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Nietzsche, as artes do intelecto – BRUM (ARF)
BRUM, José Thomaz. Nietzsche, as artes do intelecto. Porto Alegre: L&PM, 1986. Resenha de: Resenha de: PIVA, Paulo Jonas de Lima. Argumentos – Revista de Filosofia, Fortaleza, n. 9, jan./jun. 2013.
Uma resenha sobre um livro pioneiro há tempos esgotado, feita para que ele seja mais do que lembrado, mas reeditado, cabe numa seção de resenhas de uma revista acadêmica de nível respeitável, a princípio destinada apenas para lançamentos? Inovemos se essa quebra de protocolo pode render bons frutos bibliográficos para as pesquisas em filosofia no Brasil.
Os estudiosos brasileiros do Marquês de Sade, bem como os do sensualismo e do materialismo modernos, foram contemplados recentemente pela Editora Champagnat com o relançamento, em segunda edição, de Desejo e prazer na Idade Moderna, livro de Luiz Roberto Monzani desaparecido das livrarias há vários anos. Outro caso relativamente recente de um relançamento capital ocorreu com a minuciosa e densa biografia de Jean-Paul Sartre escrita por Annie Cohen Solal, Sartre, uma biografia, publicada no Brasil, nos anos oitenta, pela L&PM, e que também estava fazendo falta na biblioteca dos especialistas e aficionados do pensamento existencialista. O livro voltou à tona em 2008, com um novo prefácio da biógrafa a propósito do centenário de nascimento do autor de A Náusea em 2005. O mesmo aconteceu com o esgotado e disputado Silogismos da amargura, do romeno Emil Cioran, reposto em circulação este ano pela Rocco, também em ocasião do centenário do nascimento do seu autor. Nessa mesma direção, a editora Autêntica já anunciou o relançamento do clássico O Erotismo, de George Bataille, também muito procurado, mas sumido até dos sebos.
Contudo, há uma longa lista de outras obras fundamentais de filosofia em português que precisam ser relançadas, algumas com urgência.
A dificuldade para encontrá-las e, quando encontradas, o preço exorbitante no mercado de sebo para adquiri-las, são motivos bastante persuasivos para que as editoras atendam a essa necessidade dos seus leitores. A Filosofia do Iluminismo, de Ernst Cassirer, livro lançado no Brasil pela Editora Unicamp e que em 1997 chegou à sua terceira edição, é uma delas. Até mesmo no mercado virtual de sebo é difícil comprá-lo. Quem conhece o livro sabe que muito se perde ao estudar o iluminismo sem ele. E por falar em publicações da Editora da Unicamp, o que dizer do clássico Carta a D’Alembert sobre os espetáculos, de Jean- -Jacques Rousseau, também há muito tempo uma raridade entre nós? Nesta direção, Nietzsche, as artes do intelecto, de José Thomaz Brum, é outro título desaparecido que merece ser ressuscitado. E a ousada L&PM, mais uma vez, que deu vida ao pequeno livro em 1986, na sua extinta “Coleção Universidade Livre”, deveria fazê-lo, ainda mais depois de ter posto no mercado seis traduções diretamente do alemão do autor de O Anticristo. Sua variada e riquíssima coleção de bolso seria a via ideal para tal empreendimento.
E por que esse ensaio, uma dissertação de mestrado defendida na PUC do Rio de Janeiro em 1984? Em Nietzsche, as artes do intelecto, Thomaz Brum se faz pioneiro.
Trata-se de um dos primeiros textos de um estudioso brasileiro a expor a concepção nietzschiana de conhecimento, num sentido lato, a epistemologia de Nietzsche. E Thomaz Brum o faz por meio de um exame cuidadoso de Introdução teorética sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral, texto inacabado de 1873 e publicado postumamente, e de alguns fragmentos póstumos de Nietzsche dedicados ao assunto.
Construção antropomórfica da natureza; redução da realidade a uma interpretação humana demasiado humana; adequação e conversão do universo à perspectiva de uma espécie biológica específica, a humanidade; ficção, ilusão e erro de um animal determinado voltados para a sua preservação vital; em última instância, obra de arte que possibilita a sobrevivência dos seres humanos. Em linhas gerais, é assim que Thomaz Brum entende e define o conhecimento em Nietzsche. E a concepção de homem da qual parte tal interpretação é a de um ser que não é criatura de uma divindade, que não é imagem e semelhança de um ser supremo, uma vez que este não existe. Porém, mesmo assim, por pura vaidade e engano, homem se sente o centro do universo, embora sua existência seja absolutamente insignificante, contingente e gratuita do ponto de vista onto e cosmológico. Esse ser vaidoso − as moscas, como bem observa Nietzsche, também se sentem o centro esvoaçante do universo, assim como as formigas se sentem a finalidade da floresta −, sem criador nem lugar privilegiado na natureza, à deriva num processo sem teleologia, não passaria de um animal em meio aos demais lutando pela sobrevivência. Não dispondo de garras ou chifres para se defender, ele usa o intelecto para suprir sua vulnerabilidade e manter-se vivo no interior de um planeta perdido em meio a bilhões de tantos outros. Por meio desse intelecto o homem lança-se em abstrações, constructos, elaborando teses e doutrinas, elucubrando sistemas e explicações, e o faz com a sua especificidade animal, portanto, como uma atividade biológica, tal como a abelha produz o mel e a mariposa tece o seu casulo.
Donde se segue que não há essências para serem descobertas, nenhuma coisa-em-si para ser revelada, tampouco uma objetividade a ser alcançada na investigação das causas e da natureza das experiências. A verdade mostra-se então artifício, ferramenta eficaz, expediente útil, uma convenção lingüística, mais precisamente, figura de linguagem. No dizer do próprio Nietzsche, a verdade consiste num “batalhão de metáforas, metonímias, antropomorfismos”, isto é, numa “soma de relações humanas que foram realçadas poética e retoricamente, transpostas e adornadas”. O homem do conhecimento seria então um artista, de certo modo um poeta, embora não se veja e relute a se ver como tal. A ciência, por conseguinte, faz-se arte, talvez a mais necessária delas, pois, além de garantir a preservação da espécie humana, atribui um sentido humano a um mundo essencialmente inumano.
A linguagem, obviamente, também é humanizada e naturalizada por Nietzsche. Ao contrário da convicção da tradição, ela não é portadora de nenhum ser. Thomaz Brum mostra que Nietzsche a entende também como um artifício humano, porém, enfatiza, um artifício arbitrário e parcial, de procedência orgânica, física, baseado em estímulos e sons, repleto de imprecisões, falhas e limitações na apreensão da totalidade.
Sua origem é a falsificação. O conceito? Um exercício de simplificação, uma abstração mutiladora das particularidades das coisas e dos fenômenos, em última instância, uma deturpação do que é aludido e teorizado.
Contudo, explica Thomaz Brum, é por meio da ficção da verdade e da crença no poder da linguagem de nos viabilizar o acesso ao real tal como ele é que a vida gregária se constitui e, sobretudo, estabiliza-se; é por meio dessa arrogância que o homem estabelece regras, que ele atribui um valor e um sentido à sua vida e à do rebanho que compõe; enfim, que ele tenta administrar seus conflitos com o outro, dominar a natureza e se impor diante das adversidades. Para isso, ele institui “verdades” e “mentiras”, por conseguinte, com base nesses critérios, seleciona os indivíduos aptos ou não para o convívio. Quem mente contra o rebanho não tem lugar dentro dele.
A ciência, por outro lado, efetiva-se como um instrumento de potência, como uma vontade humana de subjugar. Ao contrário da concepção de ciência da tradição, contaminada até os ossos pela metafísica, a concepção nietzschiana de ciência torna a verdade demasiadamente humana e o conhecedor um sujeito ativo e criador. Em suma, mesmo o conhecimento sendo uma construção antropomórfica do mundo – uma humanização da natureza e dos fatos – e a verdade uma mentira, uma crença numa ilusão, um erro útil, uma invenção interessada, ambos são crucialmente necessários à nossa espécie.
Thomaz Brum encerra seu percurso pelo pensamento nietzschiano sobre o conhecimento e a verdade sugerindo um pragmatismo avant la lettre em Nietzsche. Já que a realidade da natureza é inacessível ao nosso intelecto, que o universo é um caos a nós estranho, já que o animal homem está confinado inelutavelmente ao seu ponto de vista e ele é a medida das coisas, valorizemos a eficácia, a utilidade, o resultado favorável à sobrevivência. Não mais transcendências, não mais indagações sobre o que são as coisas em si mesmas. Que o animal homem se faça sujeito criador de sentido e legislador; que a ciência se desvencilhe de uma vez por todas da metafísica e se norteie doravante pela vontade e por valores afirmativos da efetividade, como o da conservar e da intensificação da vida. A razão agora deve ser razão prática, conclui Thomas Brum, e o animal homem deve se impor diante da natureza como um demiurgo, ou seja, num universo sem deuses nem teleologia, ele deve perceber que está entregue a si mesmo e às suas invenções. É por tudo isso que o pequeno e pioneiro livro de Thomaz Brum precisa voltar ao mercado.
Paulo Jonas de Lima Piva – Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo. E-mail: pjlpiva@hotmail.com
Tratado de ateologia: física da metafísica – ONFRAY (RFA)
ONFRAY, Michel. Tratado de ateologia: física da metafísica. Tradução de Mônica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 2007. Resenha de: PIVA, Paulo Jonas de Lima. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.21, n.28, p.249-254, jan./jun., 2009.
Já era hora. Com o desmoronamento do stalinismo no leste europeu e do ateísmo de Estado nos países sufocados pelo seu domínio, muita coisa mudou no mundo. Hoje, a burguesia protestante, a plutocracia judaica, os sheiks do petróleo, as oligarquias católicas da América Latina e o alto clero do Vaticano respiram mais aliviados, além de sorrirem triunfantes, afinal, o comunismo ateu como projeto histórico não assusta mais ninguém. Todavia, se por um lado o comunismo parece inofensivo na atual conjuntura histórica, por outro, o ateísmo, agora não mais um monopólio do marxismo, continua incomodando muita gente. Dentre os incomodados seguramente não está mais o capital. Ocorre que os autores ateus resolveram – ou conseguiram – finalmente sair dos guetos nos quais estiveram por muito tempo confinados. Dissociado da foice e do martelo, o ateísmo desponta nesta primeira década de século como uma mercadoria promissora para o megamercado editorial, o qual decidiu apostar alto nessa novidade de consumo para o grande público.
Mas nem tudo neste planeta globalizado parece ser business. A reação ao despertar dos autores ateus via mídia foi imediata e implacável. Carolas de todas as estirpes e meios, das faculdades de teologia aos cadernos de cultura e às revistas semanais, entraram em histeria, colocando a fé religiosa mais uma vez como vítima de perseguição. O lançamento quase simultâneo dos livros Tratado de ateologia: física da metafísica, de Michel Onfray, Deus, um delírio, de Richard Dawkins, Deus não é grande, de Christopher Hitchens, e Quebrando o encanto, de Daniel Dennet – todos traduzidos para o português –, levou muitos religiosos assumidos ou travestidos de laicos a conclusões precipitadas e previsões alarmistas, a principal delas, a do surgimento de um temerário e antidemocrático “fundamentalismo ateu”.
Quanto exagero e leviandade! Sendo o ateísmo uma doutrina como outra qualquer, ela pode, dependendo do ateísmo em questão, exprimir-se como uma crença dogmática, portanto, resvalar eventualmente num fundamentalismo intolerante e antidemocrático. Contudo, não se trata de uma regra, pois há vários modos de ser ateu. Trata-se, no fundo, da projeção sobre os autores ateus de um comportamento que é típico e histórico das instituições, dos asseclas e dos ideólogos das religiões. A propósito, quanta intolerância por parte desses cães de guarda da fé! Quanta suscetibilidade à crítica! Quanto medo da divergência e sobretudo do confronto de ideias! E ainda mais numa época em que a democracia liberal, com os seus valores de liberdade de pensamento e expressão, de defesa do pluralismo e de abertura e incentivo ao debate, consolidase como o regime politicamente correto por excelência!
Ao que parece, estamos diante de dois pesos e duas medidas. Intoxicar a mente e o coração das pessoas com os contos fantasiosos dos evangelhos é permitido; captar dízimos junto a pessoas humildes e aflitas não é crime; difundir os dogmas morais misóginos e homofóbicos de Alá não é discriminação; mutilar arbitrariamente, por motivo de fé, indefesos recém-nascidos com a circuncisão não é um ato de barbárie; fomentar o estereótipo de que toda pessoa sem religião seria louca ou imoral não é injúria ou difamação. Em contrapartida, escrever e teorizar sobre as religiões interpretando-as como mitologias sem consciência de si ou como ficções que relutam em não se admitir como tais, e demonstrar que a ideia de divindade é uma fábula alienante ou um subterfúgio infantil, isto, no entender dos nossos religiosos democratas, não convém se alastrar; é perigoso, advertem tensos e preocupados os fiéis mais ardorosos; tratar-se-ia, repetem em uníssono os cães de guarda da fé, de um inaceitável desrespeito contra o sentimento religioso de um povo e de uma odiosa intolerância contra Deus e a fé.
Michel Onfray é um dos principais alvos dessa reação intolerante e alarmista por parte dos nossos religiosos democratas. O seu Tratado de Ateologia é sem dúvida um dos mais contundentes escritos ateus dessa leva. Estima-se que mais de duzentos mil exemplares da obra tenham sido vendidos só na França. Reivindicando o espólio crítico da esquerda das Luzes francesas, isto é, da radicalidade, do vigor e da militância anti-religiosa de filósofos materialistas e ateus como o padre Jean Meslier, o médico La Mettrie, o Barão de Holbach e o autor do Dicionário dos Ateus, Sylvain Marechal, Onfray faz do seu livro um libelo tão demolidor quanto sedutor contra os três monoteísmos preponderantes no planeta, a saber, o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. A finalidade do seu empreendimento? “Aumentar as Luzes”. Em outras palavras, contribuir para que o homem finalmente saia da sua condição de menoridade e alcance a sua maioridade, na trilha do Alfklarung de Kant.
O ponto de partida da sua “ateologia” – termo emprestado de George Bataille – surpreende. Ao invés de endossar o anúncio deicida do louco do mercado que aparece no aforismo 125 de A gaia ciência, de Nietzsche, Onfray, um entusiasta divulgador de um “nietzschianismo de esquerda”, afirma exatamente o contrário: embora a morte de Deus seja uma boa notícia, ela é falsa e ilusória. De acordo com o seu diagnóstico, “Deus ainda respira”, e com muito mais fôlego do que alguns imaginam, pois “uma ficção não morre, uma ilusão não expira nunca, não se refuta um conto infantil”. E arremata: “Estamos a anos-luz de um tal progresso ontológico […]”.
Na verdade, quem mata é Deus. Para Onfray, Deus mata tudo o que lhe resiste. Ou seja, Deus assassina a razão, a inteligência, o espírito crítico, a liberdade, o prazer, o instinto, a felicidade. Assim sendo, o niilismo impera crônico sobre a nossa cultura e sobre a nossa relação com a vida. É contra esse culto e essa paixão pelo Nada, contra esse olhar impotente e ressentido que despreza e calunia a vida, que tece subterfúgios para aqueles que não têm estrutura psicológica para encarar o real, que a ateologia de Onfray se posiciona. Sua perspectiva é a do amor fati, do dizer um Sim incondicional e trágico à vida.
No Tratado de Ateologia, Onfray também vira pelo avesso outra tese clichê: a de que sem Deus tudo é permitido, isto é, a tese de que nenhuma moral subsiste sem a fé num deus que remunera com o paraíso e pune com o inferno. No seu entender, além do ateísmo desanuviar um horizonte ético bastante alvissareiro, o contrário do clichê dostoievskiano é que seria verdadeiro: com Deus é que tudo se torna permitido. Basta lembrar que as maiores calamidades históricas, da Inquisição ao 11 de setembro, passando pelo massacre físico e cultural dos índios da América Latina, foram feitas em nome de Deus. É por esta e outras razões similares que, para Onfray, a crença numa divindade consiste numa infantilidade mental, mais precisamente num sintoma de uma doença psicológica. Fazendo uso da psicanálise, Onfray não titubeia em suas afirmações. O deus judaico-cristão aparece no Tratado como a mais absurda de todas as divindades, uma vez que se trata de uma abstração repleta de contradições, as quais o iluminismo francês soube explorar com maestria.
Investigando mais a fundo a patologia da fé religiosa, Onfray mostra que na história da humanidade encontramos divindades para todos os gostos, necessidades, conveniências e fantasias. Encontramos, por exemplo, a escatológica deificação da merda na figura do deus Stercorius; o culto ao lixo, por meio da veneração à divindade Cloacine; e até o culto ao peido, este representado pelo deus Crepitus. Já no caso do deus judaico-cristão, cuja representação é extremamente obscura e contraditória, teríamos o culto ao nada.
Quanto à figura de Jesus Cristo, Onfray não é menos contundente e taxativo no seu livro. Nenhum documento, nenhum vestígio confiável, nada de concreto sobre a sua existência física e histórica. De onde se segue que Cristo nunca existiu. Em nenhum instante da história da humanidade esse “redentor”, esse “filho de Deus”, passou pela Terra. Tudo não passaria de fábula, de um construto do imaginário humano e da astúcia política. Cristo teria existido como Zaratustra, Ulisses, Sísifo, ou como qualquer outro personagem lendário ou literário. Na verdade, sustenta Onfray, quem criou Jesus Cristo foi Marcos, um dos quatro evangelistas, no ano 70. Vale assinalar que nenhum dos quatro autores dos evangelhos conheceu o Cristo pessoalmente. Marcos foi acompanhante de Paulo de Tarso, o “São Paulo”, em sua peregrinação, de onde é possível inferir que este tenha sido uma das fontes de Marcos. Cabe ainda dizer que os evangelhos só foram escritos após a morte de Paulo, que também não conheceu Cristo pessoalmente. No fundo, a lenda de Jesus Cristo – e de tantas outras lendas religiosas – teria sido fruto das aspirações de homens e mulheres desesperados, num momento histórico em que o obscurantismo, a superstição, a fome e o sofrimento eram intensos, numa época em que não faltavam beatos, arautos do apocalipse e fanáticos religiosos prometendo redenções e paraísos.
E como o cristianismo teria se proliferado e se consolidado? Onfray atribui tal feito fundamentalmente à sagacidade política do imperador Constantino. Aproveitando-se da adesão em massa dos seus súditos ao cristianismo e em especial da máxima de São Paulo de que toda autoridade provinha de Deus, portanto, que caberia a todo cristão subordinar-se a essa vontade, Constantino não apenas se converteu ao cristianismo como ainda soube conquistar os cristãos com inúmeros agrados. Construiu templos, promoveu isenções de impostos a um clero em formação e capitaneou uma perseguição implacável ao paganismo, levando à destruição uma infinidade de bibliotecas e de insubstituíveis obras de arte greco-romanas. O resultado disso? Obediência cega por parte do povo e estabilidade política. Nas palavras de Onfray, um “golpe de Estado magistral” de Constantino.
Motivada por esse casamento perfeito entre ambição e fanatismo, a mãe de Constantino inventou o túmulo de Cristo. Mais tarde, a Igreja Católica, já na condição de potência imbatível, sobretudo pela transformação do cristianismo em religião de Estado pelo imperador Teodósio, em 380, forjou o “santo sudário”, este, desmascarado inúmeras vezes pela ciência.
De Cristo e Constantino a Adolf Hitler. Contrariando uma certa classificação, Onfray exclui Hitler do rol dos ateus. Na verdade, Hitler teria sido um cristão, mais exatamente um católico. As relações entre o Partido Nacional-Socialista e o papa Pio XII mostram muito bem essa filiação religiosa do ditador alemão e também a simpatia política e ideológica do pontífice. O ponto de confluência ideológica e política entre a Igreja Católica e o nazismo foi o combate impiedoso aos judeus e aos comunistas. Uma consequência prática dessa aliança tácita pode ser verificada nas excomunhões do Vaticano no período da ascensão de Hitler ao final da Segunda Guerra. Dentre os excomungados, vários pensadores comunistas e escritores judeus, nenhum ideólogo nazista. Livros de Jean-Paul Sartre, André Gide e de Simone de Beauvoir foram todos para o Index. Já o Minha Luta, o testamento político de Hitler, não. Onfray relata ainda que quando Hitler morreu uma missa foi realizada em sua homenagem e vários mosteiros foram utilizados para acobertar os líderes nazistas em fuga. Mais: no auge do nazismo na Alemanha, enquanto comunistas, homossexuais, judeus, testemunhas de Jeová e ciganos eram perseguidos e barbarizados, a Igreja Católica alemã manteve-se ilesa, para não dizer protegida.
O cristianismo de Hitler tinha como fonte ideológica a passagem bíblica dos mercadores do templo, quando o personagem Jesus Cristo, enfurecido, expulsa os judeus que faziam negócios dentro de um espaço sagrado. Tal passagem foi interpretada por Hitler e pelos ideólogos nazistas como uma declaração explícita de anti-semitismo proferida pelo próprio Cristo. Portanto, o Jesus do nazismo era bastante diferente daquele Jesus compassivo e pacífico que oferece a outra face ao inimigo. Ao que parece, esse Cristo anti-semita e neurastênico era também o Cristo do papa Pio XII e da cúpula da Igreja. Para evidenciar ainda mais essa aproximação entre o nazismo e a Igreja Católica, Onfray ressalta que ressuscitar o império cristão de Constantino foi o sonho fracassado de Hitler e de Pio XII, bem como fazer valer rigorosamente as máximas de Paulo de Tarso, dentre elas, a de queimar livros e a de obedecer cegamente às autoridades políticas.
Nem mesmo o próprio ateísmo escapou da retórica afiada e iconoclástica de Onfray. Ele chama a atenção no seu Tratado para a indigência bibliográfica a respeito do tema e denuncia o esforço da história da filosofia oficial para marginalizar as obras dos autores ateus em benefício de correntes e doutrinas de índole e raiz teológicas. Do mesmo modo critica os equívocos e a leviandade de livros como História do Ateísmo, de George Minois, e L’Atheísme, de Henri Arvon, dentre outros, os quais empregam o conceito de ateísmo indiscriminadamente, sem nenhum rigor, chegando a classificar de ateus filósofos como Epicuro, Lucrécio, Hobbes, Espinosa e até Pierre Bayle. Onfray afirma com veemência que o primeiro pensador declaradamente ateu foi Jean Meslier, uma vez que ninguém antes dele sustentou textualmente a inexistência de Deus. Embora atomistas, Epicuro e Lucrécio fazem referência a deuses de átomos. Quanto a Hobbes, seus textos sugerem uma profissão de fé numa divindade, não necessariamente cristã. O mesmo poderíamos dizer de Espinosa, para o qual Deus sive natura. Já no caso de Bayle, mesmo mostrando simpatia por uma sociedade ateia, seus textos estão longe de permitir defini-lo como um ateu.
Com o intuito de produzir o ateísmo como uma etapa necessária rumo à superação definitiva do niilismo, a ateologia de Onfray propõe a possibilidade de se edificar “uma verdadeira moral pós-cristã”, ou seja, uma visão de mundo dionisíaca, absolutamente laica e fundamentada nas ciências, nas artes e nas filosofias lúcidas. Para isso é essencial o debate, substituindo assim as fogueiras, as perseguições e as censuras, e um diálogo pautado pelo respeito à diversidade e aos pontos de vista antagônicos, por mais contundentes e veementes que eles sejam. Que as teses e os argumentos, sejam eles ateus, religiosos ou céticos, possam se enfrentar sob um céu de total liberdade e tolerância, possibilitando aos espectadores do conflito decidirem-se sobre eles conforme o juízo de cada um. Nisso consistiria o “fundamentalismo ateu” da ateologia de Michel Onfray.
Paulo Jonas de Lima Piva – Doutor em Filosofia pela USP. Pesquisador de pós-doutorado pela FAPESP. Professor da Universidade São Judas Tadeu, São Paulo, SP – Brasil, e-mail: prof.piva@usjt.br
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