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Poder e Repressão / História Social / 2009
É atribuída ao chanceler Bismarck a conhecida declaração a respeito das leis e salsichas e da inconveniência de que o povo venha a saber como são feitas. O chanceler poderia ter acrescentado à sua comparação as instituições, cujos “ingredientes” e processos de fabricação são tão obscuros quanto os que resultam nas salsichas e cuja história é igualmente desaconselhável não apenas ao povo – que deveria respeitar e se submeter àquelas – como aos seus próprios componentes, que deveriam preferencialmente acreditar na missão e significado da causa que abraçam, coisa que freqüentemente fazem; não é por outra razão que devemos sempre desconfiar da história das instituições contada pelos nativos. E não é também por outra razão que cabe aos historiadores e aos demais cientistas sociais sabotar toda tentativa acobertadora dos discursos oficiais produzidos sobre as instituições – seja para acalmar os povos ou emular seus representantes – desvendando os processos históricos, as contingências ambientais e os desafios que agem como o fiat da montagem das instituições e respondem pelos enviesamentos determinantes produzidos na sua forma e no seu conteúdo.
E quanto a isso, ainda há muito que fazer. Comparada a outras historiografias, a história das instituições ainda é entre nós pouco freqüentada, em que pese o auspicioso crescimento de trabalhos na área, notadamente os voltados para objetos escamosos, destituídos de charme e até mesmo suspeitos, como a polícia e a justiça (estou certo que todos os que andam por essas áreas sabem o que estou dizendo e que já experimentaram o olhar de estranhamento dos ouvintes quando revelam seu tema de pesquisa).
E basta entrar numa sala de aula disposto a tratar do tema para se dar conta do quanto ainda pesa entre nós o cacoete de ver nas instituições um objeto menor, produto e instrumento da dominação, destituído de ‘gênero próprio’ e cujo estudo seria ocioso uma vez que revelaria o que já se sabe a partir do que já é supostamente sabido sobre a dominação e seus instrumentos.
No entanto, se os investigadores da área, como apontam Marcos Bretas e Francisco Linhares em textos que compõe esse dossiê, já ultrapassamos a fase de ver na polícia – e eu acrescentaria no sistema dejustiça como um todo – um mero instrumento dos grupos dominantes, sem complexidades próprias no que diz respeito à dinâmica que faz com que toda instituição se transforme em algo que é ao mesmo tempo menos e mais do que foi tencionado pelos que a propuseram e implementaram. Certamente esse número da História social: revista dos pós-graduandos em História da Unicamp é uma prova disso.
Os trabalhos dos autores acima citados, que se ocupam da análise de tentativas de proposição de um modelo de e um discurso sobre a polícia, ambas ocorridas na República Velha, são exemplares do modo como nos chamam a atenção para a necessidade de nos determos nos meandros do processo, em seus distintos momentos e em função de conjunturas diferentes, de formação da identidade profissional e corporativa, da construção de uma imagem institucional e, sobretudo, da distância entre discursos e intenções reformadoras e as condições sociais reais nas quais as instituições e as escolhas se tornam possíveis. É esse também o foco da análise de Thaís Battibugli ao apontar as complexas relações entre as instituições policiais e as disputas políticas em São Paulo no período democrático que se segue ao fim do estado novo, tomando a cultura institucional como uma variável chave no entendimento das ações e interesses num cenário de competição corporativa. Rogério Giampietro Bonfá nos mostra como o conceito de soberania nacional foi utilizado para legitimar a ação do estado na expulsão de estrangeiros e como essa construção foi conseqüência da submissão dos demais poderes ao poder executivo durante a República Velha.
Seja analisando a atuação da polícia na repressão aos africanos na Bahia pós-levante Malê, ou na repressão aos suspeitos de participação na Revolução Praieira em Pernambuco, como fazem respectivamente Luciana da Cruz Brito e Wellington Barbosa; seja ainda enfocando a formação e atuação da polícia secreta na repressão aos anarquistas em São Paulo no início da República, como o faz Claudia Baeta, os três autores apontam em seus trabalhos duas mesmas questões que me parecem centrais, e por isso mesmo não se trata de uma coincidência, mas um indicativo de por onde andam nossas percepções: o entendimento de que a ação das instituições – a polícia no caso – não é monolítica e que elas são atravessadas por pressões e contradições que produzem respostas distintas e abrem espaços de questionamento que – essa a outra questão – são percebidos e utilizados pelos diferentes atores envolvidos no conflito e na disputa dentro das instituições, campo de lutas e de possibilidades.
Entender processos específicos de conformação e atuação das instituições voltadas para o controle social continua a ser um desafio para a nossa historiografia. Desafio que os artigos que compõe esse dossiê enfrentam por diferentes ângulos e através de diversas perspectivas, todas elas apontando questões e problemas de análise instigantes e que, certamente, representam uma importante contribuição a uma história social das nossas instituições, sobretudo por apontar caminhos e possibilidades de análises de diferentes materiais empíricos. E lembremos que achar e indicar caminhos é a primeira condição para percorrê-los e encorajar outros a fazê-lo.
Por essa razão, sinto-me especialmente honrado em apresentar esse dossiê e espero que a dupla satisfação que obtive na leitura dos textos que o integram, tanto por suas qualidades quanto pelo que representam no avanço de uma área de pesquisa à qual tenho tentado somar minha contribuição, seja a mesma que os leitores venham a experimentar. E que tirem bom proveito!
Ivan de A. Vellasco – Professor Doutor. Universidade Federal de São João Del Rei.
VELLASCO, Ivan de Andrade. Apresentação. História Social. Campinas, n.16, 2009. Acessar publicação original [DR]