Nazareno Confaloni: arte & modernidade como experiência religiosa | Jacqueline Vigário

É preciso aproximar o artista da realidade vivida pelo povo, caso contrário, o artista viverá desambientado e incompreendido.

Frei Nazareno Confaloni

As produções acadêmicas pela lente da História Cultural têm muitos exemplos interessantes de reflexões historiográficas a partir das imagens, e a obra Nazareno Confaloni. Arte & Modernidade como experiência religiosa é um dos mais recentes deles. Vencedora do prêmio Sandra Jatahy Pesavento do ano de 2018, trata-se da tese de doutorado de Jacqueline Siqueira Vigário, defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás em 2017, que acaba de ser publicada pela Edições Verona e discute a modernidade em Goiás a partir da vida e da obra do frei dominicano e artista plástico italiano, Nazareno Confaloni.

Ao longo de seu texto, Vigário nos leva pelos meandros da construção da modernidade em Goiás ao longo das décadas de 1950, 1960 e 1970, a partir das bases, especialmente, da Escola Goiana de Belas Artes (EGBA) e do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás (IHGG), na esteira da transferência da capital goiana da cidade de Goiás para Goiânia por Pedro Ludovico Teixeira na década de 1940, sob as bênçãos do Estado Novo. As reformulações culturais do regime de Vargas são a base para o IHGG, que legitima culturalmente o Estado de Goiás em relação ao resto do Brasil, constituindo-se, segundo a autora, em uma instituição legítima no exercício de promoção dos projetos políticos de modernização e construção do imaginário de modernidade para Goiás (VIGÁRIO, 2021, p. 278). Leia Mais

Giotto e os oradores: as observações dos humanistas italianos sobre pintura e a descoberta da composição pictórica (1350- 1450) | Michael Baxandall

Dos materiais de que o historiador dispõe para realizar uma pesquisa no universo do dito “Renascimento”, não se pode deixar de levar em conta a quantidade massiva dos discursos, sejam eles verbais ou visuais, cujos usos e consumo atendiam a critérios que hoje desconhecemos. Um indício dessas diferentes correspondências é a evidência com que, hoje, os pintores e autores do período sejam considerados gênios criativos e originais, termos impensáveis nas práticas em que se inseriam ao menos até o século XVIII. Em seu lugar havia técnicas retóricas e dispositivos artísticos muito regrados que então regiam a produção dos discursos. Nessa perspectiva, as artes da escrita e da pintura estavam amparadas na tópica horaciana do ut pictura poesis, que propunha uma relação de homologia dos procedimentos retóricos ordenadores de decoro e conveniência em relação às partes internas do discurso.

É considerando as relações entre as artes e as práticas letradas que o livro Giotto e os oradores estabelece um problema de fundo que envolve as relações de homologia estabelecidas historicamente entre a pintura e a escrita nos séculos XIV e XV. Por mais que tenha sido publicado em 1971, o livro do historiador da arte Michael Baxandall, por meio de uma escrita clara e ao mesmo tempo aguda, apresenta argumentos que mantêm rendimento, capazes de mobilizar o entendimento e, em consequência, o estudo de tais assuntos. Uma prova disso é a sua recente tradução para o português. Leia Mais

Giotto et les humanistes: la découverte de la composition em peinture, 1350-1450 – BAXANDALL (Ph)

BAXANDALL, Micheal. Giotto et les humanistes: la découverte de la composition em peinture, 1350-1450. Tradução Maurice Brock. Paris: Seuil, 2013. Resenha de: CARDIM, Leandro Neves. Philósophos, Goiânia, v. 21, n. 1, p.235-249, jan./jun., 2016.

A versão mais próxima para o português do título deste livro de Micheal Baxandall (1933-2008) escrito originalmente em inglês é: Giotto e os oradores. Os humanistas observadores da pintura na Itália e a descoberta da composição pictórica 1350- 1450. Sua primeira edição de 1971 é ilustrada e vem acompanhada de um aparato crítico extraordinário. A última tradução para o francês é a que tomaremos por referência nesta resenha. Mas é preciso dizer que esta tradução, apesar de seu cuidado linguístico, peca principalmente por dois motivos: ela não traz nenhuma das dezesseis ilustrações, tão importantes para o texto de Baxandall, nem os vinte excertos de textos em latim e em grego de alguns dos autores trabalhados no corpo do livro. Supressão injustificável pratica e teoricamente: na prática, tanto as imagens quanto os textos poderiam ser consultados como fontes de pesquisa; teoricamente, porque faz parte da tese do livro mostrar a relação entre tais imagens e textos. Quanto às ideias veiculadas pelo livro é preciso chamar a atenção, desde seu longo título, para o fato de que o autor se propõe analisar não só a obra dos primeiros humanistas que foram observadores da pintura, ou melhor, aquilo que eles disseram sobre a pintura, mas também, e este é o ponto alto do livro, analisar a descoberta propriamente humanista do conceito de composição.

Baxandall toma todo o cuidado de relacionar de modo muito estreito as regras da figuração pictórica com a arte da retórica, e é isto que tentaremos tornar sensível nesta resenha; mas veremos, além disto, que em um mesmo movimento, o autor rastreia a historicidade do conceito de composição com o objetivo de marcar momentos de continuidade e de ruptura relativamente a seu uso vigente no início do Renascimento. Quanto à referência a Giotto e aos oradores, ela deve ser compreendida como o horizonte do livro. Giotto e os oradores delineiam o índice de um problema de fundo que envolve as delicadas e controversas relações que se estabeleceram historicamente entre as duas disciplinas em questão: a pintura e a poesia. O leitor não deve procurar ali alguma espécie de discurso sobre o alcance da pintura de Giotto, não se trata de um livro sobre a história da pintura de Giotto e de suas relações com os oradores, exímios usuários da retórica antiga. Porém, é possível dizer que o livro nos conduz de tal modo através de várias considerações sobre Giotto entre os primeiros humanistas que, no limite, talvez seja possível depreender dali um debate sobre a história da arte no sentido estrito da palavra.

O livro analisa três gerações de humanistas para mostrar que a palavra e a imagem estão emaranhadas na produção de uma mesma estrutura retórica: a composição de uma beleza ordenada. Baxandall aborda “dois problemas conexos”: o primeiro e mais geral é o de saber “o quê, nas preferências visuais, procede da linguagem”, o segundo e mais local diz respeito à “contribuição mais interessante dos humanistas à nossa apreensão da pintura”: o conceito de composição. Em primeiro lugar, Baxandall insiste que “a gramática e a retórica em uso em uma língua dada inflecte substancialmente a maneira com a qual se descreve as imagens” (BAXANDALL, 2013, 21). Isto é compreensível porque a referência à gramática e à retórica determina o tipo de atenção que os primeiros humanistas dirigem à pintura. É justamente isto que põe em relevo o interesse de Baxandall pelo latim humanista, detentor de características formais bem acentuadas. Trata-se de colocar em evidência “as condições linguísticas e literárias nas quais os humanistas operavam quando eles formulavam considerações sobre a pintura” (BAXANDALL, 2013, 21). Em segundo lugar, Baxandall afirma que a ideia de que um quadro tem uma “composição” tem uma dupla fonte: ela foi sugerida por uma categoria humanista e pela própria situação da pintura em uma determinada época. O conceito em questão nasce de um conjunto de problemas e de uma determinada configuração linguística que polariza a atenção do autor para aquelas relações que “unem os hábitos da linguagem à atenção visual”. É neste contexto que a tese do livro deve saltar aos nossos olhos: “é a língua latina que estrutura o ponto de vista humanista” (BAXANDALL, 2013, 22).

As condições linguísticas e literárias devem ser circunscritas em torno do interesse comum dos primeiros humanistas pela ordem retórica e pelo latim neoclássico. A retórica era o centro de suas principais competências e o latim neoclássico era um interesse comum a todos os humanistas: “a arte dos humanistas era a gramática e a retórica” (BAXANDALL, 2013, 26). A situação dos humanistas ao formularem seus discursos sobre a pintura era ao mesmo tempo prática e linguística: eles eram secretários, professores, historiógrafos, e enquanto tais seus campos de atividades intelectuais eram bem específicos. Ao nascerem é óbvio que eles aprendiam sua língua natal, mas enquanto humanistas eles conversavam entre si com uma “língua literária que não estava mais em uso já fazia mil anos”. Esses homens também se esforçavam para diferenciar este latim neoclássico das formas do latim medieval que já estavam degradadas, mas que ainda eram usadas pela Igreja e pelos homens da lei. Conviviam, assim, uma “língua cultural de elite” e uma “língua vernácula e seu uso culto”. Ora, comparado com o latim medieval, o latim neoclássico era muito mais pródigo em discriminações internas, e mesmo seus recursos sintáxicos eram mais ricos do que os das línguas vernáculas da época. Essas línguas, como por exemplo o italiano, não concorriam com o latim neoclássico, o qual era um “complemento especializado” delas. Os primeiros humanistas estavam imersos em uma paisagem cultural e linguística bem peculiar: muitas versões do latim pós-clássico, leituras muito diferentes daquelas que poderíamos imaginar (enciclopédias medievais, retóricas da antiguidade tardia e traduções latinas dos tratados apócrifos de Aristóteles), uso da retórica grega e romana ao mesmo tempo com intenção de persuadir e de ensinar, um público determinado ao qual o orador se referia (o orador pronunciava discursos em casamentos, enterros, investiduras de magistrados, aulas inaugurais). Sob este pano de fundo é possível dizer que a novidade dos primeiros humanistas consiste na “firme resolução de se reapropriar e de praticar a língua de Cícero: eles se veem nesta tarefa com uma energia e um ardor inteiramente novos” (BAXANDALL, 2013, 31). Para nós, esta situação é estranha: qual interesse haveria em fazer um “pastiche de Cícero”? Baxandall nos mostra que “o que há de fundamental e heroico nos primeiros humanistas é o pastiche de Cícero: eles colocavam sua melhor energia em reencontrar estruturas linguísticas perdidas fazia mil anos” (BAXANDALL, 2013, 32). A contribuição destes homens para a cultura pictórica consiste em que eles estudaram os hábitos linguísticos da própria pintura. Para além de um simples uso de palavras e de sintaxe latinas, é preciso ver aí um “comportamento verbal altamente formalizado se aplicar à mais sensível das experiências visuais quase sem que se produza interferências” (BAXANDALL, 2013, 35).

Conscientes do fato de que o latim discriminava melhor certas regiões da experiência do que a língua vernácula, os primeiros humanistas aprenderam a manejar certos grupos de palavras que os levaram a modificar suas percepções da arte e dos artistas. Vem daí o expurgo sistemático e consciente do vocabulário degradado. Vem daí, também, que rastrear esse vocabulário não seja tão difícil. Mas vem daí, enfim, que não seja fácil rastrear as mudanças de sentido que muitas palavras sofreram. A mudança no sentido das palavras não se deixa apreender por aquilo que elas designam ou por aquilo a que se referem. A resposta de Baxandall é clara: “o uso faz o sentido”. Graças a isto é que em seus pastiches de Cícero os humanistas reconstruíram “redes de articulação do léxico” (BAXANDALL, 2013, 44). A propósito, é no interior destas redes que encontram-se as metáforas intersensoriais, as quais remetem o pesquisador à terminologia da retórica clássica que repousa sobre metáforas saídas da experiência visual. É deste recurso antigo sistemático às metáforas ― seja como procedimento estabelecido, seja como bagagem de expressões consagradas ―, é em contraste com este recurso que a novidade de Alberti ganhará relevo.

Os primeiros humanistas atribuíam “importância suprema” à frase periódica: o período ― “frase combinando vários pensamentos e afirmações em várias proposições equilibradas” ―, era o “paradigma da grande frase neoclássica” (BAXANDALL, 2013, 53). Havia aí uma forma artística fundamental que, no início do Renascimento, foi o modelo da composição artística em geral. Assim, para que a frase periódica oferecesse suas “delicadas combinações de elementos diversos”, era preciso, da parte de quem a manejava, um vasto conhecimento do campo semântico, da flexão das palavras, um domínio do vocabulário e da gramática clássica. O que atraía os primeiros humanistas no estilo periódico era, enfim, o uso das “antíteses” e dos “paralelos”.

Até mesmo Alberti usa a frase periódica, a qual opera um arranjo simétrico e equilibrado das palavras, das expressões, das proporções, e mesmo de noções abstratas.

Dos dois métodos que a retórica clássica dispunha para inventar o conteúdo de um discurso (o método especulativo e o método indutivo), foi o método indutivo que exerceu maior influência sobre os humanistas, afinal, eles procuravam algo que tivesse influência sobre suas próprias vidas e práticas literárias. Enquanto o método especulativo só ensinava argumentar em um tribunal, o indutivo ensinava “levar uma vida feliz ou ter um estilo elegante em prosa”. A comparação, modo de operar do método indutivo, tinha um duplo estatuto: funcionava como argumento e como ornamento, funcionando, neste caso, como processo de estilo.

Eles praticavam tanto esses exercícios comparativos que tais exercícios acabaram se tornando um hábito: a comparação está na origem seja de suas observações, seja de suas noções relativas às artes visuais. A natureza de seus discursos exigia comparações extraídas da pintura e da escultura, eles agiam assim baseando-se em precedentes clássicos em que Cícero e muitos outros autores clássicos faziam comparações entre o estilo literário e as artes figurativas. Os humanistas “se remetiam ao material clássico e modificavam, transpunham ou renovavam comparações já empregadas por Cícero e outros autores” (BAXANDALL, 2013, 73). Assim, as anedotas, a mitologia da história da arte, seus lugares comuns, lhes serviam de material, não para fazer considerações diretas sobre a pintura, mas para uso em benefício próprio em seus textos e vidas: “o uso de comprar a literatura à pintura se tornou um jogo humanista” (BAXANDALL, 2013, 78).

O tipo de uso da linguagem que é feito entre os humanistas pode ser delineado desde que notemos que se trata, precisamente, de observações humanistas sobre a pintura.

No elogio ou na censura que eles faziam de uma obra de arte pressupunha-se que o ouvinte não conhecesse a obra, mas isto deveria forçar o orador a possuir o máximo de habilidade usando, então, o registro “florido”: “alguém agencia pigmentos sobre um suporte, e, vendo isto, outro alguém se esforça para encontrar palavras adequadas ao interesse da coisa” (BAXANDALL, 2013, 87). Esta atividade “árdua” e “excêntrica” já era validada pela antiguidade, e como já existiam no latim termos que evocavam categorias visuais, o caso da pintura era ainda mais interessante porque se aprendia com ela “a distinguir quais registros ou quais sensações” correspondiam a estes termos: “o aprendizado de uma língua tão sutil reorganizou suas capacidades de atenção para as obras de arte” (BAXANDALL, 2013, 92). O que era comum aos humanistas não era uma simples questão do gosto, mas uma “comum experiência de uma língua, a posse comum de um sistema de conceitos que permitiam focalizar a atenção” (BAXANDALL, 2013, 93). Esta é a bagagem comum, os elementos constitutivos do ponto de vista humanista que os diferencia do ponto de vista vernáculo.

Baxandall começa a rastrear as observações humanistas sobre a pintura a partir de Francesco Petrarca (1304-1374): ele “recolocou em uso uma forma específica de referência generalizada à pintura e à escultura” (BAXANDALL, 2013, 99). Petrarca trabalha de tal modo com uma “série de grandes oposições” que ele as faz valer como fundamento de sua visão humanista sobre a pintura e a escultura. É por aqui que encontramos os primeiros traços daquelas comparações retóricas. Os primeiros humanistas exploravam as fontes das artes antigas como repertórios de analogias e se inspiravam nos trabalhos plásticos que possuíam duas qualidades necessárias para uma boa comparação: a concretude e a visibilidade.

Assim, os detalhes que serviram para Petrarca elucidar sua arte acabaram, por fim, se tornando um lugar comum obrigatório entre seus sucessores.

Filipo Villani (1325-1407) forjou o mais consistente e durador esquema do progresso das artes. Ele interpreta sua época como decadente e vai buscar em Dante e seus contemporâneos o modelo dos valores necessários para uma renovação da cultura. Villani adota um esquema para interpretar a evolução da pintura no século XIV. O esquema que ele extrai de Dante prescreve o seguinte: primeiro veio Cimabue que tirou a pintura da decadência, em seguida, Giotto, que completou a renovação, enfim, os sucessores de Giotto. Eis o esquema: profeta/salvador/apóstolo. O interesse desta sequência está nos tipos de diferenciações que é possível daí depreender. Ele ainda projeta sobre Giotto não só o lugar ocupado por Dante na história, mas também o lugar que ocupava Zeuxis no esquema de Plínio. Dito de outro modo: Zeuxis está para Apolodoro, assim como Cimabue está para Giotto. Baxandall acredita que este esquema até certo ponto ainda está presente entre nós. Seu interesse está no modo como articula capítulos obscuros da história da arte e no modo como trabalha de forma concisa com diferenciações variadas (prioridade, qualidade, estatura, registro). Seu modo claro de estruturação faz com que ele se baste a si mesmo. Esta é a razão da dificuldade que os humanistas do século XV tiveram para encontrar outro esquema para prolongar o esquema de Villani.

Os humanistas se nutriram não só da literatura latina, mas também da grega. Baxandall mostra que a partir de 1400 as bases literárias se alargaram tanto que, em vinte e cinco anos, suas novas e variadas fontes acabaram influenciando muito suas maneiras de falar sobre a pintura e a escultura.

Precisamente aí encontramos Manuel Chrysoloras (1355-1415), “figura intermediária” relativamente à cultura grega. Sua “marca” foi a estimulação do interesse por essa cultura, a qual deveria “tornar-se o elemento mais dinâmico do humanismo do século XV na Itália” (BAXANDALL, 2013, 137). Uma carta de Chrysoloras ao Papa teve muito alcance na crítica de arte humanista, nela ele recorre a “diversos registros descritivos” e “enumerações generalizadas” para comparar Roma à Constantinopla. Em uma outra carta, e talvez esteja aí sua maior contribuição, ele dá um “alcance geral e uma formulação mais ou menos aristotélica para alguns valores bem precisos: vida dos detalhes, variedade, intensidade de expressividade emocional” (BAXANDALL, 2013, 142). Aristóteles e Chrysoloras situam a fonte de prazer da representação visual no ato de reconhecimento do espectador, mas diferentemente de Aristóteles, Chrysoloras tem grande interesse pela expressividade e, particularmente, pelo artista. Lembremos que os humanistas frequentaram seus contemporâneos bizantinos em Constantinopla. Assim, os humanistas aprenderam a praticar muitos exercícios retóricos separadamente, ou melhor, “como gêneros independentes, em composições realizadas por si mesmas com muita pesquisa e virtuosidade”: “os meios tinham se tornado fins” (BAXANDALL, 2013, 145). Esta é a fonte dos exercícios de descrições detalhadas ou de écfrases como “obras inteiramente à parte”. Essas écfrases possuíam vivacidade visual, clareza, elas tinham o dom de trazer aos olhos o que descreviam. Utilizar os olhos ao dirigir-se aos ouvidos, lançar mão de uma linguagem que esteja de acordo com o objeto descrito, possuir desenvoltura nesta descrição, saber que a écfrase nunca é neutra, combinar noções críticas com procedimentos descritivos habituais já presentes na écfrase, enfim, esses são alguns dos procedimentos determinantes do modo dos humanistas elaborarem seus discursos.

Aluno de Chrysoloras, Guarino de Verona (1370-1460) foi um dos que aprenderam grego para ler Luciano e Arriano, ao passo que os primeiros humanistas queriam ler Homero.

Guarino transmite os valores da écfrase bizantina e aclimata os trabalhos de seu mestre. Guarino exalta a literatura em detrimento das outras artes e argumenta que a pintura não mostra as qualidades morais, mas sim as aparências; ela agrada mais pela destreza do artista do que pela importância do tema; ela não é durável como um livro. Ao comparar a pintura com a literatura, Baxandall nos mostra que Guarino indica os “limites da pintura” com dois argumentos: os quadros são “pouco aptos para veicular o renome pessoal” e “não são cômodos para transportar”. Guarino e seus alunos trabalharam muito com este gênero de escrita em torno da obra de Pisanello: seus escritos, particularmente os de Guarino, reúnem em suas descrições o valor retórico que a variedade da pintura pode ter, os atrativos e efeitos da écfrase, e as categorias críticas de Chrysoloras. Baxandall vê aí uma “combinação muito eficaz” na qual encontramos uma concepção de composição que será recusada por Alberti: sua “nova concepção” de composição só ganha relevo sobre o fundo da “concatenação das proposições de Chrysoloras, dos valores ecfráticos e da arte de Pisanello” (BAXANDALL, 2013, 161).

Analogia entre pintura e literatura, esquema histórico, práticas e valores da écfrase: falta acrescentar que Bartolomeo Fazio (1400-1457), aluno de Guarino, traz um duplo aporte que deve aparecer neste rastreamento. Por um lado, Fazio introduz uma associação entre personalidades notáveis, pintores e escultores; por outro, ele retoma dois lugares comuns sobre a relação entre as duas artes: a afinidade que Filostrato o Jovem via entre a pintura e a poesia (que nos remete à exaltação da expressão), e a compreensão da pintura como poesia silenciosa tal como ela chega até nós vindo de Simônides. Ele aprofunda tudo isto no sentido de explorar a expressão do caráter e da emoção. Enfim, só compreenderemos o fato de que tanto a pintura quanto a poesia “têm em comum esta função expressiva”, se reencontrarmos, por trás destas ideias, os rastros de Horácio quando elabora metáforas retóricas que pretendem tocar o coração dos ouvintes. Só assim a superioridade da pintura pode ser reconhecida. Mas se é verdade que as convenções do neoclassicismo eram corretas, é verdade, também, que, segundo Baxandall, elas desviaram os humanistas de empreitadas mais profundas.

Vários caminhos poderiam ter sido seguidos. Aí encontramos Lorenzo Valla (1407-1457) com sua teoria da percepção sensorial e seu “novo esquema” ou “modelo” para pensar a história da arte italiana. Segundo ele, o progresso das artes deve ser visto como um “efeito das relações sociais”: em princípio, “um indivíduo inova”, em seguida, “sua inovação é tornada acessível à seus confrades, e, em troca, ele tem acesso à totalidade de suas invenções” (BAXANDALL, 2013, 192). Enfim, o impasse da crítica humanista não é um índice de mediocridade: o ponto está em que as convenções dos humanistas “não forneciam a um Lorenzo Valla ― ou, em outro sentido, a um Léon Battista Alberti ―, um quadro que encorajasse suas reflexões” (BAXANDALL, 2013, 193).

O tratado de pintura escrito em latim por Alberti (1404-1472) ― De pictura ―, se distingue de todos os outros textos da época pela “seriedade da iniciativa”. A formação humanista de Alberti ainda incluía uma prática da pintura. É neste cruzamento que encontramos a noção de composição e o método de Alberti. Como compreender que mesmo sendo humanista Alberti não se comporte como um humanista? O traço principal que define o tratado de Alberti como um livro humanista deve ser procurado nas competências exigidas ao leitor. Peritos em analogias, os humanistas não elaboraram nenhuma teoria da pintura em quanto atividade intelectual relacionada com seus estudos.

Ao que tudo indica, não havia uma demanda urgente de um livro como o de Alberti, mas o lugar que ele ocupa era oferecido pelo próprio sistema de pensamento da época.

Seu público deveria possuir “três tipos de competências”: ler facilmente em latim neoclássico, dominar os Elementos de Euclides e um pouco de ótica geométrica, saber desenhar ou pintar. Ainda que seu leitor não seja um humanista tradicional, resta que a redação do livro era autorizada pela tradição: “o De pictura aparece como um manual que dava os meios de uma apreciação ativa da pintura a uma espécie inabitual de amadores humanistas informados”. O leitor de Alberti precisava ter simultaneamente um ponto de vista euclidiano e ciceroniano. Assim, a noção de composição surge como a “maneira com a qual um quadro deve ser organizado para que cada superfície plana e cada objeto traga sua contribuição ao efeito de conjunto” (BAXANDALL, 2013, 205-06).

O procedimento de Alberti é duplo: ele reconduz a pintura a uma “certa norma, feita de pertinência narrativa e de conveniência e economia” ― “norma amplamente giottesca” ―, mas que é uma “norma não-clássica”, já que visa a pertinência e a organização. Por um lado, as normas de Giotto, por outro, sua aplicação à relação das formas no interior do quadro. A “arma” de Alberti contra a tradição virtuosística da écfrase é a noção de composição. Esta noção já possuía o sentido geral de colocação em conjunto, e isto, de Vitrúvio à estética medieval. Mas Alberti ao mesmo tempo modifica o conceito anterior e introduz nele um sentido novo. A grande novidade de seu conceito de composição está na “interdependência das formas”. No momento em que ele enuncia isto, no momento em que inova, ele está, ao mesmo tempo, “mais condicionado do que nunca, em suas possibilidades de comunicação com seus leitores, por sua situação de humanista escrevendo para humanista”.

Alberti interpreta a obra de Giotto como se ela fosse uma “frase periódica de Cícero ou de Leonardo Bruni”! A eficácia deste modelo permite a Alberti submeter a pintura a uma análise funcional rigorosa que encontra, ao fim e ao cabo, seu complemento visual na obra de Mantegna, o qual adota o regime narrativo sugerido no tratado que, por sua vez, relaciona internamente termos com procedimentos e ingredientes tradicionais. O conceito de composição “emana de um conjunto de elementos e de disposições humanistas”, mas Alberti reúne esses elementos e disposições em sua própria formulação:

assumindo as imagens dos humanistas, ele inverte a analogia que ia da pintura à literatura em uma analogia indo da literatura à pintura, ele tem o atrevimento de reivindicar para a pintura uma organização análoga àquela das frases periódicas bem balanceadas nas quais eles tão freqüentemente formulavam esta famosa analogia (BAXANDALL, 2013, 213).

Alberti se afasta, então, dos humanistas que admiravam Pisanello e Guarino. Ele toma posição com relação a isto e seus termos sofrem “deslizamentos de sentidos” se comparados com os da tradição. Ele tem em mete uma pintura neogiottesca que preconiza a elaboração periódica! Para concluir, diríamos que o final do livro conduz a uma delimitação negativa de nosso ponto de vista, já que delimitado o ponto de vista humanista, há o olhar que, organizado segundo certas modalidades, é muito diferente do nosso. No Prefácio à edição italiana do livro resenhado, Baxandall esclarece um pouco mais o que está em questão em seu livro. Ele chama atenção para dois pontos que, vinte e três anos depois, ainda lhe parecem importantes: primeiramente, seu intento mais geral era “demonstrar que os nossos gostos no campo da arte visual são estreitamente ligados aos conceitos (e também, é óbvio, com as palavras) com os quais refletimos sobre as obras”, em seguida, e mais particularmente, ele fornecia as coordenadas daquilo que era “um gosto artístico ‘latino-humanístico'” (BAXANDALL, 1994, 15). Nem “determinismo linguístico”, nem “‘estrutura’ cultural”.

A sugestão de Baxandall ao leitor é a de seguir um dos fios disponíveis: a linguagem. Ela será capaz de nos fornecer, se não quisermos permanecer no nível da aglomeração causal de inclinações fragmentadas, os elementos necessários para a articulação.

Referências

BAXANDALL, Micheal. Giotto and the orators. Humanist observers of painting in Italy and the discovery of pictorial composition 1350-1450. Oxford: Claredon Press, 1971.

____. Giotto et les humanistes. La découverte de la composition en peinture 1350-1450. Tradução Maurice Brock.Paris: Seuil, 2013.

____. Giotto e gli umanisti. Gli umanisti osservatori dela pittura in Italia e la scoperta della composizione pittorica 1350-1450. Tradução Fabrizio Lollini. Prefácio Michael Baxandall. Milão: Jaca Book, 1994.

Leandro Neves Cardim – Professor de Filosofia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR, Brasil. E-mail:  leandronevescardim@gmail.com

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Pensar em não ver – escritos sobre as artes do visível (1979-2004) – DERRIDA (A-EN)

DERRIDA, Jacques. Pensar em não ver – escritos sobre as artes do visível (1979-2004). Organização de Ginette Michaud, Joana Masó e Javier Bassas. Tradução de Marcelo Jacques de Moraes. Revisão técnica de João Camillo Penna. Florianópolis: Editora UFSC, 2012. Resenha de PIMENTEL, Davi Andrade, Alea, Rio de Janeiro, v.17 n.1, jan./june, 2015.

Gostaria de começar esta resenha pelo tom dado por Derrida a seus textos que compõem o livro Pensar em não ver. O tom é o modo pelo qual o escritor convida o leitor a participar de seu texto. O tom, por assim dizer, é um chamado que, segundo Derrida, ganha o contorno da palavra vem – é preciso dizer que essa palavra está desconstruída pelo escritor, está violentada, retomada, reprisada, maltratada para que possa significar o além-dela-mesma. No momento em que esses textos dizem vem, eles nos chamam a participar de uma experiência de escrita que retoma ou nos direciona a uma experiência sobre a arte visual em parceria com o escritor; experiência que se configura como um chamado que não nos diz vem por aqui ou por ali, que não nos garante nada e que nem mesmo nos faz uma promessa. É por nada prometer que cada momento de leitura desses textos se transforma em um acontecimento – ele próprio, o livro, é o acontecimento: “trata-se da viagem não programável, da viagem cuja cartografia não é desenhável, de uma viagem sem design, de uma viagem sem desígnio, sem meta e sem horizonte. A experiência, a meu ver, seria exatamente isso” (DERRIDA, 2012: 80). O vem é o tom de um chamado, é a experiência – esta, por sua vez, nos chega através da árdua tarefa do tradutor Marcelo Jacques de Moraes, com suas perdas e ganhos, tensionada entre a dívida e a criação, entre a língua a traduzir e a língua traduzida. Tarefa que faz ressoar o tom derridiano, um tom também a traduzir, já traduzido.

Desde o primeiro texto, “As artes espaciais: uma entrevista com Jacques Derrida”, o escritor expõe a importância do tom antes mesmo do conteúdo de seus textos, pois o tom é o que se apresenta primeiro no jogo de apostas da escritura, como também é a base para que esse jogo possa ser efetivamente jogado. O tom mantém com o texto e com o leitor uma relação de risco, de incitação, de excitação e de gozo, por isso a iniciativa de Derrida em pluralizar o tom, em escrever em vários tons, para que o seu texto não fique restrito a um só interlocutor: “Pergunto-me com quem estou falando, como vou jogar com o tom, o tom sendo precisamente o que informa e estabelece a relação” (DERRIDA, 2012: 42). Se não podemos negligenciar os suportes, os “debaixos” de uma obra de arte, como bem lembra Derrida no texto “Os debaixos da pintura, da escrita e do desenho: suporte, substância, sujeito, sequaz e suplício”, por ser o debaixo o suporte necessário para que a obra de arte possa ser tomada enquanto tal, não podemos negligenciar também o tom que age como suporte do texto apresentado pelo escritor, por todo e qualquer escritor: “qualquer que seja sua matéria, o corpo do suporte é uma parte indissociável da obra” (DERRIDA, 2012: 287).

Da composição dos textos derridianos de Pensar em não ver, o tom que se sobressai é o de uma certa familiaridade, ou melhor, de uma certa informalidade, no que essas duas palavras têm de um certo deixar-se à vontade, não apenas pelas entrevistas que recortam magistralmente o todo do livro, como costuras que reafirmam a relação entre escritor e leitor, mas, sobretudo, pelos textos corridos. Quando Derrida reflete sobre a pintura, a fotografia, o desenho, o teatro, a videoinstalação e o cinema, o tom dado a esses textos é o tom de uma familiaridade que rompe com a formalidade mais precisa que encontramos em outros textos seus. Tudo se passa como se o próprio Derrida estivesse em face do leitor para compartilhar com ele o seu pensamento sobre as artes do visível, sobre a sua potência impotente que a todo instante se faz presente quando lhe é pedido para falar/escrever sobre uma arte que não é a da escritura: “Estou muito feliz e honrado por me encontrar aqui, intimidado também porque, como os senhores verão, minha incompetência é real, e não é de modo algum por uma fórmula de polidez ou de modéstia que começo declarando-a, essa incompetência” (DERRIDA, 2012: 163).

Em Pensar em não ver, do convite do tom se passa ao convite em forma de pensamento que Derrida faz tão bem: “O pensamento é também pensável em um movimento pelo qual ele chama a vir, ele chama, ele nos chama” (DERRIDA, 2012: 75). Pensamento que convida a pensar a arte visual enquanto produto de uma invisibilidade que lhe é essencial. Derrida defende ao longo de seus 20 textos que a visibilidade tem como contraponto seu suporte invisível. Na verdade, o que nos é dado a ver é o invisível, não o visível. No texto “O Sacrifício”, dedicado ao teatro, Derrida diz: “Mas se, desde sempre, o invisível trabalha o visível, se, por exemplo, a visibilidade do visível – o que torna visível a coisa visível – não é visível, então uma certa noite vem cavar um abismo na própria apresentação do visível” (DERRIDA, 2012: 399). A própria luz que nos ilumina é invisível, a própria palavra que nos constitui homens é invisível, logo, somos todos feitos, desenhados, pintados, modelados, filmados a partir de nossa nudez invisível.

Do contorno invisível próprio a toda arte, Derrida elege a figura do cego como o modelo de sua concepção artística. No texto “Pensar em não ver”, o escritor compreende que, para existir o desenho, ou, de uma forma mais geral, para que a arte visual possa existir enquanto acontecimento singular e único, é preciso que metaforicamente o artista se cegue, é preciso que ele passe pelo processo do enceguecimento. Em uma das passagens mais brilhantes do livro, Derrida comenta que, por termos os olhos à frente de nossos rostos, temos o que chamamos de horizonte. Através do horizonte, vemos vir o que nos chega e, desse modo, podemos tanto afastar quanto acolher ou nos defender do que vem do fundo do horizonte. Se por um lado a visão nos protege, essa mesma visão faz com que o acontecimento, no sentido próprio do que surpreende, se neutralize, perca sua potencialidade enquanto violência, enquanto irrupção artística. Por essa razão, o acontecimento somente pode surgir quando não é mais possível ter o horizonte como perspectiva: “o movimento em que o desenho inventa, em que ele se inventa, é um momento em que o desenhista é de algum modo cego, em que ele não vê, ele não vê vir, ele é surpreendido pelo próprio traço que ele trilha, pela trilha do traço, ele está cego” (DERRIDA, 2012: 71).

É preciso estar cego, é preciso se entregar ao movimento estabelecido pelo lápis, pelo pincel ou pela câmera para que a arte possa surgir enquanto acontecimento. O gozo artístico provém dessa entrega, dessa suspensão da visão, dessa cegueira que aflora os demais sentidos, que aflora a sensibilidade do artista, que deixa por instantes os conceitos ou pré-conceitos que formulam o mundo visível para se entregar ao abismo de uma certa noite – entregar, palavra libidinosa que expõe o artista e nos expõe à arte desse artista. Em uma entrevista com Derrida, o artista Valerio Adami, no texto “Êxtase, crise. Entrevista com Roger Lesgards e Valerio Adami”, comenta o passo inicial de seu processo criador, que se assemelha em muitos aspectos ao processo de enceguecimento proposto por Derrida:

Apoio, então, o lápis no papel, faço um ponto e a mão se move: esse ponto se torna, portanto, linha, essa linha se torna o perfil de uma montanha… É um caminho para o maravilhamento, a descoberta, em relação direta com o instinto e a memória – a memória instintiva. A mão se move porque consigo realmente me esvaziar de tudo, deixando a ela a liberdade (DERRIDA, 2012: 239).

Poderíamos supor que, ao falar do desenho, Adami tocaria na questão da visão, mas o que lemos é exatamente a não-visão, a mão que se deixa livre, liberdade daqueles que somente têm a mão como suporte no mundo; nada mais intrínseco ao cego do que as mãos. Responde Adami a Derrida e Lesgards: “A mão sempre foi uma das minhas obsessões” (DERRIDA, 2012: 240). Da imagem dos cegos, somos direcionados por Derrida à imagem das palavras que constituem os textos de Pensar em não ver. As palavras, como disse acima, seguem um tom, elas próprias dão um tom particular aos textos presentes no livro.

As palavras deixam de ser meros transmissores para, elas também, se configurarem em objetos de arte. O modo como Derrida tece seu texto, o modo como ele trabalha a palavra, maltratando-a, violentando-a, faz dela um acontecimento: “O que faço com as palavras é fazê-las explodir para que o não verbal apareça no verbal” (DERRIDA, 2012: 39). Em muitos momentos, a relação que as palavras mantêm entre si faz delas imagem, elas produzem uma imagem, mas não no sentido corrente da relação do signo linguístico – a palavra derridiana vai além da reunião de morfemas para se desenhar em imagem, em palavra-imagem. Ao lermos determinadas passagens de Pensar em não ver, é como se estivéssemos diante de uma tela. Estamos, a bem da verdade, visualizando e não lendo, como nesta bela passagem do texto “Com o desígnio, o desenho”: “o desenhista, quando desenha um cego, quaisquer que sejam a variedade ou a complexidade da cena, está sempre desenhando a si mesmo, desenhando o que pode lhe acontecer, e, portanto, já está na dimensão alucinada do autorretrato” (DERRIDA, 2012: 174). Visualizo, antes de tudo, o autorretrato de um desenhista cego.

As palavras-imagens são retomadas por Derrida ao conversar sobre o filme em que participou, segundo ele, como ator: D’ailleurs, Derrida. No texto em que se discute sobre o filme, “Rastro e arquivo, imagem e arte. Diálogo”, o escritor comenta da participação da palavra, agora não mais a palavra escrita, mas sim a falada: “As falas estavam ali como imagens, feitas para serem, de algum modo, levadas pela necessidade do ritmo, do encadeamento, da consequência icônica […] Icônico quer dizer estruturado segundo a necessidade e a lei da imagem” (DERRIDA, 2012: 101). Semelhante com o que ocorre no filme, a palavra no texto derridiano destacado acima é tornada elemento icônico. Desse modo, ao refletir sobre o desenho, sobre o movimento do artista ao desenhar, Derrida comenta o desenho de Valerio Adami ou de François Loubrieu com um outro desenho – desenho provindo de sua escrita atravessada por palavras-imagens. Logo, o movimento que adquire o texto derridiano é de uma profusão de reflexos, de pinturas distendidas em palavras-imagens, desenhos que se assemelham a seus próprios desenhos de escrita, fotografias que recontam o negativo de sua escrita de imagem. Imagens e mais imagens, profusão de imagens en abyme.

O leitor provavelmente se demorará na leitura sobre as fotografias de Frédéric Brenner, não por ser o texto longo ou de difícil compreensão, não, não se trata disso. A dificuldade está na delicadeza a qual se expõe Derrida ao analisá-las. Fotografias de judeus, fotografias da memória. Diferente dos outros textos, o tom familiar, quase prosaico com o qual o escritor vai tecendo o seu pensamento sobre as questões da comunidade judaica, sobre suas próprias questões recalcadas ou veladas, produz um sentimento de falta, de perda, no leitor. Ao lermos o texto “[Revelações, e outros textos. Leituras das fotografias de Frédéric Brenner]”, quase que imediatamente nos colocamos no lugar do outro, do outro sem pátria, sem terra, do outro-sem, por assim dizer, quase esquecido e, por isso mesmo, afeito à memória, a velar a memória de um passado que ainda assombra, mas que, continuamente, se transforma em um passado esquecível, esquecido: “A melancolia do homem é visível. Será legível? Ela pode assinar a memória enlutada com aquilo que ele recorda e que ele ainda vela, mas ela pode também chorar a amnésia, o esquecimento daquilo mesmo que teria sido preciso velar para que se velasse – e que ameaça apagar-se no próximo sopro da história” (DERRIDA, 2012: 332).

O visível da fotografia dá a ver o invisível que se esconde por trás da figura conhecida de Jacques Derrida. Nesse texto, sabemos um pouco de sua infância, de seu prenome judeu, de sua mãe, de seu avô… estamos íntimos de Derrida, o que confere a familiaridade do tom. Do mesmo modo como nos identificamos com a falta judaica – “todos nós nos identificamos, universalmente, com uma minoria” (DERRIDA, 2012: 343) -, o escritor, sendo judeu, não poderia deixar de se identificar com as fotografias de Brenner: “Tento identificar, mas também me identificar, ao mesmo tempo em que persigo o limite de uma tentação tão irresistível, de uma compulsão como essa” (DERRIDA, 2012: 327). Identificação acordada com uma reflexão constante sobre a falta/perda que acomete(u) o povo judeu. Diáspora? Não significa somente a dispersão dos judeus pelo mundo – significa algo ainda mais profundo. Segundo Derrida, a diáspora afeta a partir do interior, “ela divide o corpo e a alma e a memória de cada comunidade” (DERRIDA, 2012: 323). É o sentimento de estar deslocado que afeta os judeus, nada lhes é mais autêntico. Mas não nos esqueçamos, como também os judeus não se esquecem, que nada nos é próprio, nem mesmo a nossa língua nos é própria:

Nós, nós todos, todos os seres vivos presentes, os seres vivos do passado e os espectros do futuro, nós todos, homens ou animais, não temos lugar próprio e terra bem-amada a não ser prometida, e prometida desde uma expropriação sem idade, mais velha do que todas as nossas memórias (DERRIDA, 2012: 341).

O visível fotográfico, ao trazer à tona o obscuro da memória de Derrida, dialoga com as perspectivas da invisibilidade com as quais o escritor trabalhou ao longo de seus textos de Pensar em não ver, não por acaso o título do livro carrega a marca da invisibilidade, ou, se quisermos, a marca da cegueira: não ver. A partir dos tons dos vários textos derridianos presentes neste livro, sobressai o pensamento de que a arte da visibilidade tem como suporte, base de sua contra-assinatura, a invisibilidade ou, como sugere Derrida, em “Aletheia“, a noite, o obscuro: “Nada é mais escuro do que a visibilidade da luz, nada é mais claro do que essa noite sem sol” (DERRIDA, 2012: 305). O que presenciamos ao ver uma obra é sua inscrição invisível. Em um desenho, em uma pintura, o que vemos é o traço diferencial que não mais existe, mas que persiste no rastro que se torna o desenho ou a pintura que observamos em um museu, em um livro, em qualquer lugar em que a arte esteja exposta. A arte visual é produzida a partir dos debaixos, de traços já inexistentes, do flash noturno que ilumina o invisível diante da máquina fotográfica. É nos debaixos que o efeito da arte é produzido – é lá, no debaixo, que se produz o desejo, a interdição, o gozo, a incitação, a excitação, a obra: “Quando se fica sem ar diante de um desenho ou de uma pintura, é porque não se vê nada; o que se vê essencialmente não é o que se vê, mas, imediatamente, a visibilidade. E, portanto, o invisível” (DERRIDA, 2012: 82).

Da leitura desses textos, o que resta para além da ideia da arte visual é o pensamento de que nós, seres humanos, somos constituídos de uma invisibilidade atordoante; não por menos, a arte, as artes do visível, tem como suporte a invisibilidade. A reflexão sobre as artes do visível é o grande mérito dos textos derridianos organizados com extrema precisão por Ginette Michaud, Joana Masó e Javier Bassas na elaboração do livro Pensar em não ver – mérito que a Editora UFSC considerou ao publicá-lo, oferecendo, assim, ao leitor brasileiro, a oportunidade de ter em mãos textos de Derrida raros sobre essas artes e somente agora traduzidos para o português.

Davi Andrade Pimentel – Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Atua como pesquisador da obra do escritor francês Maurice Blanchot. É autor dos artigos: “Thomas – o primeiro blanchotiano” (Revista Letras Hoje, n. 48/ 2013), “O espectro de Kafka na narrativa Pena de Morte, de Maurice Blanchot” (Revista Gragoatá, n. 31/2011), “Rascunhos de um pensamento arrebatador: Maurice Blanchot” (Revista Todas as Letras, n. 12/2010), dentre outros. E-mail: davi_a_pimentel@yahoo.com.br. Endereço: Rua Leopoldo Miguez, n. 129, apto. 706, CEP.: 22060-020, Copacabana – Rio de Janeiro – RJ.

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Espinosa e Vermeer: imanência da filosofia e na pintura – HORNÄK (CE)

HORNÄK, Sara. Espinosa e Vermeer: imanência da filosofia e na pintura. São Paulo: Paulus, 2010. Resenha de: PAULA, Marcos Ferreira de. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n 26, 2012.

Sobre arte, Espinosa nos fala muito pouco. O termo, com o sentido estético que costumamos lhe atribuir, ocorre poucas vezes em toda a sua obra. Não é por acaso. No século XVII arte ainda conserva o sentido de um ofício específico, embora, como se sabe, o conceito de já arte estivesse em transformação desde o Renascimento, quando então ela tornou-se definitivamente inseparável das noções de beleza, estilo e originalidade, caminhando cada vez mais, sobretudo a partir do século XVIII, em direção ao sentido estético contemporâneo que hoje conhecemos. A arte no tempo de Espinosa não está longe, portanto, dos valores da contemplação e dos prazeres estéticos, mas é certamente menos importante a presença seja do artista ou do expectador que se situam num campo artístico sem pretender avançar para além de seus limites propriamente estéticos. Espinosa, por exemplo, situa as ciências e as artes no rol de todas as atividades humanas (e coletivas) que são necessárias ao aperfeiçoamento da “natureza humana” e à conquista da “beatitude”. A arte não se separa, para ele, de sua utilidade ética, sem a qual ela talvez nem faça sentido. É o que parece nos indicar esta passagem do Tratado teológico-político :

[…] ninguém teria a força e o tempo necessário se fosse obrigado a lavrar, semear, ceifar, cozer, tecer, costurar e fazer sozinho tudo o mais que é preciso para o sustento, não falando já nas artes e ciências, que são também sumamente necessárias à perfeição da natureza humana e à sua beatitude (Espinosa 2, p. 85, grifos nossos) .

Fazer arte não é o mesmo que tecer e cozer, certamente, mas deve servir, em última análise, aos mesmos propósitos éticos. Se é assim, a arte, enquanto tal, não poderia servir à própria tarefa de compreensão filosófica do mundo, de si e da Natureza? De fato, sabemos que quando Espinosa fala em “perfeição da natureza humana” e “beatitude” devemos entender o exercício de uma mente humana na compreensão de si, da essência singular de seu corpo, das coisas singulares e da Natureza inteira, da qual mente e corpo são expressões modais imanentes; e se a arte pode ser útil nessa tarefa, é porque deve conservar algum poder de compreensão. Haveria, assim, entre arte e filosofia, uma ligação talvez mais íntima do que alguns comentadores ou leitores de Espinosa gostariam de ver – justamente aqueles leitores ou comentadores para os quais a arte, pertencendo ao campo do primeiro gênero de conhecimento, a imaginatio, não teria nenhuma importância na obra do filósofo holandês, não podendo sequer poderia ser tomada como via de compreensão de sua filosofia.

Não é este o caso, felizmente, de Sara Hornäk, autora de Espinosa e Vermeer: imanência na filosofia e na pintura, livro publicado na Alemanha em 2004 e que chegou até nós no final de 2010 pela editora Paulus. Trata- se de uma obra em que a arte é iluminada pela filosofia e a filosofia, pela arte; uma obra na qual vemos que um artista pode ser também filósofo, e um filósofo, artista. É que – Hornäk não hesitaria em afirmar – artista e filósofo habitam um mesmo mundo, um mesmo Universo, no sentido metafísico da palavra, de tal maneira que compartilham um mesmo “plano de imanência”, para utilizar, em sentido menos sério, a expressão deleuziana. A relação que Hornäk estabelece entre Espinosa e Vermeer (consequentemente, entre filosofia e arte), é de tal ordem que a noção de imanência ganha um destaque e uma relevância que escapam muitas vezes até mesmo aos leitores de Espinosa. A imanência, como sugere o título da obra, é o elemento pelo qual a autora constrói sua argumentação que une a arte de Vermeer à filosofia de Espinosa; mas é também o alvo do livro, cujo objetivo principal parece ser o de mostrar que uma experiência estética da imanência realizaria por outros meios o mesmo que uma filosofia da imanência proporcionaria por meio do trabalho do pensamento.

Para chegar a esse resultado, contudo, a autora seguiu um caminho um tanto longo, mas muito acertado e talvez quase inevitável. Ela primeiro expôs toda a filosofia de Espinosa contida na Ética . Essa exposição, que ocupa a primeira parte do livro, tem antes de tudo o mérito de oferecer ao leitor um verdadeiro trabalho de introdução ao pensamento de Espinosa. Aí estão presentes os principais conceitos espinosanos. Substância, atributos, modos, conatus, afetos, afecções, liberdade e eternidade, entre outros, são apresentados ao leitor com o cuidado de quem deseja introduzi-lo no universo dessa difícil filosofia da imanência.

Nesta primeira parte, que ocupa mais da metade do livro, o pensamento de Espinosa é apresentado com certa fidelidade e clareza. Há contudo um momento de sua exposição em que a autora parece trair tanto o “espírito” quanto a “letra” do texto espinosano. Ela traduz amor Dei intellectualis por “amor espiritual a Deus” (Hornäk 3, p. 246). E devemos frisar que não há erro na tradução para o português, realizada por Saulo Krieger e revisada por Rachel Gazolla: no original alemão, a expressão da autora é die geistige Liebe zu Gott (“amor espiritual a Deus”, grifo nosso). Trata-se sem dúvida de uma opção por “espiritual”, uma vez que uma das edições alemãs da Ética consultadas por Hornäk (elencadas no “Índice Bilbiográfico”) é justamente a Ethik de W. Bartschat, que traduziu corretamente o amor Dei intellectualis por Die intellektuelle Liebe zu Gott . Caberia, então, uma nota de rodapé da autora explicando tal opção, assim como seria útil ao leitor brasileiro uma nota explicativa por parte do tradutor ou da revisora. É que não estamos aqui diante de uma questão menor: “amor espiritual a Deus” é uma tradução inaceitável para todos aqueles que sabem o quanto o “amor intelecutal de Deus” de Espinosa está longe de receber o sentido espiritualista do “amor a Deus” das tradições religiosas e teológicas judaico-cristãs. Ademais, tal opção seria menos problemática, não fosse o fato de estarmos, aí, num momento conclusivo do percurso filosófico realizado por Espinosa e que Hornäk reproduz em seu livro: precisamente no ponto de chegada do caminho filosófico espinosano, no ápice da tarefa da Ética, o leitor desprevinido pode ser levado a confundir Espinosa justamente com aqueles aos quais ele se contrapôs ética e filosoficamente. Afora esse deslize – que pode ser pequeno ou grande, a depender de se o leitor de Hornäk é ou não também um leitor de Espinosa – não há problemas na exposição da autora, embora tampouco haja aí novidades interpretativas.

Realizando esse longo percurso pelo pensamento espinosano, na primeira parte do livro, a autora pôde se desincumbir, na terceira parte, de explicar cada conceito espinosano, ao tratar da relação entre a arte de Vermeer e a filosofia de Espinosa. Mas antes de chegar a ela, a autora também nos oferece uma segunda parte, espécie de intermezzo histórico no qual o leitor se vê às voltas com os problemas da imanência e da transcendência, num percurso que vai de Platão a Giordano Bruno, passando pelos neoplatônicos e Nicolau de Cusa, sem deixar de nos oferecer ainda, ao final, algumas considerações sobre o “plano de imanência” de Gilles Deleuze. Mas é sem dúvida a terceira parte do livro que concentra o que ele tem de melhor. Aí encontramos as teses principais da autora; aí vemos a filosofia juntar-se à crítica e à história da arte para se chegar a bons resultados, seja no que concerne à compreensão do pensamento espinosano, seja no que toca à interpretação das obras de Vermeer.

A ideia central de Sara Hornäk é que a imanência pode ser não apenas pensada, mas também mostrada . A imanência, para além de sua expressão recebida no trabalho de pensamento filosófico, se exprimiria também em outros campos do fazer humano – na arte, por exemplo, e Vermeer seria aqui exemplo privilegiado, particularmente A leiteira, obra sobre a qual se centram as interpretações da autora.

Na forma, na tecedura e combinação das cores, assim como no uso da luz, Vermeer deixaria ver ou daria visibilidade à mesma imanência de que nos fala Espinosa. Hornäk vê no tratamento de temas cotidianos precisamente uma recusa da transcendência em Vermeer. Não se trata de que nas obras do pintor encontraríamos a representação da imanência: dá- se antes que a própria imanência estaria aí presente, visível, expressa na tela mesma. Em Vermeer, assim como na teoria da mente da Ética, não haveria então a representação de ideias, motivos ou objetos; a própria imagem produziria seu sentido, assim como um sentido emerge no próprio texto da Ética – e Hornäk fala aqui em “autorreferencialidade”, em “estrutura de expressão horizontal”, para dar conta dessa potência expressiva imanente ao texto e à imagem (Hornäk 3, p. 329).

Arte e filosofia, entretanto, conservam esta potência expressiva de maneiras diferentes, cada uma a seu modo, em seu próprio campo e com seus próprios recursos. Hornäk não sonha estabelecer qualquer relação causal entre Vermeer e Espinosa. Ao mesmo tempo, ela vê no “conhecimento da imanência, que, segundo Espinosa, se dá intuitivamente” (Hornäk 3, p. 331), o elemento comum que os une. A intuição, que a autora corretamente vê, não como uma superação mística do racionalismo, mas como uma ampliação da própria razão, seria assim o meio pelo qual a imanência é inteligida e vivida, tanto em Espinosa quanto em Vermeer. Essa experiência intelectual e afetiva da imanência, que Espinosa exprime no conceito de amor intelectual de Deus, em Vermeer estaria presente na “quietude profunda” que Hornäk vê “expressa” em seus quadros, os quais permitiria uma certa “contemplação da eternidade”… (Hornäk 3, p. 331-333).

Mas de que forma, do ponto de vista da filosofia de Espinosa, tudo isso seria possível? A arte não é de fato uma atividade que se dá antes de tudo no campo da imaginação e portanto da ideia inadequada? Contudo, segundo Hornäk devemos superar a ideia de imaginatio como mero conhecimento inadequado. Lembremos que a imaginação, enquanto tal, está inscrita no rol das atividades dos modos finitos, o que significa que ela mesma é algo, é modo e constitui um modo de ser. Sabemos, ao mesmo tempo, onde está o problema teórico e prático da imaginatio : caímos no inadequado ao afirmarmos de um conteúdo imaginativo que ele é verdadeiro ou falso, bom ou mau, quando o próprio conteúdo não nos oferece tanto. Como estamos sempre no exercício do nosso conatus, é quase inevitável que a imaginação não venha acompanhada dessas afirmações ou negações. No entanto, o próprio conatus pode exercer-se de tal forma que a imaginação não seja um obstáculo, mas um reforço. A imaginação, muitas vezes, é antes uma potência, em vez de impotência e passividade. Flaubert e Machado de Assis nos dão a ver certas paixões humanas. Mas no ato mesmo em que escrevem, não são dominados por elas.

A imaginação no artista é, em casos como esses, um potente instrumento de criação, não de dominação daquele que imagina. Hornäk nos lembra que, na abertura do Breve Tratado, a forma de exposição é já artística; ademais, a própria forma de exposição geométrica da Ética é, para a autora, igualmente artística, pois faria emergir uma “estrutura complexa” em que definições, axiomas, proposições e demonstrações se mostrariam de tal forma interligados que, ao fim do texto, seríamos capazes de vê-lo todo, seríamos capazes de ver a simultaneidade da forma, assim como seríamos capazes de apreender a nossa essência singular inseparavelmente do Universo (o todo), da mesma maneira que a autorreferencialidade presente nos quadros de Vermeer nos dariam a ver o próprio real em sua simultaneidade.

Hornäk vê nos quadros de Vermeer a expressão do que ela chama de “força substancial” em meio às próprias coisas cotidianas. Os elementos cotidianos do pintor realizam a imanência pictoricamente. A arte pode tornar a imanência visível. Em Vermeer, mais do que em qualquer outro pintor do XVII, segundo Hornäk, dá-se justamente essa visibilidade da imanência. Para a autora, a imanência não é uma ideia puramente conceitual, e portanto não se trata de buscar na arte o sentido da imanência, mas sim de entender como ela se exprime na arte.

Vermeer retrata o cotidiano de tal forma que o que se exprime na tela é o singular (não o geral, isto é, não uma casa, um quarto, um vaso ou uma mulher, mas esta casa, este quarto, este vaso, esta mulher). Tomando sempre como referência A leiteira, Hornäk considera que o humano e o mundo estão igualmente presentes na tela de Vermeer, através da figuração plástica de uma mulher, um lugar e uma ação singulares. A singularidade do gesto da leiteira exprime-se em sua total concentração na realização do ato cotidiano de despejar o leite que sai de uma recipiente e entra em outro. Concentração e movimento, aqui, encerram a “quietude” que se exprime no gesto da leiteira. Para Hornäk, a apreensão intuitiva do “verter do leite” equivale a uma experiência da eternidade, uma vez que a Natureza se exprime nos modos e portanto também nos gestos mais cotidianos.

Para chegar a essas conclusões, Hornäk analisa o uso das cores, da luz e do que ela chama de “superfície de imagem e espaço de imagem”, em Vermeer. O trabalho de composição e combinação das cores mostra o quanto elas formam uma trama, uma tessitura, pela qual Vermeer “escreve” o “texto” da tela, de tal maneira que a imanência se faria presente no próprio ato criativo do pintor. Para Hornäk, entretanto, sem o uso específico que Vermeer faz da luz essa trama das cores seria impossível. Aqui, como muitos historiadores lembraram, o procedimento estético é o chiaroscuro . Hornäk lembra, porém, que o uso desse procedimento é de tal ordem que o chiaro não se opõe ao oscuro . Claro e escuro não são oposições irredutíveis. Em vez disso, eles formariam uma “unidade harmônica”. O homem não se opõe ao mundo; é dele um elemento discernível mas inseparável, componente intrínseco do todo. Mas de onde vem a luz, em A leiteira ? Segundo Hornäk, a luz intensa da parede não pode advir dos vidros da janela à esquerda da tela, porque eles estão demasiados embaçados para produzir uma tal luminosidade 1 . A luz da parede, intensa e profunda, seria produzida ali mesma, por ela mesma: ela seria, assim, figuração pictórica da causa imanens, da causa que não se separa do efeito após causá-lo. Certamente a importância que a autora dá ao papel da luz não é casual. Ela mesma nos lembra que para uma longa tradição de religiosos e pensadores a luz sempre foi considerada “símbolo do divino”. Mas a luz, em Vermeer, não seria o que remete a outra coisa, a algo fora da tela, ao transcendente: ela se dá e se constitui no cotidiano mesmo, alia onde as coisas estão, em meio a elas e por meio delas.

É contudo no momento em que analisa o problema da superfície e do espaço da imagem que a interpretação de Hornäk fica ao mesmo tempo mais interessante e mais controversa. Mais interessante porque aprofunda a interpretação da obra de Vermeer pela ótica da imanência espinosana; mais controversa porque, nesse aprofundamento, parece realizar uma leitura “piedosa”, “espiritualista” e um tanto mística da filosofia de Espinosa. E, realmente, a partir da análise de elementos formais de A leiteira, Hornäk identifica a figuração pictórica de temas como a “concentração” e a “quietude”. A mulher que no centro da tela faz jorrar o leite na vasilha sobre a mesa realiza esse ato com toda a atenção, compenetrada em seu gesto, a ponto de ela, sua ação, os objetos que a cercam, o próprio lugar, enfim, comporem uma “cena hermética” que exprime “concentração” plena e, por isso mesmo, certa “quietude”.

Nesta “cena hermética” encontra-se, porém, a abertura para todo o Universo, afirma Hornäk. A autora fala no “mundo sumamente próprio” e na “interiorização absoluta” que as telas de Vermeer deixariam ver. E, no entanto, precisamente aí encontraríamos “o atrelamento, tão difícil de apreender, entre finitude e infinitude” (Hornäk 3, p. 378). Haveria, então, uma espécie de “filosofia da imanência”, não dita, não escrita, mas figurada nas telas de Vermeer, particularmente em A leiteira ? As análises e interpretações de Hornäk parecem querer levar o leitor a essa conclusão. E de fato uma tal conclusão em Vermeer seria tanto mais possível quanto, segundo Hornäk, “o pintor suprime dualismos em teoria do conhecimento, como o que se tem entre imaginatio e ratio, corpo e alma, percepção e conhecimento” (Hornäk 3, idem).

Não é que autora desconheça o lugar da imaginatio na Ética de Espinosa. Sabe que na imaginação estamos sempre às voltas com o inadequado. Mas ela lembra que a conquista do adequado, em Espinosa, não se faz pela defesa “de um ponto de vista puramente racionalista”, já que Espinosa vai além da razão sem dispensá-la: a ciência intuitiva, o terceiro gênero de conhecimento, faz de Espinosa um racionalista sui generis no século XVII, pois com ela a própria razão se vê ampliada – não porque seja agora capaz de apreender mais generalidades, mas, ao contrário, porque capaz de captar singularidades, antes de tudo da essência singular do corpo de que esta mente intuitiva é a ideia. Contudo, precisamente a ciência intuitiva dá à imaginatio um outro estatuto: à imaginação não é mais dado o valor de verdade que era fonte de todo o erro (lembremos que a imaginação em si não é nem falsa nem verdadeira), mas antes um lugar na contemplação adequada de si que envolve uma outra imagem de si mesmo, das coisas e da Natureza (ou Deus), assim como da ligação necessária (eternidade) entre nós, as coisas e a Natureza.

A ciência intituitiva, portanto, envolve razão e imaginação, mas agora sob o aspecto da eternidade. Ora, precisamente esse conhecimento intuitivo corresponde, na arte, segundo Hornäk, à “uma atitude contemplativa, na qual o homem, mergulhado em si mesmo, assume um estado de interiorização”. Essa “interiorização” intuitiva estaria presente em A leiteira : “A criada parece espreitar a si mesma” (Hornäk 3, p. 382). Evidentemente, não estamos aqui diante de uma interiorização que nos faria cair num sopsismo sem saída de si, precisamente porque, realizando- se no campo da ciência intuitiva, ela é por isso a expressão da ligação que mente tem com a Natureza inteira, e, portanto, em vez de nos fechar em nós mesmos, ela é capaz de nos abrir a todas as coisas, ou, o que é o mesmo, de realizar uma abertura ao “múltiplo simultâneo”, para utilizar uma expressão de Marilena Chaui (Chaui 1, p. 103). É aqui que, para Hornäk, somos capazes de apreender o eterno no temporal, o infinito no finito, a Substância nos modos.

O que, entretanto, em A leiteira de Vermeer, revela-nos esse poder de apreensão intuitiva do real e de nós mesmo na Natureza? Aqui aparece com mais clareza aquele ponto controverso a que nos referimos acima. Para Hornäk, pode-se ver na ação da criada, em sua expressão, em seu gesto, uma atitude de “concentração”, “paciência” e “quietude”. E a autora chega mesmo a falar em “humildade”, dando-lhe outro sentido, que não é o de Espinosa: se para este a humildade é contemplação da própria impotência, para a autora ela é “dedicação plena de devoção”, que o gesto da criada deixaria entrever. Se, agora, reunirmos estes termos e expressões àquele “amor espiritual a Deus”, não poderíamos ver aí uma interpretação um tanto “piedosa”, isto é, religiosa, e espiritualista da filosofia de Espinosa, mas também das obras de Vermeer? Mas deixamos ao leitor um julgamento mais apurado e justo do livro. Em todo caso, é verdade que, por outro lado, o texto de Hornäk deixa entrever que humildade, paciência, quietude e concentração querem exprimir apenas um estado de alegria ativa, em que se fundem atividade e passividade, ação e contemplação, obra e expectador, texto e leitor. Para Hornäk, Vermeer desfaz de tal forma a oposição entre interioridade e exterioridade, que o observador pode tomar parte na atitude contemplativa da personagem figurada na tela.

Mas a conclusão talvez mais importante de Hornäk, nesse momento de seu percurso interpretativo, é a de que as figuras retratadas nos quadros de Vermeer não narram acontecimentos, mas exprimem a eternidade. Na concentração tem-se o elemento da atenção – e Hornäk não deixa de lembrar pelo menos um intérprete de Vermeer que tenha destacado o fato de que na arte holandesa do XVII ocorreu a representação do mais alto grau de atenção envolvido na atividade doméstica (Hornäk 3, p. 384). Concentração, atenção, presente. Para os zen-budistas, a beatitude não se faz fora do tempo presente, esse tempo que é o mais difícil de ser vivido, como dizia Jorge Luis Borges. E se não narra acontecimentos, nem por isso Vermeer figura naturezas mortas congeladas no tempo (como se tal fosse possível). Em vez disso, o pintor “dilata o passo temporalmente mensurado para uma duração que nos possibilita a eternidade” (Hornäk 3, p. 394), escreve Hornäk. E então compreendemos que o leite jorrado da leiteira “flui eternamente” (Hornäk 3, p. 396). O leite sendo derramado é um “transcurso”, é duração eterna ou um “demorado agora” no todo da eternidade.

Muitos intérpretes falaram do “enigma” na obra de Vermeer. Para Hornäk este enigma consiste em tornar visível o que é da ordem do invisível: a eternidade e a imanência. Mas não é isso o que precisamente Espinosa nos faz ver, sobretudo com sua Ética ? A diferença é que enquanto aí os “olhos da alma” são as demonstrações geométricas da mente, em Vermeer os “olhos da mente” são os próprios olhos do corpo diante da visibilidade de uma obra que mostra a imanência e eternidade dos gestos, das coisas, do homem. Hornäk não hesita em afirmar que “na obra de Vermeer se realiza a imanência”. E poderia ser diferente? Não seria correto dizer que, se todos os modos são modificações da Substância única que lhes é imanente, como eles a ela, a própria Substância está de algum modo em todas as coisas, em todos os gestos, em todos os homens, em todas as obras? Correto, mas, precisamente, ela se faz presente de maneiras diferentes. Há maneiras e maneiras de exprimir o Ser. Podemos fazê-los mais ou menos. Às vezes se está mais próximo de si mesmo; às vezes se está tão longe de si que é então a quase pura passividade o que impera. Neste último caso, um gesto, uma obra, uma ação exprimem apenas a exterioridade das relações e já não dizem quase nada, ou fazem muito pouco pela perfeição de nossa natureza e por nossa beatiude.

Sara Hornäk relembra uma passagem de O Olho e o espírito, na qual Merleau-Ponty afirma que na obra de Cézanne se “produz um cintilar do ser […] em todos os modos do espaço e também na forma” (Hornäk 3, p. 415-416). O mesmo, segundo Hornäk, se passa em Vermeer. Há nele a criação de uma “outra” realidade, sua obra remete a um “para além” do que se vê e se sente, mas ele o faz justamente no que se vê e se sente . “A segurança e capacidade com que a figura representada”, escreve Hornäk ainda sobre A leiteira, “realiza sua atividade permite que a cena apareça à luz da necessidade”. Eis, em Vermeer, a potência intrínseca da própria obra, a figuração do instante que se inscreve numa ontologia do necessário e que por isso mesmo torna visível a eternidade e imanência dos gestos, dos modos, dos acontecimentos. E, assim, por caminhos diferentes encontraríamos, em Vermeer como em Espinosa, uma mesma unidade de ser e agir, uma mesma afirmação da vida no presente, uma mesma potência de agir que se inscreve no seio da atividade eterna (sempre presente) dos atributos divinos que constituem a essência da Substância absolutamente infinita.

Deleuze amava dizer que a alegria espinosana realiza-se no mesmo ato de um bom encontro. Não se sabe se algum dia Espinosa encontrou-se com Vermeer, apesar de terem morado próximos um do outro, pelo menos durante os 17 anos em que Espinosa, mesmo tendo habitado diferentes cidades, não se afastou muito de Delft, a cidade de Vermeer. Mas Hornäk consegue realizar agora, para nós, esse bom encontro entre o filósofo e o pintor, entre a filosofia e arte, percorrendo o mesmo fio imanente que une um e outro, uma e outra, e todos nós. .

Notas

  1. Há um pequeno buraco, num dos vidros, que deixa ver o quanto eles estão embaçados, provavelmente pelo calor do ambiente interno em oposição ao frio do exterior

Referencias

  1. CHAUI, Marilena de S. “Ser Parte e Ter Parte: Servidão e na Ética IV”. In: Discurso, no. 22, 1993.
  2. ESPINOSA, Baruch de. Tratado teológico-político. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
  3. HORNÄK, Sara. Espinosa e Vermeer: imanência da filosofia e na píntura. São Paulo: Paulus, 2010.

Marcos Ferreira de Paula – Professor de filosofia do Curso de Serviço Social da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

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Tratado de Pintura / Leonardo Da Vinci

DA VINCI, Leonardo. Tratado de Pintura. Resenha de: BARONE, Juliana. O Tratado da Pintura de Leonardo da Vinci e suas principais edições em acervos brasileiros.  Revista de História da Arte e Arqueologia, Campinas, n.2, p.358-362, 1995/1996.

Juliana Barone – Universidade Estadual de Campinas, Brasil.

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L’ultimo Caravaggio: dalla Maddalena a mezza figura ai due San Giovanni (1606-1610) – PACELLI (RHAA)

PACELLI, Vincenzo. L’ultimo Caravaggio: dalla Maddalena a mezza figura ai due San Giovanni (1606-1610). Todi: Ediart, 1994. Introdução de Maurizio Calvesi. Resenha de CABRERA, Galia Daniela. Revista de História da Arte e Arqueologia, Campinas, n.2, p.371-372, 1995/1996.

Galia Daniela Cabrera – Universidade Estadual de Campinas, Brasil.

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