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Manifestações das religiosidades no espaço cemiterial | Revista Brasileira de História das Religiões | 2021 (D)
Assim caminha a religiosidade. Imagem: ValmirSarmento.wordpress.com |
Apresentação
Nós só temos uma certeza
É que a vida tem um norte
Que nos leva para a morte
Faz parte da natureza
E nisso temos clareza.
No mundo qualquer sujeito
Tem tudo o mesmo direito
Não se fazendo mistério
– RICO OU POBRE, O CEMITÉRIO
RECEBE DO MESMO JEITO.
(Mote inspirado em Dalinha Catunda)
O ano de 2020 foi duramente impactado pela pandemia de Covid-19. Contaminação, isolamento, distanciamento social e mortes fizeram parte de nossa realidade nos últimos meses, afetando a todos ainda que de diferentes maneiras. Rituais foram interditados, reduzidos e ressignificados em alguns momentos e este local de despedida e homenagem foi esvaziado de sociabilidades e práticas religiosas, mas infelizmente ocupado pelos numerosos cadáveres vítimas dessa doença. Não apenas como um local cercado onde cadáveres são enterrados, o cemitério enquanto espaço para as manifestações religiosas também sentiu os efeitos dessa mudança recente, celebrações de devoções coletivas e individuais foram neste contexto interditadas. A sepultura enquanto signo da presença do morto para além da morte (ARIÈS, 1975) não pode cumprir plenamente sua função: ainda que continue afastando o cadáver agora contaminado, não permite rituais e simbologias que expressem essa passagem e recordação para os familiares e entes queridos.
Esta dimensão sagrada neste espaço de sepultamentos é encontrada em diversas culturas e é objeto de grande produção historiográfica no Brasil. Um de seus percursores é o sociólogo Clarival do Prado Valadares que na sua obra já clássica Arte e Sociedade nos Cemitérios Brasileiros enfatiza a transferência na crença de qualidades místicas dos mortos, ou a denominação de almas santas, que antes era limitada a padres para os mortos comuns com a laicização dos cemitérios (VALADARES, 1973, p.441). Sepulturas cujos mortos são dotados de algum tipo de santificação ou poder místico estão presentes em diferentes espaços e tempos. Devoções temporárias ou seculares não indicam um só modelo de morto. Do bandido à criança, vítimas de doenças, epidemias ou assassinatos, a diversidade no caráter do escolhido é tão ampla como a causa de seu falecimento. As formas de manifestação dessas devoções também são distintas, das mais comuns placas passando por gêneros alimentícios, objetos sagrados ou profanos, alguns permanecem e outros inéditos são acrescentados a este rol de ex-votos. A grande possibilidade de promessas, segundo Maia, indica como é a compreensão do milagreiro na vida desses devotos (MAIA, 2019, p. 127).
Essa espontaneidade devocional inspira a análise dessas práticas. Independente da vida ou do bom ou mau exemplo, da aprovação ou não de uma instituição religiosa, o milagreiro estabelece uma relação íntima com o devoto, um afeto concreto e sentido (ANDRADE JÚNIOR, 2008, p.97) Nesta chamada temática o objetivo geral foi reunir pesquisas que discutiram o cemitério para além desse espaço de sepultura dos mortos. Os textos aqui publicados procuraram identificar neste espaço as crenças, vivências e práticas religiosas articulando a necrópole com experiências variadas de devoção e representações individuais da fé.
Nessa perspectiva, reunimos textos que trazem contribuições para o debate do cemitério como espaço possível de múltiplas manifestações religiosas. Nossa amostra aqui publicada, indica as variadas possibilidades de abordagem dessa temática e a abundância de fontes e de pesquisas com diferentes interesses.
A chamada contém cinco artigos em que as relações entre as religiosidades e os cemitérios são pesquisadas a partir de abordagens específicas que apontam para as possíveis dinâmicas desse objeto de estudo. No primeiro artigo de Ludimila Campos, Piedade Mariana e hibridismo cultural na catacumba de Santa Priscila e no sarcófago de Adelfia (séc. III-IV) o processo de enterramentos subterrâneos na Roma Antiga e a mistura entre culturas pagãs e o cristianismo permitem ao pesquisador entender como certos elementos foram apropriados pela nova crença. As inscrições nos sarcófagos caracterizam a riqueza de fontes possíveis para evidenciar o hibridismo que é a marca dessas manifestações. O artigo demonstra como nestes espaços já existia uma religião mortuária pagã e que com o cristianismo essa cultura funerária recebeu novas particularidades.
O segundo artigo é marcado por um grande salto cronológico e espacial. Em Consolo escatológico: cemitérios, morte e porvir em relatos e obituários adventistas durante a Gripe Espanhola, Allan Macedo de Novaes problematiza a questão do espaço cemiterial para uma instituição religiosa em que tal aspecto foi pouco explorado. Sua grande contribuição nessa pesquisa está na análise de um conjunto riquíssimo de fontes que apresentam os cemitérios como espaços de disputa para os membros da Igreja Adventista neste contexto de epidemia, em que o evangelismo e a confirmação da doutrina indicam o predomínio dos ritos fúnebres dirigidos por consolo escatológico. O artigo questiona como a não crença no além e as narrativas apocalípticas influenciam os sentidos de morte e salvação que rondam o lugar do cemitério nas narrativas adventistas da Revista Mensal.
Os milagreiros de cemitério são o tema do artigo Maria Adelaide (XIX) e Antero da Costa Carvalho (XX) a religiosidade popular no espaço cemiterial de Jaciely Soares Silva. A questão da religiosidade popular é analisada a partir de dois estudos de caso um do Brasil e outro de Portugal. Nesta perspectiva, o artigo discute a devoção a Antero em Catalão-GO, Brasil, que em 1930 foi linchado pela população e, Adelaide, pertencente à freguesia de Arcozelo, em Portugal, exumada em 1916, muitos anos após seu falecimento e que seu corpo foi encontrado incorrupto. Casos distintos, em espacialidades distantes, mas que possuem pontos de união, manifestada principalmente pela superação de sua existência privada para a esfera de um sagrado coletivo. A dimensão da apropriação e ressignificação desses mortos constitui elementos de um poder popular de escolha de suas devoções. O protagonismo do devoto é enfatizado nestes dois exemplos.
Nós que aqui estamos a vós ajudamos é o artigo dos pesquisadores José Cláudio Alves de Oliveira e Edvania Gomes de Assis Silva. A comparação entre duas manifestações religiosas cemiteriais é apresentada no texto a partir das análises da devoção nos Estados Unidos no espaço da sala de milagres do cemitério de São Roque (Saint Roch), em Nova Orleans; e no Brasil, no Cemitério da Consolação em São Paulo, nos túmulos de Antônio da Rocha Marmo e de Maria Judith de Barros. O significado cultural do espaço cemiterial é abordado nessa análise que percebe na presença e riqueza de ex-votos a dimensão incontrolável da devoção aos mortos e sua capacidade de interceder nos pedidos dos vivos. Nesta pesquisa, a conexão entre morte ou morto e a graça que pode ser concedida evidencia os múltiplos sentidos dessa devoção. Maria Judith de Barros pode ser solicitada igualmente por estudantes que enfrentam concursos como Enem ou Vestibular e pessoas que estão com problemas conjugais ou desejam adquirir uma casa própria.
Finalizando o volume, contamos com o artigo Morte e cemitério na memória coletiva e identidade étnica dos pomeranos e seus descendentes no Brasil de Renata Siuda-Ambroziak e Cione Marta Raasch Manske. O objetivo deste artigo é refletir sobre o papel da morte e o local do cemitério na memória coletiva entre os pomeranos e descendentes assentados em Santa Maria de Jetibá, no Espírito Santo. A contextualização da inserção dessa comunidade e a articulação com a questão religiosa, já que se configurava em um grupo luterano, influenciaram a ênfase em aspectos étnicos que reforçassem as origens. Os três cemitérios analisados na pesquisa, exemplificam a manutenção das tradições, e também os conflitos entre questões identitárias e a nova realidade enfrentada pela comunidade.
A chamada temática procurou avançar na temática a partir de diferentes propostas teórico-metodológicas em que este espaço dos mortos, o cemitério, permite a compreensão de diversificadas formas de devoção e religiosidade, marcadas pela valorização deste espaço e da memória desse indivíduo morto. Esta dimensão do cemitério permite a compreensão das transformações nos processos do morrer e de nossa relação com os mortos, o que atrai, afasta ou leva ao total esquecimento uma devoção. Num momento tão trágico para a História da Humanidade e especialmente para o Brasil, pensar na valorização dos cemitérios, práticas de memória e o culto aos mortos é um desafio diário e uma forma de resistência.
O volume finda com artigos livres.
Dra. Adriane Piovezan (FIES – Faculdades Integradas Espírita)
Dr. Lourival Andrade Júnior (UFRN-CERES-DHC/Programa de Pós-graduação em História dos Sertões)
PIOVEZAN, Adriane Piovezan; ANDRADE JÚNIOR, Lourival. Apresentação – Manifestações das religiosidades no espaço cemiterial. Revista Brasileira de História das Religiões. Marigá, v.14, n.40, p.5-8, maio / ago. 2021. Acessar publicação original [IF].