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Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia moderna – WILLER (Ph)
WILLER, Cláudio. Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia moderna. São Paulo: Editora Civilização Brasileira, 2010. Resenha de: ALMEIDA, Fábio Ferreira de. Philósophos, Goiânia, v.15, n. 2, p.161-167, jul./dez., 2010.
É sem dúvida o caráter místico-esotérico, um seu lado meio mágico meio tolo, que nos faz torcer o nariz para os termos Gnose e Gnosticismo e, certamente, tal não é sem razão. Pierre Hadot, em seu livro sobre Plotino, Plotin ou la simplicité du regard, afirma a certa altura que “o gnóstico não sabe olhar o mundo” (HADOT, p., p.48), afirmação que é sem dúvida baseada na filosofia plotiniana que combateu com vigor o gnosticismo. O livro do tradutor, poeta e ensaísta Cláudio Willer retoma o debate acerca da Gnose e do Gnosticismo pelo viés da crítica literária que, abrindo mão do aspecto propriamente filosófico e das questões inerentes a uma história das religiões, pretende suprir uma carência da qual, em sua opinião, padecem os estudantes de Letras quando se deparam com autores tais que Blake, Baudelaire, Nerval, Rimbaud e outros (p. 31).
Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia moderna (2010) é resultado da tese de doutoramento defendida pelo autor em 2008 na Universidade de São Paulo e suas mais de quatrocentas páginas estão divididas em duas partes. Na primeira, intitulada “Gnose e Gnosticismo”, temos uma exposição dos aspectos mais centrais da doutrina gnóstica para o que, além da bibliografia gnóstica básica (Pagels, Dorese, Layton, Puech e outros), o autor se vale principalmente dos trabalhos de Mircea Eliade e Hans Jonas, o que indica um parti pris que tem a virtude de ser conscientemente assumido. A pouca atenção dispensada à obra de Eric Voegelin, que não aparece na bibliografia, embora mencionada de passagem, assim como ao ácido ataque do “respeitado poeta” Bruno Tolentino (ver p. 40) ao gnosticismo moderno, revela que o autor de Anotações para um Apocalipse, A volta, Dias circulares e Jardins da provocação adere à doutrina. O que, entretanto, precisa ser notado, é que o estudo não é panfletário nem tampouco tenta se aproveitar deste irritante “gnosticismo midiático” atual. O estudo de C. Wil-ler, com efeito, está bem longe das “apropriações incorretas e superficiais” (p. 22-3) denunciadas – um tanto desnecessariamente, pois já de saída deixa ver a que veio – por ele próprio. Na companhia de nomes como Octavio Paz e Harold Bloom, a aposta de Willer é na importância da gnose e do gnosticismo para a crítica ou, se quisermos, para a compreensão da poesia moderna. Entenda-se por poesia moderna, a produzida a partir do século XIX até nossos dias. É o que mostra a segunda parte de Um obscuro encanto, intitulada “Poetas gnósticos”, composta na verdade de pequenos ensaios sobre estes poetas dentre os quais, além dos já mencionados, figuram Novalis, Goethe, Victor Hugo, Lautréamont, Pessoa, e ainda os brasileiros Dario Veloso, Sousândrade, Hilda Hilst, entre outros aos quais é dedicado o último capítulo do livro, “Gnósticos brasileiros, do simbolismo até hoje”. A partir da tese de Willer, podemos afirmar que toda poesia é em maior ou menor medida gnóstica, mas isso, naturalmente, se se admitir que a poesia – e a literatura de modo geral – é algo recente, um fenômeno da linguagem que só tem lugar neste espaço epistemológico preciso: data precisamente do século XIX, uma idéia de modernidade assumida bem claramente pelo autor. E o que marca o nascimento da literatura? Bem se vê, colocamo-nos aqui na trilha de Michel Foucault que, em seu As palavras e as coisas, afirma:
A partir do século XIX, a literatura repõe à luz a linguagem no seu ser: não, porém, tal como ela ainda aparecia no final do Renascimento. Porque agora não há mais aquela palavra primeira, absolutamente inicial, pela qual se achava fundado e limitado o movimento infinito do discurso; doravante a linguagem vai crescer sem começo, sem termo e sem promessa. É o percurso desse espaço vão e fundamental que traça, dia a dia, o texto da literatura. (FOUCAULT, M., 1995, p.60)
É, portanto, este novo sistema dos signos, dos símbolos e do significado, enfim, um novo regime na ordem do dizer o que se vê – ou sente – e, em última instância, um novo regime do pensamento, que determina aquilo que Foucault chama de experiência moderna da linguagem, a literatura moderna, à qual se ligam o Surrealismo, Kafka, Blanchot, Bataille, Artaud: “experiência da morte (e no elemento da morte), do pensamento impensável (e na sua presença inacessível), da repetição (da inocência originária, sempre lá, no extremo mais próximo da linguagem e sempre o mais afastado); como experiência da finitude (apreendida na abertura e na coerção dessa finitude)”. (Idem, p.401) Encontra-se aí tudo aquilo que Willer pretende mostrar ao longo de seu ensaio e demonstrar através das análises que faz dos autores escolhidos por ele. Várias passagens o demonstram. Vejamos esta, do capítulo 19, intitulado “O Surrealismo e suas imediações”, quando está em questão precisamente a obra de Artaud e sua associação ao gnosticismo que, como destaca o autor, já havia sido vista por Susan Sontag, em seu Sob o signo de Saturno:
Não só pelo dualismo, pela expressão do contraste radical com o mundo e o corpo; mas pela idéia de uma gnose, acesso a um conhecimento superior. Podem-se apontar dois caminhos para a gnose em Artaud. Um deles, do xamanismo, da iniciação através do ritual tribal e da experiência alucinógena: é aquele relatado em Viagem ao país dos taraumaras, efetivamente vivido, incluindo o culto ao peiote. Outro, o do teatro: como deixou claro em O teatro e seu duplo, seria equivalente a uma cerimônia mágica, através de uma linguagem poética que pudesse ―exprimir objetivamente verdades secretas, fazer vir à luz, por gestos ativos, essa porção de verdade oculta sob as formas que se confrontam com o Devir‖. Mas a leitura do que escreveria depois sobre os taraumaras (em suas cartas, em “Para acabar com o julgamento de Deus” e outros textos) sugere que seu ―rito do sol negro‖ foi, para ele, a realização autêntica do Teatro da Crueldade. (p. 381)
Como se vê, embora a tese de Willer diga fundamentalmente respeito à crítica literária e esteja, assim, mais preocupada com a discussão dos autores e suas obras do que com a escansão ou produção de conceitos, sobressai de seu trabalho um importante elemento banido do austero ambiente acadêmico no qual sobrevive a crítica, preocupada em preservar a todo custo as honras científicas de sua profissão e a racionalidade supostamente necessária ao trato com o objeto que escolheu, a literatura: o fato de que ela é, não menos do que a ciência, a moral e a filosofia, conhecimento. Ao ressaltar a importância da gnose para a poesia moderna, o que está em jogo é o conhecimento mesmo que se alcança através da poesia. De modo que não se trata de defender que o gnosticismo, aquela primitiva mistura de um platonismo recém vulgarizado com o cristianismo nascente – “cristianismo e gnosticismo nasceram juntos”, afirma Willer (p. 61) –, que a alquimia e o hermetismo, determinantes do espaço epistemológico daquela época, devam ser recuperados para nossa visão de mundo. Não nos parece, assim, apesar de sua reserva com relação a ele, que o estudo de Cláudio Willer ou, talvez possamos dizê-lo, seu gnosticismo, se enquadre neste gnosticismo moderno que B. Tolentino enxerga como “transformação de mero sistema de magias numa sofisticada auto-hipnose coletiva, daí em cultura-de-massas e mais adiante (por que não?) em mass murder”. (TOLENTINO, B. 2002, p.47) Trata-se, de fato, da poesia moderna e de nela reconhecer, como indica a palavra, conhecimento.1Neste sentido, “ao gnosticismo dos poetas não poderia faltar a gnose: é a própria poesia, identificada com o conhecimento”. (p. 444)
Diríamos, pois, que o interesse dos poetas pelo conhecimento é o que faz deles gnósticos e a consciência de que só é possível levar adiante esse interesse pela poesia, pela linguagem literária, o que faz deles modernos. Certamente a forma, determinada pelo conteúdo, atua sobre ele, e é neste sentido que, por exemplo, W. Blake ―interpretou o Novo Testamento de modo afim a um gnóstico marcionita, um adepto da separação total entre a doutrina cristã e a lei mosaica. E de heréticos que viriam a encabeçar a reforma protestante […] em nome do que proclamavam como o verdadeiro ensinamento de Cristo‖. E é assim que, segundo Willer, devem-se passagens como esta, da obra O casamento do céu e do inferno: ―Não existe virtude possível que não possa romper as leis desses dez mandamentos. Jesus Cristo era totalmente virtuoso, mas agia por impulso e não por regras‖ (p. 202). Orgulho, sem dúvida, mas orgulho estudioso; o sapere aude característico da poesia moderna. Deste modo, ninguém pode acusar num Baudelaire, num Lautréamont ou num Rimbaud, desleixo de análise ou ligeireza no trato de tais questões; a ninguém será dado duvidar do rigor metódico nem do trabalho árduo destes poetas, o que seria desconhecer completamente suas obras. O problema é que, mais do que preocupado com o conhecimento, o poeta é atormentado por ele e, nisso, vive integralmente a angústia de tal experiência, o que Georges Bataille chamou de ―experiência interior‖. Com isto, aquela enfermidade de orgulho do homem moderno, no âmbito mesmo da literatura, parece dever ser compreendido como experiência do impensável do pensamento. “A experiência é o encarar a questão (o fardo), na febre e na angústia, do que um homem sabe do fato de ser”. (BATAILLE, G. 2004, p.16) Esta parece ser a sabedoria (a sophia) que buscam os poetas, sabedoria rebelde, transgressora.
Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia moderna é um livro, sem dúvida, muito útil para os estudantes aspirantes a críticos, mas é também um livro que deve ser lido com cuidado. É útil na medida em que reivindica para a crítica o estatuto que é o dela, ou seja, a exigência de reconhecer na literatura, na poesia, pensamento; reconhecer que se está diante de reflexão, talvez a mais difícil, acerca de questões fundamentais. Willer tem razão ao afirmar que tão eclética e variada quanto o gnosticismo, é a própria poesia! De modo que, assim como o gnosticismo, a literatura não cabe numa ciência. Mas é também perigoso, pois, de certa maneira, expõe a poesia à insanidade midiática deste nosso gnosticismo moderno ou, antes, adolescente. Não que a poesia seja, ela mesma, susceptível à ignorância; mas como nada grassa mais facilmente que a estultícia, o gnosticismo pode ser tomado como arma para que ela amplie seus domínios e torne ainda mais perene seu reinado. Com este tema controverso, Cláudio Willer nos apresenta uma outra face sua: a de teórico acadêmico, ainda que malgré lui. Só podemos nos alegrar com esta obra instigante ao encarar este registro luminoso e encantador do conhecimento, que é o da poesia moderna.
Nota
1 Penso que é, assim, num outro registro que Tolentino, próximo em seu catolicismo do neoplatônico Plotino, afirma que “gnosis, apesar do termo grego original significar ‘conhecimento‘, é hoje o que em realidade sempre foi: a revolta, a sanha do arcanjo caído, o furto, tão inútil quanto impossível, do fogo do Céu por um Prometeu. Sob a roupagem ilustre de algumas das mais sofisticadas construções da mente humana, não em seu amor ao saber (philo-sophia), mas em seu ódio a este saber (phobo-sophia), que a ultrapassa de fato e de natura, em certas colocações esconde-se, hoje como antes, sempre a mesma antiguíssima modalidade do absurdo: a absurda vontade do homem enfermo de orgulho, a sede de um ‘saber‘ que desminta ou, melhor ainda, substitua a divina sabedoria”. (Op. Cit., p.45).
REFERÊNCIAS
BATAILLE, Georges. L´expérience intérieure. Paris: Galli-mard/Tel, 2004.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Trad. bras.: Salma T. Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
HADOT, Pierre. Plotin ou la simplicité du regard. Paris: Gal-limard/Folio, 2008.TOLENTINO, Bruno. O mundo como idéia. São Paulo: Globo, 2002.
Fábio Ferreira de Almeida – Professor-adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Goiás (UFG)., Goiânia, Goiás. E-mail: fbioferreira@yahoo.com.br