica é por definição dialogal.
Com base, portanto, nessa distinção teórica, Amossy se debruça, no capítulo 3, na análise do discurso e interação polêmicos, entre junho de 2009 e outubro de 2010, no contexto do projeto de lei que pretendia proibir o uso da burca no espaço público francês. A autora exemplifica, assim, o discurso polêmico, analisando um artigo de opinião, assinado por Bénédicte Charles, da revista de esquerda Marianne (de junho de 2009), no qual examina os seguintes aspectos: a estrutura actancial e o jogo das dicotomias, o plano de enunciação e a responsabilidade jornalística, a polêmica como evento midiático, a polarização na imprensa escrita, a jornalista como polemista. Já a interação polêmica é explorada em dois exemplos: uma interação face a face no debate televisionado entre o político Jean-François Copé e uma mulher com véu; e dois posts de um fórum de discussão eletrônico que respondem ao artigo de Marianne. Qualificando a polêmica como polílogo, para muito além do diálogo, Amossy destaca então que tanto o discurso quanto a interação polêmicos desempenham funções importantes, dentre as quais a da denúncia, a do protesto, a da chamada à ação, bem como a do entretenimento.
No capítulo 4, a autora exemplifica a polêmica pública em torno da fórmula “a exclusão das mulheres” em Israel, analisando o caso da jovem Tanya Rozenblit, que em dezembro de 2011, ao subir em um ônibus da linha Ashdod-Jerusalém, sentou-se na parte da frente do transporte público, quando a prática consuetudinária estabelecia que as mulheres devem sentar-se na parte de trás, para que os homens não possam olhá-la. O episódio ganhou, a partir daí, grande repercussão pública, fortemente alimentada pela imprensa (meios de comunicação pró ultra-ortodoxos e contra os ultra-ortodoxos), convertendo-se em um debate de ordem ideológica e identitária.
Amossy afirma que essa polêmica, protagonizada por discursos laicos, de um lado, e por discursos religiosos tanto moderados quanto ultra-ortodoxos, de outro, além de transformar a jovem Rozenblit em um símbolo da resistência contra o fanatismo religioso, mostra que mesmo que as posições antagônicas não se falem diretamente, não se entendam e não cheguem a um acordo com relação às noções de espaço público, do respeito ao direito das mulheres, do lugar da religião no Estado e da liberdade individual em uma democracia, de uma certa forma elas se comunicam, na medida em que tratam dos mesmos referentes e concordam sobre o fato de que é preciso discutir. Por essa perspectiva aparentemente contraditória, é justamente a polêmica pública, enquanto interação agônica, que permite a coexistência no dissensus, através de suas funções sociais que reúnem indivíduos de opinião radicalmente opostas.
Na terceira e última parte da obra, igualmente dividida em dois capítulos, Amossy analisa o lugar da razão, da paixão e da violência nos debates polêmicos. No capítulo 5 – Racionalidade e/ou paixão, questionando se o pathos é um traço distintivo da e indispensável à polêmica, a pesquisadora se volta para a observação do debate polêmico ocorrido na França, em pleno momento de eclosão da crise financeira de 2008, acerca das formas de remuneração bonus e stock-options, distribuídos pelo Estado aos dirigentes dos bancos e das grandes empresas que declarassem estar em situação precária. Ao longo da análise, ela elucida que os debates polêmicos não se manifestam necessariamente por marcas discursivas de emoção e de paixão, esta última compreendida, no sentido retórico, como tentativa de suscitar afetos no auditório e como sentimento expresso com veemência por um locutor extremamente implicado em seu propósito. No entanto, no que concerne à presença da paixão na polêmica, a autora julga que dois fatos são inegáveis: a paixão não produz a polêmica, mas ela exacerba as dicotomias, a polarização e o descrédito ao outro; a paixão e a razão aparecem como dois componentes que só podem ser entendidos em uma imbricação e nunca dissociados. É com esse olhar que Amossy propõe a seguir a consideração de uma racionalidade da paixão e das razões das emoções. Por esse viés, no que concerne à referência ao outro, paixão e razão se manifestariam através de três modalidades do discurso polêmico: a acusação (emoções fortes centradas na indignação e na cólera, com o uso de argumentos que revelam indiretamente as razões da emoção), a injunção (emoções fortes de maneira menos marcada, apresentando argumentos que as justificam) e a instigação(denúncia velada que recorre a argumentos racionais e mostra o pathosde modo superficial).
No capítulo 6 – A violência verbal: funções e limites, a pesquisadora investiga o papel da violência na polêmica, lançando luz para o fato de que esta é fundada pelo conflito, e não pela agressividade verbal. Baseada na análise de conversas digitais, mais particularmente do fórum de discussões na internet do jornal Libération sobre os bonus e stock-options distribuídos em período de crise, Amossy assegura que a violência verbal não é nem uma condição suficiente, nem necessária para a polêmica, configurando-se mais como um acessório do que como um traço definidor dos embates públicos. Por essa ótica, a violência verbal pode ser compreendida como um registro discursivo, e não como uma modalidade argumentativa. Como o pathos, ela igualmente amplifica a dicotomização, a polarização e o descrédito. Dentro desse quadro, a professora demonstra que a violência verbal não é de nenhum modo selvagem ou descontrolada, mas, pelo contrário, é regulada a partir de certas funções e limites, agindo diferentemente a depender do gênero do discurso na qual se manifesta (um debate na TV, uma carta aberta, uma discussão política entre amigos).
Na conclusão do livro – A coexistência no dissensus. As funções da polêmica pública, Amossy consolida e expande pontos centrais tratados no decorrer das análises, dentre os quais o fato de a polêmica pública não poder ser medida em termos de diálogo e o papel da mídia na construção da polêmica. A autora resume que a polêmica desempenha funções sociais e discursivas relevantes exatamente por aquilo em que nela é reprovado: a gestão verbal do conflito operada através do desconsentimento. Apesar de esta afirmação parecer paradoxal, a analista reforça que fazer uma apologia da polêmica ou defender a coexistência no dissensus é permitir a preservação do pluralismo e da diversidade no espaço social, na medida em que a polêmica pública ou a coexistência entre posições e interesses divergentes procura um meio de lutar por uma causa e de protestar contra as intolerâncias, de efetuar reagrupamentos identitários que provoquem interações mais ou menos diretas com os adversários, de gerar os desacordos, mesmo os profundos. Assim, a polêmica nos debates públicos é entendida como fundamento indispensável da vida democrática e contemporânea.
Importa notar que a publicação do livro Apologie de la polémique surge em um momento sensível da história da França, tendo antecipado um quadro de reflexões logo a seguir visíveis, em janeiro de 2015, no contexto do atentado terrorista ao jornal Charlie Hebdo, no qual a violência física e o ato desleal de um “antagonista” pulveriza a possibilidade de construção de um espaço democrático, produzido e mantido pela divergência de posicionamentos. Se a obra de Amossy evoca uma apologia da polêmica, não posso deixar de ressaltar que a polêmica tratada pela pesquisadora se constitui em uma guerra de plumas, em uma guerra verbal 6, pois, quando a divergência de posições e a discussão verbal dão lugar à agressão física, podem ser comprovados aí os verdadeiros riscos da atividade polêmica, como chama a atenção Mesnard7. Amossy admite, similarmente, que a violência verbal sob suas diferentes formas possa combater o outro simbolicamente, mas salienta que ela jamais pode servir de passarela a uma ação que inscreva a violência no corpo.
Em um mundo digital ao alcance das mãos, no qual a expressão e difusão de posicionamentos discursivos é tão intensa quanto imensa, Apologie de la polémique se configura como obra de referência não apenas para os estudiosos da linguagem verbal, da argumentação e da análise do discurso polêmico, mas para todos aqueles que defendem a necessidade de se cultivar diuturnamente o respeito ao outro, a liberdade de pensamento e de expressão, a tolerância e a convivência pacífica com as diferenças.
1A tradução para o português dos textos em língua francesa são de minha responsabilidade.
2Obras de sua autoria: L’argumentation dans le discours. Paris: Nathan, 2000; Paris: Armand Colin, 2012 [A argumentação no discurso]; La présentation de soi: Ethos et identité verbale. Paris: PUF, 2010; em português: Imagens de si no discurso: a construção do ethos. Trad. D. F. da Cruz et al. São Paulo: Contexto, 2005. Amossy também é editora-chefe da revista on-line Argumentation et analyse du discours.
3Comprovando que o discurso polêmico está presente em variadas esferas discursivas, analiso em minha tese de doutorado a atuação da polêmica no campo das Artes, mais especificamente no da música brasileira do século XX (CARLOS, J. T. Fosse um Chico, um Gil, um Caetano: uma análise retórico-discursiva das relações polêmicas na construção da identidade do cancionista Belchior686 p. Tese de Doutorado – área de concentração Análise do Discurso – Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014).
4PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. O. Tratado da argumentação. A nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1996. Original: Traité de l’argumentation. La nouvelle rhétorique. 6. ed. Bruxelles: Université libre de Bruxelles, 2008. (1. ed. 1958).
5Amossy afirma que as particularidades de cada um desses textos manifestam traços gerais, esclarecedores da natureza e das funções do fenômeno global discurso polêmico.
6Confrontar o texto de Kerbrat-Orecchioni La polémique et ses définitions. In: KERBRAT-ORECCHIONI, C.; GELAS, N. (Orgs.). Le discours polémique. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 1980. p.03-40.
7Para o autor, “ofensiva ou defensiva, a polêmica implica riscos, quando a paixão aumenta, chegando ao confronto armado, ou até mesmo ao mínimo ataque físico”. In: COLLECTIF. Cahiers V. L. Saulnier 2. Traditions polémiques, n° 27, Université Paris-Sorbonne, 1985. p.127-129. [Collection de L’École Normale Supérieure de Jeunes Filles].
Josely Teixeira Carlos – Université Paris Ouest Nanterre La Défense – Paris Ouest, Nanterre, Hauts-de-Seine, France; josyteixeira@usp.br.